Epitáfio
de Abércio (final do século II – início do século III)
O
único documento que temos de Abércio é o seu epitáfio. Acredita-se que foi bispo
de Hierápolis, embora haja dúvidas sobre isso:
Eu, Abércio, ditei este
texto. E o fiz gravar na minha presença Aos setenta e dois anos.
O irmão que o ler por acaso,
Ore por Abércio. E ninguém erga outro túmulo sobre o meu, sob pena de multa:
Duas mil peças de ouro para o fisco romano e mil para Hierápolis, minha pátria
ilustre! (Epitáfio de Abércio)
Não
há nem sombra de purgatório ai, no máximo provaria que Abércio acreditava na
oração pelos mortos, mas até mesmo essa conclusão estaria sob suspeita. O bispo
estava vivo quando ditou o texto, então as orações pedidas poderiam ser para
ele enquanto estava vivo e não morto. O argumento de que orar pelos mortos
implica em purgatório é uma falácia da apologética católica.
Perpétua
(? – 203)
Perpétua
foi uma mártir cristã juntamente com sua serva Felicidade. Seu martírio é
narrado na obra Paixão de Perpétua e Felicidade:
Imediatamente, nessa mesma
noite, isto me foi mostrado em uma visão: eu vi Dinocrate saindo de um lugar
sombrio, onde se encontravam também outras pessoas; e ele estava magro e com
muita sede, com uma aparência suja e pálida, com o ferimento de seu rosto
quando havia morrido. Dinocrate foi meu irmão de carne, tendo falecido há 7
anos de uma terrível enfermidade... Porém, eu confiei que a minha oração
haveria de ajudá-lo em seu sofrimento e orei por ele todo dia, até irmos para o
campo de prisioneiros... Fiz minha oração por meu irmão dia e noite, gemendo e
lamentando para que [tal graça] me fosse concedida. Então, certo dia, estando
ainda prisioneira, isto me foi mostrado: vi que o lugar sombrio que eu tinha
observado antes estava agora iluminado e Dinocrate, com um corpo limpo e bem
vestido, procurava algo para se refrescar [refrigerium]; e onde havia a ferida,
vi agora uma cicatriz; e essa piscina que havia visto antes, vi que seus níveis
haviam descido até o umbigo do rapaz. E alguém incessantemente extraía água da
tina e próximo da orla havia uma taça cheia de água; e Dinocrate se aproximou e
começou a beber dela e a taça não reduziu [o seu nível]; e quando ele ficou
saciado, saiu pulando da água, feliz, como fazem as crianças; e então acordei.
Assim, entendi que ele havia sido levado do lugar do castigo. (Paixão de
Perpétua e Felicidade 2,3-4)
Nesta
citação, Perpétua tem uma visão do seu irmão Dinocrate, que morreu ainda
criança de alguma doença. A questão é se Perpétua acredita que ele estava no
purgatório – muito provavelmente não. Não há evidência alguma de que seu irmão
fosse um cristão. O lugar descrito por Perpétua nas duas visões (antes e após a
oração) é o mesmo. A condição de Dinocrate é melhor, não apresentando mais a
ferida, agora ele está num lugar de refrigério – uma clara referência ao seio
de Abraão, lugar de consolo para onde as almas dos justos iriam. Não há também
nenhuma qualificação que aponta para a doutrina romana, não há menção ao
passado cristão de Dinocrate, nem descrição do lugar como de purificação de
pecados.
Jacques
Le Goff afirma:
Aqui
não se trata de purgatório propriamente dito
(...) a sede e a impossibilidade de seu alívio do sofrimento são mais um mal
psicológico do que moral. O que se trata é uma pena psicofisiológica e não de punição
como se sucederá em todos os textos concernentes às prefigurações do purgatório
e ao purgatório mesmo. Não há tampouco juízo ou castigo (...) ele se salva graças à súplica de alguém que é digno de obter para ele o
perdão. (Le Goff, op. cit., pp. 21)
O
mais provável é que Perpetua tenha orado pela salvação do seu irmão. No
cristianismo primitivo, havia uma corrente razoavelmente popular que cria na
salvação após a morte, assim, muitos oravam pelos parentes falecidos.
Provavelmente, há também influência da obra “Atos de Paulo e Tecla” que narra
um fato semelhante. Essa obra apócrifa era popular em Cartago, onde se passou o
martírio, sendo inclusive citada por Tertuliano em sua obra “Do Batismo (XVIII,
5)”.
Tertuliano
de Cartago (160 – 220)
Há
um determinado lugar chamado Seio de Abraão,
que foi criado para a recepção das almas dos filhos de Abraão, até mesmo dentre
os gentios (desde que ele é "o pai de muitas nações", que devem ser
classificadas entre sua família) e da mesma fé daqueles que tem crido em Deus,
sem o jugo da lei e o sinal da circuncisão. Esta região, portanto, eu chamo Seio de Abraão. Embora não esteja no
céu, é ainda mais alta do que o inferno, sendo designada para proporcionar um
intervalo de descanso para as almas dos justos, até a consumação de todas
as coisas, que deve ser completada com ressurreição de todos os homens com a
plena recompensa de seus méritos. (Contra Marcião 04:34)
Seguem-se
os comentários de Le Goff em consonância com a citação acima:
Um africano que morreu algum
tempo depois de 220, Tertuliano escreveu um breve tratado, hoje perdido, no
qual afirmava "que toda a alma estava confinada no Inferno até o dia [do
Julgamento] do Senhor" (De anima 55,5). Essa foi uma adaptação da ideia de
sheol do Antigo Testamento. Este outro mundo encontrava-se localizado debaixo
da terra, e foi aqui que Cristo desceu por três dias (De anima 54,4).
Em “Contra Marcião” e “Sobre
a Monogamia”, Tertuliano entra em detalhes sobre o outro mundo e apresenta o
seu conceito de refrigerium. Marcião argumentou que não apenas mártires, mas
pessoas comuns justas eram admitidas no céu ou paraíso imediatamente depois da
sua morte. Tertuliano, por outro lado, baseando a sua discussão na história de
Lázaro e do homem rico, mantém que, enquanto aguardam a ressurreição, almas justas
comuns residem não no céu, mas num refrigerium interim, o seio de Abraão. Este
lugar, o seio de Abraão, embora não no céu, e acima do inferno, oferece às
almas dos justos um ínterim refrigério [refrigerium interim] até que o fim de
todas as coisas traga a ressurreição geral e a recompensa final (Adversus
Marcionem 4.34). Até o fim dos tempos o seio de Abraão deve servir como "o
receptáculo temporário das almas fiéis".
O pensamento de Tertuliano,
de fato, permanece altamente dualista. Em sua opinião existem dois destinos
contrastantes: a punição, que é expressa por palavras tais como tormento
(tormentum), agonia (supplicum) e tortura (cruciatus), e recompensa, expressa
pelo termo refrigério (refrigerium). Em dois lugares é afirmado que esses
destinos são eternos.
Em
relação à pré-história do Purgatório, a inovação de Tertuliano, se é que foi
uma inovação, foi o justo ter que passar um período de tempo no refrigerium
interim antes de ir habitar no eterno refrigerium. Mas não há nada realmente
novo acerca do lugar de refrigério, que ainda é o seio de Abraão. Entre o
refrigerium interim de Tertuliano e o purgatório existe uma diferença não só de
gênero - para Tertuliano é uma questão de uma espera tranquila até o juízo final,
enquanto com o Purgatório é uma questão de um sofrimento que purifica porque é
punitivo e expiatório - mas também de
duração: as almas permanecem no refrigerium até a ressurreição, mas no
Purgatório apenas o tempo que for preciso para expiar os seus pecados. (Le Goff, op. cit., pp. 21)
Apologistas
católicos apontam o capítulo 58 da obra “Tratado sobre a Alma” como evidência
de que Tertuliano cria no purgatório. Quem desejar verificar a citação pode
obtê-la no site católico New Advent aqui.
A passagem oferecida pelo Veritatis está bem diferente da encontrada na obra de
Tertuliano, há diversos trechos que lá não se encontram:
Todas as almas, pois, estão
trancadas no Hades: você admite isso? Você pode dizer sim ou não: além disso,
elas já experimentam punições ou consolações; e lá você tem um homem pobre e um
rico (...) em suma, na medida em que entendemos a prisão apontada no Evangelho
como sendo o hades, como nós também interpretamos o último centavo como
significando a menor ofensa que deverá recompensada lá antes da ressurreição,
ninguém hesitará em acreditar que a alma sofre no Hades alguma disciplina
compensatória, sem prejuízo para o processo completo da ressurreição, quando a
recompensa será executada na carne. (Tratado sobre a Alma 58)
A
própria citação deixa claro que Tertuliano não se refere ao purgatório, mas ao
inferno. Como visto nos comentário de Jacques Le Goff, Tertuliano dizia que
todas as almas, com exceção dos mártires, vão para o hades (a morada dos
mortos). O hades teria dois lugares: o inferno onde os ímpios sofrem a punição
e o seio de Abraão onde os justos desfrutam de consolo. O autor cristão
argumenta como uma alma sem corpo pode sofrer castigos. Nesse tratado, ele
afirma que a alma possui um componente corpóreo, e sempre que menciona punição
ou sofrimento, se refere aos ímpios, nunca àqueles que morreram na graça de
Deus. Vejamos outros trechos da mesma obra:
Portanto, qualquer
quantidade de punição ou refrigério
que a alma prova no Hades, em sua prisão
ou hospedagem, no fogo ou no seio de Abraão, dá prova, assim, de sua
própria corporeidade. Pois uma coisa incorpórea não sofre nada, não tem o que a
torna capaz de sofrimento; então, se ela tem essa capacidade, ele deve ser uma
substância corporal. Pois na medida em que cada coisa corpórea é capaz de
sofrimento, aquela [a alma] é também capaz de sofrer corporalmente. (Tratado
sobre a Alma 7)
Vejam
o paralelismo: “punição ou refrigério (...) prisão ou hospedagem (...) no fogo
ou seio de Abraão”. Não há dois lugares de punição, mas apenas um (o inferno),
no qual os ímpios estão. Os justos estão no refrigério, na hospedagem, no Seio
de Abraão. A visão de Tertuliano é baseada na parábola do rico e Lázaro.
Para este efeito é que ele
distorceu toda aquela alegoria do Senhor, que é extremamente clara e simples em
seu significado, e deve ser primariamente entendida no seu sentido simples e
natural. Assim, o nosso adversário (aí mencionado) é o homem pagão, que está
caminhando conosco ao longo da mesma estrada da vida que nos é comum. Seria
necessário que saíssemos do mundo, se não nos for permitido ter nenhuma
conversa com o pagão. Ele [Jesus] nos convida, portanto, a mostrar uma
disposição amável a um homem assim. Amai vossos inimigos, diz ele, orai pelos
que vos maldizem, para que este homem, em qualquer transação de negócios, caso
fique irritado com qualquer conduta injusta sua, e possa entregá-lo ao seu
próprio Juiz (Mateus 5: 25), e você poderá ser jogado na prisão, e ser detido
na sua cela estreita até ter liquidado todas as suas dívidas com ele. Então, novamente, você deve estar disposto
a aplicar o termo adversário ao diabo, você é aconselhado pela determinação
(do Senhor), enquanto você está no caminho com ele, fazer com ele um acordo que
pode ser considerado compatível com os requisitos de sua verdadeira fé. Agora, o acordo que você fez com respeito a ele é
renunciar a ele, sua pompa e os seus anjos. Tal é o seu acordo nesta
matéria. Agora, o entendimento amigável que você terá que realizar deve surgir
a partir de sua observância do acordo: você nunca deve pensar em obter de volta
qualquer das coisas que você abriu mão, e devolveu a ele, para que ele não
possa te chamar de homem fraudulento, e transgressor de seu contrato, antes
Deus, o juiz (na presente luz nós lemos dele, em outra passagem, como o
acusador dos irmãos, Apocalipse 12:10 ou santos, quando se faz referência à
prática efetiva do processo legal); e
para que este juiz [Deus] lhe entregue ao anjo que irá executar a sentença, e
ele lhe mandará para a prisão do inferno, do qual não poderá sair até que a menor das suas dívidas seja paga no
período anterior à ressurreição. (Tratado sobre a Alma 35)
Aqui,
Tertuliano interpreta Mateus 5:25-26. Os romanistas tomam essa passagem como
uma alusão ao purgatório, e Tertuliano a utiliza em vários momentos no seu
tratado sobre a alma. Nesta última citação deixa claro que não via purgatório nessa
passagem. O juiz seria Deus, o credor o Diabo e a prisão o Inferno. Ou seja,
aquele que deveria pagar até o último centavo estaria no inferno, não no
purgatório e ficaria lá até a ressurreição, não até expiar suas dívidas como
preconiza a doutrina romana. Após a ressurreição, haveria o juízo final, em que
os justos sairiam do seio de Abraão e iriam se juntar aos mártires, e os ímpios
que já experimentaram punição no inferno seriam lançados no lago de fogo.
Inferno e Seio de Abração seriam dois lugares localizados no hades (a morada
dos mortos). Portanto, Tertuliano, longe de referendar o purgatório, é na
verdade uma importante testemunha contra essa doutrina.
Minúcio
Félix (Séculos II – III)
Minúcio
Félix foi um apologista cristão do final do século II. Em sua obra Octavius, um
diálogo sobre o cristianismo entre um cristão (Octávius Januarius) e um pagão
(Caecilius Natalis), o pagão Caecilius faz o seguinte comentário:
Enganados por este erro,
eles prometem a si mesmos, como sendo boa, uma
vida abençoada e eterna após a sua morte; para outros, como sendo injustos,
punição eterna. (The Octavius de
Minucius Felix 11)
Ele
não aponta qualquer lugar como o purgatório. O cristão Octavius, ao invés de
corrigir a visão do pagão, responde confirmando que os crentes vão para junto
de Deus após a morte:
E a este respeito por mais
que eu admire você, na maneira em que você se aplica às pessoas mortas ou para
quem nada sente, uma tocha ou uma coroa de flores para quem não pode cheirá-la,
quando sendo abençoados eles não querem, ou sendo miseráveis, ele não tem
prazer em flores. Ainda que adornemos
nossos funerais com a mesma tranquilidade com que vivemos; não nos prendemos a
uma coroa que murcha, mas nós vestimos com a vida eterna das flores de Deus,
desde que nós, sendo seguros da generosidade do nosso Deus, somos animados
na esperança da futura felicidade pela confiança de sua presente majestade.
Assim, nós tanto crescemos em bem aventurança, como já estamos vivendo na
contemplação do futuro.
Clemente
de Alexandria (150 – 215) e Orígenes de Alexandria (185 – 253)
Vamos
agrupar esses dois Pais, pois suas opiniões sobre a questão são parecidas.
Orígenes
é citado como um professor do purgatório pelos romanistas. Na verdade, ele é
uma importante testemunha de que essa doutrina não fazia parte da tradição
apostólica, mas seria uma inovação doutrinária que teve como fonte a filosofia
platônica.
Le
Goff assevera:
A concepção particular de
Orígenes – que faz dele um herege – é que não há pecador tão mal, tão
inveterado, tão incorrigível em princípio que não acabe purificando-se por
completo e alcançando o paraíso. Até
mesmo o inferno é também temporal. Como disse exatamente G. Anrich: “Orígenes concebe mesmo o inferno como um
purgatório”. Orígenes leva até o
limite a teoria da purificação, que veio de Platão, dos Órficos e dos
Pitagóricos. Como não pode admitir a ideia pagã grega da metempsicose, das
reencarnações sucessivas, muito incompatível com o cristianismo, aceita uma
variante desta teoria que pensa poder ser cristã; a saber, a noção de um progresso contínuo, de um aperfeiçoamento
perpétuo da alma após a morte, que lhe permite, por mais pecadora que possa ter
sido a princípio, regressar a contemplação eterna de Deus: A Apocatástasis.
(Op. cit., pp. 72)
Orígenes,
por influência da filosofia grega, concebe a purificação pós-morte como um
estágio pelo qual todos terão que passar. Porém não há nada similar a doutrina
romana aqui. O objetivo desta purificação era permitir que todos os homens, até
os mais pecadores, pudessem ser salvos, até o inferno seria um tipo de
purgatório para os que morrem na inimizade de Deus. Não era uma purificação
apenas para os salvos. Trata-se de uma concepção universalista da salvação.
Orígenes
também difere da doutrina romana quanto ao momento desta purificação. Le Goff
escreve:
Quando tem lugar estas
purificações pelo fogo? Orígenes é muito claro a respeito: depois da ressurreição, durante o juízo final. (Op. cit., pp. 73)
Orígenes
foi aluno de Clemente de Alexandria, suas concepções influenciaram bastante seu
aluno que se tornou famoso pela defesa da apocatástasis. A opinião desse Pai a
respeito da purificação pós-morte é parecida. Ele acreditava na possibilidade
de salvação pós-morte, e toda a ideia de purificação pós-morte estava ligada a
isso.
Referindo-se
a ambos os pais gregos (Orígenes e Clemente), Le Goff diz:
Porém, para a concepção de
um verdadeiro purgatório faltam ainda numerosos elementos essenciais. O tempo do purgatório segue estando mal
definido, já que se confunde com o tempo do juízo final (...) nenhuma modalidade de purgatório se distingue
como é devido do inferno e o caráter temporal e provisório que constituirá sua
originalidade não havia aparecido ainda. Somente os mortos, com suas
bagagens mais ou menos pesadas de faltas, e Deus com sua benevolência de juiz
salvador tem uma responsabilidade nesta purificação depois da morte. Os vivos não intervêm nela para nada. E
finalmente, não há ainda um lugar de purgação. Por outra parte, fazem do
fogo purificador um fogo não somente espiritual, mas invisível. (Op. cit., pp.
75)
Hipólito
de Roma (170 – 236)
Mas
agora temos de falar do Hades, onde as almas tanto de justos como injustos
estão presas. O
Hades é um lugar no sistema criado, rude, uma localidade debaixo da terra, em
que a luz do mundo não brilha; e como o sol não brilha nesta localidade, a
escuridão deve ser necessariamente perpétua lá. Essa localidade foi destinada a ser uma casa de guarda para as almas.
Nessa localidade há certo lugar separado por si mesmo, um lago de fogo
inextinguível, em que supomos que ninguém ainda foi lançado; pois ele está
preparado para o dia determinado por Deus, em que uma sentença de julgamento
justa será aplicada a todos. E os injustos, e aqueles que não creram em Deus,
que honraram como Deus as obras vazias das mãos dos homens, ídolos formados por
eles próprios, deverão ser condenados a essa punição infinita. Mas os justos devem obter o incorruptível e
inalterável reino, eles [os justos] de fato estão atualmente presos no Hades,
mas não no mesmo lugar que os injustos. Nesta localidade [o Hades] há uma
descida e um portão no qual nós acreditamos que um arcanjo está posto como um
guardião. E quando aqueles são conduzidos pelos anjos até que as almas passem
por este portão, eles [os anjos] não procedem com todas da mesma forma; uma vez que os justos, sendo conduzidos à
luz para a direita, e sendo recebidos com hinos cantados pelos anjos postos no
local, são levados a um local cheio de luz. E lá os justos desde o início habitam, não governados por necessidade, mas sempre desfrutando a contemplação
das bênçãos que estão em sua vista, e deliciando-se com a expectativa de outras
novidades, e não se considerando melhores do que os outros. E esse lugar não
traz labutas a eles. Lá, não há nem calor ardente nem frio, nem aflição, mas a
face dos pais e dos justos são vistas sempre sorrindo, enquanto eles esperam o
descanso e eterno renascimento no céu que se sucede a este local. E nós o chamamos pelo nome seio de Abraão. Mas os injustos são arrastados
para a esquerda pelos anjos que são ministros do castigo, eles não vão por
conta própria, mas são arrastados a força como prisioneiros. E os anjos
nomeados sobre eles os enviam, repreendendo-os e ameaçando-os com um olhar de
terror, forçando-os para baixo nas partes mais baixas. E quando eles são trazidos,
os designados para esse serviço arrastam-nos para as fronteiras ou inferno. E
aqueles que estão tão perto, ouvem sem cessar a agitação e sentem a fumaça
quente. E quando essa visão está tão próxima, quando eles veem o terrível e
excessivo espetáculo do fogo, estremecem de horror pela expectativa do
julgamento futuro, como se eles já estivessem sentindo o poder da sua punição. E, novamente, de onde eles veem o lugar dos
pais e dos justos, eles também são punidos lá. Pois, um vasto e profundo
abismo está lá no meio, de modo que não pode nem qualquer dos justos por
compaixão pensar em passá-lo, nem qualquer dos injustos se atrevem a
atravessá-lo. Deste modo, então, sobre o tema do Hades, em que as almas de
todos estão presas até o tempo que Deus determinou; e então Ele irá realizar a
ressurreição de todos, não transferindo almas em outros corpos, mas elevando-as
em seus próprios corpos. (Contra Platão - Sobre a Causa do Universo - 1-2)
Esse
é um dos relatos patrísticos mais completos e impressionantes sobre o destino
pós-morte. Os leitores mais ligados devem ter percebido a influência da
parábola do rico e Lázaro (Lucas 16:19-31) sobre a visão de Hipólito. Hipólito
diz que há um lugar chamado hades, onde as almas dos justos e injustos estão
aguardando a ressurreição e o juízo final. Ele começa dizendo – “em que os anjos estão postos como guardas,
distribuindo, conforme as obras de cada um, castigos temporários para
diferentes pessoas.” – o romanista já poderia se adiantar e dizer que é o
purgatório então, mas ao seguir a narrativa, Hipólito esclarece que os justos
não estão sendo punidos ou purificados, eles estão no seio de Abraão, um lugar
de paz e felicidade que adianta a recompensa futura após a ressurreição. Os
injustos estão em outro lugar separado do seio de Abraão, onde já recebem
punição, enquanto aguardam o lago de fogo. Não há como ler essa passagem e
concluir outra coisa a não ser que Hipólito desconhecia totalmente a ideia do
purgatório.
Cipriano
de Cartago (? – 258)
A
citação abaixo é usada pelos apologistas católicos como se referindo ao
purgatório:
Uma coisa é pedir perdão;
outra coisa, alcançar a glória. Uma coisa é estar prisioneiro sem poder sair
até ter pago o último centavo; outra coisa, receber simultaneamente o valor e o
salário da fé. Uma coisa é ser torturado com longo sofrimento pelos pecados,
para ser limpo e completamente purificado pelo fogo; outra coisa é ter sido
purificado de todos os pecados pelo sofrimento. Uma coisa é estar suspenso até
que ocorra a sentença de Deus no Dia do Juízo; outra coisa é ser coroado pelo
Senhor. (Epístola 51:20)
Le
Goff escreve:
Alguns autores têm creditado
Cipriano com uma importante contribuição doutrinária para o purgatório já em
meados do século terceiro. Na sua Carta a Antoniano [Carta 51:20] Cipriano faz
a distinção entre dois tipos de cristãos: “Uma coisa é esperar o perdão e outra
coisa é chegar à glória; uma coisa é ser enviado para a prisão [no cárcere]
para ser solto apenas quando o último centavo for pago e outra coisa é receber
imediatamente a recompensa da fé e virtude; uma coisa é ser aliviado e
purificado dos seus pecados através de um longo sofrimento no fogo e outra
coisa é ter todas as suas falhas limpas pelo martírio; e é uma coisa ser
enforcado pelo Senhor no Dia do Juízo e outra ser imediatamente coroado por ele”...
A refutação de Jay sobre a noção de que Cipriano propôs uma doutrina semelhante
à do purgatório parece-me bem fundamentada. Segundo Jay, o que está a ser discutido na carta a Antoniano é a
diferença entre cristãos que não resistem à perseguição (os lapsos e apóstatas)
e os mártires. Não é uma questão de "purgatório" na vida após a
morte, mas de penitência aqui em baixo. A referência à prisão não tem a ver com
o purgatório, que ainda não existia, mas sim com a disciplina penitencial da
Igreja". (Op. cit., pp. 57-58)
Cipriano
repetidamente se refere aos crentes indo para o céu quando esta vida termina:
Deus promete a você, em sua
partida deste mundo, a imortalidade e a eternidade; e você duvida? Isso não é
conhecer a Deus inteiramente; isso é ofender a Cristo com o pecado de
incredulidade (...) quão grande é a vantagem de sair do mundo, o próprio
Cristo, o mestre da nossa salvação e de nossas boas obras, nos mostra, que,
quando seus discípulos ficaram tristes porque ele disse que estava prestes a
partir, disse: "Se vocês me amam, certamente exultaríeis porque eu vou
para o Pai” ensinando assim, e
manifestando que quando entes queridos que amamos afastam-se deste mundo,
devemos nos alegrar ao invés de se lamentar (...) o bem-aventurado Apóstolo
Paulo na sua epístola estabelece, dizendo: "Para mim o viver é Cristo e o
morrer é lucro" (...) vamos saudar
o dia que atribui a cada um de nós a sua própria casa, o que nos arrebata, e
nos liberta das armadilhas do mundo, e nos restaura para o paraíso e o reino.
Já começamos a considerar os patriarcas como nossos pais: por que não acelerar
e correr, para que possamos contemplar aos nossos pais, para que possamos
cumprimenta-los? Há um grande número de
nossos entes queridos que nos esperam, e uma multidão densa de pais, irmãos,
filhos, estão ansiosos por nós, já garantidos de sua própria segurança, e
ainda solícitos a nossa salvação. Para chegar a sua presença e o seu abraço, o
que é uma alegria tanto para eles como para nós! (...) que prazer existe no
reino celestial, sem medo da morte; como será sublime e perpétua a felicidade
com a vida eterna! Há a gloriosa
companhia dos apóstolos, o exército dos profetas jubilosos, há a multidão
inumerável dos mártires, coroado pela vitória de sua luta e paixão (...) para
estes, amados irmãos, vamos nos apressar com um desejo ansioso; vamos almejar
rapidamente estar com eles, e rapidamente para irmos a Cristo.
(Tratado 7 – Sobre a Mortalidade – 6-7, 26)
Cipriano
procura encher seus leitores de esperança, inclusive garante que encontrarão
muitos de seus entes queridos no paraíso. Ele escreve sobre vários grupos de
pessoas que serão encontrados lá e exorta que não se deve enxergar a morte como
triste, mas como algo bom, pois iremos para junto do Pai viver em comunhão com
nossos irmãos que já partiram. Toda a argumentação de Cipriano ficaria
prejudicada, se ainda tivéssemos que passar anos ou até séculos no purgatório.
Gregório
Taumaturgo (213 – 270)
Gregório
fala apenas de dois caminhos – o da alegria na habitação eterna ou do choro no
lugar de condenação:
E
o homem bom deve partir com alegria para a sua própria habitação eterna; mas o
vil, deve ocupar o seu lugar com choro,
e nem prata armazenada, nem ouro provado, terão mais qualquer utilidade. Porque
um acidente poderoso cairá em cima de todas as coisas, até mesmo sobre o
cântaro junto ao poço, e sobre a roda da vasilha que pode porventura ter sido
deixada no buraco, quando o curso do tempo chegar ao seu fim e o período de
estudo de uma vida que é como água tiver passado. (Uma Paráfrase do Livro de
Eclesiastes 12).
Afraates
(270 – 345)
Afraates
escreve que as almas dos crentes vão para Cristo e experimentarão uma espécie
de sono até a ressurreição do corpo. Ele interpreta 2 Coríntios 5:8 como os
evangélicos – o corpo morre e a alma vai para junto de Deus. Pode-se observar
que esse pai da Igreja, assim como muitos outros, desconhece a doutrina do
juízo particular que Igreja Romana prega. Para ele há apenas um juízo – aquele
que acontecerá com a volta de Cristo após a ressurreição dos mortos:
Porque,
quando os homens morrem, o espírito carnal é enterrado com o corpo, e a consciência é levada para longe
dele, mas o espírito celeste que recebem vai de acordo com a sua natureza em
Cristo. E sobre ambos, o apóstolo fez saber (...) o Espírito vai voltar novamente a Cristo de acordo com sua natureza, o
Apóstolo disse de novo: - Quando nos afastarmos do corpo estaremos com nosso
Senhor. O Espírito de Cristo, que recebe o espírito [espírito do cristão], esse vai para o nosso Senhor (...) mas
a nossa fé ensina assim, que quando os homens dormem, dormem este sono sem
saber do bem ou do mal. E os justos não olham suas promessas a frente, nem o
perverso olha a frente a sua sentença de punição, até que o juiz venha separar
aqueles cujo lugar é à sua direita daqueles cujo local está à sua esquerda ....
De todas estas coisas, entender tu, meu amado, como tem sido feito certo para
ti, que ainda ninguém tenha recebido a sua recompensa. Os justos ainda não tem
herdado o reino, nem têm o mau ido em tormento. O pastor não tem ainda dividido
Seu rebanho (...) o espírito que o justo
recebeu, de acordo com sua natureza celeste, vai para o nosso Senhor até o
momento da Ressurreição, quando ele
deve ser colocado no corpo em que habitava. E cada vez que ele tem a
memória deste na presença de Deus, e olha ansiosamente para a ressurreição do
corpo em que habitou (...) eles não
ficarão no mundo como estrangeiros, filhos de uma terra distante; e estamos
ansiosos para ser enviado para fora deste mundo e ir para a cidade, o lugar dos
justos. (Demonstrações 6:14, 8:20,
8: 22-23, 22: 9)
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