Transubstanciação e sacrifício propiciatório
da Missa
Já
temos nesse blog um artigo sobre Agostinho e a Eucaristia. Por isso, serei
breve nesse ponto e redireciono o leitor ao artigo aqui.
Longe de defender uma presença física de Cristo, ele sustentou a posição que
mais tarde as igrejas reformadas adotariam – Cristo estaria presente
espiritualmente, sendo a eucaristia um meio de graça, mas sem qualquer
transformação física dos elementos. Adiciono aqui a opinião de Gary Wills, um
estudioso católico romano, especialista em história da Igreja e que também escreveu
uma obra sobre Agostinho:
Na verdade, a Eucaristia no seu sentido mais tardio, de repartir o pão e o vinho como o corpo e
o sangue de Cristo, nunca é usado no Novo Testamento, nem mesmo na carta aos
Hebreus, a única que chama Jesus de sacerdote. Mesmo quando o termo
"Eucaristia" surgiu, como acontece nas cartas de Inácio de Antioquia,
ainda era, como em Paulo, simplesmente
uma celebração de unidade do povo num "único altar". Que esse
significado para o "corpo de Cristo" persistiria tão tarde quanto os
séculos IV e V, [é visto] na negação de
Agostinho da presença real de Jesus nos elementos da ceia.
Veja, isso é recebido, isso é comido, isso é
consumido. É o corpo de Cristo
consumido, é a Igreja de Cristo consumida, são os membros de Cristo consumidos?
Nem pensar! (Sermão 227)
Se você quer saber o que é o corpo de Cristo,
ouça o que o apóstolo [Paulo] diz aos crentes: "Você são o corpo de
Cristo, e seus membros" [1Co 12.27]. Se, então, vocês são o corpo de
Cristo e seus membros, esse é o seu
símbolo que se encontra no altar do Senhor - o que você recebe é um símbolo de
vocês mesmos. Quando você diz "Amém", você deve ser o corpo de
Cristo para fazer com que esse "Amém" tenha efeito. E por que você é o pão? Ouça novamente
o apóstolo falando desse próprio símbolo: "Nós somos um só pão, um só
corpo, mesmo sendo muitos" [1Co 10.17]. (Sermão 272)
Os crentes reconhecem o corpo de Cristo quando
eles tomam cuidado por serem [os
crentes] o corpo de Cristo. Eles devem ser o corpo de Cristo se eles querem
viver a partir do espírito de Cristo. Nenhuma vida vem para o corpo de Cristo,
mas do espírito de Cristo. (In Joannem Tractatus
26.13) (Why Priests?: A Failed Tradition. Ed.
Penguin, 2013, p. 16)
Wills
dedica todo o capítulo 5 da obra a Agostinho e a transubstanciação. Ele
escreve:
Eu mencionei antes que Agostinho não acreditava no que é chamado de "presença real"
de Jesus na Eucaristia e citei vários lugares onde ele disse isso. Aqui
está sua afirmação mais explícita de que
o que é alterado na Missa não é o pão, mas os crentes que o recebem:
Esse pão deixa claro como você deve amar sua
união com o outro. Poderia o pão ser feito de apenas um grão, ou seriam muitos
grãos de trigo necessários? No entanto, antes de serem juntados como um pão,
cada grão era isolado. Eles foram misturados em água, depois de serem
triturados juntos. A menos que o trigo seja batido, e depois umedecido com
água, dificilmente poderia assumir a nova identidade que chamamos de pão. Da
mesma forma, você tinha que ser moído e batido pela provação de jejum e o
mistério do exorcismo na preparação para o batismo da água. Dessa forma vocês
foram regados, a fim de assumir a nova identidade do pão, depois que a água do
batismo umedeceu você na massa. Mas a poção da massa não se transforma em pães até
que seja cozido em fogo. E o que o fogo representa para você? É a
[pós-batismal] unção com óleo. Óleo que alimenta o fogo, que é o mistério do
Espírito Santo. . . O Espírito Santo vem a você, fogo depois da água, e você
está cozido no pão que é o corpo de Cristo. É assim que a sua unidade é
simbolizada. (Sermão 227)
Essa visão
agostiniana da Eucaristia é o verdadeiro significado que não morreu com ele,
embora a igreja fez longos esforços para
descartá-lo. Em 1944, o jesuíta francês Henri de Lubac
publicou um livro, Corpus Mysticum, que
traçou uma linha de teólogos no primeiro milênio cristão que se baseou em
Agostinho para fornecer uma teoria da Eucaristia oposta à transubstanciação. (Ibid., p. 55-56)
Wills
continua (p. 57) explicando que o Vaticano se opôs ao livro de Lubac e o puniu,
juntamente com outros "líderes dos pensadores liberais" como: Jean
Daniélou, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu, Karl Rahner, Teilhard de Chardin,
e John Courtney Murray. No entanto, depois do Vaticano II, esses homens foram
restaurados a tal ponto que em 1981, João Paulo II fez de Lubac um cardeal. Da
mesma forma, Jean Daniélou e Yves Congar se tornaram cardeais após a reintegração.
Em nosso artigo, trouxemos uma citação do Schaffer afirmando que muitos
teólogos medievais citaram Agostinho como uma testemunha contra a
transubstanciação. Ninguém menos do que o próprio discípulo do bispo de Hipona
seria um deles.
Necessidade
do batismo para salvação
Agostinho de fato defendia
essa ideia como demonstrou o católico. Em conexão a isso, também defendia o
batismo o infantil (o que não o coloca necessariamente em desacordo com muitas
das igrejas reformadas). Porém, a doutrina de Agostinho a esse respeito era
diferente da atual doutrina católica romana. Peter Stravinskas, um padre conservador
e apologista católico, escreveu para uma revista católica:
Apesar
da tremenda influência de Agostinho, várias
de suas opiniões nunca ganharam aceitação na Igreja. Entre elas, podemos
destacar as seguintes teorias: que Deus
condenaria crianças não batizadas ao inferno, simplesmente por causa da herança
do pecado original; que Deus justamente condena adultos que nunca tiveram a
oportunidade de serem apresentados ao Evangelho, mais uma vez, devido
unicamente ao pecado original contraído por eles; que algumas pessoas sofreriam
condenação eterna por nenhuma outra razão do que a falta de interesse de Deus
em salvá-las. Ao refletirmos sobre essas posições agostinianas, devemos
lembrar do fato de que só porque alguém é um santo ou mesmo um doutor da Igreja
não torna todo seu corpo de ensinar aceitável, somente o Magistério da Igreja pode decidir o que é ou não é conforme
sua compreensão da verdade de Cristo. (Envoy,
Setembro/Outubro de 1998)
Agostinho ensinou que o
batismo é necessário para a salvação, mesmo de crianças (Sobre a alma e sua
origem, 2:17). Em contraste, o catolicismo encoraja as pessoas a
"confiá-las [as crianças não batizadas] à misericórdia de Deus, como ela
faz em seus ritos funerários para eles" e "esperar que haja um caminho
de salvação para as crianças que morreram sem batismo" (Catecismo da
Igreja Católica, 1261). O apologista católico foi um pouco genérico na questão.
A Igreja romana atualmente ensina que pessoas podem ser salvas sem o batismo,
desde que elas desejassem explicitamente ou implicitamente o batismo – o
chamado “batismo de desejo”, algo que Agostinho rejeitaria.
Cumpre mencionar que
Agostinho está entre os advogados da regeneração batismal. Porém, essa doutrina
foi contrariada por vários pais da igreja, em sua maioria mais antigos do que
Agostinho. Tratamos da evidência pré-nicena aqui.
Confissão Auricular
O
apologista católico traz o seguinte testemunho de Agostinho a respeito da
confissão e penitência:
Quando
você for batizado, mantenha uma vida boa nos mandamentos de Deus para que
você possa preservar o seu batismo até o fim. Que eu não digo que você
vai viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais que esta vida nunca
está sem. O Batismo foi instituído para todos os pecados. Para pecados
leves, sem os quais não podemos viver, a oração foi instituída... Mas não
cometa esses pecados por conta de que você teria que ser separado do corpo de
Cristo. Pereça o pensamento! para aqueles que você vê fazendo penitência
cometeram crimes, seja adultério ou algumas outras enormidades. é por isso que
eles estão fazendo penitência. Se seus pecados eram leves, a oração diária
bastaria para apagá-los... Na Igreja, portanto, existem três maneiras
em que os pecados são perdoados: nos batismos, na oração, e na maior humildade
de penitência. (Sermão aos
Catecúmenos sobre o Credo 7:15; 8:16)
Tratamos
do desenvolvimento histórico da confissão e penitência aqui.
O problema ignorado pelo católico é que Agostinho não ensinou a doutrina da
confissão auricular defendida pela igreja romana. Pelo contrário, a contrariou
explicitamente. Para ele, a confissão e a penitência era um processo de
natureza pública e não privada (por isso não poderia ser considerada confissão
auricular), e seria aplicável apenas aos pecados considerados grave e acessível
apenas uma vez na vida. A igreja romana aplica a confissão e penitência mesmo
para os pecados leves ou veniais e permite que pessoas sejam perdoadas através desse
sacramento várias vezes ao longo da vida, mesmo em casos de pecados graves.
Vejamos a citação acima em contexto:
Quando foste batizado, mantenha uma vida correta
nos mandamentos de Deus para que você possa preservar o seu batismo até o fim.
Eu não digo que você irá viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais,
que nesta vida nunca se está sem. O Batismo foi instituído para todos os
pecados. Para pecados leves, sem os
quais não podemos viver, a oração foi instituída. Que direito tem a oração?
"Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos
devedores." Uma única vez todos fomos lavados no batismo, mas todos os dias temos de nos limpar por
meio da oração. Somente não cometa estas coisas para as quais é necessário
ser separado do corpo de Cristo: que estejam longe de você! Àqueles a quem tendes visto fazendo
penitência, foi porque cometeram atos abomináveis, como adultério ou alguns
crimes graves: por isso, eles fazem penitência. Porque, se os seus pecados
fossem leves, apagar estas manchas pela oração diária seria suficiente. Os
pecados são perdoados de três formas na Igreja: pelo batismo, pela oração e
pela maior submissão da penitência.
(Sobre o Credo 15, 16).
Mas aqueles que pensam que todos os outros
pecados são facilmente expiados por esmolas, já não tem dúvida de que estes
três são mortais, e tal como, se exige que sejam punidos por excomunhões, até
que eles tenham sido curados pela grande submissão da penitência. São estes pecados: a falta de castidade, a
idolatria e o assassinato.
(Sobre Fé e Obras 34)
O vício, entretanto, por vezes, faz tais
usurpações entre os homens que, mesmo
depois de terem feito penitência e serem readmitidos ao sacramento do altar,
eles cometem os mesmos ou mais graves pecados, mas Deus faz nascer seu sol
mesmo sobre tais homens e dá seus dons de vida e saúde como ricamente como Ele
fazia antes de suas falhas. E, embora a
mesma oportunidade de penitência não lhes é novamente concedida na Igreja, Deus
não se esquece de exercer sua paciência para com eles. (The Fathers of the Church (Washington D.C.: Catholic
University, 1953), Saint Augustine, Letters, Volume III, Letter 153, p.
284-285)
Vejam quão longe Agostinho está do catolicismo
romano. Os pecados considerados graves eram “a falta de castidade, a idolatria e o assassinato”. Faltar por
preguiça à missa aos domingos não estava entre eles – o que é considerado pela
igreja romana pecado mortal. O recurso da penitência estava disponível apenas
uma vez, enquanto um católico romano pode recorrer tantas vezes quanto quiser
ao longo da vida. Além disso, ele defende que mesmo não podendo recorrer à
penitência, o perdão de Deus ainda é possível. Já a igreja romana ensina a
condenação ao inferno para aqueles que cometeram pecado mortal e não fez uso do
sacramento.
O erudito patrístico J.N.D. Kelly, a quem o
católico muito citou de forma distorcida, observa que “Agostinho também estava
entre aqueles que acreditavam que poderia haver apenas uma penitência na vida
para alguns pecados” (Kelly, Op. Cit, p. 438). Kelly nos dá uma visão de como
era o processo:
Com o alvorecer do terceiro século,
as linhas gerais de uma disciplina penitencial reconhecida estavam começando a
tomar forma. Apesar dos
argumentos engenhosos de certos estudiosos, ainda não há sinais de um
sacramento da penitência privada (ou seja, a confissão a um padre, seguido pela
absolvição e a imposição de uma penitência), tais como a cristandade católica
conhece hoje. O sistema que parece ter existido na Igreja, neste momento, e
durante séculos posteriores, era
inteiramente público, envolvendo confissão, um período de penitência e exclusão
da comunhão, a absolvição formal e a restauração - todo esse processo era chamado de
exomologesis ... De fato, para os pecados menores, que mesmo os bons cristãos
cometem diariamente e dificilmente podem evitar, nenhuma censura
eclesiástica parece ter sido considerada necessária; esperava-se que os
indivíduos lidassem com eles pela oração, atos de bondade e perdão mútuo.
Penitência pública era para pecados graves; era, tanto quanto sabemos
universal, sendo um caso extremamente solene, capaz
de ser submetido somente uma vez na vida. (Ibid., pp. 216-217).
Purgatório
Agostinho
é largamente considerado o pai do Purgatório. Os católicos romanos o citam muitas
vezes referindo-se a algo semelhante à moderna doutrina católica. Mas o que não
explicam é que Agostinho reconheceu que estava especulando. Em outras palavras,
não estava transmitindo alguma tradição proferida de geração em geração em
sucessão ininterrupta desde os apóstolos. Ao contrário, ele estava especulando
sobre o que pode acontecer na vida após a morte. O famoso medievalista Jacques Le
Goff explica:
[Joseph
Ntedika] pôs o dedo num ponto chave, mostrando não apenas que a posição de
Agostinho evoluiu ao longo dos anos, o que era de se esperar, mas que passou
por uma mudança acentuada num ponto específico no tempo, que Ntedika situa no
ano 413 (...) Na Carta a Dardinus (417), ele [Agostinho] esboçou uma geografia
do além, onde não há lugar para o Purgatório. (The Birth of Purgatory
[Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1986], pp 62, 70).
O
historiador protestante George Salmon explica o significado desses fatos:
Da
mesma forma, quando Agostinho ouve a ideia sugerida de que, como os pecados dos
homens bons lhes causam sofrimento neste mundo, então também podem causar até
certo ponto no próximo, diz que não vai arriscar dizer que nada do tipo não
possa ocorrer, porque talvez possa. Bem, se a ideia de purgatório não
tinha conseguido ir além de um "talvez" no início do século V,
podemos dizer com segurança que não foi
pela tradição que a Igreja mais tarde chegou à certeza sobre o assunto; pois,
se a Igreja tivesse alguma tradição no tempo de Agostinho, esse grande Padre
não podia ter deixado de conhecê-la. (The Infallibility of the
Church [London, England: John Murray, 1914], pp. 133-134).
Aqui
está um exemplo de Agostinho expressando a sua incerteza:
E
não é impossível que algo do mesmo tipo possa ocorrer mesmo depois desta vida.
É uma matéria que pode ser investigada, e apurada ou deixada na dúvida,
se alguns crentes devem passar por uma espécie de fogo purificador, e na
proporção em que amaram com mais ou menos devoção os bens que perecem, ser mais
ou menos rapidamente livres dele. (O
Enchiridion, 69).
Longe
de ser uma boa testemunha da doutrina romana, Agostinho demonstra que o purgatório
era uma inovação fruto de especulação, não havia em seu tempo nenhuma sólida
tradição que suportasse essa doutrina, muito menos uma tradição de origem
apostólica. Mais tarde, já no final do século sexto, o Papa Gregório Magno dará
grande impulso à doutrina do purgatório. Aquilo que Agostinho especulou,
Gregório tomou como certo.
Sucessão Apostólica
Trataremos
esse ponto de forma resumida, pois já abordamos em artigos anteriores. O
conceito de sucessão de Agostinho é radicalmente distinto do católico romano.
Ele não acreditava em papado – o elemento básico do ensino romanista a respeito.
As premissas do papado como o primado jurídico de Pedro, a transmissão da
autoridade do apóstolo de forma exclusiva e integral ao bispo de Roma, a
infalibilidade papal e a chefia de toda a igreja pelo bispo romano não eram
cridos pelo africano. Além do mais, ele não acreditava que o critério final
para definir a verdadeira igreja era a sucessão apostólica, mas a conformação
da igreja à autoridade suprema das Escrituras, como demonstramos na parte 3 de nossa série.
O
apologista católico traz a lista de Agostinho dos bispos de Roma. Essa não era
uma lista de papas, mas apenas uma lista de bispos como já argumentado. Outro
problema é que a lista de Agostinho é diferente da lista de papas.
Ele coloca a seguinte sequência: Pedro – Lino – Clemente – Anacleto. Na lista
romana, Anacleto vem antes de Clemente e não depois. Agostinho também coloca
Aniceto depois de Pio, enquanto a lista oficial coloca antes:
O sucessor de Pedro foi Lino, e seus sucessores
em continuidade ininterrupta foram estes: Clemente,
Anacleto, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telesforo, Igino, Aniceto, Pio, Sotero, Eleutério,
Victor.... (Carta 53:2)
Foi
abordado na parte 1 a mudança da eclesiologia de Agostinho. Ele
passou a compreender a igreja como a reunião dos eleitos que poderiam ser
pessoas fora da igreja institucional num dado momento. O bispo africano também
adotou o conceito de igreja invisível:
A segunda regra é sobre a dupla divisão do corpo
do Senhor, mas esse na verdade não é um termo adequado, por que nenhuma parte
do corpo de Cristo deixará de estar com Ele na eternidade. Devemos dizer que a
regra é sobre o verdadeiro e o corpo misto do Senhor, ou o verdadeiro e o
falso, ou algum outro nome, porque para não se falando da eternidade, pode ser dito que os hipócritas não estão
Nele, embora eles pareçam estar na Sua Igreja. (A doutrina cristã 3:32)
Eleição Incondicional e Perseverança dos Santos
Agostinho defendeu a eleição
incondicional:
Procuremos entender a vocação própria dos
eleitos, os quais não são eleitos porque
creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a
existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes,
mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). (...) Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que
quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo? (Ef
1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que
haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala
contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu
que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o
escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Consequentemente, foram
escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus
sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a
vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também
os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou aos que predestinou e não
a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a
outros com a consecução daquele fim que não tem fim. Portanto, Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque
já o eram. (GRAÇA II, 1999,
p.194, 195).
Sobre
a perseverança dos santos:
É Ele, portanto, que os faz perseverar no bem,
que os torna bons. Mas os que caem e
perecem nunca foram do número dos predestinados. (A graça e o livre arbítrio, cap. 36)
Essa
é apenas uma pequena amostra de muitas outras que mostram como a soteriologia
agostiniana foi negada por Roma. Apesar de a igreja romana ter seguido
Agostinho ao condenar o pelagianismo, nunca aderiu completamente às doutrinas
agostinianas da salvação. Norman Geisler, um oponente da doutrina da eleição
incondicional, escreve:
Nos seus escritos antipelagianos anteriores, por
sua vez, Agostinho nunca adotara a posição radical sobre o livre-arbítrio e a
expiação limitada que ele acabou manifestando em seus escritos posteriores,
particularmente depois de 417. O endurecimento das artérias teológicas de
Agostinho é manifesto em diversas áreas. Em sua visão anterior, igual à que foi
sustentada por todos os pais ao longo de toda a história da Igreja até Lutero,
ele abraçou a expiação ilimitada; posteriormente,
afirmou a expiação limitada. No período anterior, ele sustentava que Deus
nunca coage um ato livre; isso foi
descartado em favor da graça irresistível sobre o que não quer, nos últimos
anos de sua vida. Isso, naturalmente,
resultou no endurecimento de sua visão da predestinação, em que Deus foi ativo
tanto no destino do eleito quanto no do não-eleito, e na negação de que há
condições para se receber o dom da salvação incondicional de Deus. De fato,
para o Agostinho mais velho, em contraste com o Agostinho mais jovem, a raça humana
está tão depravada que não tem
livre-escolha em relação às coisas espirituais. (GEISLER, 2005, p. 190)
Roger
Olson, um conhecido oponente dessas doutrinas, também escreve:
Toda a soteriologia de Agostinho decorre de duas
crenças principais: a absoluta e total
depravação dos seres humanos depois da queda e o poder e a soberania absoluta e
total de Deus. (OLSON, 2001,
p. 275)
Paul
Tillich escreve sobre o testemunho de Agostinho:
Os
predestinados não podem recair. Recebem o dom da perseverança que lhes impede
de perder a graça uma vez recebida. Nada disso depende de mérito. (TILLICH, 2007, p. 141).
Salvação fora da Igreja
O
apologista católico traz uma citação em que Agostinho afirma a necessidade da
participação na Eucaristia para salvação:
[De acordo com] Tradição Apostólica... as Igrejas
de Cristo mantém inerentemente que sem o batismo e a participação na mesa do
Senhor é impossível para qualquer homem alcançar tanto o reino de Deus quanto a
salvação e a vida eterna. Este é o testemunho da Escritura também. (Sobre o mérito e perdão dos pecados e o batismo
de crianças 1:24:34)
O
interessante desse item é que ao querer refutar o protestantismo, o apologista
acaba demonstrando que Agostinho contrariava o romanismo. A igreja romana
ensina atualmente que até mesmo homens não cristãos podem ser salvos. Em
oposição à tradição histórica romanista, em que estar submetido ao papa não é
mais uma necessidade para que qualquer homem seja salvo. Então mostrar que o
bispo africano defendia a participação na Eucaristia como necessária para a salvação
mostra apenas o que defendemos – Agostinho não era um católico romano. O
catecismo afirma:
Significa que toda a salvação vem de
Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é o seu corpo. Portanto não poderiam ser
salvos os que, conhecendo a Igreja como fundada por Cristo e necessária à
salvação, nela não entrassem e nela não perseverassem. Ao mesmo tempo, graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a
salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo
e a sua Igreja, mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça,
se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência
lhes dita. (846-848)
Já
o Concílio de Florença disse:
A Igreja crê firmemente, professa e prega que todos aqueles que estão fora da Igreja
Católica, não só pagãos, mas também judeus ou hereges e cismáticos, não podem
compartilhar a vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o
diabo e seus anjos, a menos que eles estejam ligados à Igreja Católica antes do
final de suas vidas, pois a unidade do corpo eclesiástico é de tal
importância que somente aqueles que
recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo
jejuns, obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o
quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de
Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica. (Concílio de Florença, 1431-1445)
Esse
é só um dos inúmeros exemplos de como o magistério romano se contradiz ao longo
da história. O Concílio de Florença, supostamente infalível, foi claro –
ninguém pode ser salvo se não estiver ligado a hierarquia romana e participando
dos sacramentos. O pensamento agostiniano é claro:
Nenhum
homem pode encontrar a salvação exceto na Igreja Católica. Fora da
Igreja Católica se pode ter tudo, exceto a salvação. Uma pessoa pode ter honra,
pode ter os sacramentos, pode cantar aleluia, pode responder amém, pode ter fé
no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e pregá-lo também, mas nunca pode encontrar a salvação exceto
na Igreja Católica. (Sermo ad
Caesariensis Ecclesia plebem)
Nessa
altura de nossos estudos, resta claro que a igreja católica a que se refere
Agostinho não era católica romana. Os reformadores estão mais próximos desse
ponto. Eles ensinavam que não havia salvação fora da igreja e rejeitariam a
possibilidade de não cristãos serem salvos, pois apenas os regenerados e
crentes em Cristo podem fazer parte da igreja.
Os
católicos costumam alegar que os não cristãos podem ser salvos através da
igreja, mesmo não aderindo a ela. Obviamente, essa ideia não era compartilhada
pelos pais da igreja ou mesmo pelos papas mais antigos. Além do mais é uma
contradição. Alguém que nunca manifestou a fé em Cristo não pode fazer parte de
sua igreja.
Conclusão da Série
Concluo
aqui está série de sete artigos sobre Agostinho e o catolicismo romano. Espero
que esse estudo seja útil aos leitores e tenha demonstrado de forma suficiente
o quão longe o bispo de Hipona estava da atual igreja romana. O maior teólogo
da igreja latina não era um católico romano, isso nos dá uma boa evidência de
como as peculiares doutrinas do romanismo não encontram fundamento histórico.