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quinta-feira, 17 de março de 2016

Agostinho e o Catolicismo Romano - Parte 7 (Eucaristia, Batismo, Confissão e Penitência, Purgatório, Sucessão Apostólica e Salvação)


Transubstanciação e sacrifício propiciatório da Missa

Já temos nesse blog um artigo sobre Agostinho e a Eucaristia. Por isso, serei breve nesse ponto e redireciono o leitor ao artigo aqui. Longe de defender uma presença física de Cristo, ele sustentou a posição que mais tarde as igrejas reformadas adotariam – Cristo estaria presente espiritualmente, sendo a eucaristia um meio de graça, mas sem qualquer transformação física dos elementos. Adiciono aqui a opinião de Gary Wills, um estudioso católico romano, especialista em história da Igreja e que também escreveu uma obra sobre Agostinho:

Na verdade, a Eucaristia no seu sentido mais tardio, de repartir o pão e o vinho como o corpo e o sangue de Cristo, nunca é usado no Novo Testamento, nem mesmo na carta aos Hebreus, a única que chama Jesus de sacerdote. Mesmo quando o termo "Eucaristia" surgiu, como acontece nas cartas de Inácio de Antioquia, ainda era, como em Paulo, simplesmente uma celebração de unidade do povo num "único altar". Que esse significado para o "corpo de Cristo" persistiria tão tarde quanto os séculos IV e V, [é visto] na negação de Agostinho da presença real de Jesus nos elementos da ceia.

Veja, isso é recebido, isso é comido, isso é consumido. É o corpo de Cristo consumido, é a Igreja de Cristo consumida, são os membros de Cristo consumidos? Nem pensar! (Sermão 227)

Se você quer saber o que é o corpo de Cristo, ouça o que o apóstolo [Paulo] diz aos crentes: "Você são o corpo de Cristo, e seus membros" [1Co 12.27]. Se, então, vocês são o corpo de Cristo e seus membros, esse é o seu símbolo que se encontra no altar do Senhor - o que você recebe é um símbolo de vocês mesmos. Quando você diz "Amém", você deve ser o corpo de Cristo para fazer com que esse "Amém" tenha efeito. E por que você é o pão? Ouça novamente o apóstolo falando desse próprio símbolo: "Nós somos um só pão, um só corpo, mesmo sendo muitos" [1Co 10.17]. (Sermão 272)

Os crentes reconhecem o corpo de Cristo quando eles tomam cuidado por serem [os crentes] o corpo de Cristo. Eles devem ser o corpo de Cristo se eles querem viver a partir do espírito de Cristo. Nenhuma vida vem para o corpo de Cristo, mas do espírito de Cristo. (In Joannem Tractatus 26.13) (Why Priests?: A Failed Tradition. Ed. Penguin, 2013, p. 16)

Wills dedica todo o capítulo 5 da obra a Agostinho e a transubstanciação. Ele escreve:

Eu mencionei antes que Agostinho não acreditava no que é chamado de "presença real" de Jesus na Eucaristia e citei vários lugares onde ele disse isso. Aqui está sua afirmação mais explícita de que o que é alterado na Missa não é o pão, mas os crentes que o recebem:

Esse pão deixa claro como você deve amar sua união com o outro. Poderia o pão ser feito de apenas um grão, ou seriam muitos grãos de trigo necessários? No entanto, antes de serem juntados como um pão, cada grão era isolado. Eles foram misturados em água, depois de serem triturados juntos. A menos que o trigo seja batido, e depois umedecido com água, dificilmente poderia assumir a nova identidade que chamamos de pão. Da mesma forma, você tinha que ser moído e batido pela provação de jejum e o mistério do exorcismo na preparação para o batismo da água. Dessa forma vocês foram regados, a fim de assumir a nova identidade do pão, depois que a água do batismo umedeceu você na massa. Mas a poção da massa não se transforma em pães até que seja cozido em fogo. E o que o fogo representa para você? É a [pós-batismal] unção com óleo. Óleo que alimenta o fogo, que é o mistério do Espírito Santo. . . O Espírito Santo vem a você, fogo depois da água, e você está cozido no pão que é o corpo de Cristo. É assim que a sua unidade é simbolizada. (Sermão 227)

Essa visão agostiniana da Eucaristia é o verdadeiro significado que não morreu com ele, embora a igreja fez  longos esforços para descartá-lo. Em 1944, o jesuíta francês Henri de Lubac publicou um livro, Corpus Mysticum, que traçou uma linha de teólogos no primeiro milênio cristão que se baseou em Agostinho para fornecer uma teoria da Eucaristia oposta à transubstanciação. (Ibid., p. 55-56)

Wills continua (p. 57) explicando que o Vaticano se opôs ao livro de Lubac e o puniu, juntamente com outros "líderes dos pensadores liberais" como: Jean Daniélou, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu, Karl Rahner, Teilhard de Chardin, e John Courtney Murray. No entanto, depois do Vaticano II, esses homens foram restaurados a tal ponto que em 1981, João Paulo II fez de Lubac um cardeal. Da mesma forma, Jean Daniélou e Yves Congar se tornaram cardeais após a reintegração. Em nosso artigo, trouxemos uma citação do Schaffer afirmando que muitos teólogos medievais citaram Agostinho como uma testemunha contra a transubstanciação. Ninguém menos do que o próprio discípulo do bispo de Hipona seria um deles.

Necessidade do batismo para salvação

Agostinho de fato defendia essa ideia como demonstrou o católico. Em conexão a isso, também defendia o batismo o infantil (o que não o coloca necessariamente em desacordo com muitas das igrejas reformadas). Porém, a doutrina de Agostinho a esse respeito era diferente da atual doutrina católica romana. Peter Stravinskas, um padre conservador e apologista católico, escreveu para uma revista católica:

Apesar da tremenda influência de Agostinho, várias de suas opiniões nunca ganharam aceitação na Igreja. Entre elas, podemos destacar as seguintes teorias: que Deus condenaria crianças não batizadas ao inferno, simplesmente por causa da herança do pecado original; que Deus justamente condena adultos que nunca tiveram a oportunidade de serem apresentados ao Evangelho, mais uma vez, devido unicamente ao pecado original contraído por eles; que algumas pessoas sofreriam condenação eterna por nenhuma outra razão do que a falta de interesse de Deus em salvá-las. Ao refletirmos sobre essas posições agostinianas, devemos lembrar do fato de que só porque alguém é um santo ou mesmo um doutor da Igreja não torna todo seu corpo de ensinar aceitável, somente o Magistério da Igreja pode decidir o que é ou não é conforme sua compreensão da verdade de Cristo. (Envoy, Setembro/Outubro de 1998)

Agostinho ensinou que o batismo é necessário para a salvação, mesmo de crianças (Sobre a alma e sua origem, 2:17). Em contraste, o catolicismo encoraja as pessoas a "confiá-las [as crianças não batizadas] à misericórdia de Deus, como ela faz em seus ritos funerários para eles" e "esperar que haja um caminho de salvação para as crianças que morreram sem batismo" (Catecismo da Igreja Católica, 1261). O apologista católico foi um pouco genérico na questão. A Igreja romana atualmente ensina que pessoas podem ser salvas sem o batismo, desde que elas desejassem explicitamente ou implicitamente o batismo – o chamado “batismo de desejo”, algo que Agostinho rejeitaria.

Cumpre mencionar que Agostinho está entre os advogados da regeneração batismal. Porém, essa doutrina foi contrariada por vários pais da igreja, em sua maioria mais antigos do que Agostinho. Tratamos da evidência pré-nicena aqui.

Confissão Auricular

O apologista católico traz o seguinte testemunho de Agostinho a respeito da confissão e penitência:

Quando você for batizado, mantenha uma vida boa nos mandamentos de Deus para que você possa preservar o seu batismo até o fim. Que eu não digo que você vai viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais que esta vida nunca está sem. O Batismo foi instituído para todos os pecados. Para pecados leves, sem os quais não podemos viver, a oração foi instituída... Mas não cometa esses pecados por conta de que você teria que ser separado do corpo de Cristo. Pereça o pensamento! para aqueles que você vê fazendo penitência cometeram crimes, seja adultério ou algumas outras enormidades. é por isso que eles estão fazendo penitência. Se seus pecados eram leves, a oração diária bastaria para apagá-los... Na Igreja, portanto, existem três maneiras em que os pecados são perdoados: nos batismos, na oração, e na maior humildade de penitência. (Sermão aos Catecúmenos sobre o Credo 7:15; 8:16)

Tratamos do desenvolvimento histórico da confissão e penitência aqui. O problema ignorado pelo católico é que Agostinho não ensinou a doutrina da confissão auricular defendida pela igreja romana. Pelo contrário, a contrariou explicitamente. Para ele, a confissão e a penitência era um processo de natureza pública e não privada (por isso não poderia ser considerada confissão auricular), e seria aplicável apenas aos pecados considerados grave e acessível apenas uma vez na vida. A igreja romana aplica a confissão e penitência mesmo para os pecados leves ou veniais e permite que pessoas sejam perdoadas através desse sacramento várias vezes ao longo da vida, mesmo em casos de pecados graves. Vejamos a citação acima em contexto:

Quando foste batizado, mantenha uma vida correta nos mandamentos de Deus para que você possa preservar o seu batismo até o fim. Eu não digo que você irá viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais, que nesta vida nunca se está sem. O Batismo foi instituído para todos os pecados. Para pecados leves, sem os quais não podemos viver, a oração foi instituída. Que direito tem a oração? "Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores." Uma única vez todos fomos lavados no batismo, mas todos os dias temos de nos limpar por meio da oração. Somente não cometa estas coisas para as quais é necessário ser separado do corpo de Cristo: que estejam longe de você! Àqueles a quem tendes visto fazendo penitência, foi porque cometeram atos abomináveis, como adultério ou alguns crimes graves: por isso, eles fazem penitência. Porque, se os seus pecados fossem leves, apagar estas manchas pela oração diária seria suficiente. Os pecados são perdoados de três formas na Igreja: pelo batismo, pela oração e pela maior submissão da penitência. (Sobre o Credo 15, 16).

Mas aqueles que pensam que todos os outros pecados são facilmente expiados por esmolas, já não tem dúvida de que estes três são mortais, e tal como, se exige que sejam punidos por excomunhões, até que eles tenham sido curados pela grande submissão da penitência. São estes pecados: a falta de castidade, a idolatria e o assassinato. (Sobre Fé e Obras 34)

O vício, entretanto, por vezes, faz tais usurpações entre os homens que, mesmo depois de terem feito penitência e serem readmitidos ao sacramento do altar, eles cometem os mesmos ou mais graves pecados, mas Deus faz nascer seu sol mesmo sobre tais homens e dá seus dons de vida e saúde como ricamente como Ele fazia antes de suas falhas. E, embora a mesma oportunidade de penitência não lhes é novamente concedida na Igreja, Deus não se esquece de exercer sua paciência para com eles. (The Fathers of the Church (Washington D.C.: Catholic University, 1953), Saint Augustine, Letters, Volume III, Letter 153, p. 284-285)

Vejam quão longe Agostinho está do catolicismo romano. Os pecados considerados graves eram “a falta de castidade, a idolatria e o assassinato”. Faltar por preguiça à missa aos domingos não estava entre eles – o que é considerado pela igreja romana pecado mortal. O recurso da penitência estava disponível apenas uma vez, enquanto um católico romano pode recorrer tantas vezes quanto quiser ao longo da vida. Além disso, ele defende que mesmo não podendo recorrer à penitência, o perdão de Deus ainda é possível. Já a igreja romana ensina a condenação ao inferno para aqueles que cometeram pecado mortal e não fez uso do sacramento.

O erudito patrístico J.N.D. Kelly, a quem o católico muito citou de forma distorcida, observa que “Agostinho também estava entre aqueles que acreditavam que poderia haver apenas uma penitência na vida para alguns pecados” (Kelly, Op. Cit, p. 438). Kelly nos dá uma visão de como era o processo:

Com o alvorecer do terceiro século, as linhas gerais de uma disciplina penitencial reconhecida estavam começando a tomar forma. Apesar dos argumentos engenhosos de certos estudiosos, ainda não há sinais de um sacramento da penitência privada (ou seja, a confissão a um padre, seguido pela absolvição e a imposição de uma penitência), tais como a cristandade católica conhece hoje. O sistema que parece ter existido na Igreja, neste momento, e durante séculos posteriores, era inteiramente público, envolvendo confissão, um período de penitência e exclusão da comunhão, a absolvição formal e a restauração - todo esse processo era chamado de exomologesis ... De fato, para os pecados menores, que mesmo os bons cristãos cometem diariamente e dificilmente podem evitar, nenhuma censura eclesiástica parece ter sido considerada necessária; esperava-se que os indivíduos lidassem com eles pela oração, atos de bondade e perdão mútuo. Penitência pública era para pecados graves; era, tanto quanto sabemos universal, sendo um caso extremamente solene, capaz de ser submetido somente uma vez na vida. (Ibid., pp. 216-217).

Purgatório

Agostinho é largamente considerado o pai do Purgatório. Os católicos romanos o citam muitas vezes referindo-se a algo semelhante à moderna doutrina católica. Mas o que não explicam é que Agostinho reconheceu que estava especulando. Em outras palavras, não estava transmitindo alguma tradição proferida de geração em geração em sucessão ininterrupta desde os apóstolos. Ao contrário, ele estava especulando sobre o que pode acontecer na vida após a morte. O famoso medievalista Jacques Le Goff explica:

[Joseph Ntedika] pôs o dedo num ponto chave, mostrando não apenas que a posição de Agostinho evoluiu ao longo dos anos, o que era de se esperar, mas que passou por uma mudança acentuada num ponto específico no tempo, que Ntedika situa no ano 413 (...) Na Carta a Dardinus (417), ele [Agostinho] esboçou uma geografia do além, onde não há lugar para o Purgatório. (The Birth of Purgatory [Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1986], pp 62, 70).

O historiador protestante George Salmon explica o significado desses fatos:

Da mesma forma, quando Agostinho ouve a ideia sugerida de que, como os pecados dos homens bons lhes causam sofrimento neste mundo, então também podem causar até certo ponto no próximo, diz que não vai arriscar dizer que nada do tipo não possa ocorrer, porque talvez possa. Bem, se a ideia de purgatório não tinha conseguido ir além de um "talvez" no início do século V, podemos dizer com segurança que não foi pela tradição que a Igreja mais tarde chegou à certeza sobre o assunto; pois, se a Igreja tivesse alguma tradição no tempo de Agostinho, esse grande Padre não podia ter deixado de conhecê-la. (The Infallibility of the Church [London, England: John Murray, 1914], pp. 133-134).

Aqui está um exemplo de Agostinho expressando a sua incerteza:

E não é impossível que algo do mesmo tipo possa ocorrer mesmo depois desta vida. É uma matéria que pode ser investigada, e apurada ou deixada na dúvida, se alguns crentes devem passar por uma espécie de fogo purificador, e na proporção em que amaram com mais ou menos devoção os bens que perecem, ser mais ou menos rapidamente livres dele. (O Enchiridion, 69).

Longe de ser uma boa testemunha da doutrina romana, Agostinho demonstra que o purgatório era uma inovação fruto de especulação, não havia em seu tempo nenhuma sólida tradição que suportasse essa doutrina, muito menos uma tradição de origem apostólica. Mais tarde, já no final do século sexto, o Papa Gregório Magno dará grande impulso à doutrina do purgatório. Aquilo que Agostinho especulou, Gregório tomou como certo.

Sucessão Apostólica

Trataremos esse ponto de forma resumida, pois já abordamos em artigos anteriores. O conceito de sucessão de Agostinho é radicalmente distinto do católico romano. Ele não acreditava em papado – o elemento básico do ensino romanista a respeito. As premissas do papado como o primado jurídico de Pedro, a transmissão da autoridade do apóstolo de forma exclusiva e integral ao bispo de Roma, a infalibilidade papal e a chefia de toda a igreja pelo bispo romano não eram cridos pelo africano. Além do mais, ele não acreditava que o critério final para definir a verdadeira igreja era a sucessão apostólica, mas a conformação da igreja à autoridade suprema das Escrituras, como demonstramos na parte 3 de nossa série.

O apologista católico traz a lista de Agostinho dos bispos de Roma. Essa não era uma lista de papas, mas apenas uma lista de bispos como já argumentado. Outro problema é que a lista de Agostinho é diferente da lista de papas. Ele coloca a seguinte sequência: Pedro – Lino – Clemente – Anacleto. Na lista romana, Anacleto vem antes de Clemente e não depois. Agostinho também coloca Aniceto depois de Pio, enquanto a lista oficial coloca antes:

O sucessor de Pedro foi Lino, e seus sucessores em continuidade ininterrupta foram estes: Clemente, Anacleto, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telesforo, Igino, Aniceto, Pio, Sotero, Eleutério, Victor.... (Carta 53:2)

Foi abordado na parte 1 a mudança da eclesiologia de Agostinho. Ele passou a compreender a igreja como a reunião dos eleitos que poderiam ser pessoas fora da igreja institucional num dado momento. O bispo africano também adotou o conceito de igreja invisível:

A segunda regra é sobre a dupla divisão do corpo do Senhor, mas esse na verdade não é um termo adequado, por que nenhuma parte do corpo de Cristo deixará de estar com Ele na eternidade. Devemos dizer que a regra é sobre o verdadeiro e o corpo misto do Senhor, ou o verdadeiro e o falso, ou algum outro nome, porque para não se falando da eternidade, pode ser dito que os hipócritas não estão Nele, embora eles pareçam estar na Sua Igreja. (A doutrina cristã 3:32)

Eleição Incondicional e Perseverança dos Santos

Agostinho defendeu a eleição incondicional:

Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). (...) Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo? (Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Consequentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou aos que predestinou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim. Portanto, Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram. (GRAÇA II, 1999, p.194, 195).

Sobre a perseverança dos santos:

É Ele, portanto, que os faz perseverar no bem, que os torna bons. Mas os que caem e perecem nunca foram do número dos predestinados. (A graça e o livre arbítrio, cap. 36)

Essa é apenas uma pequena amostra de muitas outras que mostram como a soteriologia agostiniana foi negada por Roma. Apesar de a igreja romana ter seguido Agostinho ao condenar o pelagianismo, nunca aderiu completamente às doutrinas agostinianas da salvação. Norman Geisler, um oponente da doutrina da eleição incondicional, escreve:

Nos seus escritos antipelagianos anteriores, por sua vez, Agostinho nunca adotara a posição radical sobre o livre-arbítrio e a expiação limitada que ele acabou manifestando em seus escritos posteriores, particularmente depois de 417. O endurecimento das artérias teológicas de Agostinho é manifesto em diversas áreas. Em sua visão anterior, igual à que foi sustentada por todos os pais ao longo de toda a história da Igreja até Lutero, ele abraçou a expiação ilimitada; posteriormente, afirmou a expiação limitada. No período anterior, ele sustentava que Deus nunca coage um ato livre; isso foi descartado em favor da graça irresistível sobre o que não quer, nos últimos anos de sua vida. Isso, naturalmente, resultou no endurecimento de sua visão da predestinação, em que Deus foi ativo tanto no destino do eleito quanto no do não-eleito, e na negação de que há condições para se receber o dom da salvação incondicional de Deus. De fato, para o Agostinho mais velho, em contraste com o Agostinho mais jovem, a raça humana está tão depravada que não tem livre-escolha em relação às coisas espirituais. (GEISLER, 2005, p. 190)

Roger Olson, um conhecido oponente dessas doutrinas, também escreve:

Toda a soteriologia de Agostinho decorre de duas crenças principais: a absoluta e total depravação dos seres humanos depois da queda e o poder e a soberania absoluta e total de Deus. (OLSON, 2001, p. 275)

Paul Tillich escreve sobre o testemunho de Agostinho:

Os predestinados não podem recair. Recebem o dom da perseverança que lhes impede de perder a graça uma vez recebida. Nada disso depende de mérito. (TILLICH, 2007, p. 141).

Salvação fora da Igreja

O apologista católico traz uma citação em que Agostinho afirma a necessidade da participação na Eucaristia para salvação:

[De acordo com] Tradição Apostólica... as Igrejas de Cristo mantém inerentemente que sem o batismo e a participação na mesa do Senhor é impossível para qualquer homem alcançar tanto o reino de Deus quanto a salvação e a vida eterna. Este é o testemunho da Escritura também. (Sobre o mérito e perdão dos pecados e o batismo de crianças 1:24:34)

O interessante desse item é que ao querer refutar o protestantismo, o apologista acaba demonstrando que Agostinho contrariava o romanismo. A igreja romana ensina atualmente que até mesmo homens não cristãos podem ser salvos. Em oposição à tradição histórica romanista, em que estar submetido ao papa não é mais uma necessidade para que qualquer homem seja salvo. Então mostrar que o bispo africano defendia a participação na Eucaristia como necessária para a salvação mostra apenas o que defendemos – Agostinho não era um católico romano. O catecismo afirma:

Significa que toda a salvação vem de Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é o seu corpo. Portanto não poderiam ser salvos os que, conhecendo a Igreja como fundada por Cristo e necessária à salvação, nela não entrassem e nela não perseverassem. Ao mesmo tempo, graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita. (846-848)

Já o Concílio de Florença disse:

A Igreja crê firmemente, professa e prega que todos aqueles que estão fora da Igreja Católica, não só pagãos, mas também judeus ou hereges e cismáticos, não podem compartilhar a vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos, a menos que eles estejam ligados à Igreja Católica antes do final de suas vidas, pois a unidade do corpo eclesiástico é de tal importância que somente aqueles que recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo jejuns, obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica. (Concílio de Florença, 1431-1445)

Esse é só um dos inúmeros exemplos de como o magistério romano se contradiz ao longo da história. O Concílio de Florença, supostamente infalível, foi claro – ninguém pode ser salvo se não estiver ligado a hierarquia romana e participando dos sacramentos. O pensamento agostiniano é claro:

Nenhum homem pode encontrar a salvação exceto na Igreja Católica. Fora da Igreja Católica se pode ter tudo, exceto a salvação. Uma pessoa pode ter honra, pode ter os sacramentos, pode cantar aleluia, pode responder amém, pode ter fé no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e pregá-lo também, mas nunca pode encontrar a salvação exceto na Igreja Católica. (Sermo ad Caesariensis Ecclesia plebem)

Nessa altura de nossos estudos, resta claro que a igreja católica a que se refere Agostinho não era católica romana. Os reformadores estão mais próximos desse ponto. Eles ensinavam que não havia salvação fora da igreja e rejeitariam a possibilidade de não cristãos serem salvos, pois apenas os regenerados e crentes em Cristo podem fazer parte da igreja. 

Os católicos costumam alegar que os não cristãos podem ser salvos através da igreja, mesmo não aderindo a ela. Obviamente, essa ideia não era compartilhada pelos pais da igreja ou mesmo pelos papas mais antigos. Além do mais é uma contradição. Alguém que nunca manifestou a fé em Cristo não pode fazer parte de sua igreja.

Conclusão da Série

Concluo aqui está série de sete artigos sobre Agostinho e o catolicismo romano. Espero que esse estudo seja útil aos leitores e tenha demonstrado de forma suficiente o quão longe o bispo de Hipona estava da atual igreja romana. O maior teólogo da igreja latina não era um católico romano, isso nos dá uma boa evidência de como as peculiares doutrinas do romanismo não encontram fundamento histórico. 

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Os Pais Pré-Nicenos e a Regeneração Batismal - Parte 2



Clemente de Alexandria (150-215)

Sendo batizado, somos iluminados; iluminados tornamo-nos filhos; sendo feitos filhos, somos aperfeiçoados; tendo sido aperfeiçoados, somos feitos imortais. ‘Eu’, diz ele, ‘disse que sois deuses, e todos filhos do Altíssimo.’ Este trabalho é variadamente chamado graça, iluminação, e perfeição, e lavagem: lavagem, por que limpa os nossos pecados; graça, pela qual as penalidades decorrentes de transgressões são perdoadas; e iluminação, por que essa luz sagrada da salvação é contemplada, ou seja, através da qual vemos Deus claramente. Agora chamamos isso de perfeito que não necessita de nada. (O Pedagogo Livro I, 6)

O batismo que Clemente se refere é a imersão na palavra que é o próprio Cristo. Ele se utiliza de várias figuras como lavagem, graça, iluminação e perfeição se referindo às funções que a Palavra exerce. A obra “o pedagogo” se dedica a exortar os homens a deixarem os maus caminhos e se converterem à palavra que é Cristo, a quem chama de O Pedagogo. Isso vemos pelas citações abaixo:

Fomos iluminados; ou seja, conhecemos a Deus. E não é imperfeito que tem vindo a conhecer a perfeição suprema (...) Uma vez que no conhecimento está a iluminação (...) O conhecimento, portanto, é a luz que dissipa a ignorância e outorga a capacidade de ver claramente. Você também pode dizer que a rejeição das piores coisas destaca as melhores, pois a ignorância mantida mal amarrada desata felizmente conhecimento. Essas ataduras são rapidamente quebradas pela fé do homem e pela graça de Deus. Nossos pecados são lavados pelo único remédio que cura: o batismo da Palavra. Fomos lavados de todos os nossos pecados e de repente já não somos maus. É a graça singular da iluminação, por isso o nosso comportamento não é o mesmo que antes do banho batismal. E como o conhecimento ilumina a inteligência, surge ao mesmo tempo a iluminação e, de repente, sem ter nada aprendido, somos chamados discípulos. A instrução nos foi conferida anteriormente, mas não pode materializar-se nesse momento. A catequese conduz à fé; e a fé, no momento do Batismo, é ilustrada pelo Espírito Santo. (Ibid., cap. 6)

O batismo do Logos é o único remédio que cura. Vemos que o batismo aludido incluía o conhecimento de Deus que iluminava. Portanto, Clemente não ensinava a doutrina romana. Ele via o batismo nas águas como parte do processo de conversão, mas a regeneração do homem era desencadeada pelo conhecimento de Deus e não se limitava ao momento da aplicação da água. A iluminação era conhecer a Deus, portanto, o homem era iluminado ao ter contato com a palavra de Deus. O mesmo se vê abaixo:

É a palavra que resgata o homem do costume deste mundo em que ele foi criado, e o treina na salvação da fé em Deus. (Ibid., cap. 1)

Em seu próprio Espírito Ele diz que vai cobrir o corpo da Palavra; como certamente pelo seu próprio Espírito ele vai nutrir aqueles que têm fome da Palavra. ... Porque, se temos sido regenerados em Cristo, Aquele que nos regenerou nos alimenta com o seu próprio leite, a Palavra; por isso é bom que o gerador forneça imediatamente alimento ao que tem sido gerado. (Ibid., cap. 6)

A palavra não apenas nos regenera, mas também nos alimenta. Outra citação trazida pelos católicos é a seguinte:

O Logos (Cristo) tem com o batismo a mesma afinidade que o leite com água. O leite é o único líquido que tem essa propriedade: é misturado com a água para purificar, como batismo também é recebido para a remissão dos pecados. (Ibid., cap. 6)

Vejamos a continuação dessa citação que geralmente é ocultada:

O leite também é misturado com o mel, à procura de um efeito purificador, ao mesmo tempo que é agradável. O Logos, quando misturado com o amor do homem, sana as paixões e também purifica os pecados. Que "sua voz fluía mais doce que o mel" acredito que foi dito pelo Logos, que é o mel. Em vários lugares a profecia o eleva "acima do mel e do suco dos favos". O leite também é misturado ao vinho doce, e essa mistura é saudável; é como se a sua natureza, quando misturada, se tornasse incorruptível: sob o efeito do vinho, leite torna-se soro, se quebrando, e as sobras são descartadas. Assim, a união espiritual entre a fé e o homem sujeito às paixões, converte em soro os desejos da carne, dando ao homem uma maior firmeza para a eternidade, tornando-o imortal graças à providência divina.

Assim como outros pais da Igreja, Clemente poderia se referir ao batismo sendo recebido para remissão de pecados sem implicar em regeneração batismal. Como já dito, faz parte da relação entre símbolo e coisa simbolizada atribuir ao primeiro as características que são do último. No contexto dessa citação, Clemente faz uso de várias metáforas para ensinar verdades espirituais. Inclusive, diz que a mistura de leite com o mel prefigurava a mistura do Logos com o amor do homem, que também purifica os pecados. Deveríamos concluir que o leite ou o mel em si tem algum efeito purificador? Obviamente não. A partir dessa metáfora, podemos perceber que o batismo não pode ser indispensável para a purificação dos pecados, pois o pai da Igreja aponta outro meio que gera o mesmo resultado: a união de Cristo ao homem. Mais adiante, ele aplica outra metáfora para ensinar que o homem é regenerado pela fé em Cristo. Quando o homem carnal tem fé, seus desejos e paixões são “quebrados”. Perceba que ele aplica essa mesma metáfora para ensinar a regeneração sem ter o batismo em vista.

Deve ser conhecido, então, que aqueles que caem em pecado depois do batismo estão sujeitos à disciplina, pois as obras feitas antes [do batismo] são perdoadas, e aquelas feitas depois são purgadas. (Stromata, IV. 24)

Isso quer dizer que os pecados anteriores foram perdoados no batismo? Vejamos a partir de outras passagens o que ele entendia a respeito:

Por isso é dito que nós deveríamos ser lavados por sacrifícios e orações, [ficando] limpos e resplandecentes; e esse adorno externo e purificação são praticados por um sinal. Agora, pureza é ter pensamentos santos. Além disso, há a imagem do batismo, que também foi entregue aos poetas de Moisés (...) Era um costume dos judeus lavarem-se frequentemente após estar na cama. Foi, em seguida, bem dito: “Seja puro, não pela lavagem da água, mas da mente”. Por santidade, como eu concebo, é a perfeita pureza de espírito, atos, pensamentos e palavras também, e em último grau o ideal da impecabilidade. E purificação suficiente para um homem, eu considero, é o completo e convicto arrependimento. (Ibid., 22)

Fica claro que a purificação ocorria pelo “completo e convicto arrependimento”. Clemente via o batismo como o sinal externo da uma realidade interna e espiritual pelo qual o homem foi perdoado por Deus. Isso é confirmado por outras passagens:

Por isso também vos dei leite para beber, diz ele; significando que “eu tenho instilado em vocês o conhecimento que a partir da instrução, alimenta-os para a vida eterna” (...) Ao dizer, portanto, eu lhe dei leite para beber, não está indicando o conhecimento da verdade, a alegria perfeita na Palavra que é o leite? (O Pedagogo, Livro I, Cap. 6)

Mas acima de tudo é necessário lavar a alma com a Palavra purificadora (...) O Logos disse como iria operar tal purificação dizendo: "No espírito de julgamento e no espírito de purificação". O banho do corpo é feito apenas com água, como ocorre com mais frequência nos campos onde não existem instalações para banho. (Ibid., Livro III, Cap. 9)

Receba a água da palavra; lavai-vos da sujeira; purificai-vos dos costumes, por aspersão com as gotas da verdade. (Exortação aos pagãos, Cap. 10)

Ela que têm fornicado vivendo em pecado, e está morta para os mandamentos; mas se ela se arrepender, sendo como se tivesse nascido de novo pela mudança em sua vida, tem a regeneração da vida; a velha prostituta estando morta, e ela que tem se regenerado pelo arrependimento tendo novamente a vida. (Stromata, Livro II, cap. 23)

A partir de uma visão geral dos escritos de Clemente, percebemos que via a regeneração acontecendo antes da descida às águas. Ele conecta a regeneração à Palavra, fé e o arrependimento.

Tertuliano (160-220)

Bem-aventurado é o nosso sacramento da água, no qual, pela limpeza dos pecados de nossa cegueira primitiva, somos livres e aceitos para a vida eterna. (Batismo, cap. 1)

Essa e outras citações da mesma obra são amplamente utilizadas pelos católicos como prova da regeneração batismal. Sigamos para ter uma visão geral do pensamento de Tertuliano:

Nós temos do mesmo modo uma segunda fonte, [essa] de sangue, a respeito do qual o Senhor disse: "eu tenho que ser batizado com o batismo", quando Ele já havia sido batizado. Pois Ele veio por meio de água e sangue, assim como João escreveu [1 João 5:6]; para que ele pudesse ser batizado pela água e glorificado pelo sangue; para nos fazer, de maneira semelhante, chamados pela água, [mas] escolhidos pelo sangue. Ele enviou esses dois batismos pela ferida em seu lado perfurado, a fim de que os que creem no seu sangue possam ser banhados com a água; eles que tinham sido banhados na água da mesma forma podem beber o sangue. Este é o batismo que tanto está no lugar dos banhos da fonte quando esse não foi recebido, e o restaura quando perdido. (Ibid., cap. 16)

No seu tratado sobre o batismo, Tertuliano combate uma heresia que pregava a não necessidade do batismo. Por esse motivo, ele utiliza linguagem hiperbólica. Mas, da citação acima percebemos que ele acreditava que a água batismal apenas representava o batismo do coração obtido através do sangue de Cristo, chamado de batismo de sangue.

Pois essa árvore num mistério foi no passado com ela que Moisés adoçou a água amarga; onde as pessoas, que estavam perecendo de sede no deserto, beberam e reviveram; assim como nós que tirados das calamidades do paganismo em que permanecíamos perecendo de sede (isto é, privados da palavra divina), bebemos pela fé que há nele a água batismal da árvore da paixão de Cristo, tendo revivido na fé da qual Israel tem se distanciado. (Resposta aos Judeus, 13)

Tertuliano diz que a paixão de Cristo é uma água batismal bebida pela fé que fez os antes pagãos reviverem. Perceba que ele tem em vista a fé no sacrifício de Cristo e não a aplicação da água.

E assim, de acordo com as circunstâncias e disposição, e até mesmo a idade de cada indivíduo, o atraso do batismo é preferível; principalmente no caso de crianças pequenas (...) Por que neste período inocente da vida apressar a remissão de pecados? Mais cuidado será exercido em assuntos mundanos, de modo que aquele que não é de confiança com a substância terrena é confiável com a divina! Deixe-os saber como pedir pela salvação, que você pode fazer parecer (pelo menos) ter sido dada a eles que perguntam (...) Se alguém entender o peso do batismo, eles vão temer a sua recepção mais do que o seu atraso: Fé prudente é o seguro da salvação. (Batismo, 18)

No capítulo 12, Tertuliano defende a necessidade do batismo para a salvação. Isso, por si só, não prova a regeneração batismal. Ele poderia acreditar que o batismo é uma obra que todo cristão já regenerado deve fazer, caso contrário, estaria cometendo pecado grave e perdendo a salvação. Dessa forma, a regeneração batismal implica na necessidade do batismo para salvação, mas, o último não implica necessariamente no primeiro. Porém, o argumento na citação acima torna o pensamento de Tertuliano contraditório. Se o batismo era necessário para a salvação, que vantagem haveria em atrasá-lo? Adiar o batismo significaria aumentar as chances de morrer sem estar salvo. Talvez Tertuliano tenha sido inconsistente ou talvez não acreditasse que o batismo fosse sempre necessário.

Essa lavagem batismal é um revestimento da fé, na qual a fé é iniciada e é recomendada pela fé do arrependimento. Não somos lavados para que possamos parar de pecar, mas porque paramos, já que no coração fomos lavados. (Sobre o Arrependimento, 6)

Aquele que iria se batizar já havia sido batizado no coração. Ou seja, a regeneração já havia acontecido. O batismo nas águas seria a confirmação e publicação dessa realidade anterior e interna. As declarações hiperbólicas desse pai da Igreja sobre o batismo precisam ser lidas a luz de todos os seus escritos, o que mostrará que ele via a regeneração acontecendo antes do batismo.

Hipólito de Roma (170-236)

O Pai da imortalidade enviou o Filho imortal e a Palavra para o mundo, que veio para o homem, a fim de lavá-lo com água e Espírito; e Ele, gerando-nos novamente para a incorruptibilidade da alma e do corpo, soprou em nós o fôlego (espírito) da vida, e nos dotado com uma panóplia incorruptível. Se, portanto, o homem tornou-se imortal, ele também será Deus. E se ele é feito Deus pela água e pelo Espírito Santo, após a regeneração da camada, ele é também co-herdeiro com Cristo após a ressurreição dos mortos. Pelo que eu prego a este efeito: Vinde, vós todas as tribos das nações, para a imortalidade do batismo. (Discurso sobre a Santa Teofania 8)

Essa obra – Discurso sobre a Santa Teofania – é um ensaio sobre o batismo de Jesus e o significado das palavras de Deus nesse momento “Tu és meu filho amado” e a descida do Espírito Santo sobre Cristo na forma de pomba. Se as palavras forem tomadas literalmente, implicariam em regeneração batismal. O problema é que o próprio Hipólito disse que suas palavras deveriam ser tomadas figuradamente:

Você acabou de ouvir como Jesus veio a João, e foi batizado por ele no Jordão. Oh coisas estranhas incomparáveis! Como deveria ser imenso o rio que alegra a cidade de Deus, tendo sido mergulhado em um pouco de água! A nascente ilimitada que nutre a vida a todos os homens, e não tem fim, foi coberto por pobres e temporárias águas! Aquele que está presente em todos os lugares e ausente de nenhum - que é incompreensível aos anjos e invisível ao homem, foi ao batismo de acordo com sua própria vontade. Quando vocês ouvem essas coisas amados, não as tomem como se falado literalmente, mas as aceite como apresentadas numa figura. Por isso, o Senhor não estava despercebido do elemento da água, na qual Ele em secreto, em sua bondade preocupou-se com o homem. (Ibid., cap. 2)

Jesus foi batizado literalmente no rio Jordão. Como veremos a seguir, Hipólito cria que o batismo de Jesus era uma figura da sua morte na cruz:

Este é o meu Filho amado” (...) que está ferido e ainda confere liberdade sobre o mundo. Que é perfurado em seu lado, e ainda repara o lado de Adão. (Ibid., cap. 7)

O batismo de Jesus no rio Jordão cumpriria Gênesis 49:11, sendo uma figura da lavagem que ocorreria na cruz. O manto que Jesus trajava ao ser batizado prefiguraria as nações que seriam lavadas pelo sangue e água que escorreram de Cristo na cruz:

Ele lavará a sua roupa no vinho" [Gênesis 49:11a], ou seja, de acordo com a voz de seu Pai que desceu pelo Espírito Santo no Jordão. "E suas roupas no sangue da uva" [Gênesis 49: 11b]. No sangue de qual uva então? mas apenas em sua própria carne, que foi pendurada na árvore como um cacho de uvas. A partir daquele lado também fluiu duas correntes, de sangue e água, em que as nações são lavadas e purificadas, no qual [as nações] Ele supôs ter como um manto sobre Ele. (Tratado sobre Cristo e Anticristo, 11)

O Evangelho menciona que Jesus foi perfurado, tendo saído sangue e água de seu lado (Jo 19:32-34). Hipólito via nesse fato o cumprimento da profecia de Gênesis 49:11: “ele lavará a sua roupa no vinho, e a sua capa em sangue de uvas”. Esse momento da paixão de Cristo é conectado ao momento do batismo em que o manto de Cristo prefigurava as nações do mundo que seriam purificadas pelo seu sacrifício vicário. Portanto, quando ele se refere ao homem sendo purificado e lavado, está se referindo ao sacrifício de Cristo e não ao batismo. A ideia é que o batismo de Jesus que prefigurava o seu sacrifício e não o nosso próprio batismo é que lavaria o homem com sangue e água:

Vocês veem amados, quantas e quão grandes bênçãos teríamos perdido, se o Senhor tivesse se rendido à exortação de João e recusasse o batismo? Os céus foram fechados antes desse; a região superior era inacessível. Teríamos nesse caso descido para as partes inferiores, e não ascenderíamos as superiores. Mas só por isso o Senhor foi batizado? Ele também renovou o velho homem e pegou novamente o cetro da adoção. Os céus se abriram para ele. A reconciliação ocorreu do visível com o invisível. As ordens celestes estavam cheias de alegria; as doenças da terra foram curadas; coisas secretas foram feitas conhecidas; aqueles em inimizade foram restaurados à amizade. (Capítulo 6)

Toda a argumentação de Hipólito que relaciona regeneração e purificação ao batismo não se refere ao batismo pessoal, mas ao batismo de Cristo. Será então que Hipólito cria que o batismo de Cristo nos regenerava? Não é o caso. O ponto é que o batismo de Cristo apontava para a sua obra na cruz. Essa sim traria todos os benefícios aludidos na citação acima. Através dela o homem é reconciliado com Deus e a nossa regeneração garantida. Voltemos à primeira citação de Hipólito que os católicos costumam usar:

O Pai da imortalidade enviou o Filho imortal e a Palavra para o mundo, que veio para o homem, a fim de lavá-lo com água e Espírito; e Ele, gerando-nos novamente para a incorruptibilidade da alma e do corpo, soprou em nós o fôlego (espírito) da vida, e nos dotado com uma panóplia incorruptível. Se, portanto, o homem tornou-se imortal, ele também será Deus. E se ele é feito Deus pela água e pelo Espírito Santo, após a regeneração da camada, ele é também co-herdeiro com Cristo após a ressurreição dos mortos. Pelo que eu prego a este efeito: Vinde, vós todas as tribos das nações, para a imortalidade do batismo. (Discurso sobre a Santa Teofania 8)

É importante ver o que havia antes desse trecho para vermos o contexto:

Mas dê-me agora a sua melhor atenção, peço-vos, pois desejo voltar à fonte da vida, e ver a fonte que jorra com a cura. O Pai da imortalidade enviou o Filho imortal e Palavra ao mundo, que veio ao homem, a fim de lavá-lo com a água e o Espírito.

Tanto nesse cap. 8 como no cap. 2 já mostrado acima, ele fala de Jesus usando figuras relacionadas à água: “fonte da vida”, “imenso rio que alegra a cidade de Deus”, “a nascente ilimitada que nutre a vida a todos os homens”. Já em relação às aguas do rio Jordão no qual Cristo foi batizado, ele disse no cap. 2: “foi coberto por pobres e temporárias águas”. Vejam a dicotomia, enquanto Jesus era a fonte da vida que sustenta os homens, as águas do batismo são pobres e temporárias. Seria uma forma estranha de se referir às águas que supostamente regeneram. Isso nos permite concluir que quando Hipólito diz que o homem é “lavado pela água”, está se referindo a Cristo e não às aguas batismais.

Hipólito via a paixão de Cristo e não as águas do batismo como a pia da regeneração. Em seus comentários sobre o apócrifo Daniel 13, ele via Suzana como uma figura da Igreja. Em algum momento Suzana se lava numa pia e Hipólito vê essa pia como uma figura do sacrifício pascoal de Cristo:

Enquanto observavam um momento oportuno. O tempo ajustado, mas como da festa da Páscoa, na qual a pia é preparada no jardim para aqueles que se abrasam, e Suzana se lava, sendo apresentada como uma virgem pura a Deus? Com apenas duas servas. Quando a Igreja deseja tomar a pia de acordo com o uso, ela tem necessidade de duas servas para acompanhá-la, pois é pela fé em Cristo e amor a Deus que a Igreja confessa e o recebe. (Fragmentos, Sobre Suzana, 15)

Ele diz que a pia de banho é preparada na festa da páscoa, fazendo alusão à obra de Cristo. Suzana que seria a Igreja toma esse banho, sendo após isso apresentada a Deus como uma virgem pura. Suzana precisa de duas servas para tomar esse banho: a fé em Cristo e o amor a Deus. Dessa forma, a Igreja é lavada por Cristo ao crer em sua obra salvadora e amar o seu Senhor. Hipólito, longe de acreditar na regeneração batismal, cria na regeneração pela palavra de Deus:

Essa é a nossa fé a todos os homens, - ... E nessas prescrições que Deus deu à Palavra. Mas a Palavra declarada por Ele promulgou os mandamentos divinos, transformando o homem da desobediência, não o trazendo à servidão por força da necessidade, mas convocando-o à liberdade através de uma escolha que envolve espontaneidade. (Refutação de todas as heresias, livro X, cap. 29).

Essa é a verdadeira doutrina a respeito da natureza divina, ó homens ... Não dediquem a sua atenção às falácias dos discursos artificiais, nem as promessas vãs dos hereges plagiadores, mas à simplicidade venerável da verdade despretensiosa. Por meio desse conhecimento você deve escapar da ameaça do fogo do julgamento que se aproxima, e o cenário do Tártaro sombrio, onde nunca brilha um raio da voz irradiada da Palavra! ... Agora [tormentos] como esses você deve evitar ao ser instruído num conhecimento do verdadeiro Deus. Você deve possuir um corpo imortal, colocado para além da possibilidade de corrupção, assim como a alma. ... Porque você tem sido deificado e gerado para a imortalidade. (Ibid., cap. 30).

Nessa obra – refutação de todas as heresias – ele pretende refutar todas as heresias de seu tempo, sendo algumas delas relacionadas ao batismo. É de interesse notar que em nenhum momento cita a regeneração batismal como uma heresia relacionada ao batismo.

Orígenes (?-254)

Nós comentamos na seguinte passagem que o batismo de João era inferior ao batismo de Jesus, que foi dado por meio de seus discípulos. Essas pessoas em Atos (Atos 19:2) que foram batizadas com o batismo de João, e que não tinha ouvido falar se havia algum Espírito Santo, são batizadas novamente pelo apóstolo. Regeneração não ocorreu com João, mas com Jesus através de seus discípulos, [regeneração] que é chamada de banho da regeneração ocorrida com a renovação do Espírito, pois o Espírito agora vem em adição, uma vez que vem de Deus e está acima da água e não vem para todos depois da água. (Comentário sobre João, Livro VI, cap. 17)

O Espírito estava acima da água e não vinha para todos depois d’agua. Ele está comentando sobre aqueles que tinham recebido o batismo de João, mas não haviam recebido o batismo de Jesus e o Espírito Santo. Cumpre observar que nessa passagem, o Espírito Santo não usa a água como instrumento, pois ele só vem sobre as pessoas depois da água. Orígenes é uma testemunha explícita contra a regeneração batismal. Embora alguns católicos utilizem a passagem acima para dizer o contrário, percebemos que a regeneração se dava pela renovação do Espírito Santo e não pela aplicação da água. Ele cria que o batismo simbolizava a renovação anterior já ocorrida. Isso ficará mais explícito em outras passagens:

E aqui devemos notar que as obras maravilhosas feitas pelo Salvador nas curas realizadas são símbolos daqueles que em algum momento são libertos pela palavra de Deus de qualquer doença ou enfermidade. Embora fossem feitas para o corpo e trouxeram alívio corporal, também chamam os beneficiados para um exercício de fé, de modo que a lavagem com água, que é um símbolo da alma limpando-se de toda mancha de maldade, não é menos aos que se rendem ao poder divino da invocação da adorável Trindade, o início e fonte dos dons divinos; pois há diversidade de dons. (Comentário do Evangelho de João, Livro 6, cap. 17)

“Que é um símbolo da alma limpando-se de toda mancha da maldade”. Uma negação explícita da doutrina romana. Origines compreendeu que a regeneração é uma obra interna no coração do pecador. O batismo é o símbolo dessa realidade antecedente. O mesmo pensamento é desenvolvido em seu comentário sobre o Evangelho de Mateus, em que as doenças que Jesus curou eram um símbolo da "paralisia na alma" dos cegos de alma e surdos de alma (Comentário ao evangelho de Mateus, Livro XIII, capítulo 4), e que os fariseus deveriam se esforçar para "lavar as mãos de [suas] almas" em vez de criticar os discípulos de Jesus por não lavar as mãos de carne (Comentário ao evangelho de Mateus, Livro XI, Capítulo 8). Em suma, Orígenes enxerga o batismo, as curas e as libertações como apontando para realidades espirituais.

Mas a respeito do significado do batismo, temos falado com o melhor de nossa habilidade que pudéssemos ter, ou melhor, que o Senhor concedeu livremente, quando estávamos explicando o Evangelho segundo João, quando ele trouxe a passagem onde ele diz de Jesus: "ele mesmo vos batizará no Espírito Santo", e novamente, onde o próprio Salvador diz: "a menos que alguém nasça de novo da água e do Espírito, não poderá entrar no reino de Deus". Nessa passagem, nós tentamos revelar a força dessa expressão mais profundamente, em que é dito "a menos que alguém nasça de novo". O que nós latinos falamos usando "novo", os gregos dizem ἄνωθεν que significa tanto "novo" como "de cima". Nessa passagem, todo aquele que é batizado por Jesus é batizado no Espírito Santo, sendo adequado ser entendido não como "de novo", mas como "de cima", pois dizemos "de novo" quando as mesmas coisas que já aconteceram são repetidas. No entanto, aqui o mesmo nascimento não é repetido ou feito uma segunda vez, mas esse [nascimento] terreno é colocado de lado e um novo nascimento de cima é recebido. Por essa razão, gostaríamos de ler de forma mais precisa o texto do Evangelho como: "A menos que alguém nasça novamente de cima, não poderá entrar no reino de Deus". Esse se refere a ser batizado no Espírito Santo. Por essa razão, o batismo é confirmado para ser "de cima", não sendo inapropriada a água, que está sobre os céus e louva o nome do Senhor, ligada ao Espírito Santo. Embora todos nós possamos ser batizados nessas águas visíveis e numa unção visível, de acordo com a forma transmitida às igrejas, no entanto, a pessoa que morreu para o pecado e verdadeiramente está batizada na morte de Cristo, sendo enterrada com ele na morte pelo batismo, é o único que está verdadeiramente batizado no Espírito Santo e com a água de cima. (Comentário sobre Romanos, 6:3-4, seção 8.3)

Primeiro você deve morrer para o pecado, para que possa ser sepultado com Cristo [no batismo]. (Ibid., seção 8.4).

A regeneração seria aplicada pelo Espírito Santo antes do batismo. Este envolve “águas visíveis e numa unção invisível”, mas o batismo no Espírito viria com a “água de cima”. Há um paralelismo entre a renovação espiritual com a água de cima e o rito com a água visível que aponta a regeneração já ocorrida. Assim como Tertuliano, esse cristão de Alexandria acredita que o catecúmeno já deveria ter morrido para o pecado e só então seria batizado, ou seja, a regeneração não era consequência do batismo, mas causa. Não era procedente, mas antecedente.

Agora ele é chamado de a luz dos homens, a verdadeira luz e a luz da palavra, porque Ele ilumina e irradia as partes mais altas dos homens, ou, em uma palavra, de todos os seres razoáveis. E da mesma forma é a partir e por causa da energia que ele produz que o velho amortecido é posto de lado e o que é a vida por excelência é trazida a tona. Assim, os que realmente o receberam levantam dos mortos, o que Ele chama de ressurreição. E isso ele não apenas faz no momento em que o homem diz: "Fomos sepultados com Cristo pelo batismo e ressurgimos novamente com Ele" [Romanos 6: 4], mas muito mais quando o homem, depois de deixar tudo que pertence à morte, anda em novidade da vida que pertence a Ele, o Filho [2 Coríntios 4:10]. (Comentário ao Evangelho de João, Livro I, cap. 25)

Orígenes ensina que Jesus vivifica o homem e isso não acontece no momento da aplicação da água, mas quando o homem deixa sua velha vida e passa a viver as boas novas de Cristo. Portanto, independente do momento do batismo, é quando o homem passa a viver essa nova vida que a regeneração acontece.

Cipriano (?-258)

O Espírito Santo fala nas Sagradas Escrituras e diz: "Pela esmola e pela fé pecados são remidos". Não seguramente os pecados que tinham sido anteriormente cometidos, pois esses são purificados pelo sangue e santificação de Cristo. Além disso, ele diz novamente: "Como a água apaga o fogo, a esmola apaga o pecado" [Eclesiástico 03:30]. Aqui também é mostrado e provado que como na pia da água de salvação, o fogo do inferno é extinto, também pela esmola e as obras de justiça, a chama dos pecados é vencida. E porque no batismo de remissão dos pecados é admitido uma vez por todas, o trabalho constante e incessante, seguindo a aparência do batismo, mais uma vez concede a misericórdia de Deus. (Tratado 8)

Cipriano de fato defendeu a regeneração batismal, embora parece ter sido inconsistente em outros momentos, como na citação abaixo:

Você perguntou também filho querido o que eu achava daqueles que chegaram à graça de Deus na doença e fraqueza, se eles devem ser considerados cristãos legítimos, para que eles não sejam lavados, mas aspergidos com a água da salvação. Nesse ponto, a minha timidez e modéstia não pré-julgam ninguém, de modo a prevenir alguém da percepção que ele acha correta, e de fazer o que ele sente ser correto. Quanto ao que meu pobre entendimento concebe, eu acho que os benefícios divinos não podem em nenhum sentido ser mutilado e enfraquecido; nem pode qualquer coisa menor ocorrer nesse caso, onde com fé plena e completa, tanto o doador e o receptor, são aceitos no que é formado a partir dos dons divinos. No sacramento da salvação, o contágio dos pecados não é sensatamente lavado da mesma maneira que a sujeira da pele e do corpo é lavada no banho carnal e comum, no qual é preciso de sabão e outras aplicações também e um banheiro e uma bacia na qual este corpo vil deve ser lavado e purificado. Desse modo é o peito do crente lavado; Do outro modo, é a mente do homem purificada pelo mérito da fé. (Epístola 62:8)

Ao responder sobre a possibilidade de batizar por aspersão àqueles que se converteram estando fracos e doentes, Cipriano diz que a mente do homem é purificada pela fé, que logicamente antecede o batismo. Deve se observar que os apelos dos católicos a Cipriano, no que concerne ao batismo, são seletivos e inconsistentes. O bispo de Cartago nos ofereceu uma das mais claras evidências contra o papado na Igreja antiga, ao contrariar o ensino do bispo romano Estevão que admitia o batismo herético. Cipriano se opôs fortemente a essa doutrina, contrariando qualquer pretensão de autoridade universal do bispo de Roma. Além disso, ele ensinou que o Espírito Santo não era recebido no batismo, mas após, através da imposição de mãos:

Mas, além disso, não se nasce pela imposição de mãos, quando ele recebe o Espírito Santo, mas no batismo, para que assim, sendo já tendo nascido [no batismo], ele possa receber o Espírito Santo [pela imposição de mãos]. (Epístola 73:5)

Cipriano interpretava “nascer da água e do espírito” como se referindo a dois sacramentos separados:

É uma questão pequena impor as mãos sobre eles para que possam receber o Espírito Santo, a menos que também recebam o batismo da Igreja. Assim, finalmente, eles podem ser totalmente santificados, e ser filhos de Deus, se nascerem de cada sacramento. (Epístola 73:5)

E, portanto, cabe àqueles que devem ser batizados que vêm da heresia para a Igreja, que então eles sejam preparados no legítimo, verdadeiro e único batismo da santa Igreja, pela regeneração divina, para o reino de Deus, que nasçam de ambos os sacramentos, porque está escrito: a menos que o homem não nasça da água e do Espírito, não poderá entrar no reino de Deus. (Epístola 72:21)

Esse não era um ensino particular de Cipriano, o sétimo concílio de Cartago, convocado para rebater o batismo herético, testemunha:

Nemesianus de Thubunae disse: Que o batismo que hereges e cismáticos dão não é o verdadeiro, está em todos as partes declarado nas Sagradas Escrituras (...) Esse é o Espírito que desde o início foi levado sobre as águas; pois nem pode o Espírito operar sem a água, nem a água sem o Espírito. Certas pessoas interpretam malvadamente por si mesmas, quando dizem que por imposição das mãos eles recebem o Espírito Santo, e estão portanto recebidos, quando é manifesto que eles devem nascer de novo na Igreja Católica por ambos os sacramentos.

A doutrina batismal de Cipriano poderia ser semelhante à católica romana em certos pontos, mas a contrariava em outros de forma substancial. Se os católicos podem discordar desse bispo, porque os protestantes também não poderiam?

Gregório Taumaturgo (213-270)

Há um mistério, o que dá nestas águas a representação dos fluxos celestiais da regeneração dos homens. (Quatro Homilias, IV homilia)

Batiza-me, eu que estou destinado a batizar aqueles que acreditam em mim com água e com o Espírito Santo, e com fogo: com água, capaz de lavar a corrupção dos pecados; com o Espírito, capaz de fazer o mudando, espiritual; com o fogo , naturalmente equipado para consumir os espinhos das transgressões. (Quarto Homilia, III Homilia)

O site apologistas católicos traz essas citações. Gregório foi o único em que tive o cuidado de verificar a fonte e percebi que a segunda citação não se encontra na III homília que pode ser vista aqui. Outro problema é que essas homilias são de origem duvidosa. O católico romano Thomas Livius, usando as homilias em sua obra sobre "The Blessed Virgin in the Fathers of the First Six Centuries”, as cita com reserva: "Essas Homilias são de autenticidade duvidosa" (Livius, p 48n).

Argumentos históricos adicionais sobre a necessidade do batismo para a salvação

Na Igreja apostólica, a pessoa era batizada assim que se convertia. O caso do Eunuco evangelizado por Felipe evidencia essa prática (Atos 8). No segundo século, a prática mudou. Uma pessoa passava um bom tempo numa classe de catecúmenos até ser batizado, há evidência de que essas classes poderiam durar meses ou até um ano. Isso mostra que os cristãos não acreditavam na necessidade do batismo para a salvação. Afinal, quem submeteria alguém a uma espera tão longa que poderia comprometer sua própria salvação?

Outro ponto é que muitos cristãos adiavam o batismo ao máximo, só o recebendo no fim da vida. Pensava-se que após o batismo, o cristão poderia cometer pecado mortal apenas uma vez, ou seja, não havia um segundo arrependimento. Por isso, era seguro ser batizado apenas no fim da vida. Ninguém parecia pressupor que essas pessoas não eram cristãs. Se elas de fato acreditassem que o batismo era necessário para a salvação, não adiariam tanto tempo, correndo um risco maior do que a possibilidade de cometer pecado mortal mais de uma vez.

Destacamos também que alguns pais da Igreja como Orígenes, Gregório de Nissa e provavelmente Clemente de Alexandria acreditavam na salvação universal, algo que tratamos com mais detalhes em nosso artigo sobre os pais e o purgatório aqui. Portanto, para eles o batismo não seria necessário para a salvação.

É notável também que alguns pais recomendaram atrasar o batismo como Tertuliano e Gregório Nazianzo, que escreveu:

Que assim seja, alguns dirão, no caso daqueles que perguntam sobre o batismo; o que você tem a dizer sobre os que ainda são crianças, e não conscientes nem do pecado nem da graça. Devemos batizá-los também? Certamente (...) Mas em relação aos outros [infantes] dou o meu parecer de que se deve esperar até o final do terceiro ano, ou um pouco mais ou menos, quando eles podem ser capazes de ouvir e de responder algo sobre o Sacramento, para que, mesmo que eles não se possam compreendê-lo perfeitamente, mas de qualquer forma eles podem conhecer os contornos, e, em seguida, para santificá-los na alma e no corpo com o grande sacramento da nossa consagração. (Orações 40:28)

Se do batismo dependia a salvação, esses homens não fariam tais recomendações. Figuras proeminentes como o próprio Gregório, Agostinho e João Crisóstomo, mesmo sendo filhos de pais cristãos piedosos, só foram batizados quando adultos. O grande historiador e defensor do batismo infantil Philip Schaff confirma:

Constantino sentou-se entre os pais no grande Concílio de Nicéia, e deu efeito jurídico aos seus decretos, e ainda adiou o seu batismo até o leito de morte. Os casos de Gregório de Nazianzeno, Crisóstomo, e Santo Agostinho, que tinham mães de piedade exemplar, e que ainda não foram batizados antes de vida adulta, mostram suficientemente a liberdade considerável prevaleceu a este respeito, mesmo nas idades nicena e pós-nicena. (History of the Christian Church: Vol. 2, Ch. 05, § 073)

Pais cristãos piedosos adiando o batismo dos filhos sugere o contrário do ensino católico romano. Lembremos ainda, que diferente da posição defendida por muitos na idade média de que crianças não batizadas não eram salvas, pais como Irineu defenderam explicitamente a salvação infantil:

E novamente, quem são os que foram salvos e receberam a herança? Aqueles que sem dúvidas, creram em Deus e continuaram em Seu amor, como fez Calebe e Josué, filho de Num e as crianças inocentes, que não tinha noção do mal. (Contra as Heresias, 4:28:3)