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terça-feira, 21 de julho de 2020

Epifânio e as Imagens




Neste artigo, vamos abordar o testemunho de Epifânio de Salamina contra o uso de imagens na Igreja. Nós já tratamos detalhadamente sobre os pais pré-nicenos foram unanimemente contra o uso de imagens no culto cristão (aqui). Também falamos sobre o testemunho de Eusébio e a atitude da Igreja com relação às imagens no séc. IV (aqui). Eu recomendo também os artigos do meu amigo Pedro Gaião, que tem feito um importante trabalho de pesquisa neste assunto. Ele tratou do testemunho de Jerônimo (aqui), de Gregório Magno (aqui) e também forneceu um panorama sobre o estado da evidência (aqui).

Ele também identifica o primeiro teólogo a escrever um tratado em favor do culto às imagens: Anastácio de Teópolis (aqui). O detalhe é que ele viveu nos séculos VI e VII. Ou seja, estamos falando de centenas de anos após a morte do último apóstolo. Quem ler todo o material acima e checar as fontes primárias bem como as fontes secundárias pode concluir que a ideia de que os apóstolos legaram à Igreja o culto aos ícones é absurda. Ocorre que é justamente isso que apologistas católicos romanos (não modernistas) e ortodoxos orientais defendem. Volta e meia até ouvimos falar da lenda de que Lucas era um pintor de quadros. Poucas doutrinas tiveram tanto apoio de lendas, falsificações históricas e relatos espúrios em sua construção como o culto às imagens. Por ser um assunto cuja história os protestantes deixam de lado, esse “terraplanismo histórico” é largamente disseminado em debates nas redes, sem muita oposição. Desta vez, vamos continuar no período niceno (sec. IV) e abordar o relevante testemunho de Epifânio de Salamina contra o uso de imagens na Igreja. Vejamos:

Eu entrei para orar e encontrei uma cortina pendurada nas portas da referida igreja, tingida e bordada. Ela tinha uma imagem de Cristo ou de um dos santos. Não me lembro direito de quem era a imagem. Vendo isso, e sendo contrário a que a imagem de um homem fosse pendurada na igreja de Cristo, contrariando o ensino das Escrituras, rasguei-a em pedaços e aconselhei os guardiões do local a usá-la como coberta para uma pessoa pobre. Eles, no entanto, murmuraram e disseram que, se eu decidisse rasgá-lo, era justo que eu lhes desse outra cortina em seu lugar. Assim que ouvi isso, prometi dar uma e disse que o enviaria imediatamente. Desde então, houve um pequeno atraso, devido ao fato de eu ter procurado uma cortina da melhor qualidade para que lhes fosse oferecida, em vez da anterior, e achei oportuno enviar para o Chipre. Enviei agora a melhor que pude encontrar e peço que ordene ao presbítero do local que pegue a cortina que enviei pelas mãos do Leitor e que depois você dará instruções sobre as cortinas de outros tipos - opostas como são à nossa religião - não serão pendurados em nenhuma igreja de Cristo. (Carta 51 para João, o bispo de Jerusalém)

O testemunho acima é óbvio e não abre margem para interpretações. Epifânio considerava contrário às Escrituras colocar na Igreja imagens de homens. Durante a controvérsia iconoclasta (séc. VIII), o testemunho dele foi largamente utilizado. A resposta dos iconófilos foi afirmar que Epifânio cultuava ícones e que esta citação seria uma falsificação. O problema é que tal afirmação nunca foi baseada em crítica textual da carta 51. Não há notícia de qualquer cópia dessa carta que não contenha a citação acima. A carta consta da edição dos pais nicenos de Philip Schaff, sendo inclusive hospedada num site católico romano, conforme link acima. Destaca-se que Epifânio pressupõe que tal prática não ocorria nas Igrejas Cristãs “não são pendurados em nenhuma igreja de Cristo”. Ele não parece ter nenhuma noção de estar praticando algo contra uma tradição estabelecida. Pelo contrário, ele evoca a prática de toda a Igreja. Numa obra mais antiga, ele condena o culto às imagens no contexto pagão:

Não pense que os ídolos morreram porque, de fato, nunca estiveram vivos. Ensine, sempre e para todos, que eles não existem e que estão vãos e vazios, porque eles não existiram no passado (...) Eles são espíritos do mal, as criações da imaginação humana, que ficaram mais fortes por causa dos prazeres. Então todo mundo se atreveu [estabeleceu] sua própria paixão como objeto de piedade. (Ancoratus – cap. 102)

Joseph Dahlstrom escreveu sobre esta citação:

A evidência mais convincente da possível iconofobia de Epifânio está localizada nos capítulos 102 e 103 [da obra Ancoratus]. Ele ridiculariza os gregos e egípcios por sua adoração a falsos ídolos, chamando os ídolos de "vãos e vazios", "maus espíritos da imaginação do homem” e “objetos de prazer”. Isso se refere ao Livro da Sabedoria 14:12-21, sobre as origens de falsos ídolos, onde Salomão apócrifo condena a falsificação de ídolos feitos por médiuns artesãos, citando a adoração de ídolos como a raiz do mal e a força motriz por trás das ofensas à Lei de Moisés, incluindo sacrifício de crianças, adoração fora do Templo, divórcio e assassinato. Referências como essas mostram a ênfase de Epifânio na adesão à Lei de Moisés e demonstram a crença de Epifânio de que o cristianismo era uma extensão do judaísmo. A adesão à Lei, que proíbe imagens esculpidas e adoração de ídolos, além de um reconhecimento do aniconismo implementado nas reformas de Ezequias, Josias e Oséias manifestam, com certeza, ideias iconofóbicas, inclusive sobre imagens cristãs. (Joseph Dahlstrom, “Epiphanius of Salamis and theSecond Council of Nicaea”, p. 2)

Na sua mais importante obra “Panarion”, Epifânio também manifesta sua posição iconoclasta:

Eles têm imagens coloridas. Alguns, além disso, têm imagens feitas de ouro, prata e outros materiais que eles dizem serem retratos de Jesus feitos por Pôncio Pilatos! Ou seja, os retratos de Jesus real enquanto ele estava morando entre os homens! Eles possuem imagens como essas em segredo, e de certos filósofos (...) e também colocam outros retratos de Jesus com esses filósofos.  (Panarion, Livro I, Cap. 27:6:9-10)

Nesta obra, Epifânio intenta refutar vários grupos heréticos. A citação se refere ao grupo herético dos carpocratianos. Ou seja, ele está criticando a atitude de fazer imagens de Cristo e pressupõe que esta não era uma prática da Igreja. Joseph Dahlstrom comenta:

Outro tema consistente em Panarion é uma continuação da condenação da adoração de ídolos. No entanto, em sua refutação dos carpocratianos, ele ataca a criação de imagens de Jesus para adoração ao lado de figuras gregas proeminentes. (Dahlstrom, p. 3)

Nestes dois tratados (Ancoratus e Panarion), a iconofobia de Epifânio está presente, mas não é tão explícita como na já citada Carta a João de Jerusalém. A seguir, veremos outros documentos onde a condenação é igualmente explícita. Infelizmente, possuímos acesso apenas a trechos dessas cartas que foram preservados porque foram citadas no Concílio iconófilo de Niceia II e por Nicéforo de Constantinopla. Na verdade, os trechos são oriundos do concílio iconoclasta de Hieria e seus documentos foram citados em Niceia II. A razão pela qual não temos acesso a essas cartas é porque os iconófilos promoveram a destruição dos registros históricos considerados iconoclásticos. Dahlstrom comenta que “depois do Segundo Concílio de Niceia, os escritos de Epifânio de Salamina despareceram para a obscuridade, em sua maior parte” (Dahlstrom, p. 7). Não bastasse o apelo a lendas e uso de falsificações, eles promoveram uma “limpeza” histórica. Isto, infelizmente, era comum nos debates antigos. O mesmo sucedeu à Orígenes e Nestório. A respeito do primeiro, há severas dúvidas sobre a autenticidade ou integridade de várias de suas obras. Já com relação ao segundo, não temos acesso a quase nada dele propriamente. O que sabemos é em grande parte a partir de seus detratores. O trecho a seguir é da carta dogmática de Epifânio:

E se alguém se ocupa em representar a palavra de Deus encarnada em materiais coloridos, "seja anátema". (Bigham, Stéphane. Epiphanius of Salamis, Doctor of Iconoclasm? Deconstruction of a Myth. Rollinsford, NH:Orthodox Research Institute, 2008, p. 17)

Já no fim de sua vida Epifânio endereça algumas palavras a sua congregação que foram nomeadas como “A vontade de Epifânio endereçada aos membros de sua Igreja”. Este fragmento é por vezes chamado de testamento:

Lembrem-se (...) Não ponham imagens nas igrejas ou nos cemitérios dos santos, mas pela lembrança, sempre mantenham Deus em seus corações, mas não em suas casas. Não é permitido ao cristão ficar distraído pelos olhos ou pela agitação da mente, mas todos vocês, inscrevam as coisas de Deus em suas partes mais profundas. (Bigham, p. 21)

Em outro tratado contra as imagens, que foi provavelmente produzido para que Epifânio explicasse melhor suas crenças a respeito, ele disse:

Quem entre os santos Padres alguma vez já se prostrou diante de uma representação feita pelas mãos dos homens ou permitiu que seus próprios discípulos se prostrassem na frente delas? (Bigham, p. 14)

Joseph Dahlstrom comenta esse tratado e traz outras oportunas citações:

O tratado é uma explicação mais completa das crenças de Epifânio. Acredita-se que este documento foi escrito em resposta ao pedido de Anautha retratado no Post Scriptum [Carta 51]. O tratado é um apelo aos cristãos para examinarem os feitos e o comportamento dos patriarcas e profetas. Ele acredita que os patriarcas e os profetas são os modelos ideais para o cristianismo na medida em que detestavam ídolos e, em vez disso, contemplavam a divindade internamente (...) Ele se dirige àqueles que criam imagens em memória para honrar a vida dos santos, avisando-os de que as imagens criadas por um artista são apenas uma projeção de sua insanidade. Em vez disso, ele sugere que eles devem "colocar os mandamentos [dos apóstolos] no lugar de suas imagens” [Bigham, p. 14], acrescentando também que essas representações físicas dos santos e os anjos são representações inadequadas, mortas e inanimadas dos seres vivos. Ele apela à natureza inefável de Deus, perguntando: “Como alguém pode dizer que Deus, o incompreensível, inexprimível, inacessível pela mente e incircunscritível, pode ser representado, logo Ele a quem Moisés não podia olhar?” [Bigham, p. 18] Este é um argumento mais convincente, porque, como ele pergunta, como é possível fisicalizar e imaginar o que está além da natureza física? Por fim, ele observa que o próprio Jesus nunca deu uma ordem para cultuar uma imagem de sua semelhança, nem devem ajoelhar-se diante dela. Em vez disso, ele argumenta, eles deveriam se prostrar diante de Cristo vivo "em espírito e em verdade" (João 4:24). (Dahlstrom, p. 4)

Outro documento é uma carta de Epifânio ao imperador Teodósio. Prossigamos com os comentários de Dahlstrom:

O último documento que vale a pena mencionar que sugere crenças iconofóbicas é a carta de Epifânio ao imperador Teodósio. Epifânio inicia sua carta afirmando que o diabo introduziu a idolatria no mundo e está liderando ativamente membros fiéis da Igreja de volta à idolatria através das pinturas coloridas de Deus. Ele observa que ele é um defensor da fé eterna e protegida confessada no Primeiro Concílio de Niceia, que não vai iniciar uma nova fé, mas que continuou a fé herdada de geração em geração. Epifânio dedica uma parte de sua carta para fazer sugestões sobre como lidar com membros da Igreja que exibem iconografia, incluindo o uso de portas pintadas, cortinas para roupas funerárias, a limpeza de imagens pintadas e o trabalho para remover imagens em mosaico. Um de seus últimos pontos é a licença dos artistas para criar imagens com base nas imagens de seus pensamentos, o que Epifânio realmente acredita ser uma prática pecaminosa, prejudicial e desrespeitosa. As imagens não representam sujeito reais de culto. Ao contrário, eles oferecem a interpretação da imaginação de um artista, que distrai da verdadeira veneração. (Dahlstrom, p. 5)

Percebe-se que Epifânio não era apenas contrário ao culto às imagens. Ele se opunha a qualquer fabricação dos ícones. Esta proibição não se aplicava apenas à Igreja, mas também aos cemitérios e casas dos cristãos. Novamente, ele apela à tradição e entende que a fé herdada é incompatível com a fabricação de ícones.

A autenticidade dos documentos

A evidência a partir de Epifânio é clara e não exige maiores comentários. A postura de iconófilos como João Damasceno, Nicéforo de Constantinopla e Teodoro Estudita foi questionar a autenticidade de todas as citações explicitamente iconoclastas. Eles não ofereceram argumentos convincentes que apelassem a crítica textual dos documentos. Seus argumentos foram mais no sentido de que a iconoclastia não se encaixava com o pensamento geral de Epifânio e de que os herdeiros da tradição de Epifânio (a Igreja do Chipre) se firmaram contrários aos iconoclastas durante a controvérsia. Outro argumento encontrado em sites apologéticos ortodoxos (aqui) é de que os seguidores imediatos de Epifânio ergueram igrejas adornadas com muitos ícones em sua homenagem.

O primeiro argumento iconófilo pressupõe uma iconofilia que não é encontrada em nenhum escrito de Epifânio. Pelo contrário, mesmo em obras cuja autenticidade não foi questionada (Ancoratus e Panarion), a iconofobia de Epifânio é evidente. Além disso, a iconofobia era a posição padrão ainda no séc. IV (vide Concílio de Elvira e Eusébio). Os ortodoxos distorcem a história ao dizerem que como Epifânio era um bispo ortodoxo, ele não poderia ser iconofóbico. É o contrário. A igreja herdou do judaísmo e dos apóstolos (que eram Judeus) o costume de não usar ícones. Esta era a tradição da Igreja. O uso de ícones é que é a inovação.

O segundo argumento apela a postura da Igreja cipriota no séc. VIII. João Damasceno menciona que visitou Igrejas no Chipre que eram adornadas com muitos ícones. O problema desse argumento é que há um espaço de mais de 3 séculos entre a morte de Epifânio e o período da controvérsia iconoclasta. Trata-se de um longo período de tempo em que a tradição iconoclasta de Epifânio poderia ter sido perdida. Nenhum historiador da Igreja nega que houve rupturas. Qualquer um que compare a Igreja do séc. I e do séc. IV vai constatar mudanças relevantes. A ideia de que a Igreja é um contínuo sem mudanças em suas práticas faz parte de uma visão ingênua e idealizada.

O terceiro argumento é uma lenda popularizada por Teodoro Estudita. Não há nenhuma evidência histórica de que a Igreja cipriota imediatamente após Epifânio adotou uma rica iconografia, a despeito de seu pedido. Isto poderia ser válido para a igreja cipriota do séc. VIII, mas dificilmente era o caso desta igreja nos séculos IV e V.

A respeito da autenticidade dos documentos iconoclastas de Epifânio, o estudioso de iconografia da Igreja Istvan M. Bugár escreveu:

Além disso, os pais do Sétimo Concílio Ecumênico contestaram que o autor era Epifânio, e depois que a iconoclastia ressurgiu, o patriarca Nicéforo (758–828) elaborou seu argumento. Suas conclusões permaneceram autoritativas por mil e duzentos anos, até Karl Holl, o editor crítico das obras de Epifânio, desafiá-la. Apesar do ataque feroz de Georg Ostrogorsky contra sua visão, a esmagadora maioria dos estudiosos do século XX tomou partido de Karl Holl. Essa visão pode ser representada por Georg Thümmel, que escreveu sobre a questão e editou os fragmentos décadas atrás. Agora o texto é usado regularmente em manuais para mostrar a suposta forte resistência ao uso de imagens religiosas pelas autoridades da igreja no quarto século. (Istvan M. Bugár “What Did EpiphaniusWrite to Emperor Theodosius?,” Scrinium 2 (2006): 72–91)

A estudiosa patrística Elizabeth Clark também afirma este consenso:

Começando com Karl Holl em 1916, estudiosos extraíram fragmentos de três escritos iconoclastas, agora aceitos como sendo de Epifânio, a partir dos escritos de Nicéforo – o patriarca bizantino do século nono que participou da controvérsia iconoclasta (...) Num panfleto contra as imagens e numa carta a Teodósio I (ambos provavelmente escritos em 393-394, o mesmo período da carta de Epifânio para João de Jerusalém), e um testamento para sua comunidade datado de alguns anos depois. Epifânio repetidamente ressoa o tema de que ter imagens de Jesus, Maria ou dos mártires é, em sua raiz, idolatria (Fragmento 1) – um tema que foi mais cedo expresso em Ancoratus quando ele argumenta que expressar coisas espirituais através de uma imagem é um estágio do caminho para adoração de deuses pagãos (Ancoratus, cap. 102). Do ponto de vista dos anos 390, Epifânio sente que satanás está novamente a ponto de levar os cristãos de volta a idolatria (Fragmento 19). Epifânio apresenta uma variedade de argumentos para provar seu ponto. Por exemplo, ele alega que figuras são meramente enganadoras: elas confundem verdade com falsidade por descrever algo como presente quando de fato não está (Fragmento 3). Fabricantes de imagens baseiam-se em suas fantasias para representar coisas que eles sequem poderiam ter conhecido (Fragmentos 24 e 26). A Bíblia corretamente condena as imagens (Fragmento 18), pois Deus é incompreensível e inexprimível. O único memorial que deveríamos ter de Deus é mantê-lo, de forma incorpórea, em nossos corações (Fragmento 12). (Elizabeth A. Clark. TheOrigenist Controversy: The Cultural Construction of an Early Christian Debate. Copyright Date: 1992, p. 103-104)

Clark cita os fragmentos a partir da edição crítica de Karl Holl, Die Schriften des Epiphanius gegen die Bilderverehunrg, p. 351-387. Na nota de rodapé n. 131, Clark escreveu:

As dúvidas Georg Ostrogorsky sobre a atribuição dos fragmentos a Epifânio não encontraram apoio de outros estudiosos.

A posição amplamente majoritária (de Karl Holl) é pela autenticidade dos fragmentos. Observem que os fragmentos não incluem a carta 51 (para o patriarca João). Sua autenticidade nunca foi seriamente disputada, com exceção da iniciativa dos iconófilos. A origem é bem atestada, pois esta carta foi preserva por Jerônimo. Concluo afirmando que a iconoclastia de Epifânio, portanto, temos um sério desafio à narrativa de que a Igreja do séc. IV herdou uma tradição de culto aos ícones.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Gênesis 3:15, os Pais da Igreja e Quem Esmagaria a Cabeça da Serpente




O texto de Gênesis 3:15 é frequentemente citado por apologistas católicas como uma referência mariana. Segundo eles, quem esmagaria a cabeça da serpente seria Maria. O argumento exegético é frágil e já há diversos artigos expondo a correta exegese do texto (aqui). Diante disso, os católicos costumam apelar à “tradição”. No fim das contas, tradição é tudo que Roma diz que é. Ainda que haja diferentes conceitos de tradição circulando na teologia romana, é comum apelar aos Pais da Igreja como evidência. O problema é que geralmente este apelo é seletivo ou enganoso. A grande questão é quem iria ferir a cabeça da serpente. Vejamos então a interpretação patrística do texto bíblico em ordem cronológica:

Justino Mártir (?-165) é as vezes citado como exemplo da interpretação mariana com base no texto abaixo:

Porque Eva, que era virgem e pura, tendo concebido a palavra da serpente, produziu desobediência e morte. Mas a Virgem Maria recebeu fé e alegria quando o anjo Gabriel anunciou as boas novas de que o Espírito do Senhor viria sobre ela, e o poder do Altíssimo a ofuscou: por isso o que é gerado por ela é o Filho de Deus; e ela respondeu: 'Seja para mim segundo a tua palavra'. Através dela Ele nasceu, a quem temos provado que tantas Escrituras se referem, e por quem Deus destrói a serpente e os anjos e homens que são como ela; mas opera a libertação da morte para aqueles que se arrependem de sua iniquidade e acreditam Nele. (Diálogo com Trifo 100:5-6)

Justino estabelece um paralelo entre Eva e Maria que muitas vezes é utilizado para referendar doutrinas marianas sem qualquer respaldo nos escritos do autor. Ele não é claro sobre a identidade da “semente da mulher”. Não há como afirmar certamente que era Maria ou Jesus, mas Jesus parece ser o melhor candidato. Ele menciona que Jesus “destrói a serpente”. Embora não seja uma referência direta a quem esmaga a cabeça da serpente, é no mínimo uma indicação de Jesus como aquele que vence a serpente. Ele alude a esta passagem outras vezes na mesma obra (91:4, 94:1, 100:5-6, 102:3, 103:5 e 112:12). Em nenhuma delas há alusão direta sobre quem esmaga a serpente.

Irineu de Lyon (?-220) faz várias alusões ao texto em questão:

Aquele que deveria nascer de uma mulher, [ou seja] da Virgem, à semelhança de Adão, foi proclamado como vigiando a cabeça da serpente. Esta é a semente da qual o apóstolo diz na Epístola aos Gálatas: “que a lei das obras foi estabelecida até que a semente viesse a quem a promessa foi feita.” Este fato é exibido mais claramente na mesma Epístola, onde ele fala assim: “Mas quando a plenitude do tempo chegou, Deus enviou Seu Filho, feito de uma mulher.” Pois, de fato, o inimigo não teria sido derrotado, a menos que um homem [nascido] de uma mulher o dominasse. (Contra as Heresias 5:21:1)

Ele claramente aduz ao texto de Gênesis 3:15 “proclamado como vigiando a cabeça da serpente” e o conecta à Epístola de Gálatas na qual Cristo é chamado de semente (Gal. 3:19). Logo, a “semente” da mulher que esmagou a cabeça da serpente é Cristo. Interessa notar que Irineu também fez uma analogia entre Maria e Eva na mesma obra (3:22:4 e 5:19:1), mas não identifica Maria como a mulher de Gênesis 3:15. Ele novamente identifica Jesus como aquele que pisou na cabeça da serpente em outro lugar:

Como também a Escritura nos diz que Deus disse à serpente: “E eu colocarei inimizade entre você e a mulher, e entre sua semente e sua semente dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”. E o Senhor recapitulou em Si mesmo essa inimizade, quando foi feito homem por uma mulher, e pisou em sua cabeça [da serpente], como eu indiquei no livro anterior. (Contra as Heresias 4:20:3)

Clemente de Alexandria (150-215) alude ao texto bíblico sem identificar aquele que esmagaria a serpente:

Um e o mesmo é também nosso auxiliador e defensor, o Senhor, que desde o princípio predisse a salvação na profecia. (Cohortatioad Gentes 1)

Orígenes (184-253) identifica a semente da mulher com a Igreja:

Vamos então orar para que nossos pés sejam tão formosos, tão fortes, para que possam esmagar a cabeça da serpente a fim de que ela não possa morder o nosso calcanhar (Gn 3:15) (...) Então você vê que quem luta debaixo de Jesus [Josué], deve retornar a salvo da batalha. (Homilias em Josué 12:2)

Em outro lugar, ele relaciona a inimizade predita no texto bíblico com o sofrimento de Jeremias:

É necessário que a amizade de Cristo gere inimizade contra a Serpente, e a amizade da Serpente traga inimizade contra Cristo. (Homilias em Jeremias 19:7)

Jeremias seria então um exemplo de semente da mulher. Isto é consistente com a ideia de que a Igreja é a semente da mulher, que, com a força de Cristo, esmaga a cabeça da serpente. Sendo a Igreja a semente, é improvável que ele interpretasse a mulher como sendo Maria, haja vista que Maria não é quem gera a Igreja.

Cipriano de Cartago (?-258), citando Isaías 7:10-15, interpreta a semente como sendo Jesus:

(...) o próprio Deus lhe dará um sinal. Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e tu chamarás o seu nome Emanuel. Manteiga e mel ele comerá, e antes que Ele saiba o que é preferir o mal, Ele deverá se voltar para o bem. Essa semente que Deus predisse que viria da mulher e que iria pisar na cabeça do diabo. Em Gênesis: "Então Deus disse à serpente: Feito isto, amaldiçoado és tu de todo tipo dos animais da terra. Sobre o teu peito e o teu ventre arrastarás e a terra será a tua comida todos os dias da tua vida. E colocarei inimizade entre ti e a mulher e sua semente. Ele considerará a tua cabeça, e tu olharás o seu calcanhar". (Três Livros de Testemunhos contra os Judeus 2:9)

Em outras partes, Cipriano identifica os membros da Igreja como aqueles que esmagam a cabeça da serpente, ou seja, uma interpretação coletiva:

Que nossos pés sejam calçados com o ensino do Evangelho e armados para que, quando a serpente começar a ser pisada e esmagado por nós, ela não possa ser capaz de nos morder e derrubar. (Carta 55:9)

Ele também aplica o mesmo a um cristão que não negou a fé sob tortura:

E embora seus pés estivessem amarrados com cordas, a cabeça da serpente [estava] esmagada e dominada. (Carta 39:2)

Dessa forma, vemos que, nestes testemunhos referentes aos primeiros três séculos da Igreja, não há nenhum pai da Igreja indicando Maria como aquela que esmagaria a cabeça da serpente. Isto está de acordo com o fato de que a devoção Mariana e a elevação da mãe de Jesus ao status que atualmente ocupa nas Igrejas de Roma ou Igrejas Orientais levaria ainda séculos para ocorrer, e não fazia parte do período mais primitivo da Igreja.

Serapião de Thumis (?-359), escrevendo no séc. IV, disse que a semente era Cristo:

Mas uma mulher não tem semente, só o homem tem. Como então foi dito da mulher? Está claro que foi dito a respeito de Cristo a quem a virgem pura gerou sem semente? Certamente, Ele é uma semente singular, não sementes no plural. (Tiburtius Gallus, S. J., Interpretatio Mariologica Protoevangelii [Gen. 3:15], Tempore postpatristico usque ad Concilium Tridentium [Rome: n.p., 1949], 24)

Cirilo de Jerusalém parece interpretar como sendo a Igreja (?-386):

Pois há também uma inimizade que é certa, como está escrito, eu porei inimizade entre ti e a sua semente, pois a amizade com a serpente opera a inimizade contra Deus e a morte. (Leituras Catequéticas 16:10)

Optato de Mileve (?-400) deu uma interpretação coletiva:

No começo do mundo, a inimizade começou com o Diabo. Foi quando a sentença de Deus colocou as duas sementes uma contra a outra em rivalidade hostil. Ele disse: "Vou colocar inimizade entre tua semente e a semente da mulher; ela (ipsa) ferirá a tua cabeça, e tu ferirá o seu calcanhar ” (Gn 3:15). Essa inimizade (...) derrama sangue santo desde o princípio. Logo depois, o justo Abel é assassinado por seu irmão (Gn 4). (In Natale Infantium qui pro Domino occisi sunt, 5; FG, 173-74; Unger cites source for text as A. Wilmart, RevScRel 2 (1922), 271-302; 283)

A semente da serpente seria representada pelo ímpio, e a da mulher pelo justo. O primeiro caso de inimizade entre as duas sementes seria Caim e Abel. Dessa forma, a mulher dificilmente seria Maria aqui, pois não faria sentido relacioná-la a Caim e Abel.

João Crisóstomo (?-400) indica os membros da Igreja como a semente da mulher. Num sermão sobre Gênesis 3, ele fala da inimizade entre as serpentes (no sentido natural) e a humanidade. É então que ele diz sobre Gênesis 3:15:

Deve ser levado muito mais em conta a serpente intelectual [o diabo], Pois também Deus o humilhou e o sujeitou debaixo de nossos pés e nos deu o poder para pisar em sua cabeça. (Homilias em Gênesis 17:7)

Jerônimo (?-420), o tradutor da vulgata. Esta tradução é em grande parte responsável pela confusão que se seguiu na interpretação da passagem, pois Jerônimo usou o pronome feminino (ipsa), em contraste a forma como havia traduzido numa obra exegética anterior (Quaestiones hebraicae), na qual ele traduziu: "Ele esmagará a sua cabeça e você esmagará o calcanhar". Em todo o caso, não há registros de que o próprio Jerônimo tenha identificado a mulher ou a semente da mulher como sendo Maria. Ele aplicou uma interpretação coletiva quando abordou a passagem.  Em seu comentário sobre Ezequiel, ele fala das águas que “alcançam os tornozelos que estão perto das solas e do calcanhar, e estão expostos às picadas da serpente (Comentário sobre Ezequiel 14.47:3). Ele comenta sobre a serpente mencionada em Eclesiastes 10:8 e diz que ela é a mesma “que enganou Eva no paraíso, a qual por ter destruído o preceito de Deus, expôs-se as suas mordidas e ouviu do Senhor: ‘Tu lhe ferirás a cabeça e ele (ille-coluber) ferirá o teu calcanhar" (Comentário em Isaías 16, 58:12). Nesta interpretação, a mulher seria Eva. Em suma, ele aponta Eva como a mulher e, ao se referir aos que são feridos pela serpente, adota uma interpretação coletiva, não indicando Maria individualmente. É razoável supor que ele interpretasse que os membros da Igreja esmagariam a cabeça da serpente.

Agostinho (354-430) identificou a semente como as boas obras:

Foi colocada inimizade entre a semente do diabo e a semente da mulher. A semente do diabo significa a sugestão perversa e da mulher significa o fruto da boa obra pela qual se resiste à sugestão perversa. Assim, ele vigia o pé da mulher para que, caso a mulher escorregue em algum prazer proibido, ele possa se aproveitar dela. Já ela vigia sua cabeça a fim de que possa evitá-lo já no início de qualquer tentação maligna. (Sobre o Gênesis contra os Maniqueus, cap. 18)

Em outro lugar, ele identifica Eva como a mulher e a Igreja como a semente:

Essa cabeça é a parte que recebeu a maldição, a saber que a semente de Eva deveria marcar a cabeça da serpente. Pois a Igreja foi admoestada a evitar o começo do pecado. Qual é o começo do pecado, como a cabeça da serpente? O começo de todo pecado é o orgulho. (Comentário sobre o Salmo 74, v. 14)

Aqui, fica claro que Igreja (a semente de Eva) deveria vigiar e evitar o pecado, ou seja, esmagar a cabeça da serpente. Em suma, Agostinho não aponta nem a semente da mulher nem a própria mulher como Maria. Ele faz alusões a Gênesis 3:15 em outros lugares (Comentários sobre os Salmos 36:12-13 e 49:6 – aqui), sem estabelecer qualquer relação da passagem com Maria.  João Cassiano ofereceu uma interpretação similar ao identificar a cabeça da serpente como o início do pecado e o calcanhar como o fim de nossas vidas (Institutas 4:37).

Um antigo manuscrito traz a interpretação de Pais da Igreja Sírios (ex. Teodoro de Mopsuestia e Efrém) sobre o Gênesis. Eles disseram sobre a cabeça e o calcanhar:

 (...) esta é uma figura do julgamento sobre Satanás, pois Deus o colocou muito abaixo de nós. Quanto a nós, se desejamos o bem, somos capazes de feri-lo através de ações poderosas. Contudo, ele também é capaz de nos ferir, uma vez que ele vigia nossos calcanhares, ou seja, nosso caminho, que são nossos atos. (Abraham Levene, The Early Syrian Fathers on Genesis: From a Syrian MS [London: Taylor’s Foreign Press, 1951], 24, 77-78.

Trata-se de uma interpretação coletiva na qual a semente da mulher é entendida como sendo os cristãos. Uma implicação dessa interpretação coletiva é que a mulher não poderia ser Maria. Eva seria uma candidata mais forte, uma vez que ela deu origem a raça humana. Em conclusão, vimos que a interpretação de que Maria esmagou a cabeça da serpente não encontra eco no pensamento patrístico. Mesmo a interpretação de que Maria seria a mulher que geraria a semente também não parece ter tido muitos apoiadores. Eu procurei em blogs católicos a fim de encontrar alguma citação patrística que afirmasse ser Maria aquela que esmagaria a serpente e não encontrei nada. Eles geralmente citam o paralelo entre Eva e maria feito por Irineu e Justino, mas já vimos que extrair daí a exegese de Gênesis 3:15 não faz jus aos escritos desses autores. O estudo mais detalhado sobre Gênesis 3:15 pode ser visto aqui.


quarta-feira, 26 de junho de 2019

Resposta à Apologética Católica sobre o Papado e a História da Igreja (Parte 3)



O apologista católico Rogério Fernandes publicou mais um artigo respondendo meu último artigo sobre Agostinho e Papado (aqui).


Irineu de Lyon (Séc. II) – Uma visão geral

Ele começa o artigo citando Irineu de Lyon. Eu já tratei em detalhes sobre testemunho deste pai de Igreja. Já foi demonstrado com amplo aporte acadêmico que Irineu desconhecia totalmente qualquer ideia papal (a controvérsia pascal é prova inequívoca disto) e sua noção sobre sucessão apostólica é radicalmente distinta daquela hoje ensinada por Roma (seção sobre Irineu).

O apologista também usa o testemunho de Irineu para afirmar que já havia no período deste autor uma divisão tripartite em Roma: bispo monárquico, presbíteros e diáconos. Irineu escreveu na segunda metade do séc. II, período em que os historiadores da Igreja concordam que o episcopado monárquico já havia emergido em Roma. No entanto, há um consenso acadêmico sobre o fato de que Roma não teve bispos monárquicos até o fim da primeira metade do séc. II, com base em autores mais antigos do que Irineu (Inácio de Antioquia, Clemente de Roma e Pastor de Herma). Eu já publiquei artigo sobre a ausência do episcopado monárquico em Roma (aqui) e também sobre o fato de que este tipo de estrutura organizacional não foi instituída pelos Apóstolos (aqui e aqui). Além disso, o conceito de tradição de Irineu não ajuda em nada a causa católica. O que Irineu chama de tradição é radicalmente distinto dos vários conceitos de tradição hoje vigentes na Igreja Romana. Muitas das distintas doutrinas romanas estão ausentes ou são incompatíveis com as doutrinas de Irineu (aqui). A tradição de Irineu nada mais era do que um sumário de doutrinas claramente expostas na Escritura. Tratava-se da regra da fé que daria origem ao que hoje conhecemos como credo apostólico.

O apologista relacionou o protestantismo ao gnosticismo, quando, claramente o conceito de tradição historicamente defendido por Roma é muito semelhante ao argumento gnóstico combatido por Irineu. O bispo de Lyon apelava a uma tradição pública, universalmente pregada pelas Igrejas e claramente exposta nas Escrituras. Já os gnósticos apelavam a uma tradição secreta, não verificável nas Escrituras e que apenas uma corrente especial de sucessores teria acesso. Qual dos dois conceitos está mais próximo da tradição católica romana? Pegue o caso da Assunção de Maria. Não há o mínimo rastro de apostolicidade desta tradição, e as primeiras fontes a citá-la são de um período muito posterior aos apóstolos e ainda eram heréticas (aqui). Mesmo que esta tradição não tenha sido pública, nem universalmente defendida pela Igreja, Roma afirma que é um dogma de fé. Tomemos o fato de Roma ter redefinido o conceito de tradição (aqui). O conceito de tradição de Irineu é totalmente incompatível com a teoria do desenvolvimento da doutrina, conforme defendida por Roma. Segundo este conceito, um magistério supostamente infalível e guiado pelo Espírito Santo como o de Roma pode deixar a Igreja durante séculos ou até milênios no escuro, até que finalmente se descubra o correto significado da doutrina. Já para Irineu, a tradição da Igreja era historicamente verificável e rastreável até as fontes apostólicas, sempre com o mesmo sentido. Roma defendeu no passado a ideia de que a tradição era um suplemente doutrinário às Escrituras,  ou seja, havia doutrinas que foram ensinadas apenas oralmente pelos Apóstolos. Embora este argumento seja cada vez menos abraçado pelos teólogos católicos, ainda é comum na apologética popular. Contudo, o bispo de Lyon acreditava numa tradição não materialmente distinta da Escritura.

O artigo católico, na incapacidade de citar autores acadêmicos que apoiem suas teses papistas, traz citações irrelevantes. Ele trouxe um autor que implicitamente afirma que o episcopado monárquico só se tornou universalmente difundido nos tempos de Irineu. Isto implica que esta estrutural eclesial não estava presente em todas as igrejas desde os apóstolos.

Pelo final desse século, o monoepiscopado, também chamado “episcopado monárquico”, já era difundido universalmente, mas não ainda padronizado. (Fonte)

Este é um problema central para o papado. Se não há uma sucessão de bispos monárquicos que remontam até o apóstolo Pedro, o argumento papista desmorona. Eu recomendo fortemente a obra seminal de Peter Lampe que traz inúmeras evidências históricas sobre a Igreja Romana dos primeiros dois séculos e atesta que a estrutura eclesial de Roma era formada por uma rede de igrejas domésticas que não possuía um cabeça central (aqui). Se o apologista católico deseja realmente desafiar minhas teses, ele precisa ser menos preguiçoso e interagir com o que já escrevi a respeito. Quem ler os artigos linkados observará que ele não aborda nenhum dos vários argumentos apresentados. Acredito que ele sequer os tenha lido.

A fuga dos termos do debate

Desde o início , ele tem insistentemente fugido dos termos que ele inicialmente atacou. E como dizem, quando você precisa mudar os termos de um debate, isto quer dizer que você já perdeu. Como já demonstrei nos  meu artigos anteriores (aquiaqui  e aqui), ele iniciou estes debates respondendo a um artigo sobre Agostinho e o Papado, no qual defendi que o bispo de Hipona não acreditava que o bispo romano exercia uma primazia jurídica sobre a Igreja Universal. Na medida em que o debate se desenvolveu, ele passou a defender que não é bem assim. Não é que o bispo de Hipona e outros pais da Igreja como Irineu acreditavam que o bispo de Roma tinha primazia jurídica sobre toda a Igreja. Eles acreditavam apenas num “primado”. O primado que Irineu atribuiu a Roma, a qual abordei em detalhes nos artigos linkados, não envolvia qualquer jurisdição de Roma sobre as demais Igreja. E as razões dadas por Irineu para esse primado são distintas daquelas afirmadas pelo bispo de Roma para defender o papado.

Contudo, como o primado de honra dado a Roma por outras Igrejas se constitui numa prova da ausência e não da presença do papado, ao apelar a isto, os apologistas católicos estão refutando a si mesmos. Se você precisa utilizar uma ideia incompatível e distinta do papado para defender esta doutrina, isto quer dizer que o argumento é bem frágil. O artigo do Rogério apela a crença na sucessão apostólica por parte de Agostinho para apoiar sua tese, porém, o papado é um tipo específico de sucessão, a qual o bispo de Hipona não defendeu. Como disse em artigos anteriores, há duas premissas fundamentais para a doutrina papal, a qual o católico nem se esforça para evidenciar:

(1)   Pedro tinha primazia jurídica sobre os demais apóstolos e toda a Igreja;
(2)   O bispo de Roma herdou esta primazia jurídica de forma exclusiva. Por isso, ele tinha o direito de governar de forma soberana toda a Igreja.

A relevância da ausência do papado nas fontes primitivas

No entanto, o máximo que o Rogério consegue é apelar a um primado que não envolvia nenhuma das duas premissas acima. Os pais da Igreja defenderam diferentes ideias de sucessão apostólica. Porém, nem Irineu nem Agostinho defendeu o tipo especial de sucessão que era o papado, sendo esta doutrina não somente ausente de seus escritos, mas incompatível com suas eclesiologias em geral. Ainda, estes autores escreveram bastante a questão da autoridade da Igreja (Agostinho mais ainda do que Irineu). Será que, mesmo num período de quase 400 anos após os Apóstolos, Agostinho teria se esquecido de mencionar a doutrina fundamental do papado? Eu já traduzi um artigo sobre a relevância da ausência do papado em fontes primitivas (aqui). Pense em quão relevante seria o apelo ao infalível bispo romano para defender a Igreja das heresias. Se Cristo instituiu um bispo em particular como a rocha de toda a Igreja, nós sequer estaríamos aqui discutindo esta questão. Eles teriam apelado a autoridade infalível do papa de forma exaustiva como os católicos modernos fazem. A razão pela qual eles não mencionam esta ideia, que seria o fundamento da Igreja Cristã, é porque sequer existia em suas mentes.

A autoridade da Igreja foi bastante discutida pelos pais da Igreja e pelos escritos do Novo Testamento. Qual a probabilidade de que eles deixassem de abordar uma doutrina tão fundamental e simples? A ideia de que um bispo governaria monarquicamente toda a Igreja não requer grandes refinamentos filosóficos e poderia ter sido claramente exposta nas inúmeras controvérsias teológicas da Igreja Antiga. Os autores cristãos, além de não mencionar esta doutrina, desenvolveram eclesiologias incompatíveis com a ideia de papado. Há vários artigos neste blog que atestam isso.

Irineu, o primado de Roma e a hierarquia de autoridades

Sobre Irineu e o primado de Roma, vou deixar que William La Due – um teólogo católico romano formado pela Universidade Gregoriana de Roma e doutor em lei canônica pela Pontifícia Universidade Laterana explique:

Uma das mais celebradas e discutidas passagens da obra [Contra as Heresias] lida com a posição da Igreja Romana na Igreja Universal (...) Irineu estava destacando a importância da cadeia de sucessão nas Igrejas apostólicas para mostrar que a doutrina ensinada nestas comunidades era precisamente o que havia sido transmitido pelos próprios apóstolos. Ele afirma:

Mas visto que seria coisa bastante longa elencar, numa obra como esta, as sucessões de todas as igrejas, limitar-nos-emos à maior e mais antiga e conhecida por todos, à igreja fundada e constituída em Roma, pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e Paulo, e, indicando a sua tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada aos homens, que chegou até nós pelas sucessões dos bispos, refutaremos todos os que de alguma forma, quer por enfatuação ou por vanglória, quer por cegueira ou por doutrina errada, se reúnem prescindindo de qualquer legitimidade. Com efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua origem mais excelente, toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque nela sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos apóstolos (...) Podemos ainda lembrar Policarpo, que não somente foi discípulo dos apóstolos e viveu familiarmente com muitos dos que tinham visto o Senhor, mas que, pelos próprios apóstolos, foi estabelecido bispo na Ásia, na Igreja de Esmirna (...) E é disso que dão testemunho todas as Igrejas da Ásia e os que até hoje sucederam a Policarpo, que foi testemunha da verdade bem mais segura e digna de confiança do que Valentim e Marcião e os outros perversos doutores (...) Também a igreja de Éfeso, que foi fundada por Paulo e onde João morou até os tempos de Trajano, é testemunha verídica da tradição dos apóstolos. (Contra as Heresias 3:3:2-4)

Na verdade, é compreensível que esta passagem tenha confundido os estudiosos por séculos! Aqueles que queriam encontrar nela uma evidência do primado romano foram capazes de interpretá-la dessa maneira. No entanto, há muita ambiguidade aqui e deve-se ter cuidado para não exagerar a evidência (...) De acordo com o eminente historiador Karl Baus, a ideia de Irineu pode ser explicada da seguinte forma:

A tradição apostólica é encontrada mais certamente nas comunidades que receberam uma fundação apostólica direta. Há várias delas e cada uma delas tinha mais poder do que outras comunidades cristãs, com fundamento em sua origem apostólica, para se saber a verdade. Porém, Roma se destaca entre as sedes apostólicas, porque como era reconhecido, Pedro e Paulo foram seus fundadores. Então Irineu sumariza que com tais igrejas de fundação apostólica cada Igreja individual deveria concordar, porque este tipo de Igreja havia sempre preservado a tradição apostólica. Uma dessas Igrejas era a romana, a qual estava numa posição favorável para estabelecer a tradição apostólica, mas não de forma exclusiva.

A interpretação de Karl Baus é a mais fiel ao texto e não presume ler no texto um significado que não está lá. De fato, ele nem superestima nem subestima a posição de Irineu. Para ele, são as Igrejas de fundação apostólica que dão uma maior autoridade ao ensino e doutrina autêntica. Entre elas, Roma, com sua dupla fundação apostólica, certamente ocupava um importante lugar. No entanto, todas as Igrejas apostólicas desfrutavam do que ele chamou de “preeminente autoridade” em questões doutrinais.   (William La Due, The Chair Of Saint Peter [Maryknoll, New York: Orbis Books, 1999], p. 28-29)

O argumento de Irineu levava em conta a tradição da Igreja de Roma, que por ter contado com a pregação dos Apóstolos Pedro e Paulo, ocupava um lugar especial entre as sedes apostólicas. Contudo, esta mesma tradição poderia ser verificada nas outras igrejas apostólicas. Na mesma parte, ele cita Policarpo e a Igreja de Éfeso. O argumento não implica em nenhuma autoridade jurídica sobre outras Igrejas, mas numa autoridade da tradição daquela Igreja que era pública e verificável e compartilhada por outras Igrejas.

É aqui que ocorre o erro fatal do argumento católico. Todo o argumento gira em torno de uma tradição específica e historicamente situada no século II. É com esta tradição que toda a Igreja deveria concordar. O problema se coloca: o que Roma define hoje como tradição é radicalmente distinto e incompatível com o que Irineu defendeu como tradição. Irineu não estava defendendo os dogmas marianos, a infalibilidade papal ou outras doutrinas que Roma acrescentou durante os séculos. Irineu nunca afirmou qualquer infalibilidade da Igreja Roma. Ele não disse que o resto da Igreja deveria concordar com Roma para todo sempre porque esta era o oráculo infalível da fé. Na verdade, ele pode ser contado como testemunha de como as coisas mudaram, na medida em que cita Roma e Éfeso como Igrejas que ensinavam a mesma doutrina. Todavia, estas Igrejas sequer estão em comunhão nos dias de hoje, e uma das razões foi a tentativa romana de impor o primado jurídico sobre as Igrejas Orientais.

O argumento de Irineu aplica-se somente a Igreja de Roma de seus dias. A única forma de torna-lo válido para os séculos seguintes seria provando que Roma manteve sua tradição inalterável ao longo dos séculos, o que é uma afirmação absurda que nenhum historiador sério da Igreja defenderia. Acredito que nem o apologista defenda isto, uma vez que abraça a tese modernista de Newman. Estes contra-argumentos são expandidos por mim AQUI (Seção sobre Irineu). La Due também expressa o consenso acadêmico a respeito da estrutural eclesial romana mais primitiva:

A pesquisa mais autoritativa indica que, diferentes de outras sedes como Antioquia na Síria, a sede romana não possuía bispo monárquico até a metade do século II. Até este tempo, a igreja na capital do império foi governada por um colégio de presbíteros ou presbíteros-bispos. (p. 1)

Ele explora no capítulo (p. 1-19) os diferentes modelos de estrutura eclesiástica apresentados pelos documentos do N.T. Nenhum desses modelos envolvia a existência do bispo monárquico. O estudioso também explora as evidências históricas da ausência desta estrutura em Roma (p. 25-32). O apologista, como de costume, traz a opinião do erudito Jaroslav Pelikan de forma descontextualizada. Na resposta anterior, ele usou vários autores protestantes, inclusive Pelikan, totalmente fora do contexto. Eu trouxe o contexto das respectivas obras e evidenciei que os autores em questão contradiziam frontalmente as teses do apologista (aqui). Vejamos a parte destacada da citação:

A principal entre essas em autoridade, e com prestígio, era a igreja de Roma, na qual a tradição apostólica compartilhada por todas as igrejas de todos os lugares era preservada. (Jaroslav Pelikan. A tradição cristã: uma História do desenvolvimento da doutrina. O surgimento da tradição católica. p. 133)

O contexto expandido:

Tanto a unidade doutrinal quanto a continuidade apostólica foram contrastadas com os ensinamentos dos gnósticos. Ireneu falou da “variedade deles” e das “doutrinas e sucessões deles” (Iren. Her. 3. pr. [Harvey 2:1]), mas alegava que a igreja, dispersa pelo mundo e falando muitas línguas, tinha um só coração e uma só mente, mantendo a unidade da fé (Iren. Her. 1.10.2 [Harvey 1:92-94]). Seu argumento de que a tradição apostólica fornecia a interpretação correta do Antigo e do Novo Testamentos e que a Escritura provou a correção da tradição apostólica, de algumas maneiras, era um argumento circular. Mas, em pelo menos duas maneiras, esse argumento escapou dessa circularidade. Uma era a identificação da tradição com “o evangelho”, o qual servia como uma norma do ensinamento apostólico. A outra era o apelo para as igrejas de fundação apostólica como os afiançadores da continuidade com os apóstolos. Pois quando nem a Escritura nem a tradição conseguiam convencer os opositores, Ireneu insistia que estava no “poder de todos em toda igreja que quisesse ver a verdade contemplar claramente a tradição dos apóstolos totalmente manifestada em todo o mundo; e tínhamos condição de avaliar os que tinham sido instituídos bispos das igrejas pelos apóstolos e de [demonstrar] a sucessão desses homens para o nosso tempo” (Iren. Her. 3.3.1 [Harvey 2:8-9]). A principal entre essas em autoridade, e com prestígio, era a Igreja de Roma, na qual a tradição apostólica compartilhada por todas as igrejas de todos os lugares foi preservada. A fundação apostólica e a sucessão apostólica eram outro critério da continuidade apostólica.

Pelikan está afirmando o mesmo que La Due. Roma compartilhava de uma tradição preservada em outras Igrejas que também possuíam a mesma preeminência de autoridade de Roma. O que tornava Roma especial era a presença de Pedro e Paulo. Não há qualquer primazia jurídica (a premissa papal) no argumento de Irineu, nem isto está sendo defendido por Pelikan. O apologista comentou:

Vale notar que, para Santo Irineu, a autoridade é definida porque para combater os hereges as Escrituras não bastavam. Santo Irineu de Lyon é um obstáculo intransponível aos protestantes:

Ele então traz a citação de um apologista católico sem qualquer valor para a discussão e prossegue:

A destruição das relíquias de Santo Irineu tem um valor simbólico de contestação pela nova ordem calvinista que negava o valor da tradição e autoridade da Igreja.

Observem que ele ocultou o seguinte trecho da citação de Pelikan:

Pois quando nem a Escritura nem a tradição conseguiam convencer os opositores, Ireneu insistia que estava no “poder de todos em toda igreja que quisesse ver a verdade contemplar claramente a tradição dos apóstolos totalmente manifestada em todo o mundo (...)

Eu já discuti a tradição de Irineu e a doutrina da Sola Scriptura (aqui). O primeiro recurso de Irineu para refutar os gnósticos foi a Escritura, a qual considerava a autoridade suprema, bem como suficiente materialmente e formalmente. Eles então respondiam afirmando que a Escritura não era clara e que tiveram acesso às doutrinas secretas a partir dos próprios apóstolos. Irineu passava então a apelar a tradição que era o ensino público e consensual da Igreja desde o princípio como um elemento de prova. Os gnósticos também não aceitaram e foram inclusive os primeiros a produzirem suas próprias listas de sucessão de mestres. Foi aí que os pais da Igreja passaram a produzir as listas de mestres da Igreja cristã para refutar este último argumento dos gnósticos. A eclesiologia de Irineu comportava uma hierarquia de autoridades da qual o papado não fazia parte.

Não há incompatibilidade entre uma hierarquia de autoridades e a doutrina da Sola Scriptura. Esta afirma que a Escritura é a única regra infalível de Fé. Irineu também afirma a suficiência formal e material das Escrituras (documentação nos artigos linkado acima). Diferente do espantalho católico, a Sola Scriptura não exclui a autoridade da Igreja ou da Tradição, mas afirma que a Escritura é a autoridade final. O que Irineu fez, ao apelar a outras autoridades, é basicamente o trabalho de qualquer apologista de respeito. Ele não considerava a Escritura insuficiente, mas no trabalho de convencer seu opositor, precisava apelar ao mesmo tipo de autoridade que eles. O mesmo ocorre nos debates entre católicos e protestantes. Ao refutar o catolicismo romano, nos apelamos aos pais da Igreja, aos concílios, aos próprios textos do magistério romano. Isto implicaria que colocamos essas fontes em pé de igualdade com as Escrituras? Obviamente não. De forma semelhante, o católico romano apela a historiadores pagãos para atestar a existência de Jesus. Isto implicaria que as fontes pagãs estão no mesmo patamar de autoridade que o N.T? A doutrina protestante comporta a validade de outras autoridades como a tradição, os concílios da Igreja, a razão, a história. O que a distingue é que a infalibilidade é atribuída apenas à Escritura porque somente esta foi inspirada pelo Espírito Santo.  O apologista também comentou:

Neste texto de Pelikan fica evidente como surge o conceito de tradição e como ele é associado a apostolicidade e o primado Romano-Petrino, que são indissociáveis. Portanto, o conceito de apostolicidade é referente à questão de autoridade emanado dele.

Primeiro, Pelikan se refere ao conceito de tradição de Irineu, que não é o mesmo conceito defendido pelo Rogério, uma vez que ele abraça a teoria modernista de Newman. Segundo, não há em Irineu qualquer primado Petrino. Quando ele se refere a posição especial de Roma, sempre destaca o papel de Pedro e Paulo. A citação trazida por ele atesta isto:

Até o final do século II, a literatura Cristã mencionava tanto Pedro como Paulo como fundadores e organizadores da igreja em Roma. Depois, o foco e a ênfase se voltaram para Pedro. Assim, Tertuliano de Cartago (AD.150-230) mencionou que algumas ‘igrejas apostólicas’ possuíam registros de sucessão episcopal e a igreja romana possuía registros provando que Clemente tinha sido ordenado por Pedro para ser seu sucessor como bispo de Roma.  Escritores posteriores honram de forma especial por ter sido o fundador das congregações e da sucessão episcopal de Roma. […] (Denis Kaiser, Leo the Great on the Supremacy of the Bishop of Rome. Andrews University Seminary Student Journal, Volume 1, Number 2 Fall 2015).

Sobre esta fonte, que pode ser vista aqui, o apologista comenta:

Para defender minha tese uso bibliografia e fontes variadas. Começo com Denis Kaiser, PhD; que escreve para o artigo de uma faculdade adventista americana, portanto, nenhum pouco filocatólica.

Não há nada na fonte citada que referende as teses do Rogério. O autor em questão não afirma que havia em Irineu a visão de que Roma governava outras Igrejas. Pelo contrário, ele cita nas notas de rodapé obras que referendam a visão padrão de que Irineu não atribui a Roma qualquer autoridade de natureza jurídica sobre a Igreja Universal. O artigo citado é sobre as opiniões do papa Leão I (séc. V), que é de fato o primeiro a expressar em termos claros os argumentos que iriam sustentar o papado. O autor afirma nas conclusões:

Então ideias eclesiásticas e imperiais convergiram para formar o fundamento monárquico do papal e do trabalho do bispo de Roma. Enquanto Leão tentou impor essa autoridade em todas as questões eclesiais e seculares, suas tentativas ocasionalmente encontraram resistência, como a sua visão do poder episcopal do sucessor de Pedro, que nem sempre foi compartilhada por todos os bispos ou governantes seculares, especificamente não no Oriente (...) Este estudo destaca as significativas adições que os pontos de vista de Leão, o Grande, fizeram à lógica dos bispos e líderes da igreja anteriores em relação ao poder e autoridade do bispo romano. Enquanto ele forneceu a justificativa para o absoluto e completo domínio universal do episcopado romano, não foi senão séculos mais tarde que essa autoridade pôde realmente ser executada pelo papado.

As pretensões papais não foram completamente exercidas nem no séc. V, tão pouco no séc. II. Após muita resistência, só seriam impostas no Ocidente. Já o Oriente nunca aceitou este tipo de autoridade e de fato não aceita até hoje.  Ainda, os escritos de Irineu são do período até o fim do séc. II (período em que Paulo e Pedro são citados com igual importância). Isto evidencia a ausência da doutrina papal no pensamento de Irineu. Caso contrário, ele destacaria Pedro e não o colocaria em igualdade com Paulo. Terceiro, a primazia Romana de Irineu é incompatível com a doutrina do papado.  Irineu diz

Os bem-aventurados apóstolos que fundaram e edificaram a Igreja transmitiram o governo episcopal a Lino, o Lino que Paulo lembra na carta a Timóteo. (Contra as Heresias 3:3:3)

Além de colocar Paulo e Pedro em pé de igualdade, afirma que Lino foi o primeiro bispo de Roma e não Pedro. Ele sempre coloca os bispos de Roma como sucessores dos apóstolos no plural e nunca como sucessores de Pedro exclusivamente. O renomado eclesiologista católico romano – Francis Sullivan -  comenta:

De acordo com Irineu, Pedro e Paulo, não somente Pedro nomeou Lino como o primeiro na sucessão dos bispos de Roma. Isso sugere que Irineu não pensava em Pedro e Paulo como bispos ou de Lino e aqueles que o seguiram como sucessores de Pedro mais do que de Paulo. Irineu viu uma distinção clara entre apóstolos e bispos, embora ele entendesse bispos como os "sucessores" a quem os apóstolos entregaram o seu ofício de ensino. (Sullivan F.A. From Apostles to Bishops: the development of the episcopacy in the early church. Newman Press, Mahwah (NJ), 2001, p. 149)

Irineu provavelmente derivou sua lista de um autor mais antigo chamado Hegésipo. Sullivan diz:

O que eu disse sobre a lista de Hegésipo também se aplica à de Irineu, a saber, dado o fato desses homens como os principais líderes e professores entre os presbíteros romanos. Em que momento os principais presbíteros em Roma começaram a ser chamado de "bispos" permanece desconhecido. (Sullivan, p. 150)

Hegésipo foi um autor cristão que viajou a Roma e lá compilou uma lista de bispos. Infelizmente não temos a íntegra das obras de Hegésipo, mas alguns extratos constam da História da Igreja de Eusébio. Sullivan atesta, em consonância com a historiografia padrão, que a lista de Hegésipo não era de bispos monárquicos, mas de presbíteros destacados. Peter Lampe, autor da obra mais reconhecida na academia sobre o cristianismo em Roma nos primeiros séculos, afirma sobre Hegésipo:

Não está em causa de nenhuma maneira provar uma sucessão de bispos monárquicos dos apóstolos até o presente. O que ele retrata em sua mente eram cadeias de portadores de crenças corretas, ele tinha a opinião de que poderia reconhecer tal afirmação também em Roma. Mais do que isso não está no texto. (Christians at Rome in the First Two Centuries: From Paul to Valentinus. A&C Black, 2006, pp. 404)

Quasten, um estudioso patrístico católico romano, vai na mesma direção:

As palavras de Eusébio 'Γενομενος δε εν Ρωμη, διαδοχην εποιησαμην μεχρις Ανικητου' não indicam que Hegésipo compilou uma lista dos bispos de Roma, na ordem da sua sucessão, mas que em sua cruzada contra as heresias de seu tempo, visitou Corinto, Roma e outras cidades, a fim de averiguar a διαδοχην, ou seja, a tradição ou a preservação da verdadeira doutrina. (Johannes Quasten, Patrology Volume I (Ave Maria Press: Notre Dame, 1976), 286)

Controversamente os protestantes fazem uma distinção de primado romano e de primado petrino. Há uma confusão de DISCURSO aqui, pois não se pode pensar que  esses são opostos, visto que são complementares. Mesmo porque os primeiros cristãos não diferenciavam isso,

Que tipo de primado? Novamente, ele usa as palavras sem defini-las. O Rogério é adepto da filosofia de Orkut “quem se define se limita”. Os autores protestantes e outros acadêmicos afirmam que a primazia de Pedro era apenas de honra e não dava ao apóstolo qualquer autoridade singular sobre os outros. E não há nenhuma complementaridade com a primazia de Roma aqui. Como já visto, Irineu não atribuiu a Pedro primazia (mesmo de honra) sobre Paulo. Nem todos autores cristãos antigos atribuíram sequer a primazia de honra a Roma. A primazia de Pedro foi inclusive utilizada para estabelecer a autoridade da Igreja de Antioquia. Dessa forma, não existe complementariedade necessária dessas duas ideias, e ainda que houvesse, o máximo que se conseguiria é uma primazia de honra e não a autoridade jurídica que a doutrina papal requer.

Contudo, se o artigo é sobre Santo Agostinho não deveria começar ou forrar exclusivamente de citações deste Santo? Não, pois a base de um argumento sobre Agostinho está alicerçada nos argumentos de Irineu. Sem pensar dialeticamente acabamos assumindo os erros de outros autores motivados ideologicamente: os textos de Irineu vão influenciar toda cristandade.  E o argumento de apostolicidade vem com o de sucessão apostólica e do primado que são indissociáveis.

A ideia de sucessão apostólica em Irineu não é igual a de Agostinho. Irineu estava mais preocupado com a sucessão doutrinária, enquanto Agostinho com uma sucessão de ordenações. Além disso, os principais teólogos a inspirarem Agostinho foram Cipriano e Ambrósio, e não Irineu. Em todo o caso, a eclesiologia do bispo de Lyon vai na contramão da eclesiologia romana. O que o apologista entende por “primado” não fazia parte da ideia de sucessão apostólica destes teólogos antigos.

O Imprimatur e a ineficiência do magistério romano

Sobre o imprimatur gostaria de mostrar uma tabela ao leitor sobre a falácia usada pelo apologeta: de que a validação de um bispo é algo que encerra o caso sobre terminada opinião.
                                                           
Eu gostaria que ele apontasse onde afirmei que o imprimatur encerrava algum caso. Ele apresenta uma tabela onde é discriminado o que seria ou não infalível, como se alguém tivesse dito que o imprimatur era uma manifestação infalível da Igreja de Roma. Esta questão se deu porque a maioria dos historiadores católicos que apresento tiveram o imprimatur e/ou nihil obstat em suas obras. O apologista, sem sequer conhecer as obras, desqualificou os autores apelando a todo o tipo de teoria conspiratória, apenas porque eles contradizem sua ingênua narrativa da história da Igreja. Além disso, o nihil obstat afirma que a obra não possui erros morais ou doutrinais. Agora, quem tem mais autoridade para expressar a visão da Igreja Romana? O bispo ou o leigo? Com base na tabela que ele trouxe, o bispo em comunhão com o papa tem autoridade, mas não infalibilidade. Logo o imprimatur e/ou nihil obstat são declarações eivadas de autoridade. O apologista já demonstrou por meio de algumas pérolas ter um conhecimento bem limitado. No texto a qual respondo, ele diz:

Irineu é discípulo direto dos apóstolos e defende a Primazia Romana.

Como isto seria possível, se Irineu nasceu por volta do ano 130, quando todos os apóstolos já haviam morrido? Irineu afirma ter conhecido Policarpo, a qual teria conhecido o Apóstolo João. Embora esta afirmação histórica provavelmente não seja verdadeira, o máximo que se poderia dizer é que Irineu conheceu alguém que conheceu um apóstolo. Como isto o tornaria um discípulo direto? Outra pérola:

(...) o conceito de trindade, homousius, consubstancial e etc não seriam válidos. Pq? Surgiram 4 séculos depois da primeira geração cristã.

É neste ponto que precisamos salvar a Igreja Romana dos seus próprios apologistas. Pais da Igreja como Atanásio (o campeão da fé nicena) e a própria Igreja de Roma afirmaram que estes conceitos são bíblicos, embora o termo em si não pudesse ser achado na Escritura. Mesmo em relação ao termo, a afirmação é absurda, pois Tertuliano, no início do séc. III, já utilizara o termo trindade. A cristologia trinitária foi afirmada em Niceia (325). A primeira geração cristã viveu até o fim do séc. I. “Quatro séculos depois” daria algo em torno do ano 500. Se tomarmos como referência o início do ministério de Jesus, daria algo em torno do ano 433. Neste período, os conceitos em questão já haviam sido amplamente defendidos pelo pais da Igreja com base na Escritura e definidos pelos Concílio de Niceia (325) e Constantinopla I (381). No entanto, de acordo com o católico, deveríamos desprezar a historiografia padrão sobre o papado e levar em conta opiniões de pessoas que demonstram este nível de conhecimento sobre a história. É como dizer para o doente procurar um curandeiro para ser benzido com folhas de arruada ao invés de ouvir a opinião de um médico e tomar os remédios.

Além disso, os apelos à infalibilidade da Igreja são vazios. As inúmeras contradições do magistério são resolvidas através de decisões arbitrárias dos católicos leigos. Não há uma lista infalível de todos os ensinamentos infalíveis do magistério. O leigo precisa arbitrariamente decidir o que está ou não sujeito ao erro. Esta não é uma tarefa simples, pois o magistério extraordinário (infalível) nem sempre traz uma indicação de que determinado ensino é irreformável. Não há consenso sobre quantos são os concílios ecumênicos. Não há consenso sobre quantos são os concílios infalíveis. E mais, os teólogos católicos admitem que mesmo num concílio infalível, nem todas as declarações são infalíveis. Todavia, há consenso de que o exercício do magistério extraordinário é extremamente raro. Não seria exagero dizer que nem 1% das declarações do magistério podem ser classificadas como “infalíveis”. Cardeal Dulles afirma:

Não existe, no entanto, uma lista canônica de todos os concílios ecumênicos. (Magisterium: Teacher and Guardian of the Faith (Sapientia Press 2007) p. 68)

E:

Concílios como a Trento e o Vaticano I muitas vezes dividiram seus decretos em capítulos e cânones, de modo que os capítulos declararam positivamente o contraditório do que o anátema nega. O ensino do capítulo é definitivo pelo menos na medida em que contradiz o anátema no cânon. Mas, além de incluir doutrina definida, os capítulos geralmente contêm questões explicativas adicionais que não são infalivelmente ensinadas. (Ibid. p. 68)

E também:

Exceto pela definição da Imaculada Conceição, há pouca clareza sobre quais declarações papais antes do Vaticano I são irreformáveis. A maioria dos autores concordaria com cerca de meia dúzia de declarações. (Ibid. p. 72)

Dulles demonstra que nem o magistério tem conclusões exatas sobre o exercício do próprio magistério:

No início do século XX, houve um debate inconclusivo sobre se a Igreja pode definir dogmaticamente o que é apenas "virtualmente" ao invés de "formalmente” revelado. (p. 75).

O católico que acredita poder dispensar o magistério ordinário (falível) e seguir sua consciência está agindo em desacordo com a doutrina historicamente defendida pela Igreja Romana. Liberdade de consciência sempre foi vista como uma “heresia” protestante ou praga da modernidade. O catecismo afirma:

A assistência divina é também dispensada aos sucessores dos Apóstolos, quando ensinam em comunhão com o sucessor de Pedro, e de modo particular ao bispo de Roma, pastor de toda a Igreja, quando, mesmo sem chegarem a uma definição infalível e sem se pronunciar de «modo definitivo», no exercício do seu Magistério ordinário, propõem uma doutrina que leva a uma melhor inteligência da Revelação em matéria de fé e de costumes. A este ensinamento ordinário devem os fiéis «prestar o assentimento religioso do seu espírito» (429), o qual, embora distinto do assentimento da fé, é, no entanto, seu prolongamento. (CCC 892)

Há também um problema de origem histórica. Essa distinção entre magistério ordinário e extraordinário é um desenvolvimento recente (lembremos que a infalibilidade papal só foi declarada no séc. XIX). Os cristãos das diferentes épocas dificilmente saberiam onde o magistério oficial estava. Dulles escreve:

No ensino católico moderno, o termo "Magistério" geralmente designa os professores hierárquicos - o papa e os bispos que em virtude de seu ofício têm autoridade para ensinar publicamente em nome de Cristo e julgar oficialmente o que pertence à fé cristã e o que não pertence. Este conceito do Magistério, embora pareça quase evidente hoje, é relativamente recente. Antes do século XIX, a dicotomia entre privado e público, não oficial e oficial não estava tão claramente desenhada. (Ibid., p. 35)

Essa é uma das razões pelas quais se Cristo tivesse deixado um magistério infalível para manter o povo de Deus na doutrina correta, este não poderia ser o romano.

Como vemos na tabela, o Imprimatur não diz que a obra é infalível e nem que os textos na obra não são objetos de debates e estudos, mas é apenas uma licença da Igreja para publicação.

Já o Nihil Obstat afirma que a obra não tem erro doutrinal ou moral, logo, as acusações do apologista a autores como Raymond Brown se mostram infundadas diante da autoridade de sua própria Igreja. Além disso, como já visto, os católicos não tem obrigação de seguir apenas o magistério infalível, pois se assim fosse, a Igreja Romana não exerceria uma autoridade de fato, haja vista que o magistério falível é o que está sendo exercido na maior parte do tempo. Sem contar que a própria distinção entre o que falível e infalível já é um problema. O resultado prático é isto. Há uma Igreja que supostamente deveria manter seus fiéis longe do erro, mas autoriza e endossa a publicação de livros, que segundos os leigos, estão cheios de heresia.

Alguns protestantes acham que tudo que teólogo católico diz é dogmático ou que no catolicismo não pode haver discordâncias na unidade.

Se a discordância se refere a algo que a Igreja de Roma declarou como parte do depósito da fé, constitui-se sim numa quebra da unidade.

Talvez seja porque, dentro do protestantismo, a discordância leve ao sectarismo, à divisão, e à heresia. Ou talvez pela teologia protestante ser tão fragmentada que toda hora é preciso inventar rótulos para identificar alguma corrente de pensamento, mesmo que seja mínima.

Pelo contrário, o protestantismo é muito mais tolerante às discordâncias. A teologia protestante não exige que todos estejam debaixo da autoridade de um mesmo bispo para que sejam considerados verdadeiros cristãos. Presbiterianos e batistas, por exemplo, se consideram irmãos de fé, apesar de possuírem divergências doutrinárias. O quadro que ele pinta não é fidedigno ao catolicismo moderno. O que se vê são grupos antagônicos, a exemplo de modernistas e sedevecantistas, com interpretações divergentes sobre os documentos magisteriais, e tantas vezes excomungando-se mutuamente. O papa Francisco mesmo é algo desse tipo de ataque. Se a existência de grupos excomungando o papa não é sinal de falta de unidade, o que poderia ser? Discutir unidade com católicos é geralmente tedioso, pois eles pressupõem que seu modelo de unidade (todos debaixo da autoridade do papa) é o padrão pela qual a unidade entre os cristãos deve ser julgada. Além de ser um padrão inválido do ponto de vista bíblico e histórico, já foi responsável por várias divisões na cristandade a exemplo do cisma oriental (1054) e ocidental (1378-1417).

Sobre a citação de Newman

Inicialmente o Rogério havia me acusado de citar Newman de forma errada, porém, agora, ele afirma que Newman estava errado. Parece que ele descobriu que o autor inglês não é tão favorável as suas teses. Conforme demonstrei, Newman afirma que enquanto os apóstolos estiveram na terra, não havia bispo ou papa – uma estrutura que só surgiria depois.

No meu entender como historiador, Newman não percebeu que havia bispos e presbíteros pois não lidou com a análise de Fontes Primárias (talvez, pelo fato de a epistemologia histórica no século XIX não ser muito desenvolvida); mas, de qualquer modo, a divisão e diferenciação do trabalho evangelístico já ocorre no Novo Testamento. 

A única fonte trazida pelo apologista é baseada na citação já trazida da coleção patrística da Paulus, na qual se diz que no período em que Irineu escreveu, já havia a divisão tripartite (bispo monárquico, presbíteros, diáconos). No entanto, Newman se referiu ao período apostólico, quando escreveu:

Enquanto os Apóstolos estavam na terra, não havia bispo ou papa. (Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã, Cap. 4, Seção 3)

Ele ainda afirma que Newman não “lidou com a análise das fontes primárias”, o que simplesmente não é verdade. A obra pode ser vista aqui e muitas fontes primárias são citadas. Vejamos o contexto da citação:

Enquanto os apóstolos estavam na terra, não havia nem bispo nem papa; seu poder não tinha proeminência, como sendo exercido pelos apóstolos. Com o passar do tempo, primeiro o poder do bispo se mostrou e depois o poder do papa. Quando os apóstolos foram levados, o cristianismo não se quebrou em partes. No entanto, localidades separadas poderiam começar a ser o cenário de dissensões internas, e um árbitro local, em consequência, seria desejado. (Fonte)

Newman está se referindo ao bispo monárquico. O apologista disse que “Newman não percebeu que havia bispos e presbíteros”. Newman não diz nada sobre a ausência de bispos ou presbíteros como liderança colegiada. No N.T os termos gregos para bispos e presbíteros são intercambiáveis. Isto fica claro quando Newman diz: “e um árbitro local, em consequência, seria desejado”. O cardeal está reverberando a ideia amplamente defendida pelos historiadores de que o bispo monárquico surgiu no âmbito da Igreja local por conta de divisões internas. Isto fica mais evidente no trecho seguinte:

Quando a Igreja, então, foi lançada sobre seus próprios recursos, os primeiros distúrbios locais deram exercício aos Bispos, e os distúrbios ecumênicos seguintes deram força aos Papas.

O cardeal está explicando o surgimento do bispo monárquico, e posteriormente, do papado.

A estrutura eclesial da Igreja Antiga

O apologista faz diversos comentários sobre a Igreja Antiga que ou são factualmente errado ou são conclusões falaciosas dos fatos históricos. Não vou responder nesta primeira parte aqueles referentes a Agostinho, pois este pai da igreja merece um artigo separado, que será publicado ainda nesta semana.

Podemos, finalmente, concluir que a construção do discurso do Primado de Pedro foi uma evolução constante relacionada à herança apostólica de Pedro para a cidade de Roma.

Pedro não era considerado um papa e o primado que alguns pais da Igreja concederam a ele não envolvia qualquer jurisdição sobre os demais apóstolos. Logo, não há como estabelecer o papado apelando a este tipo de primado. Não é suficiente afirmar um primado de forma vaga como o apologista faz. Ele precisa provar que a natureza desse primado era de acordo com o que afirma a doutrina papal.

No Oriente existiam cidades que reivindicavam herança apostólica, mas isso não invalida a Romana, pelo contrário. Tertuliano, Cipriano (este desenvolveu o conceito de Primatus Petri, e derivando Cathedra Petri) e Clemente também expressaram o valor da sucessão apostólica como fonte de autoridade.

Na medida em que nenhum apóstolo tinha jurisdição sobre os demais, todas as sucessões seriam igualmente válidas. A sucessão de Roma não dá a esta Igreja o direito de governo sobre outras Igrejas que também poderiam reivindicar sua própria sucessão. Mesmo Roma, durante séculos, esteve em comunhão com as Igrejas Orientais sem que aceitassem as reivindicações papais. Então, apelar à sucessão apostólica se torna um argumento contra o papado, na medida em que todos os outros supostos sucessores dos apóstolos não aceitaram o papado.

Tertuliano sustentou uma ideia de sucessão apostólica radicalmente distinta da atual doutrina de Roma e não há nele qualquer resquício do papado (aqui). Cipriano defendeu que todos os bispos eram igualmente herdeiros da cátedra de Pedro, e foi com base neste pensamento que se opôs ao bispo romano Estevão. Não por acaso, ele é considerado um dos grandes exemplos no ocidente de resistência ao centralismo romano (aqui). Ele é um exemplo de como um apelo genérico a sucessão apostólica é insuficiente ou até mesmo desfavorável ao papado.  O que Clemente (suponho que de Roma) disse a respeito da sucessão também é radicalmente distinto do que Roma ensina (aqui). Ele é visto pela historiografia padrão como testemunha da ausência do episcopado monárquico na Igreja de Roma, e por consequência, da ausência do papado neste período. 

Podemos refletir sobre esse artigo? Sim. Quais as reflexões conclusivas? A primeira e mais importante é a noção de apostolicidade na qual eu embarco três coisas complementares: autoridade apostólica, sucessão apostólica e primazia Romano-Petrina.

Ele citou diferentes pais da Igreja com diferentes conceitos de sucessão apostólica. Além disso, em nenhum deles há a “primazia romano-petrina” a qual defende. Clemente, Irineu, Inácio, Tertuliano, Cipriano, Ambrósio e Agostinho, em nenhum desses, há a remota ideia que o bispo de Roma detinha um direito de governo supremo sobre toda a Igreja. Pelo contrário, ao estudarmos a eclesiologia desses autores, notamos que não havia espaço para tal modelo absolutista.

A terceira é que as igrejas estavam longe de serem autarquias independentes uma das outras, bem ao gosto descentralizado protestante.

Não se pode fazer tal afirmação sem especificar o período histórico. De fato, o cristianismo se tornou, com o passar do tempo, uma religião cada vez mais hierarquizada. No entanto, no séc. I até meados do séc. II, as Igrejas eram sim autarquias autônomas que mantinham laços de irmandade. Após a morte dos Apóstolos (que eram a autoridade suprema), nenhum cabeça central foi deixado. Quando se trata do papado, é um fato que Roma só conseguiu depois de vários séculos impor a soberania somente sobre as Igrejas Ocidentais, após inúmeros exemplos de resistência. Por outro lado, Roma nunca se impôs como uma autoridade suprema sobre o Oriente.

Elas procuravam respaldo em suas tradições fundadoras apostólicas e, caso não tivessem, recorriam às que tinham.

Quais Igrejas procuraram respaldo? Você não pode pegar o argumento de Irineu e Tertuliano e generalizá-lo para todo o resto do mundo cristão. Além disso, é falacioso extrair desse apelo a tradição o tipo de primazia que o apologista precisa estabelecer. Pais da Igreja como Irineu e Tertuliano não estavam apelando a nenhum tipo de infalibilidade da Igreja de Roma, mas à tradição desta Igreja no séc. II, que poderia ser verificada em outras Igrejas como Éfeso. Além disso, estes autores defendiam uma hierarquia de autoridades, e embora as igrejas apostólicas fossem uma das autoridades desta hierarquia, a Escritura ainda era suprema. Se tudo o que Roma ensinasse hoje fosse a tradição aludida por Irineu no séc. II, os protestantes não teriam razão para não estarem em comunhão com Roma. Porém, o tempo passou e várias doutrinas estanhas foram acrescentadas.

Ora quem era a principal e mais prestigiada dessas fundações, segundo Santo Irineu e Santo Agostinho? Roma. Isto vale para o Ocidente (principalmente) e vale (em parte) para o Oriente. Está nos escritos patrísticos.

Eles apenas atribuíram a Roma uma posição de destaque na Igreja cristã que não implicava na primazia papal. Boa parte das razões para isto sequer eram teológicas. Alguns dos motivos teológicos para o prestígio de Roma eram verificáveis até em maior grau na Igreja de Jerusalém. Contudo, por contingências históricas, o prestígio de Roma aumentou e o de Jerusalém declinou. O estudo da eclesiologia desses pais Igreja revela uma incompatibilidade profunda com o papado, conforme definido no Concílio Vaticano I.

Na dissertação acima o autor concorda com a ideia de Primazia Romana. A argumentação de Bruno é que a Primazia não era universal. Ora, se a Primazia não era universal, por definição, ela não existiria! Mas segundo vários autores ela existia, talvez não exercida de forma completa.

O autor a qual se refere não concorda com o que o apologista entende por primazia romana. Isto será explorado no artigo sobre Agostinho. Até agora estou procurando nos artigos do apologista qualquer autor que tenha afirmado o primado jurídico e universal de Roma. Simplesmente não há. O que seria uma primazia universal “incompleta”? Novamente, como no artigo anterior, ele usa a teoria do “quadrado redondo”, que é afirmar duas ideias excludentes numa mesma frase. Se é universal, necessariamente deve ser exercida sobre toda a igreja. Caso contrário, até Constantinopla poderia alegar uma primazia universal por exercer jurisdição sobre uma porção da Igreja. Ou é sobre o todo ou não é universal. E porque um primado de honra teria que ser universal? Se Roma era muito estimada pela Igreja Africana, isto não implica que também deveria ter a mesma estima de outra Igreja no Oriente. A relação de Roma com o ocidente não era igual com o Oriente. O apologista parece ter uma visão idealista da igreja antiga como um lugar de enorme uniformidade.

Podemos ter vozes discordantes na Antiguidade que questionavam a primazia/jurisdição Romana? Sim. E isso não a invalida de modo algum, ao contrário, apenas a valida, porque não se pode discordar de algo que não existe.

Haviam vozes que discordavam, mas ainda assim a primazia era universal? Essas vozes eram a maior parte da Igreja (o Oriente e outras Igrejas Ocidentais). Vejamos o raciocínio. A Igreja “X” diz ter o direito de governar todos os outros. A maior parte das outras Igrejas não aceitam esta forma de governo. A Igreja X, inclusive, é durante séculos forçada a aceitar decisões contra sua vontade. No fim da história, depois de a Igreja “X” muito insistir, uma boa parte das outras igrejas rompem a comunhão. Segundo o apologista, tudo isso não depõe contra o papado, mas a favor, sabe porquê? Porque “X” disse que é assim e pronto. Ou seja, basta reivindicar a autoridade.

Se Roma tinha o direto divino de agir como tal, porque aceitou cânones conciliares contra a sua vontade (cânon 28 de Calcedônia e 3 de Constantinopla I)? Porque não cortou da comunhão todas as Igrejas que não reconheceram a primazia papal? Porque várias decisões dos bispos de Roma precisaram ser ratificadas por concílios? A resposta é óbvia: Roma estava consciente dos limites de sua jurisdição.

A ideia de que só pode ser contradito aquilo que já existe necessita ser melhor detalhada. É preciso colocar isto na linha do tempo. Não há evidência de que os bispos de Roma estivessem reivindicando o governo supremo sobre a Igreja Universal nos sécs. II, III, IV. O que se vê nestes períodos são tentativas de se impor sobre igrejas regionais, especialmente no Ocidente, ou no máximo a atuação como tribunal de revisão para as Igrejas no Oriente (séc. IV). Ainda assim, conforme se verificou em Sardica, este tribunal de revisão apenas garantiria que outro julgamento fosse dado ao bispo excomungado. A palavra final sequer seria de Roma. Dessa forma, Roma não apresentou uma consciência papal desde o início. Até mesmo a defesa que Roma fez do papado foi evoluindo e mudando radicalmente ao longo do tempo.  

Como podemos então afirmar que as primeiras fontes como Irineu, Tertuliano e Cipriano eram incompatíveis com o papado? Embora as ideias papais não tivessem sido apresentadas, a eclesiologia geral desses teólogos tinha elementos irreconciliáveis com o papado. Seria como alguém dizer que nenhum pai da Igreja disse explicitamente que a teologia da prosperidade era condenável, logo eu não posso afirmar que eles seriam contra tal doutrina. É um raciocínio falacioso. Podemos demonstrar os elementos irreconciliáveis dos teólogos antigos com esta doutrina.

Quando Roma passou a reivindicar o governo de toda a Igreja? Provavelmente no séc. V, num período posterior a morte de Agostinho (430). O melhor candidato é Leão I que teve um papel destacado no Concílio de Calcedônia. No entanto, ainda assim, o concílio ignorou seus protestos e aprovou o cânon 28. Ou seja, suas reivindicações não foram levadas a sério pelo Oriente. A doutrina do papado passou por um longo e gradual processo de mudança até chegar às definições de Vaticano I. Só para se ter uma ideia, ninguém nos primeiros mil anos do cristianismo afirmou que o bispo de Roma era infalível. Nem os próprios bispos de Roma afirmaram isso, porque tal ideia sequer lhes passava pela cabeça. Quando o primeiro teólogo (Pedro Olivi) afirmou tal coisa, o próprio papa rejeitou a ideia como uma heresia (aqui). Era uma doutrina tão secreta e bem guardada que nem o papa a conhecia. Alguém poderia objetar nos mesmo termos: nenhum pai da Igreja afirmou explicitamente que o bispo de Roma não era infalível. Obviamente, pois ninguém sequer cogitava tal ideia. Por outro lado, ao tomarmos o exemplo de Agostinho, podemos afirmar que seu pensamento era incompatível com a infalibilidade papal, pois ele dava ao concílio, do qual não há evidência que tenha considerado infalível, e não ao papa a palavra final da Igreja nas controvérsias doutrinárias.

E a Jurisdição universal? Como ela poderia ser exercida universalmente?  A Igreja estava ainda se consolidando e para os primeiros cristãos pouco importava, já que os alicerces de autoridades estavam em outros conceitos – apostolicidade, antiguidade, catolicidade -.

Vejam aqui a jurisdição universal incompleta, ou seja, o universal que não era universal. O que ele chama de “primeiros cristãos” se refere a homens que viveram 5, 6, 7 séculos após Jesus Cristo. É neste sentido que o catolicismo moderno se assemelha ao gnosticismo. As doutrinas romanas seriam tradições secretas, que estavam tão escondidas que somente uma parcela da Igreja (a própria Roma é claro) descobriu um dia que elas existiam. Como ele pode apelar aos “alicerces de autoridade”, se entre eles não estava o papado. Como a Igreja teria sobrevivido por séculos sem a doutrina fundamental do papado? No sistema católico romano, o papado não é algo secundário. Trata-se do alicerce de toda a teologia romana. No entanto, de acordo com o apologista, a Igreja teria ignorado a sua doutrina mais fundamental. Ademais, apelar a conceitos como “apostolicidade, antiguidade, catolicidade” é uma cortina de fumaça na medida que nenhum desses elementos foram compreendidos pelos Pais da Igreja da forma como o catolicismo moderno compreende, e acima de tudo, não implicam no papado. Pelo contrário, tais elementos formavam uma estrutura de autoridade que excluía a pretensão papal. O mais relevante é que, supondo a validade das sucessões apostólicas das diferentes Igrejas, uma concessão que faço para o bem do debate, a Igreja Universal nunca reconheceu o papado. As outras Igrejas que também poderiam reclamar apostolicidade, antiguidade e catolicidade romperam a comunhão com Roma por não aceitarem as pretensões papais. Dessa forma, o apelo a esses elementos de autoridade é um argumento contra e não a favor do papado. Roma era antiga? Jerusalém e Antioquia mais ainda? Roma teria sucessão apostólica? Várias outras Igrejas Orientais como Antioquia, Éfeso e Jerusalém também.

Porém, a exemplo do apologeta, que não percebe o tamanho do Império e as dificuldades de comunicação, no texto de Santo Irineu percebemos que já havia uma jurisdição sobre algumas igrejas do Oriente e que Roma já era considerada a Primeira entre os Pares.

Roma não teria exercido a primazia por dificuldades de comunicação? Este argumento não condiz com o que o próprio Irineu defendeu. Ele alegou que a tradição apostólica era pública e verificável em toda a Igreja. Alguém acredita que os apóstolos trouxeram o evangelho como uma espécie de quebra-cabeça? João pregou um pedado na Ásia, Paulo um pedaço em Roma, Pedro um pedaço em Antioquia. Só depois de séculos, a Igreja se reuniu, juntou os pedaços e descobriu que havia um papa. Obviamente é uma tese absurda. Além disso, os apóstolos teriam deixado de pregar um elemento fundamental como o papado? Tanto os apóstolos como os primeiros pais da Igreja (Irineu por exemplo) falaram bastante sobre a questão da autoridade? Qual a probabilidade de eles terem esquecido o pequeno “detalhe” do papado? É por esta razão que os defensores mais sofisticados de Roma admitem que Irineu desconhecia a ideia de um papa. Como Newman reconheceu, quando se referiu ao período apostólico. Não há como seriamente considerar os escritos patrísticos primitivos e acreditar que eles estavam conscientes da existência das prerrogativas papais. Não por acaso, mesmo em Roma, os bispos mais antigos não estavam reclamando as prerrogativas que os papas modernos reclamam. Ninguém nos primeiros séculos estava consciente da existência do papado. Klaus Schatz disse:

No entanto, as reivindicações concretas de uma primazia sobre toda a Igreja não podem ser inferidas a partir desta convicção. Se alguém tivesse perguntado a um cristão no ano de 100, 200 ou mesmo 300, se o bispo de Roma era a cabeça de todos os cristãos, ou se houve um bispo supremo sobre todos os outros bispos e que teria a última palavra em questões que afetam toda a Igreja, ele ou ela certamente teria dito não. (Schatz, p. 3)

Não era um problema de comunicação por causa do tamanho do império porque não havia o que ser comunicado. Os cristãos dos primeiros séculos desconheciam tal doutrina. Além disso, não há nada nos escritos de Irineu que afirme a jurisdição de Roma sobre Igrejas do Oriente. Pelo contrário, quando Vítor quis excomungar as Igrejas da Ásia por uma diferença de costumes, Irineu foi um dos bispos a repreender Vítor. O especialista em Irineu - Eric Osborn – escreveu:

A sujeição de todas as igrejas a Roma seria impensável para Irineu. (Irineu de Lyon [New York: Cambridge University Press, 2005] p. 130)

Fontes Primárias e Secundárias e os Historiadores

Entretanto, estou à espera desses contemporâneos dos primeiros séculos prometidos por Bruno mostrando essas vozes discordantes, pois tudo o que ele fez foi apresentar apenas intérpretes e não Fontes Primárias.

Meu blog tem 36 artigos sobre o papado recheados de fontes primárias. Fica claro nos artigos do apologista que ele sequer os leu, pois apresenta vários argumentos já respondidos por mim, sem interagir com minhas respostas. Além disso, eu apresentei várias fontes primárias nas respostas direcionadas a ele. E mais importante, fontes secundárias apontam para fontes primárias. Na maioria das vezes em que apresento os historiadores, eu sequer estou apresentando a interpretação acadêmica do fato, mas o fato em sim. Quando os historiadores apresentam sua interpretação do fato, eles geralmente apontam a fonte primária, seja por citação direta ou indireta. Não por acaso, há livros de história da Igreja que ocupam mais espaços nas notas de rodapé do que no corpo principal do texto. Philip Schaff é um bom exemplo disso (aqui).  É instrutivo recuperar algo da primeira resposta do apologista:

Bruno Lima é outro farsante que não conhece nada de Patrística ou de doutrina da Igreja Católica. Ele deveria ler livros sobre o assunto ao invés de só se informar em sites de apologética estrangeiros. O choro é livre.

Agora ele reclama por eu fazer o que? Citar muitos livros. Eu aceitei o desafio nos termos dele. O que ficou claro foi o pouco conhecimento que ele possui sobre a historiografia da Igreja. Um católico um pouco mais profundo no assunto saberia que as fontes acadêmicas têm ido no sentido contrário das reivindicações históricas de Roma. Ele até que tentou nas respostas anteriores trazer a autoridade acadêmica em seu favor, mas os historiadores trazidos vão no sentido diametralmente oposto do que ele defende.

Interpretação de autores e historiadores é levantamento bibliográfico, nós chamamos de Fontes Secundárias. Estou a escuta para que você apresente um bispo ou textos claros, da época, contra a primazia ou contra a jurisdição Romana. Devem existir, então apresentá-los engrandece a discussão.

Eu já apresentei vários. Agora, eles devem ser claros na opinião de quem? Para quem já cometeu suicídio intelectual e não está disposto a seguir o rumo da evidência histórica, qualquer texto será ou desqualificado, ou considerado obscuro, ou será preferida uma interpretação alternativa, por mais esdrúxula que seja. De forma semelhante a Escritura, católicos romanos como este não podem por paradigma seguir a evidência. Por mais que a Escritura contradiga as distintas doutrinas romanas, o fiel não pode deixar que a Bíblia fale por si mesma. O mesmo se aplica a história. A mim, mais importa a opinião dos especialistas em história da Igreja. E para eles, há provas claras e inequívocas de que o papado não foi aceito por vários teólogos cristãos da antiguidade.  Eu já explorei em artigo anterior porque a apologética católica é semelhante ao movimento terraplanista em sua rejeição dos historiadores da Igreja (veja em “sobre oshistoriadores citados na resposta”)

Ao responder Bruno Lima penso que  não apenas vale citar pensadores católicos e protestantes, como também acadêmicos dos meios seculares.  O diálogo apresentado aqui com vários segmentos historiográficos permite uma análise da história e dos documentos.

Ele não apresentou um único historiador favorável a tese que precisa estabelecer. O que ele faz é pegar citações que afirmam, por exemplo, que Irineu defendeu um conceito de sucessão apostólica, o que ninguém duvida. E partir disso, ele tira implicações que o próprio autor não está fazendo.

Alguns poderão me perguntar o porquê de eu não me concentrar mais nos especialistas de Bruno, mas se ficarmos só falando deles só iremos descobrir mais erros e não apresentar nada de novo. Sem apresentar uma tese nova seremos sempre intelectuais de recorte.

Como ele poderia tratar dos especialistas se sequer os conhece? É óbvio do artigo dele que ele nunca teve contato com esta literatura, tanto é que ele se limita às citações que fiz destes autores, e não traz outras citações do mesmo livro. Quando ele citou autores protestantes, eu fui capaz de trazer o contexto das citações e trazer mais conteúdo dos mesmos autores. Isto se deu porque eu tinha os livros citados e já os tinha lido. Dizer que pesquisar um livro que você não conhece resultará apenas em mais erros é uma ode a ignorância. Observem que ele rejeita os mais renomados historiadores da Igreja a priori, sem interagir com seus argumentos. Essa é uma das características da apologética católica – desprezar a priori qualquer autor que não se encaixe em sua narrativa.  O problema é que não vai sobrar quase nenhum historiador para os católicos citarem. Não por acaso, a maior parte dos artigos católicos ou são pobres de citações acadêmicas, ou abundam em citações de outros apologistas católicos cuja autoridade no assunto é nula.

Eu já acredito que o termo “intelectual de recorte” seja bem útil para descrever pessoas que citam livros que não leram, e apresentam a citação com o contexto radicalmente distinto do original. Quem fez isto foi o Rogério. Ele apresentou a citação abaixo de Alister McGrath:

Era amplamente aceito que o árbitro final em todas as disputas doutrinárias dentro da igreja era o papa.  Alister E. McGrath (p. 25), Reformation Thought: An Introduction, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 2nd edition, 1993. Grifo nosso.

E comentou:

Não bastando isso, segundo o “historiador anglicano” Alister E. McGrath, que não é nem um pouco favorável ao catolicismo, ao escrever sobre o Cisma Oriental, mostra que no período antes deste Roma era o árbitro final das questões doutrinárias, como eu mesmo já havia dito isso na minha postagem do Facebook (que tanto magoou Bruno):

No entanto, vejamos o contexto:

A questão crucial era esta: como poderia a disputa sobre quem era realmente o papa ser resolvida? Foi amplamente aceito que o árbitro final em todas as disputas doutrinária dentro da igreja era o papa - mas qual papa poderia resolver essa disputa? Eventualmente, foi acordado que um Concílio deveria se reunir com autoridade para resolver o litígio. O Concílio de Constança (1414–1417) foi convocado para escolher entre os três candidatos rivais para o papado (Gregório XII, Bento XIII, e João XXII). O Concílio convenientemente resolveu a questão depondo todos os três, e escolhendo seu próprio candidato (Martin V). Parecia que um princípio geral foi estabelecido: os Concílios têm autoridade sobre o papa. Mas Martin V pensava o contrário.(Fonte)

Mcgrath se refere ao evento conhecido como grande cisma do Ocidente (séc. XV), na qual três papas simultaneamente reclamavam o papado. Não há qualquer relação com o cisma do Oriente (1054). Em outra resposta, o Rogério comentou:

O mais interessante nesses apologetas de internet é essa citação de livros em inglês. O erro não é citar uma obra em outra língua, mas fazer citação da citação (alguns vivem de provar o que dizem sem nunca ler a obra citada).

Ao me chamar de intelectual de recorte, o apologista está novamente descrevendo a si próprio. O próximo artigo será apenas sobre Agostinho, onde pretendo detalhar argumentos apresentados em artigos anteriores.