Gelásio
I (410 – 492)
Gelásio
foi bispo de Roma no final século quinto. É uma testemunha impressionante, pois
além de sua clareza ao tratar o tema, era teoricamente um papa, portanto, com o
carisma da infalibilidade ex cathedra. Se Gelásio rejeitou a transubstanciação,
temos um bom argumento contra o dogma da infalibilidade papal.
Certamente o sacramento, que
tomamos, do corpo e sangue de Cristo é uma coisa divina, pela qual somos feitos
participantes da natureza divina; e
contudo a substância ou natureza do pão e do vinho não deixa de existir. E
certamente a imagem e semelhança do
corpo e sangue de Cristo celebram-se na ação dos mistérios. (Sobre as duas
naturezas de Cristo)
A
citação é claríssima e embaraçosa para os apologistas romanistas. Não poderia
haver uma negação mais óbvia da transubstanciação. Mas como não poderia ser
diferente, os católicos precisam fazer malabarismos para negarem o óbvio. O
católico não pode olhar para esse papa e reconhecer o óbvio, pois um simples
erro detectado faz todo o castelo de areia da infalibilidade papal ruir. No
protestantismo, não haveria problema, pode-se reconhecer que um determinado
teólogo errou sem comprometer as bases de nossa teologia, pois acreditamos que
apenas as Escrituras são infalíveis.
Basicamente
três sites católicos tentaram contornar esse enorme problema:
O
Veritatis respondendo a pergunta do apologista católico Fernando Nascimento que depois
praticamente replicou a resposta no caiafarsa.
Depois
o site apologistas católicos publicou uma resposta que basicamente é uma colagem de sites em inglês. Vamos então responder aos argumentos contidos em sua maioria no site apologistas católicos.
Entre
as razões que “aniquilam a argumentação dos hereges”, Afirma-se: “Esta é uma
obra Espúria que não pertence ao papa Gelásio I.”
Sinceramente,
gostaria de crer que esse argumento baseia-se apenas em ignorância. O
“especialista” citado para afirmar que a obra é espúria, chamado W. R Carson,
nunca escreveu sequer um livro sobre o assunto, e não é reconhecidamente especialista
em nada, apenas um apologista católico que escreveu um artigo e não um livro
sobre a suposta antiguidade da transubstanciação (Link do artigo).
Deve-se
acrescentar que o próprio autor sequer afirma que esta obra de Gelásio -
Tratado sobre as duas naturezas contra Eutico e Nestório - é espúria, apenas
limita-se a dizer que “deve-se
acrescentar que as passagens atribuídas a Teodoreto e São Gelásio ocorrem em
obras que são consideradas espúrias por muitos críticos competentes”. O
interessante é que se abrir o link acima que contém o referido artigo, verá que
não é citado NENHUM desses críticos, nem nas notas de rodapé há alguma citação.
Seria interessante que fosse apontado um crítico competente reconhecido de fato
como especialista afirmando que essa obra de Gelásio é espúria, pois em minha
pesquisa não encontrei nenhum.
E
contra a opinião do Sr. Rafael Rodrigues estão seus próprios colegas
apologetas. O site Veritatis não acusou essa obra de ser espúria ao responder a
questão. Pesquisando em fontes em inglês, verifiquei que eles não alegaram que
a obra fosse uma falsificação como aqui, aqui, aqui e aqui:
Esses
são apenas alguns exemplos. Mas, vejamos o que a enciclopédia católica diz:
Comparativamente pouco da
sua obra literária chegou até nós, embora dele se diz ter sido o escritor mais
prolífico de todos os pontífices dos primeiros cinco séculos. Existem quarenta
e duas cartas e quarenta e nove outros fragmentos, além de seis tratados, dos quais três são concernentes ao cisma acaciano,
a heresia dos pelagianos, outro aos
erros de Nestório e Êutico, enquanto o sexto é dirigido contra o senador
Andromachus e os defensores de Lupercalia. (Fonte)
Levemos em conta os fatos:
- W. R Carson é um apologista romanista e não é reconhecido como especialista no assunto;
- W. R Carson que escreveu meramente um artigo sobre o tema diz que alguns críticos competentes consideram a obra espúria, mas não cita o nome de nenhum deles;
- Outros apologistas católicos ao analisarem a mesma questão não lançaram mão do argumento da falsificação;
- A Enciclopédia Católica aponta a referida obra como autêntica.
Qual
seria a conclusão lógica das premissas acima? Deixemos Rafael Rodrigues
responder: “É certo que este texto não pertence ao Papa Gelásio I, portanto só isto já refuta e esclarece
qualquer alegação ou dúvida contra a transubstanciação que se possa por na
conta de Gelásio.”
Parece
que a única pessoa no mundo que chegou a esta conclusão foi ele. Portanto esse
argumento não procede.
Vejamos
então o que o reconhecido especialista católico jesuíta Edward J. Kilmartin disse:
Segundo Gelásio, os
sacramentos da Eucaristia comunicam a graça do mistério principal. A sua principal preocupação, no entanto, é
realçar, como fez Teodoreto, o fato de que, após a consagração os elementos
permanecem o que eram antes da consagração (...) O ensino de Gelásio sobre
o assunto dos sacramentos da Eucaristia tem sido frequentemente explicado como
sendo de acordo com o ensinamento do Concílio de Trento. Mas, como uma questão de fato, Trento o rejeitou-o por duas razões. No cânon
1 da décima terceira sessão (1551), o concílio ensinou que a Eucaristia não
significa apenas, mas contém "o totum Christum”. A explicação de
Gelásio não a inclui. De fato parece excluir
explicitamente a doutrina da presença real somática do "Cristo total".
Em segundo lugar, o cânon 2 enfatiza a noção patrística de conversão. Para
evitar a noção da união da substância do pão e do vinho com a substância da
humanidade de Cristo. Este conceito já foi encontrado na lista de proposições
atribuídas ao reformadores formuladas em 1547: "Não há na Eucaristia
realmente o corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, mas com a substância
do pão e do vinho, de modo que não há a transubstanciação, mas uma união
hipostática da humanidade e da substância do pão e do vinho ". O Canon 2
foi formulado precisamente para evitar a ideia de que existe um paralelo rígido
entre a união hipostática única do Logos e da humanidade e o sacramento da
Eucaristia. Mas precisamente este ponto
de vista é fundamental para a teologia Eucarística do Papa Gelásio. (Edward
J. Kilmartin, S.J., “The Eucharistic Theology of Pope Gelasius I: A
Nontridentine View” in Studia Patristica, Vol. XXIX
(Leuven: Peeters, 1997), p. 288.)
Vamos
a segunda razão “que aniquila a argumentação dos hereges”. Rafael Rodrigues e o
Veritatis trazem a continuação da citação de Gelásio que supostamente mostraria
que ele cria na transubstanciação. Resolvi traduzi-la da mesma fonte citada
pelo apologista católico:
A sagrada escritura dá
testemunho de que este mistério [da unidade pessoal de Cristo, Deus e homem
começou assim desde o princípio da concepção bem aventurada, dizendo: a
sabedoria edificou uma casa para si (Prov. 9:1) apoiada [a casa] na solidez do
espírito septiforme, a qual nos servisse o alimento da encarnação de Cristo,
pela qual nos fazemos participantes da natureza divina [2 Pedro 1:4].
Certamente os sacramentos que recebemos do corpo e sangue de Cristo são coisa
divina, por meio da qual também mediante eles nos fazemos participantes da
natureza divina; no entanto, a substância
ou natureza do pão e vinho não deixam de existir. E certamente, a imagem e a semelhança do corpo e sangue
de Cristo são celebradas na ação destes mistérios. Bastante evidentemente,
pois, nos ensinam que devemos sentir acerca do mesmo Cristo Senhor o que confessamos,
celebramos e tomamos em sua imagem,
para que como o pão e o vinho, aperfeiçoados pelo Espírito Santo, passam a esta, que dizer, a substância
divina, mas permanecendo na
propriedade de sua natureza, assim demonstram aquele mesmo mistério principal,
cuja eficiência e virtude com verdade nos representam, [a saber], que Cristo
permanece uno, pois permanece íntegro e verdadeiro, permanecendo com as
propriedades daqueles elementos de que constam. (Jesús Solano – Textos
Eucarísticos Primitivos, Tomo II, Página 557-558)
Não
há nesse texto nada que implique transubstanciação. Gelásio diz que com a ação
do Espírito Santo, os elementos passam a ser uma substância divina, mas logo
depois afirma “permanecendo na propriedade de sua natureza”. Se os elementos
mantem a sua natureza, como eles poderiam ter transubstanciado? Esse papa não
diz que os elementos se transformam no corpo físico de Cristo, que eles
abandonam a sua natureza e passam a ter a natureza humana de Cristo. Pelo
contrário, ele afirma repetidas vezes que os elementos mantem sua natureza e
substância, e ainda chama o sacramento de imagem e semelhança, termos
incompatíveis para alguém que sustentasse a doutrina romana.
Ao
analisar os textos eucarísticos primitivos, os romanistas cometem a falácia da
falsa dicotomia, ao presumir que se o Pai da Igreja não sustentava a
transubstanciação, a única opção restante seria o mero simbolismo. Sabemos que
isso é falso, a posição luterana da consubstanciação ou reformada da presença
espiritual estariam perfeitamente de acordo com a afirmação: “passam a esta, que dizer, a substância
divina, mas permanecendo na propriedade de sua natureza”. Independente da
posição sustentada por este papa (seja consubstanciação ou presença espiritual),
como afirmou Kilmartin, Gelásio contrariou o ensino católico romano.
A
terceira e última razão apresentada pelo sr. Rafael Rodrigues tenta lançar
sobre o textos várias obscuridades, expostas e refutadas abaixo:
O Tratado de Gelásio não era
sobre a Eucaristia e sim sobre a encarnação de Cristo.
É
uma falácia do não segue. Quem ao defender a sã doutrina contra heresias
cristológicas iria cometer um erro doutrinário tão grave. Se Gelásio pensasse a
eucaristia como pensam os romanistas, ele teria todo o cuidado do mundo ao
expor a doutrina correta, e jamais cometeria o descalabro de dizer que a
substância ou natureza dos elementos não deixa de existir. Seria equivalente ao
protestante dizer que a justificação é somente pela fé, mas também pelas obras.
Uma é a negação da outra. Alguém conceberia um teólogo protestante cometendo um
erro crasso desse?
Gelásio não tinha ainda uma
definição correta dos termos, pode ser que ele se referira aos acidentes dos
elementos ao mencionar a natureza ou substância.
Esse
sem dúvidas é o pior argumento de todos. Justamente por Gelásio utilizar a
Eucaristia para explicar a Encarnação de Cristo contra Eutico e Nestório,
podemos ter certeza que tinha uma exata compreensão dos termos natureza e
substância. Esses termos foram usados em consonância à compreensão que a Igreja
já tinha a respeito da natureza de Cristo, pois tanto o Concílio de Nicéia como
Calcedônia utilizaram os termos “substância” e “natureza” num sentido bem claro
e diverso de “acidente” ou “aparência”. Em hipótese alguma, ele iria utilizar
natureza ou substância para se referir aos acidentes dos elementos, pois esses
termos foram utilizados também por ele para se referir à essência de Cristo. Se
Gelásio não estivesse se referindo a essência dos elementos eucarísticos, a sua
analogia entre a encarnação e a ceia se tornaria bizarra.
Gelásio
usou a eucaristia como analogia para explicar que a humanidade estava ao lado
da divindade de Cristo desde a concepção. Se ele usasse natureza como
significando acidentes ou propriedades aparentes, a conclusão seria que Cristo
era apenas aparentemente humano, mas não em essência, ou seja, cairia em docetismo,
uma heresia cristológica muito combatida pela Igreja nos primeiros séculos.
O
apologista católico usa mais uma evidência anedótica ao afirmar “Alguns estudiosos interpretam a passagem
acima para se referir aos acidentes do pão e do vinho”. Porém, não cita
nenhum estudioso.
Gelásio errou na primeira
parte ao negar a transubstanciação e corrigiu na segunda parte ao afirma-la
Já
refutado. Em nenhum momento ele afirma a transubstanciação. Sem contar que
teríamos de concluir que esse autor cristão sofria de sérios problemas
psíquicos, para fazer duas afirmações mutuamente excludentes no mesmo trecho.
Caso desejasse fazer uma correção, ele teria descartado a primeira parte ou
então esclarecido que se tratava de uma correção. Seria muito estranho também
um papa “infalível” ser tão descuidado com uma doutrina tão importante.
Não podemos basear sua
compreensão apenas nesta passagem, temos que olhar outros autores da época.
Primeiro,
ninguém está tentando saber a sua exata compreensão, mas apenas demonstrando
que um papa não sustentava a doutrina da transubstanciação. Essa citação a luz
do contexto de suas obras é mais do que suficiente. Seria válido analisar
outros autores da época, algo que fizemos neste artigo com Agostinho que também
era do século V. A conclusão é inequívoca, vários autores antes, durante e
depois de Gelásio vão negaram a transubstanciação.
Assim como alguns Padres não
possuíam definições exatas a respeito da trindade, Gelásio não tinha o
vocabulário teológico adequado para a eucaristia.
É
justamente o contrário, como os termos natureza e substância já estavam
desenvolvidos no vocabulário teológico da Igreja, e Gelásio os utilizou no contexto
da encarnação, podemos concluir que sua compreensão era adequada e se referia a
essência dos elementos eucarísticos, não aos seus acidentes.
O
Site Veritatis traz alguns argumentos a mais, igualmente risíveis e falaciosos.
Afirmam que Gelásio chamou a eucaristia de “Sacramento do corpo e sangue do
Senhor”. Um reformado ou luterano utilizaria os mesmos termos, nem por isso
aceitam a interpretação romanista. Ainda, por ignorância, alega que os
protestantes consideram a eucaristia um “mero símbolo”. Como visto a posição
simbólica não é a única existente no meio protestante. Também diz: “e não encontrei nenhum site estrangeiro
afirmando que este papa negara a transubstanciação” para dar a impressão de
que é apenas uma teoria conspiratória da internet brasileira. Ele deve ter
pesquisado muito pouco, pouco mesmo, há diversos artigos e até livros bem antigos
em inglês que apontam essa questão aqui, aqui, aqui e livro do séc. XVII.
A
conclusão é inescapável. Temos o exemplo de um papa negando uma das principais
doutrinas do romanismo. Além do importante testemunho contra a
transubstanciação, é uma prova inequívoca da falibilidade papal.