Mostrando postagens com marcador Ceia do Senhor. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ceia do Senhor. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Os Pais da Igreja e a Eucaristia (Papa Gelásio - Resposta ao site apologistas católicos) - Parte 5

Gelásio I (410 – 492)

Gelásio foi bispo de Roma no final século quinto. É uma testemunha impressionante, pois além de sua clareza ao tratar o tema, era teoricamente um papa, portanto, com o carisma da infalibilidade ex cathedra. Se Gelásio rejeitou a transubstanciação, temos um bom argumento contra o dogma da infalibilidade papal.

Certamente o sacramento, que tomamos, do corpo e sangue de Cristo é uma coisa divina, pela qual somos feitos participantes da natureza divina; e contudo a substância ou natureza do pão e do vinho não deixa de existir. E certamente a imagem e semelhança do corpo e sangue de Cristo celebram-se na ação dos mistérios. (Sobre as duas naturezas de Cristo)

A citação é claríssima e embaraçosa para os apologistas romanistas. Não poderia haver uma negação mais óbvia da transubstanciação. Mas como não poderia ser diferente, os católicos precisam fazer malabarismos para negarem o óbvio. O católico não pode olhar para esse papa e reconhecer o óbvio, pois um simples erro detectado faz todo o castelo de areia da infalibilidade papal ruir. No protestantismo, não haveria problema, pode-se reconhecer que um determinado teólogo errou sem comprometer as bases de nossa teologia, pois acreditamos que apenas as Escrituras são infalíveis.

Basicamente três sites católicos tentaram contornar esse enorme problema:

O Veritatis respondendo a pergunta do apologista católico Fernando Nascimento que depois praticamente replicou a resposta no caiafarsa.

Depois o site apologistas católicos publicou uma resposta que basicamente é uma colagem de sites em inglês. Vamos então responder aos argumentos contidos em sua maioria no site apologistas católicos.

Entre as razões que “aniquilam a argumentação dos hereges”, Afirma-se: “Esta é uma obra Espúria que não pertence ao papa Gelásio I.”

Sinceramente, gostaria de crer que esse argumento baseia-se apenas em ignorância. O “especialista” citado para afirmar que a obra é espúria, chamado W. R Carson, nunca escreveu sequer um livro sobre o assunto, e não é reconhecidamente especialista em nada, apenas um apologista católico que escreveu um artigo e não um livro sobre a suposta antiguidade da transubstanciação (Link do artigo).

Deve-se acrescentar que o próprio autor sequer afirma que esta obra de Gelásio - Tratado sobre as duas naturezas contra Eutico e Nestório - é espúria, apenas limita-se a dizer que “deve-se acrescentar que as passagens atribuídas a Teodoreto e São Gelásio ocorrem em obras que são consideradas espúrias por muitos críticos competentes”. O interessante é que se abrir o link acima que contém o referido artigo, verá que não é citado NENHUM desses críticos, nem nas notas de rodapé há alguma citação. Seria interessante que fosse apontado um crítico competente reconhecido de fato como especialista afirmando que essa obra de Gelásio é espúria, pois em minha pesquisa não encontrei nenhum.

E contra a opinião do Sr. Rafael Rodrigues estão seus próprios colegas apologetas. O site Veritatis não acusou essa obra de ser espúria ao responder a questão. Pesquisando em fontes em inglês, verifiquei que eles não alegaram que a obra fosse uma falsificação como aquiaquiaqui e aqui:

Esses são apenas alguns exemplos. Mas, vejamos o que a enciclopédia católica diz:

Comparativamente pouco da sua obra literária chegou até nós, embora dele se diz ter sido o escritor mais prolífico de todos os pontífices dos primeiros cinco séculos. Existem quarenta e duas cartas e quarenta e nove outros fragmentos, além de seis tratados, dos quais três são concernentes ao cisma acaciano, a heresia dos pelagianos, outro aos erros de Nestório e Êutico, enquanto o sexto é dirigido contra o senador Andromachus e os defensores de Lupercalia. (Fonte)

Levemos em conta os fatos:
  •       W. R Carson é um apologista romanista e não é reconhecido como especialista no assunto;
  •     W. R Carson que escreveu meramente um artigo sobre o tema diz que alguns críticos competentes consideram a obra espúria, mas não cita o nome de nenhum deles;
  •     Outros apologistas católicos ao analisarem a mesma questão não lançaram mão do argumento da falsificação;
  •       A Enciclopédia Católica aponta a referida obra como autêntica.
Qual seria a conclusão lógica das premissas acima? Deixemos Rafael Rodrigues responder: “É certo que este texto não pertence ao Papa Gelásio I, portanto só isto já refuta e esclarece qualquer alegação ou dúvida contra a transubstanciação que se possa por na conta de Gelásio.”

Parece que a única pessoa no mundo que chegou a esta conclusão foi ele. Portanto esse argumento não procede. 

Vejamos então o que o reconhecido especialista católico jesuíta Edward J. Kilmartin disse:

Segundo Gelásio, os sacramentos da Eucaristia comunicam a graça do mistério principal. A sua principal preocupação, no entanto, é realçar, como fez Teodoreto, o fato de que, após a consagração os elementos permanecem o que eram antes da consagração (...) O ensino de Gelásio sobre o assunto dos sacramentos da Eucaristia tem sido frequentemente explicado como sendo de acordo com o ensinamento do Concílio de Trento. Mas, como uma questão de fato, Trento o rejeitou-o por duas razões. No cânon 1 da décima terceira sessão (1551), o concílio ensinou que a Eucaristia não significa apenas, mas contém "o totum Christum”. A explicação de Gelásio não a inclui. De fato parece excluir explicitamente a doutrina da presença real somática do "Cristo total". Em segundo lugar, o cânon 2 enfatiza a noção patrística de conversão. Para evitar a noção da união da substância do pão e do vinho com a substância da humanidade de Cristo. Este conceito já foi encontrado na lista de proposições atribuídas ao reformadores formuladas em 1547: "Não há na Eucaristia realmente o corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, mas com a substância do pão e do vinho, de modo que não há a transubstanciação, mas uma união hipostática da humanidade e da substância do pão e do vinho ". O Canon 2 foi formulado precisamente para evitar a ideia de que existe um paralelo rígido entre a união hipostática única do Logos e da humanidade e o sacramento da Eucaristia. Mas precisamente este ponto de vista é fundamental para a teologia Eucarística do Papa Gelásio. (Edward J. Kilmartin, S.J., “The Eucharistic Theology of Pope Gelasius I: A Nontridentine View” in Studia Patristica, Vol. XXIX (Leuven: Peeters, 1997), p. 288.)

Vamos a segunda razão “que aniquila a argumentação dos hereges”. Rafael Rodrigues e o Veritatis trazem a continuação da citação de Gelásio que supostamente mostraria que ele cria na transubstanciação. Resolvi traduzi-la da mesma fonte citada pelo apologista católico:

A sagrada escritura dá testemunho de que este mistério [da unidade pessoal de Cristo, Deus e homem começou assim desde o princípio da concepção bem aventurada, dizendo: a sabedoria edificou uma casa para si (Prov. 9:1) apoiada [a casa] na solidez do espírito septiforme, a qual nos servisse o alimento da encarnação de Cristo, pela qual nos fazemos participantes da natureza divina [2 Pedro 1:4]. Certamente os sacramentos que recebemos do corpo e sangue de Cristo são coisa divina, por meio da qual também mediante eles nos fazemos participantes da natureza divina; no entanto, a substância ou natureza do pão e vinho não deixam de existir. E certamente, a imagem e a semelhança do corpo e sangue de Cristo são celebradas na ação destes mistérios. Bastante evidentemente, pois, nos ensinam que devemos sentir acerca do mesmo Cristo Senhor o que confessamos, celebramos e tomamos em sua imagem, para que como o pão e o vinho, aperfeiçoados pelo Espírito Santo, passam a esta, que dizer, a substância divina, mas permanecendo na propriedade de sua natureza, assim demonstram aquele mesmo mistério principal, cuja eficiência e virtude com verdade nos representam, [a saber], que Cristo permanece uno, pois permanece íntegro e verdadeiro, permanecendo com as propriedades daqueles elementos de que constam. (Jesús Solano – Textos Eucarísticos Primitivos, Tomo II, Página 557-558)

Não há nesse texto nada que implique transubstanciação. Gelásio diz que com a ação do Espírito Santo, os elementos passam a ser uma substância divina, mas logo depois afirma “permanecendo na propriedade de sua natureza”. Se os elementos mantem a sua natureza, como eles poderiam ter transubstanciado? Esse papa não diz que os elementos se transformam no corpo físico de Cristo, que eles abandonam a sua natureza e passam a ter a natureza humana de Cristo. Pelo contrário, ele afirma repetidas vezes que os elementos mantem sua natureza e substância, e ainda chama o sacramento de imagem e semelhança, termos incompatíveis para alguém que sustentasse a doutrina romana.

Ao analisar os textos eucarísticos primitivos, os romanistas cometem a falácia da falsa dicotomia, ao presumir que se o Pai da Igreja não sustentava a transubstanciação, a única opção restante seria o mero simbolismo. Sabemos que isso é falso, a posição luterana da consubstanciação ou reformada da presença espiritual estariam perfeitamente de acordo com a afirmação: “passam a esta, que dizer, a substância divina, mas permanecendo na propriedade de sua natureza”. Independente da posição sustentada por este papa (seja consubstanciação ou presença espiritual), como afirmou Kilmartin, Gelásio contrariou o ensino católico romano.

A terceira e última razão apresentada pelo sr. Rafael Rodrigues tenta lançar sobre o textos várias obscuridades, expostas e refutadas abaixo:

O Tratado de Gelásio não era sobre a Eucaristia e sim sobre a encarnação de Cristo.

É uma falácia do não segue. Quem ao defender a sã doutrina contra heresias cristológicas iria cometer um erro doutrinário tão grave. Se Gelásio pensasse a eucaristia como pensam os romanistas, ele teria todo o cuidado do mundo ao expor a doutrina correta, e jamais cometeria o descalabro de dizer que a substância ou natureza dos elementos não deixa de existir. Seria equivalente ao protestante dizer que a justificação é somente pela fé, mas também pelas obras. Uma é a negação da outra. Alguém conceberia um teólogo protestante cometendo um erro crasso desse?

Gelásio não tinha ainda uma definição correta dos termos, pode ser que ele se referira aos acidentes dos elementos ao mencionar a natureza ou substância.

Esse sem dúvidas é o pior argumento de todos. Justamente por Gelásio utilizar a Eucaristia para explicar a Encarnação de Cristo contra Eutico e Nestório, podemos ter certeza que tinha uma exata compreensão dos termos natureza e substância. Esses termos foram usados em consonância à compreensão que a Igreja já tinha a respeito da natureza de Cristo, pois tanto o Concílio de Nicéia como Calcedônia utilizaram os termos “substância” e “natureza” num sentido bem claro e diverso de “acidente” ou “aparência”. Em hipótese alguma, ele iria utilizar natureza ou substância para se referir aos acidentes dos elementos, pois esses termos foram utilizados também por ele para se referir à essência de Cristo. Se Gelásio não estivesse se referindo a essência dos elementos eucarísticos, a sua analogia entre a encarnação e a ceia se tornaria bizarra.

Gelásio usou a eucaristia como analogia para explicar que a humanidade estava ao lado da divindade de Cristo desde a concepção. Se ele usasse natureza como significando acidentes ou propriedades aparentes, a conclusão seria que Cristo era apenas aparentemente humano, mas não em essência, ou seja, cairia em docetismo, uma heresia cristológica muito combatida pela Igreja nos primeiros séculos.

O apologista católico usa mais uma evidência anedótica ao afirmar “Alguns estudiosos interpretam a passagem acima para se referir aos acidentes do pão e do vinho”. Porém, não cita nenhum estudioso.

Gelásio errou na primeira parte ao negar a transubstanciação e corrigiu na segunda parte ao afirma-la

Já refutado. Em nenhum momento ele afirma a transubstanciação. Sem contar que teríamos de concluir que esse autor cristão sofria de sérios problemas psíquicos, para fazer duas afirmações mutuamente excludentes no mesmo trecho. Caso desejasse fazer uma correção, ele teria descartado a primeira parte ou então esclarecido que se tratava de uma correção. Seria muito estranho também um papa “infalível” ser tão descuidado com uma doutrina tão importante.

Não podemos basear sua compreensão apenas nesta passagem, temos que olhar outros autores da época.

Primeiro, ninguém está tentando saber a sua exata compreensão, mas apenas demonstrando que um papa não sustentava a doutrina da transubstanciação. Essa citação a luz do contexto de suas obras é mais do que suficiente. Seria válido analisar outros autores da época, algo que fizemos neste artigo com Agostinho que também era do século V. A conclusão é inequívoca, vários autores antes, durante e depois de Gelásio vão negaram a transubstanciação.

Assim como alguns Padres não possuíam definições exatas a respeito da trindade, Gelásio não tinha o vocabulário teológico adequado para a eucaristia.

É justamente o contrário, como os termos natureza e substância já estavam desenvolvidos no vocabulário teológico da Igreja, e Gelásio os utilizou no contexto da encarnação, podemos concluir que sua compreensão era adequada e se referia a essência dos elementos eucarísticos, não aos seus acidentes.

O Site Veritatis traz alguns argumentos a mais, igualmente risíveis e falaciosos. Afirmam que Gelásio chamou a eucaristia de “Sacramento do corpo e sangue do Senhor”. Um reformado ou luterano utilizaria os mesmos termos, nem por isso aceitam a interpretação romanista. Ainda, por ignorância, alega que os protestantes consideram a eucaristia um “mero símbolo”. Como visto a posição simbólica não é a única existente no meio protestante. Também diz: “e não encontrei nenhum site estrangeiro afirmando que este papa negara a transubstanciação” para dar a impressão de que é apenas uma teoria conspiratória da internet brasileira. Ele deve ter pesquisado muito pouco, pouco mesmo, há diversos artigos e até livros bem antigos em inglês que apontam essa questão aqui, aquiaqui e livro do séc. XVII.

A conclusão é inescapável. Temos o exemplo de um papa negando uma das principais doutrinas do romanismo. Além do importante testemunho contra a transubstanciação, é uma prova inequívoca da falibilidade papal. 

Os Pais da Igreja e a Eucaristia (Agostinho - refutação ao site apologistas católicos) - Parte 4

Agostinho é uma importante testemunha contra a doutrina romana, não pela sua antiguidade, pois viveu no final do século quarto e início do século quinto, mas pela importância que desfruta na Igreja Romana.

Já houve um excelente debate entre blogs católicos e protestantes sobre Agostinho e a eucaristia. A argumentação protestante pode ser vista no Blog Heresias Católicas que respondeu ao artigo do site Veritatis. Após, o site Apologistas Católicos respondeu ao blog protestante. 

Acredito que o blog protestante fez um bom trabalho e o site “apologistas católicos” não refutou absolutamente nada, mas vou fazer algum pontos adicionais aos argumentos de sua resposta. Não vou repetir todas as citações de Agostinho em que fica patente a incompatibilidade entre ele e a ideia da presença física, no link postado, todas já estão disponíveis.

O primeiro argumento dos papistas é que “a Igreja nunca iria ter como doutor ou santo alguém que contradissesse seus dogmas”. Essa é uma argumentação falaciosa, pois parte do pressuposto que a Igreja Romana sempre interpreta corretamente e honestamente os escritos dos Pais. Qualquer pessoa que tenha um conhecimento mínimo da Bíblia e da História pode atestar que diversas vezes a Igreja Romana distorceu escritos bíblicos ou patrísticos para favorecer suas posições. Diversos santos negaram a imaculada concepção de Maria, por exemplo: João Crisóstomo e Tomás de Aquino. Nem por isso, a Igreja católica romana não os tem como doutores.

Depois, é mostrada a seguinte citação:

E a Escritura diz-me, a terra é o meu escabelo. Hesitando, eu me viro a Cristo, uma vez que eu estou aqui procurando Ele próprio: e descubro como a Terra pode ser adorada sem impiedade, e como o escabelo de seus pés pode ser adorado sem impiedade. Pois Ele tomou sobre Si terra da terra; porque a carne é da terra, e Ele recebeu a carne da carne de Maria. E porque Ele andou aqui na própria carne, e que deu a própria carne, para nos comermos para nossa salvação, e ninguém come essa carne, a menos que tenha adorado primeiro: descobrimos em que sentido tal um escabelo de nosso senhor pode ser adorado, e não só isso, não pecamos em adorar, mas que pecamos em não adorar. (Sobre o Salmo 98:8)

Mas vejamos a continuação desta mesma citação:

Mas será que a carne dá vida? Nosso Senhor, quando estava falando em louvor a essa mesma terra, disse: É o Espírito que vivifica, a carne para nada aproveita .... Mas quando o nosso Senhor a elogiou, estava falando de sua própria carne, e tinha dito: A não ser que o homem coma a minha carne, não terá vida nele. [João 6:54] Alguns de seus discípulos, cerca de setenta, ficaram ofendidos, e disseram: Esse é um discurso duro, quem pode ouvi-lo? E eles desistiram e já não andavam com Ele. Parecia-lhes difícil o que Ele disse, se não comerdes a carne do Filho do Homem, não tereis a vida em vós: eles o receberam tolamente, pensado nisso carnalmente, e imaginaram que o Senhor iria cortar partes de seu corpo e dar-lhes, e eles disseram: Esta é uma palavra dura. Eles que foram duros, não o dito; se ao menos tivessem sido duros, e não mansos, eles teriam dito para si mesmos, Ele não diz isso sem razão, mas deve haver algum mistério latente aqui. Eles teriam permanecido com Ele, mansos, e não duros, e teriam aprendido dEle o que os que permaneceram aprenderam, quando os outros partiram. Pois quando doze discípulos ficaram com ele, em sua partida, esses seguidores restantes sugeriram a ele, como se em luto pela morte dos primeiros, que eles se sentiram ofendidos por suas palavras e desistiram. Mas Ele os instruiu e lhes disse: É o Espírito que vivifica, mas a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e vida. [João 6:63]. Entenda espiritualmente o que eu disse; não é para você comer este corpo que você vê; nem beber o sangue que aqueles que vão me crucificar devem derramar. Tenho recomendado a vocês certo mistério; entendido espiritualmente, ele vai despertar. Embora seja necessário que seja visivelmente celebrado, no entanto, deve ser entendido espiritualmente.

Ao lermos a continuação da citação, é visto que não endossa a posição de que o bispo de Hipona acreditava na transubstanciação. Pelo contrário, conforme muitas outras citações trazidas pelo Blog Heresias Católicas, ele entendia as palavras de Jesus de forma simbólica e espiritual, os romanistas por outro lado, entendem de forma literal e física. Imagine que alguém hoje acusasse um católico romano de cometer canibalismo no momento da comunhão – ele com certeza argumentaria que não é canibalismo, mas jamais utilizaria a argumentação de que as palavras de Jesus devem ser interpretadas apenas espiritualmente, inevitavelmente defenderia a presença física de Cristo na eucaristia e tentaria demonstrar como isso ainda assim é diferente de canibalismo. Porém, Agostinho não fez nada disso, ou ele desconhecia a doutrina romanista ou era um professor omisso, não é preciso dizer qual hipótese é mais provável.
O argumento “seria muito estranho alguém que diz que devemos adorar a Eucaristia negar a transubstanciação” é falacioso por três motivos:

(1)           Quando Agostinho se referiu à adoração dos elementos, estava falando como um mero sinal de respeito, conforme assevera Philip Schaffer:

Em todas estas passagens, devemos, sem dúvida, levar a termo proskunei'n e adorare no sentido mais amplo, e distinguir do arqueamento dos joelhos, que era tão frequente, especialmente no Oriente, como um mero sinal de respeito, de adequada adoração. As antigas liturgias não contém direção para qualquer ato de adoração como se tornou predominante na Igreja Latina, como a elevação da hóstia, após o triunfo da doutrina da transubstanciação, no século XII. (Fonte)

(2)           Ainda que partamos da premissa que Agostinho defendia a adoração no sentido clássico do termo, isso em nada favorece a doutrina romana. A própria citação esclarece isso, ele diz “e descubro como a Terra pode ser adorada sem impiedade”, ou seja, a terra poderia ser adorada por que a Escritura afirma que é o escabelo de Deus. Escabelo seria aquele banquinho para os pés, e acho que ninguém defendia que Agostinho acreditasse de fato que a terra é o banquinho para Deus descansar os pés. Então se temos claramente uma metáfora sendo suficiente para justificar a adoração à terra, porque em relação à eucaristia deveria ser diferente?

(3)           Como já dito neste artigo, as pessoas podem ter com o símbolo a mesma atitude que teriam como o que está sendo simbolizado. E ninguém mais do que os católicos romanos podem atestar isso. Eles cultuam imagens, nem por isso acreditam na presença física de Jesus, Maria ou Santos nas imagens. Da mesma forma, como já ficou óbvio pelo contexto, Agostinho poderia não acreditar numa presença física, e ainda assim ter uma atitude de elevada reverência aos elementos, até porque ele concebia uma presença espiritual de Cristo na eucaristia e não um mero simbolismo.

Após essa primeira citação, o site apologistas católicos traz outra como prova da transubstanciação:

O Senhor Jesus queria que aqueles cujos olhos foram mantidos para reconhecê-lo, reconhecê-lo no partir do pão [Lucas 24:16,30-35]. Os fiéis sabem o que eu estou dizendo que eles conhecem a Cristo na fração do pão. Pois nem todo pão, mas apenas aquele que recebe a bênção de Cristo, torna-se corpo de cristo. (Sermões 234:2)

É importante perceber que nesse sermão, Agostinho comenta sobre a passagem de Lucas 24:16-35 em que os discípulos no Caminho de Emaús não reconheceram Jesus. Os discípulos o tiveram como um estranho, mas pararam para ouvir suas palavras e o convidaram para partir o pão com eles, ou seja, não era a celebração da Eucaristia em questão, mas uma refeição comum. O detalhe especial descrito nos vs. 31 e 32 é que ao partirem o pão dado por Jesus, os olhos deles foram abertos e puderam reconhecê-lo. Então, pelo contexto, percebemos que Agostinho está falando de um pão comum usado para simples alimentação, que após ser abençoado por Cristo, abriu os olhos daqueles homens. Trata-se obviamente de um momento que não poderia envolver a transubstanciação. Seria improvável que o Bispo de Hipona usasse uma passagem que não remetia a transubstanciação para ensinar essa doutrina. Além do mais, a citação em si é irrelevante para a causa católica, pois todos concordam que o pão consagrado é diferente do pão comum, e que após a consagração, este pão passa a ser o corpo do Cristo. A questão é de que forma isto deveria ser entendido. Se Agostinho ou outros Pais da Igreja aqui analisados quisessem ensinar a doutrina romanista, poderiam utilizar termos simples que não deixariam margem para dúvidas como, por exemplo: dizer que Cristo está fisicamente presente; dizer que não há mais a substância pão, mas apenas o corpo físico; ou que toda a matéria do pão foi convertida no corpo físico de Jesus juntamente com sua alma e divindade. Porém, eles não utilizaram tais termos simples que estariam a sua disposição.

A visão agostiniana era da presença espiritual de Cristo na ceia, e as palavras proferidas neste sermão adequam-se perfeitamente a essa interpretação. Portanto, se alguém deseja provar que ele defendia a doutrina da conversão dos elementos, precisa mostrar bem mais. O apologista católico segue mostrando uma citação “adulterada” de Agostinho em que se troca a palavra significante por simbólica. Teria sido proveitoso apontar onde esta citação adulterada estava, pelo menos na internet em português, não achei nenhum site protestante a utilizando.
 
Sob a servidão do sinal vive quem faz ou venera uma coisa SIMBÓLICA [SIGNIFICANTE] sem saber o que ela significa. Mas quem faz ou venera a um signo útil instituído por Deus, cuja virtude e significado entende, não veneram visível e transitório, mas Aquele a quem todos esses signos se referem [...] Tais são: o sacramento do batismo e a celebração do corpo e sangue do Senhor. Quando alguém os recebe, bem instruído, sabe a que se referem e, por conseguinte, venera-os com liberdade espiritual e não com servidão carnal. Ora, seguir a letra e confundir os sinais com aquilo que os sinais significam indica fraqueza e servidão. Interpretar os sinais erradamente é o resultado de estar sendo conduzido pelo erro. (Doutrina cristã Livro III, 9)

É bem verdade que a tradução mais adequada é “coisa significante” ou “objeto significante”. Porém, todo o contexto aponta que ele não via o pão como sendo literalmente o corpo do Cristo. Percebam as palavras do Bispo: “não veneram o VISÍVEL E TRANSITÓRIO, mas AQUELE a que todos esses signos se REFEREM”. Que católico romano utilizaria palavras como essas para se referir a eucaristia? Agostinho diz que o pão em si não era venerado, pois não se venera o visível e transitório, mas sim aquilo a que o pão SE REFERE. É totalmente incompatível que ele cresse que o pão fosse literalmente e substancialmente o corpo de Cristo e utilizasse palavras como essas. Se o pão é o corpo de Cristo, então ele diria que o pão em si deveria ser adorado, pois ali não haveria mais pão, apenas o corpo. Como ele diria para alguém venerar aquilo que o pão representa, se o pão é em si o próprio Cristo? O fato de colocar o batismo e a eucaristia na mesma categoria de sinais também é revelador, pois assim como o batismo aponta uma realidade externa (a morte para o pecado e o renascimento para Deus) a eucaristia também aponta para uma realidade externa (o sacrifício propiciatório de Jesus). Porém, na doutrina romana, a eucaristia não é um mero sinal de uma realidade externa já ocorrida, neste momento Cristo é de fato literalmente sacrificado.

Portanto a argumentação “Por ultimo, só o fato de ser provado que a tradução adulterada não condiz com as palavras de Santo Agostinho já refuta toda a interpretação que se baseia na tradução errada” é falaciosa. Pois, mesmo traduzindo como “coisa significante”, o contexto permite a mesma conclusão – esse pai sustentava uma visão simbólica, no sentido de que os elementos não se transformavam no corpo físico. Bastaria o autor ler outros trechos da mesma obra para descobrir a verdadeira posição de Agostinho:

Se a sentença é um dos comandos, proibindo um crime ou vício, ou ordenando um ato de prudência ou benevolência, não é figurativa. Se, no entanto, parece que impõem um crime ou vício, ou proibe um ato de prudência ou benevolência, é figurativa. Se não comerdes a carne do Filho do homem, diz Cristo, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. [João 6:53]. Essa parece intimar um crime ou um vício; portanto, é uma figura, que ordena que devemos compartilhar [communicandem] nos sofrimentos de nosso Senhor, e que devemos manter uma memória doce e proveitosa [in memoria] do fato de que sua carne foi ferida e crucificada por nós. (Ibid 16)

Ele interpreta figuradamente ou simbolicamente as palavras de Cristo. O significado do texto é que devemos compartilhar dos sofrimentos de Cristo e lembrar do seu sacrifício por nós, não que devemos de fato comer o corpo literal dele, junto com seus ossos, medulas, alma e divindade. Agostinho segue nesse trecho explicando outras passagens da Escritura que parecem comandar um delito, portanto, deveriam ser compreendidas simbolicamente. O apologista católico também traz esta citação usada pelos protestantes:

Eles disseram, pois, para ele: o que devemos fazer para que possamos fazer as obras de Deus? E ele lhes disse: trabalhem, não para a carne que perece, mas para o que permanece para a vida eterna. O que devemos fazer? Eles perguntam; observando se seriam capazes de cumprirem este preceito. Jesus respondeu e lhes disse: isto é a obra de Deus, para que vocês acreditem naquele que me enviou. E, em seguida, para comer a carne, não a que perece, mas a que permanece para a vida eterna. Para qual finalidade você prepara o dente e o estômago? Creia, e você já terá comido. (Tratados sobre João, XXV, 12)

A questão aqui é como Agostinho interpretava as palavras de João 6 tão utilizadas pelos católicos como provada da transubstanciação. E, definitivamente, ele não interpretava como eles. Vejamos os capítulos seguintes do mesmo tratado:

O meu Pai vos dá o verdadeiro pão. Porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo. Disseram-lhe: Senhor, dá-nos sempre desse pão. Como aquela mulher samaritana, a quem foi dito: Todo aquele que beber desta água jamais terá sede. Ela, imediatamente compreendeu como referência a matéria, e que desejava saciar-se, dizendo: Dá-me, Senhor, desta água; da mesma forma, também estes disseram: Senhor, dá-nos este pão; que podem nos revigorar, e ainda não falhar. E Jesus disse-lhes: Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome; e aquele que crê em mim nunca terá sede. Aquele que vem a mim; esta é a mesma coisa que aquele que crê nele; não terá fome deve ser entendida no mesmo sentido de nunca mais terá sede. Pois ambos significam suficiência eterna em que nada falta. (Ibid 13-14)

É bem verdade que essas passagens por si só não mostram que Agostinho não cria na transubstanciação, isso sabemos por outras. Mas, mostram que não interpretava as palavras de João 6 como se referindo à eucaristia, mas sim como a promessa de salvação de Cristo a todo aquele que crê. Observa-se que ele traçou um paralelo entre o diálogo de Jesus com os judeus a respeito do pão que desceu do céu e o diálogo com a mulher samaritana. Em ambos, os ouvintes interpretaram as palavras do mestre como literais e materiais, mas na verdade se tratavam da promessa da vida eterna em Cristo. Assim como a água oferecida à samaritana era metáfora para a vida em Cristo, o pão também era.

O apologista traz citações em que Agostinho condena uma compreensão literal dos ouvintes de Cristo em que eles imaginavam ter que comer a pessoa de Cristo. É verdade que ele está condenando este tipo de compreensão, mas de forma diferente dos católicos, não faz nenhuma conexão entre João 6 e comer o corpo literal de Cristo no pão transubstanciado. Em todos os casos, o efeito é o mesmo – Esse bispo não interpretava a bíblia como um católico interpreta e tinha uma compreensão diferente do texto mais usado para justificar a crença romana. Que Agostinho desconhecia essa doutrina, podemos inferir também de várias outras citações. Ainda comentando João 6, ele diz:

Então, a cada um serão vida o corpo e sangue de Cristo, se o que se recebe visivelmente no sacramento se come na própria realidade espiritualmente, se bebe espiritualmente. Pois temos ouvido o próprio Senhor, dizendo: ‘O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos digo são espírito e vida [Jo.6.63]. (Sermão 131:1)

A última citação analisada pelo apologista católico:

Você sabe que, na linguagem comum, quando a Páscoa está se aproximando, nós dizemos: ‘Amanhã’ ou ‘Depois de amanhã é a paixão do Senhor’, ainda que seja verdade que Ele sofreu há muitos anos e Sua paixão aconteceu de uma vez por todas. De maneira parecida, no Domingo de Páscoa, nós dizemos: ‘Neste dia o Senhor ressuscitou dos mortos’, ainda que muitos anos tenham se passado desde Sua ressurreição. Mas, ninguém é tolo o suficiente para nos acusar de mentir quando usamos estas frases. O motivo que chamamos estes dias assim é porque há semelhança entre estes dias e os dias em que os eventos aos quais nos referimos realmente aconteceram. Nos referimos a estes dias como se fossem os mesmos dias em que os eventos aconteceram, ainda que não sejam realmente os mesmos, porque correspondem a mesma época do ano. E, quando é dito que o evento ocorre naquele dia, é porque, ainda que tenha acontecido muito antes, é neste dia que o evento é celebrado sacramentalmente. Cristo não foi, em Sua própria Pessoa, oferecido como sacrifício de uma vez por todas? Mas, ainda assim, Ele também não é oferecido no sacramento como um sacrifício, não somente nas solenidades especiais da Páscoa, mas também diariamente em nossas congregações? Sendo assim, se um homem é interrogado e responde que Cristo é oferecido nesta ordenança, ele não está dizendo a verdade? Se os sacramentos não tivessem qualquer semelhança verdadeira com as coisas das quais são sacramentos, não seriam de fato sacramentos. Na maioria dos casos, em virtude desta semelhança, os sacramentos são chamados pelo nome da realidade com a qual se assemelham. Portanto, em certo sentido, o sacramento do corpo de Cristo é o corpo de Cristo, o sacramento do sangue de Cristo é o sangue de Cristo [...] Com base nisso, o Apóstolo disse, em relação ao sacramento do batismo: ‘De sorte que fomos sepultados com Ele pelo batismo na morte’. [Rom 6.4] Ele não diz: ‘Nós temos significado que nós fomos sepultados com Ele’, mas diz que ‘fomos sepultados com Ele’. Portanto, Ele deu ao sacramento referente a uma operação tão grandiosa o nome que descreve a própria operação.

Essa citação é tão clara que nem merecia maiores explicações. Vejam as analogias que usa para explicar o sacramento da eucaristia. Ele compara aos dias que a páscoa era comemorada, argumentando que ninguém era tolo de acreditar que aquele dia não era uma mera recordação. Depois descreve a analogia do apóstolo Paulo da morte e ressurreição do crente no batismo. Obviamente, todos, até os católicos romanos entendem essas metáforas que apontam para realidades externas. Mas Agostinho colocou o sacramento da eucaristia nesse mesmo grupo, e explica por que ele chamava o pão e o vinho de corpo e sangue de Cristo. Não era por que acreditasse que esses elementos se transformam literalmente em corpo e sangue, mas por que apontavam para o corpo e o sangue real de Cristo. Por isso, ele usou o termo “em certo sentido”.

A explicação do apologista católico não convence, ele não lidou com todos esses termos usados por Agostinho. Ele tenta mostrar que Tomás de Aquino pensava exatamente como Agostinho e ainda assim acreditava na transubstanciação. Isso é falso, basta abrir o link para perceber que Tomás fala de coisas diferentes. Agostinho, assim como os outros Pais, nunca usou a distinção entre substância e acidente de Tomás com relação à eucaristia. E a aqui não se trata de uma mera mudança de nomes. O bispo de Hipona deixou claro por que chamava o sacramento pelos nomes “corpo e sangue de Cristo”, e sua explicação exclui a possibilidade da crença numa transubstanciação. Um ótimo argumento trazido pelo blog heresias católicas a crença de Agostinho que o corpo de Cristo estava no céu e não aqui na terra sempre que a eucaristia é celebrada:

Quando dizia Cristo: ‘A mim nem sempre me tereis convosco’, estava falando da presença do corpo. Ora, segundo sua majestade, segundo sua providência, segundo sua inefável e invisível graça, cumpre-se o que foi por ele dito: ‘Eis que estou convosco até a consumação do mundo’ [Mt 28.20]; segundo a carne, porém, que o Verbo assumiu, segundo seu nascimento da Virgem, segundo que foi agarrado pelos judeus, que foi pregado no madeiro, que foi retirado da cruz, que foi envolvido em panos de linho, que foi encerrado no sepulcro, que foi manifestado na ressurreição, isto se cumpre: ‘Não me havereis de ter sempre convosco.’ Por que razão? Porque, por quarenta dias que conviveu com seus discípulos foi segundo a presença do corpo; e, acompanhando-o, vendo-o, não o seguindo, subiu ao céu [At 1.3, 9]. ‘Não está aqui’ [Mc 16.9], pois está ali assentado à destra do Pai [Mc 16.19]. E, todavia, está aqui, porquanto não se retirou para a presença da majestade. Doutra maneira, sempre temos a Cristo segundo a presença de sua majestade, segundo a presença da carne, corretamente se disse: ‘Mas a mim nem sempre me tereis. Teve-o, pois, a Igreja segundo a presença da carne, por uns poucos dias; o teme agora pela fé, não o vê com os olhos. (Tratado Sobre João, L, 13)

Ora, uma só pessoa é Deus e homem, e ambos um só Cristo, enquanto é Deus, está em todo lugar; enquanto é homem, está no céu. (Letters, III, 10)

Seria inexplicável alguém sustentar tal posição e ainda crer em algo como o sacrifício da missa. Se de fato sustentasse a doutrina romanista, teria dado boas explicações sobre como Cristo pode estar fisicamente presente na missa, mas não o fez.

Embora consideremos que já não há o dever de oferecer sacrifícios, reconhecemos sacrifícios como parte dos mistérios da Revelação, através da qual as coisas profetizadas foram prenunciadas. Pois eles eram os nossos exemplos, e em muitos e diversos modos apontaram para o único sacrifício que agora comemoramos. Agora que este sacrifício foi revelado, e foi oferecido em tempo oportuno, o sacrifício não é mais obrigatório como um ato de adoração, ao mesmo tempo em que mantém a sua autoridade simbólica (...) Antes da vinda de Cristo, a carne e o sangue desse sacrifício estavam como sombras nos animais mortos; na paixão de Cristo, os tipos foram cumpridas pelo verdadeiro sacrifício; depois da ascensão de Cristo, esse sacrifício é comemorado no sacramento. (Philip Schaff, Padres Niceno e Pós-Nicenos, vol. IV, St. Agostinho: Os escritos contra os maniqueístas e contra os donatistas, resposta a Fausto o maniqueísta 6.5, 20.21 (New York: Longmans, Verde, 1909)., Pp 169, 262.)

O único e definitivo sacrifício de Cristo era comemorado no sacramento e não reapresentado várias e várias vezes.

Pois, como temos muitos membros em um corpo, e nem todos os membros têm a mesma função, assim nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo. Este é o sacrifício dos cristãos: sendo muitos, somos um só corpo em Cristo. E este é também o sacrifício que a Igreja celebra continuamente no sacramento do altar, conhecido dos fiéis, no qual ela ensina que ela mesma é oferecida na oferta que ela faz para Deus (...) Pois nós, que somos sua própria cidade, é o seu sacrifício mais nobre e digna, e é este mistério que celebramos em nossos sacrifícios, que são bem conhecidas dos fiéis (...) Por meio dos profetas os oráculos de Deus declararam que os sacrifícios que os judeus oferecidos eram uma sombra daquilo que deveria cessar, e que as nações, desde o nascer ao pôr-do-sol, iriam oferecer um sacrifício. (Philip Schaff, Padres Nicenos e Pós-Nicenos, vol. II, p. 230-31. St. Agostinho: A Cidade de Deus na Doutrina Cristã, A Cidade de Deus Livro 10, cap. 6; Livro 19, cap. 184: (Eerdmans, 1956 Grand Rapids), pp, 418 23)

A Ceia era uma recordação do único e definitivo sacrifício de Cristo. Neste momento, a Igreja oferecia-se a si mesma como uma oferta de louvor a Deus. A oferta não era Cristo, era a Igreja. Assim como os outros padres, ele viu niso o cumprimento da profecia de Malaquias. Em outras passagens, o bispo também se refere à Igreja metaforicamente presente na eucaristia:

Veja, isso é recebido, isso é comido, isso é consumido. É o corpo de Cristo consumido, é a Igreja de Cristo consumida, são os membros de Cristo consumidos? Nem pensar! (Sermão 227)

Conforme Schaff, muitos outros autores cristãos, inclusive seu pupilo Facundus, seguindo o mestre Agostinho, defenderam uma visão espiritual e não literal da eucaristia:

O discípulo de Agostinho, Facundus, ensinou que o pão sacramental "não é propriamente o corpo de Cristo, mas contém o mistério do corpo." Fulgêncio de Ruspe tinha a mesma visão simbólica; e até mesmo em um período bem mais tarde, podemos segui-la [a visão de Agostinho] por meio da poderosa influência dos escritos de Agostinho em Isidoro de Sevilha e Beda o Venerável. Entre os teólogos da época carolíngia, em Ratramo, e Berengário de Tours, até que irrompeu em uma forma modificada com maior força do que nunca, no século XVI, e tomou posição permanente nas igrejas reformadas. (Fonte)

Os Pais da Igreja e a Eucaristia (Hipólito, Cipriano, Minúcio, Eusébio, Atanásio, Gregório, Macário e Teodoreto) - Parte 3

Hipólito de Roma (170 – 235)

Hipólito escreveu uma importante obra chamada “Tradição Apostólica” que descreve as práticas litúrgicas da Igreja em Roma no início do terceiro século:

Os diáconos oferecerão o sacrifício ao bispo e este dará graças sobre o pão, como símbolo do Corpo de Cristo, e sobre o cálice do vinho preparado, para imagem do Sangue que foi derramado por amor de todos que creem nele. Fará o mesmo sobre o leite e o mel misturados, recordando a plenitude da promessa feita aos antepassados; nessa promessa, Deus anunciou a "terra onde correm leite e mel". Por ela, Cristo ofereceu a sua Carne e, assim como crianças, se alimentam os que creem, tornando suave a amargura do coração pela docilidade da Palavra. Da mesma maneira, o bispo renderá graças sobre a água do sacrifício, como representação do batismo, para que o homem interior, isto é, a alma, obtenha os mesmos dons que o corpo. (Tradição Apostólica 3:7)

É visível que Hipólito aponta vários simbolismos no momento da comunhão, sendo todo o contexto simbólico. Nota-se que também fala do leite e mel como representando a promessa feita a Israel, e até mesmo a água é tratada como uma representação do batismo. Ele chama a eucaristia de sacrifício, a compreendendo como outros pais como uma oferta de louvor e agradecimento.

[Ele] tomou o pão e deu graças a ti, dizendo: 'Tomai e comei: isto é o meu Corpo que será destruído por vossa causa'. [Depois,] tomou igualmente o cálice e disse: 'isto é o meu sangue, que será derramado por vossa causa. Quando fizerdes isto, fá-lo-eis em minha memória'. Por isso, lembramos de sua morte e ressurreição e oferecemos-te o pão e o cálice, dando-te graças por nos considerardes dignos de estarmos na tua presença e de te servir. (Ibid 2:3)

Essa é precisamente a crença evangélica – uma recordação de um fato passado – o que a Escritura chama de memorial. A doutrina romanista já sustenta que esse memorial não é apenas uma lembrança, mas tornar presente o fato acontecido.

Que todo fiel corra a receber a eucaristia antes de experimentar qualquer outra coisa. Se receber por causa de sua fé, não se prejudicará, mesmo sendo o homem mortal. Todos devem se esforçar para não permitir que o infiel prove a eucaristia, nem um rato ou outro animal; deve-se cuidar para que dela não caia uma migalha e se perca, pois ela é o Corpo de Cristo que deve ser comido pelos fiéis e não pode ser negligenciado. Consagrado o cálice em nome de Deus, que recebestes como a imagem do Sangue de Cristo, não queirais derramá-lo. Que o espírito hostil não venha lambê-lo, desprezando-o, pois serias culpado para com o Sangue, como quem despreza o valor pelo qual foi comprado. (Ibid 4:11)

Esta citação é usada por apologistas em defesa da presença física. Apenas mostra o respeito que Hipólito tinha pelos elementos sagrados, e a própria citação refuta qualquer possibilidade de literalidade quando diz: “que recebeste como imagem do sangue de Cristo”. Logo após dizer que é uma imagem, ele adverte para que o elemento não seja lambido, pois assim estaria sendo desprezado “como que desprezando o valor pelo qual foi comprado”. Perceba que é o já argumentado aqui, Hipólito adverte a não desprezar o símbolo, pois estaria desprezando a coisa simbolizada – o sangue que Cristo derramou por nós na cruz.

Se estiverdes num outro local, rezai a Deus no coração, pois foi nessa hora que Cristo se viu pregado no madeiro. Também por essa razão, a Lei do Antigo Testamento prescreve que se ofereça o pão da proposição, como imagem do Corpo e Sangue de Cristo, e a imolação do cordeiro, como imagem do Cordeiro perfeito: Cristo é o Pastor e o Pão que desceu do céu. (Ibid 4:14)

Assim como Hipólito de Roma, os autores do Novo Testamento disseram que a páscoa judaica prefigurava a paixão de Cristo, e a eucaristia também nos relembra a paixão de nosso Senhor. Portanto, há uma analogia direta entre a páscoa judaica e a eucaristia, da mesma forma que a páscoa era um memorial da libertação do povo hebreu e obviamente não era literal, a eucaristia também deve ser um memorial da paixão de Jesus, não podendo ser tomado em termos literais. Caso contrário, a analogia fica defeituosa, pois teríamos uma celebração não literal sendo paralelo de um rito literal.

Cipriano de Cartago (? – 258)

Cipriano é muito citado como testemunha da transubstanciação. Geralmente são apresentadas citações em que o Bispo de Cartago afirma que o pão e o vinho são o corpo e sangue de Cristo. Não é suficiente, é preciso trazer mais elementos que provem o que Cipriano queria expressar com essas palavras, por que deveríamos aceitar que ele acreditava na transubstanciação, e não na consubstanciação ou numa presença espiritual especial?

Além disso, mesmo os sacrifícios do Senhor declaram eles próprios que a unanimidade cristã está ligada em si mesma por um firme e inseparável amor. Pois quando o Senhor chama ao pão, o qual é composto pela união de muitos grãos, seu corpo, indica ao nosso povo que Ele carregou como estando unido; e quando chama ao vinho, o qual é espremido de muitas uvas e cachos e recolhido, seu sangue, também significa o nosso rebanho reunido pela mistura de uma multidão unida. (Epístola 75:6)

Cipriano foi muito influenciado por Tertuliano que era tido como um grande. Da mesma forma que ele, o Bispo de Cartago não interpretava os elementos de forma literal. Percebam que ele cria uma simbologia entre o pão e a união da Igreja com Cristo. A mesma analogia faz com o vinho. Em ambos os casos, até mesmo o papista não poderia literalizar a passagem, afinal é óbvio que a união da Igreja com Cristo não é física, mas espiritual.

Pois porque Cristo nos carregou a todos, em que Ele carregou também com os nossos pecados, vemos que na água é entendido o povo, mas no vinho é mostrado o sangue de Cristo. Mas quando a água é misturada no cálice com vinho, o povo é feito um com Cristo, e a assembleia de crentes é associada e reunida com Ele em quem ela crê; a qual associação e conjunção de água e vinho está tão misturada no cálice do Senhor, que aquela mistura já não pode ser mais separada. Daí que nada pode separar a Igreja – isto é, o povo estabelecido na Igreja, fiel e firmemente perseverantes no que creram - de Cristo, de um modo tal que impedisse o seu amor indiviso de permanecer e aderir. Assim, portanto, ao consagrar o cálice do Senhor não pode oferecer-se só água, como nem somente vinho. Pois se alguém oferecesse só vinho, o sangue de Cristo está dissociado de nós; mas se a água estiver sozinha, o povo está dissociado de Cristo; mas quando ambos estão misturados, e se unem entre si com um estreito vínculo, completa-se um sacramento espiritual e celestial. Assim o cálice do Senhor não é certamente só água, nem só vinho, a menos que cada um se misture com o outro; do mesmo modo em que, por outro lado, o corpo do Senhor não pode ser só farinha ou só água, se ambas não se unem e se compactam na massa de um pão; no qual mesmíssimo sacramento o nosso povo demonstra ser um, de forma que de modo similar a muitos grãos, colhidos, e moídos, e misturados numa massa, fazem um pão; assim em Cristo, que é o pão celestial, podemos saber que há um corpo, com cujo nosso número é aumentado e unido. (Epístola 62:13)

A Epístola 62 trata da condenação de Cipriano ao costume de substituir o vinho pela água. Ele diz que ambos devem ser utilizados e misturados, e ao responder o porquê da necessidade de ambos, nos mostra que não aderia à transubstanciação. A água representa o povo de Deus e o vinho o sangue de Cristo, quando ambos se misturam, há uma união espiritual de Cristo e sua Igreja. É impossível interpretar isso de forma literal, pois sabemos que a água não se transubstancia no corpo dos comungantes, e muito menos, a união da Igreja a Cristo é física, portanto, o vinho não poderia ser materialmente o sangue de Cristo. Cipriano cria num mero simbolismo? Com certeza não, ele cria numa presença espiritual.

[O Senhor ensinou] com o exemplo da sua própria autoridade que o cálice havia de misturar-se com a união de água e vinho. Pois ao tomar o cálice na véspera da sua paixão, o abençoou e o deu aos seus discípulos, dizendo: "Bebei todos disto; porque isto é o meu sangue do Novo Testamento, o qual será derramado por muitos, para a remissão de pecados. Digo-vos que desde agora não beberei mais deste fruto da videira, até àquele dia em que o beba novo convosco no reino de meu Pai." Nesta porção descobrimos que o cálice que o Senhor ofereceu estava misturado, e que era vinho aquilo que chamou seu sangue. (Ibid 9)

A intenção nesta citação é defender a presença do vinho na ceia, mas as palavras negritadas chamam atenção, elas não parecem indicar uma conversão dos elementos. Caso defendesse este conceito, Cipriano provavelmente diria: “e que era vinho aquilo que se transformou em seu sangue”. Somada a outras citações mostradas, a evidência contra a doutrina católica romana fica ainda mais robusta.

Sabe, então, que fui advertido que, ao oferecer o cálice, a tradição do Senhor deve ser observada, e que nada deve ser feito por nós senão o que o Senhor fez primeiro em nosso benefício, como o cálice que é oferecido em memória d`Ele deve ser oferecido misturado com vinho. Pois quando Cristo diz, "Eu sou a videira verdadeira", o sangue de Cristo seguramente não é água, mas vinho; nem pode o seu sangue pelo qual somos redimidos e ressuscitados parecer estar no cálice, se no cálice não há vinho pelo qual é demonstrado o sangue de Cristo, o qual é declarado pelo sacramento e testemunho de todas as Escrituras. (Ibid 2)

Recorre-se ao simbolismo da videira para defender a necessidade do vinho na ceia. Ninguém em sã consciência, muito menos o Bispo de Cartago, acreditava que Jesus era literalmente uma videira. É muito improvável que utilizasse um simbolismo para defender a exigência de algo que seria literal, ainda mais quando os elementos são os mesmos, pois a videira gera a matéria-prima do vinho.

Ele também é testemunha da prática da Igreja Primitiva de permitir a comunhão às crianças. Diferentemente, a Igreja Romana restringe a comunhão para pessoas que atingiram a idade da razão (Catecismo da Igreja Católica 1244). O proeminente historiador Philip Schaff escreveu:

Nas igrejas orientais e Norte-Africana prevaleceu o costume incongruente da comunhão infantil, que parecia seguir a partir do batismo infantil, e foi defendido por Agostinho e Inocêncio I, invocando a autoridade de João 6:53. Na igreja grega esse costume continua até hoje, mas na Latina, depois do século IX, foi disputada e proibida, porque o apóstolo requer auto-exame como condição de participação digna. (Seção 95 § 97 - Aqui)

Minúcio Félix (Séculos II ou III)

E agora, eu desejaria conhecer quem diz ou acredita que nós somos iniciados pelo massacre e sangue de uma criança (...) Para nós, não é lícito nem ver ou ouvir um homicídio; e da mesma forma nos afastamos de sangue humano, nós nem mesmo usamos o sangue de animais comestíveis em nossa comida. (Otávio de Minúcio Félix 30)

Minúcio se defendia da calúnia de que os cristãos eram iniciados em sua religião através da morte de crianças e utilização de seu sangue. Ele então passa a discorrer sobre uma série de práticas pagãs que envolviam sacrifício infantil e homicídio. O fim da citação é esclarecedor – como Minúcio poderia defender-se desta forma se acreditasse em algo como a transubstanciação e sacrifício da missa. Seria esperado que ele ao menos fizesse uma defesa de como a eucaristia não equivale a comer e beber carne e sangue humanos, mesmo os elementos se transformado em carne e sangue humanos. Estranhamente, nem isso ele faz, apenas taxativamente afirma – “nos afastamos de sangue humano”.

Eusébio de Cesaréia (263 – 339)

Eusébio é apontado por muitos estudiosos da história da Igreja como testemunha do ponto de vista simbólico da ceia:

As palavras "Seus olhos são alegres de vinho, e os dentes brancos como leite" novamente eu acho que secretamente revelam os mistérios do novo Pacto de nosso Salvador. "Seus olhos são alegres do vinho" parece-me para mostrar a alegria do vinho místico que Ele deu aos seus discípulos, quando disse: "Tomem, beba; este é o meu sangue, que é derramado por vós para a remissão dos pecados; fazei isto em memória de mim." E, "Seus dentes são brancos como leite", mostra o brilho e a pureza dos alimentos sacramentais. Novamente, Ele deu a si mesmo os símbolos da sua dispensação divina aos seus discípulos, quando Ele ordenou-lhes fazer a semelhança de seu próprio corpo. Pois, uma vez que Ele não mais teria prazer em sacrifícios de sangue, ou aqueles ordenados por Moisés no abate de animais de vários tipos, deu-lhes o pão para ser usado como símbolo de seu corpo, ensinando a pureza e o brilho desses alimentos dizendo: "E os dentes são brancos como o leite". Isso também outro profeta tem registrado, onde ele diz: "Sacrifício e oferta que não tens obrigado, mas um corpo tens preparado para mim. (Demonstração Evangélica 8:1)

Observem as expressões utilizadas: “símbolo, vinho místico, alimentos sacramentais, fazer semelhança”. Tudo alude uma representação simbólica do corpo de Cristo. Papistas argumentam que quando Eusébio descreve os elementos como símbolo está se referindo somente ao vinho da profecia “seus olhos são alegres de vinho”, ou seja, o pão da eucaristia é símbolo apenas do pão da profecia, mas é literalmente o corpo de Cristo.

Essa argumentação é refutada por dois simples argumentos:

(1) Eusébio utiliza esses termos que expressam uma simbologia sem fazer maiores qualificações. Se acreditasse numa presença física, com certeza, daria maiores explicações sobre em que sentido o vinho é símbolo do corpo de Cristo. Mas não faz, se limitando a dizer que é um símbolo;
(2)  Quando Eusébio utiliza o termo símbolo, não está se referindo aos elementos preditos pela profecia. Refere-se ao momento em que Jesus institui a Ceia, vejamos: “Ele deu a si mesmo os símbolos da sua dispensação divina aos seus discípulos, quando Ele ordenou-lhes fazer a semelhança de seu próprio corpo” – Em que momento Cristo deu aos seus discípulos esses símbolos? No momento da Ceia, e nesse momento, o romanista sustenta que ali não há mais pão ou vinho, e sim carne e sangue. E prossegue: “Pois, uma vez que Ele não mais teria prazer em sacrifícios de sangue (...) deu-lhes o pão para ser usado como símbolo de seu corpo”. Continua claro sobre qual momento Eusébio se refere, apesar de estabelecer tipologias em profecias do A.T, trata o pão como simbólico no momento em que Nosso Senhor o dá aos discípulos.

E o cumprimento do oráculo é verdadeiramente maravilhoso, para quem reconhece como nosso Salvador Jesus Cristo de Deus, que mesmo agora realiza através de seus ministros ainda hoje sacrifícios, à maneira de Melquisedeque. Pois, assim como ele, que era sacerdote dos gentios, não é representado como oferecendo sacrifícios exteriores, mas como abençoando Abraão apenas com vinho e pão, exatamente da mesma forma como o nosso Senhor e salvador fez primeiro, e depois todos os seus sacerdotes entre todas as nações, realizam o sacrifício espiritual de acordo com os costumes da Igreja, e com vinho e pão expressam os mistérios do seu corpo e sangue redentor (...) Isso pelo Santo Espírito, Melquisedeque previu, e usou figuras do que estava por vir, como a Escritura de Moisés testemunha, quando ele diz: "E Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; pois era sacerdote do Deus Altíssimo, e ele abençoou Abraão''. (Ibid., 5:3)

Aqui, Eusébio reverbera a posição da Igreja Antiga sobre a eucaristia ser um sacrifício. Ele faz uma analogia entre o sacrifício da eucaristia e a oferta de Melquisedeque. O sacrifício era espiritual, uma oferta de gratidão. Melquisedeque não ofereceu a Abraão algum tipo de sacrifício animal com derramamento de sangue, o que seria a figura veterotestamentária para o sacrifício de Cristo na cruz. Ele, porém, deu ofertas, assim como os cristãos neste momento solene lembram o sacrifício de Cristo e oferecem a ele louvor, adoração e gratidão.
Diante de provas incontestáveis como esta, os apologistas católicos lançam mais um malabarismo falacioso. Dizem que quando os pais se referem aos elementos como símbolos, estão apenas se referindo ao fato de o pão e o vinho preservarem seus acidentes, permanecendo com a aparência que tinham antes, mas, ainda assim, acreditavam piamente que ali estava fisicamente transubstanciado o corpo de Cristo. Esse argumento é anacronismo. Apela à distinção entre substância e acidente, que só viria a ser empregada séculos depois, para explicar por que mesmo após a transubstanciação, os elementos mantem as suas propriedades. Absolutamente nenhum Pai da Igreja lançou mão desse raciocínio, e em nenhum momento, o contexto de suas obras descreve esse tipo de diferenciação. Portanto, atribuir o simbolismo dos Pais à explicação tomista, é partir do pressuposto não provado que eles pensavam como atualmente pensam os católicos romanos.

Atanásio de Alexandria (296 – 373)

Atanásio foi bispo de Alexandria. Ele interpretava João 6 em termos espirituais:

O que ele diz não é carnal, mas espiritual. O corpo dele seria suficiente para quantos, ele [corpo] deveria se tornar alimento para o mundo inteiro? Mas por esta razão Ele fez menção da ascensão do Filho do Homem ao céu, a fim de que pudesse afastá-los da noção material, e que a partir de então eles pudessem compreender que a referida carne era comida celestial e alimento espiritual dado por Ele. (Carta Festiva 4:19)

Sobre a visão eucarística de Atanásio, Philip Schaff diz:

Mas é surpreendente que mesmo Atanásio, "o pai da ortodoxia", reconheceu apenas uma participação espiritual, uma auto comunicação da virtude nutritiva divina do Logos, nos símbolos do pão e do vinho, e evidencia uma doutrina da Eucaristia totalmente estranha à Católica, e muito parecido com a antiga alexandrina ou origenista, e a calvinista, embora não seja idêntica. Por carne e sangue no discurso misterioso de Jesus no sexto capítulo de João, que ele refere-se à Ceia do Senhor, compreendeu não a terrena, humana, mas a manifestação celeste e divina de Jesus, um alimento espiritual que vem do alto, a qual o Logos por meio do Espírito Santo comunica aos crentes (mas não a Judas, nem aos incrédulos). Com esta visão, concede a extensão da participação do alimento eucarístico aos crentes no céu, e até mesmo para os anjos, que, em virtude da sua natureza incorpórea, são incapazes de uma participação corpórea de Cristo. (Fonte)

Gregório de Nazianzo (329 – 389)

Gregório Nazianzo foi um proeminente autor cristão do quarto século e patriarca de Constantinopla. Em alusão a Romanos 12:1, Gregório diz qual o único sacrifício agradável a Deus:

Desde então eu sabia que destas coisas, e que ninguém é digno da grandeza de Deus e do sacrifício e sacerdócio, que não tenha primeiro apresentado a Deus, a vida, o sacrifício santo, agradáveis serviços, e oferecido a Deus o sacrifício de louvor e o espírito contrito, que é o único sacrifício exigido de nós por aquele que nos deu tudo. (Orações 2:95)

O único sacrifício exigido por Deus é o de louvor com espírito contrito. Essa afirmação é incompatível com uma crença no sacrifício da missa.

Comentando as obras de Nazianzo - as Orações XVII. 12; VIII. 17 e IV. 52, Schaff explica que ele "vê na Eucaristia um tipo de encarnação, e chama os elementos de símbolos consagrados e antítipos dos grandes mistérios (...) (História da Igreja Cristã, Volume 3, [Hendrickson Publishers, 2010], p. 496)

Macário do Egito (300 – 391)

Macário foi um monge egípcio e eremita do século IV. Enquanto não há evidência de que ele ensinou a transubstanciação ou a missa como um sacrifício propiciatório, há evidências de que tinha uma compreensão simbólica do pão e do vinho. Schaff observa que ele "pertence à mesma escola simbólica; ele chama o pão e o vinho de protótipo do corpo e sangue de Cristo, e parece conceber apenas comer espiritualmente a carne do Senhor [Macário, o Velho, Hom. XVII. 17]" (Ibid., p. 497 ).

Teodoreto (393 – 457)

Teodoreto foi um importante autor cristão do século quinto. A citação abaixo não poderia ser mais clara:

Os símbolos místicos [o pão e o vinho] não abandonam a sua natureza depois da consagração, mas conservam a substância e a forma em tudo como antes. (Teodoreto, Dialogus, Liber II)

Essa é uma alegação inconciliável com a explicação romanista que diferencia substância e acidente, pois Teodoreto destaca que os símbolos preservam não apenas a forma, mas também a substância.