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quarta-feira, 4 de julho de 2018

Eusébio de Cesareia e a Eucaristia



Eu já publiquei uma série de artigos sobre os Pais da Igreja e a Eucaristia que podem ser vistos aqui. Sabemos que 11 a cada 10 apologistas católicas irão afirmar que a visão católica romana da Eucaristia foi “sempre crida pela Igreja” e que os pais da igreja unanimemente sustentaram tal visão. Contudo, quando estudamos fontes acadêmicas, mesmo de autores católicos, percebemos que tais ideias passam longe da realidade. Havia entre os pais da igreja uma variedade de visões sobre a Eucaristia, e muitas delas se chocariam com o atual ensino da Igreja de Roma. Eu já tratei do testemunho de Eusébio, mas resolvi revisitá-lo por conta de um livro que estou lendo sobre a atitude da Igreja antiga perante a iconografia de Cristo. O autor em questão é   Christoph Schönborn – o arcebispo de Viena. Ele nos traz um bom resumo da visão eucarística de Eusébio que, como eu já havia defendido, era memorialista e não dava margem para a transubstanciação:

A antropologia de Eusébio inevitavelmente leva a uma atitude iconoclasta. Isto é confirmado também na área onde a interconexão entre as coisas do sentido e as coisas do espírito são especialmente relevantes: na teologia sacramental. Se Eusébio foi de fato o principal testemunho patrístico dos opositores das imagens, e se por outro lado os iconoclastas declaravam que a Eucaristia é o único ícone adequado de Cristo, então deve ser de algum interesse dar uma olhada, pelo menos brevemente, no ensino eucarístico de Eusébio. De fato, Eusébio também chama a espécie eucarística de imagem (eikén). Além disso ele é um dos poucos Padres da Igreja a fazer isso. Ele vê a Eucaristia acima de tudo como um memorial; os símbolos eucarísticos fazem presente o memorial do único sacrifício de Cristo:

Foi-nos transmitido realizar no altar o memorial deste sacrifício, empregando os símbolos de seu corpo e seu sangue salvífico, de acordo com as leis da Nova Aliança.

O próprio Cristo confiou aos seus discípulos os símbolos da economia divina da salvação, e os ordenou transformá-los na imagem do seu próprio corpo. Pois, ele não mais tem prazer em sacrifícios de sangue nem nos holocaustos prescritos por Moisés. Ao invés disso, ele ordenou o uso do pão como símbolo de seu próprio corpo.

Mesmo num sentido geral, o pão e o vinho eucarístico são chamados de “os símbolos da inefável palavra da Nova Aliança”. Dessa forma, Eusébio interpreta as palavras de Jesus sobre o pão da vida (João 6) no sentido de participação espiritual da Palavra de Deus e não de consumo da “carne” do corpo que o Logos vestiu, nem de beber o “visível, físico” sangue. Esta espiritual e memorial interpretação da Eucaristia difere marcadamente do sacramental realismo da maioria dos pais da Igreja desta época. Enquanto eles usualmente enfatizam a realidade do sacramento físico, Eusébio compreende o sacramento antes de tudo como um dos elementos formadores da inteiramente mental e espiritual vida dos cristãos e de sua liturgia, a qual suplantou os físicos e corpóreos sacrifícios do Antigo Testamento.

A influência de Eusébio sobre a doutrina eucarística dos iconoclastas do oitavo século foi demonstrada. A conexão entre sua rejeição dos ícones de Cristo, sua atitude geral em relação às imagens e sua predominante concepção espiritualista dos sacramentos ilustra num estilo típico que a luta da Igreja sobre os ícones foi acima de tudo uma luta teológica. Eusébio foi capaz de nos mostrar isto: a atitude em relação aos ícones de Cristo é determinada pelo conceito do próprio Cristo como uma imagem.

O trecho acima pode ser visto aqui. Isto só vem a confirmar a tese explorada neste blog. A melhor forma de refutar a apologética católica é trazer a luz as fontes acadêmicas, sobretudo católicas. Todas as afirmações exageradas e revisionismo simplório dos apologistas cai diante dos historiadores da Igreja de Roma. Experimente pegar qualquer artigo católico sobre um tema doutrinário polêmico e compare com o conteúdo mesmo de uma fonte bem parcial como a Enciclopédia Católica. É verificável que há uma distância enorme entre as duas fontes. Não é acidental que este blog faça mais uso de fontes acadêmicas católicas do que protestantes.  

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Transubstanciação, Aristóteles e a Biologia Moderna


Para explicar como a transubstanciação é possível tendo em vista que o pão continua com todas as propriedades do pão comum, os apologistas católicos costumam apelar às categorias “substancia” e “acidentes” de Aristóteles. Substância é aquilo que pertence a essência do ser, que o define. Acidente seria uma característica do ser que não o define, inclusive podendo ser encontrada em outros seres de uma substância diferente. Por exemplo, olhos azuis é uma característica que homens diferentes podem ter em comum, portanto é um acidente. O mesmo pode ser dito de tamanho, peso, cor e etc.

Os católicos afirmam que o mesmo ocorre com o pão. Os acidentes do pão (cheiro, textura, cor) continuam os mesmos, mas a substância do pão é convertida no corpo físico de Cristo. É de se notar que esta explicação deturpa o pensamento aristotélico. Seria inimaginável para o filósofo a ideia de que uma substância poderia ser convertida em outra sem a mudança de seus acidentes (aqui). Ademais, a explicação não faz sentido a luz da biologia e física modernas. 

A biologia moderna afirma que tudo é feito de uma mesma substância (átomos compostos por partículas subatômicas). O que vai diferenciar um ser de outro é a combinação dessa substância. Uma determinada combinação de átomos forma água, outra combinação forma o metal. Ao olhar em mais detalhe, água e metal são compostos por uma mesma substância fundamental (partículas subatômicas). Fazendo uma ponte entre as categorias aristotélicas e a biologia molecular, devemos considerar que o DNA por exemplo é substância e não acidente. É impossível que algo seja humano sem possuir DNA humano. Retomando o exemplo, algo não humano poderia ter olhos azuis, mas jamais poderia ter o DNA humano.

Dessa forma, se a substância do pão se converte no corpo humano de Cristo, segue-se que deveríamos encontrar DNA humano na Eucaristia. Afinal, os acidentes do corpo de Cristo não estão lá, mas a substância (que inclui o DNA) está. Obviamente não há DNA humano no pão eucarístico, o que refuta a ideia de que o corpo de Cristo está presente. Além disso, mudanças no DNA necessariamente resultariam em mudanças nos acidentes. Se o DNA de um homem for convertido no DNA de uma cobra, os acidentes (cor, forma, tamanho e etc) irão acompanhar essa conversão.

A transubstanciação não faz sentido por várias razões. Veja aqui outras razões e aqui uma lista de artigos sobre tema.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Agostinho e o Catolicismo Romano - Parte 7 (Eucaristia, Batismo, Confissão e Penitência, Purgatório, Sucessão Apostólica e Salvação)


Transubstanciação e sacrifício propiciatório da Missa

Já temos nesse blog um artigo sobre Agostinho e a Eucaristia. Por isso, serei breve nesse ponto e redireciono o leitor ao artigo aqui. Longe de defender uma presença física de Cristo, ele sustentou a posição que mais tarde as igrejas reformadas adotariam – Cristo estaria presente espiritualmente, sendo a eucaristia um meio de graça, mas sem qualquer transformação física dos elementos. Adiciono aqui a opinião de Gary Wills, um estudioso católico romano, especialista em história da Igreja e que também escreveu uma obra sobre Agostinho:

Na verdade, a Eucaristia no seu sentido mais tardio, de repartir o pão e o vinho como o corpo e o sangue de Cristo, nunca é usado no Novo Testamento, nem mesmo na carta aos Hebreus, a única que chama Jesus de sacerdote. Mesmo quando o termo "Eucaristia" surgiu, como acontece nas cartas de Inácio de Antioquia, ainda era, como em Paulo, simplesmente uma celebração de unidade do povo num "único altar". Que esse significado para o "corpo de Cristo" persistiria tão tarde quanto os séculos IV e V, [é visto] na negação de Agostinho da presença real de Jesus nos elementos da ceia.

Veja, isso é recebido, isso é comido, isso é consumido. É o corpo de Cristo consumido, é a Igreja de Cristo consumida, são os membros de Cristo consumidos? Nem pensar! (Sermão 227)

Se você quer saber o que é o corpo de Cristo, ouça o que o apóstolo [Paulo] diz aos crentes: "Você são o corpo de Cristo, e seus membros" [1Co 12.27]. Se, então, vocês são o corpo de Cristo e seus membros, esse é o seu símbolo que se encontra no altar do Senhor - o que você recebe é um símbolo de vocês mesmos. Quando você diz "Amém", você deve ser o corpo de Cristo para fazer com que esse "Amém" tenha efeito. E por que você é o pão? Ouça novamente o apóstolo falando desse próprio símbolo: "Nós somos um só pão, um só corpo, mesmo sendo muitos" [1Co 10.17]. (Sermão 272)

Os crentes reconhecem o corpo de Cristo quando eles tomam cuidado por serem [os crentes] o corpo de Cristo. Eles devem ser o corpo de Cristo se eles querem viver a partir do espírito de Cristo. Nenhuma vida vem para o corpo de Cristo, mas do espírito de Cristo. (In Joannem Tractatus 26.13) (Why Priests?: A Failed Tradition. Ed. Penguin, 2013, p. 16)

Wills dedica todo o capítulo 5 da obra a Agostinho e a transubstanciação. Ele escreve:

Eu mencionei antes que Agostinho não acreditava no que é chamado de "presença real" de Jesus na Eucaristia e citei vários lugares onde ele disse isso. Aqui está sua afirmação mais explícita de que o que é alterado na Missa não é o pão, mas os crentes que o recebem:

Esse pão deixa claro como você deve amar sua união com o outro. Poderia o pão ser feito de apenas um grão, ou seriam muitos grãos de trigo necessários? No entanto, antes de serem juntados como um pão, cada grão era isolado. Eles foram misturados em água, depois de serem triturados juntos. A menos que o trigo seja batido, e depois umedecido com água, dificilmente poderia assumir a nova identidade que chamamos de pão. Da mesma forma, você tinha que ser moído e batido pela provação de jejum e o mistério do exorcismo na preparação para o batismo da água. Dessa forma vocês foram regados, a fim de assumir a nova identidade do pão, depois que a água do batismo umedeceu você na massa. Mas a poção da massa não se transforma em pães até que seja cozido em fogo. E o que o fogo representa para você? É a [pós-batismal] unção com óleo. Óleo que alimenta o fogo, que é o mistério do Espírito Santo. . . O Espírito Santo vem a você, fogo depois da água, e você está cozido no pão que é o corpo de Cristo. É assim que a sua unidade é simbolizada. (Sermão 227)

Essa visão agostiniana da Eucaristia é o verdadeiro significado que não morreu com ele, embora a igreja fez  longos esforços para descartá-lo. Em 1944, o jesuíta francês Henri de Lubac publicou um livro, Corpus Mysticum, que traçou uma linha de teólogos no primeiro milênio cristão que se baseou em Agostinho para fornecer uma teoria da Eucaristia oposta à transubstanciação. (Ibid., p. 55-56)

Wills continua (p. 57) explicando que o Vaticano se opôs ao livro de Lubac e o puniu, juntamente com outros "líderes dos pensadores liberais" como: Jean Daniélou, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu, Karl Rahner, Teilhard de Chardin, e John Courtney Murray. No entanto, depois do Vaticano II, esses homens foram restaurados a tal ponto que em 1981, João Paulo II fez de Lubac um cardeal. Da mesma forma, Jean Daniélou e Yves Congar se tornaram cardeais após a reintegração. Em nosso artigo, trouxemos uma citação do Schaffer afirmando que muitos teólogos medievais citaram Agostinho como uma testemunha contra a transubstanciação. Ninguém menos do que o próprio discípulo do bispo de Hipona seria um deles.

Necessidade do batismo para salvação

Agostinho de fato defendia essa ideia como demonstrou o católico. Em conexão a isso, também defendia o batismo o infantil (o que não o coloca necessariamente em desacordo com muitas das igrejas reformadas). Porém, a doutrina de Agostinho a esse respeito era diferente da atual doutrina católica romana. Peter Stravinskas, um padre conservador e apologista católico, escreveu para uma revista católica:

Apesar da tremenda influência de Agostinho, várias de suas opiniões nunca ganharam aceitação na Igreja. Entre elas, podemos destacar as seguintes teorias: que Deus condenaria crianças não batizadas ao inferno, simplesmente por causa da herança do pecado original; que Deus justamente condena adultos que nunca tiveram a oportunidade de serem apresentados ao Evangelho, mais uma vez, devido unicamente ao pecado original contraído por eles; que algumas pessoas sofreriam condenação eterna por nenhuma outra razão do que a falta de interesse de Deus em salvá-las. Ao refletirmos sobre essas posições agostinianas, devemos lembrar do fato de que só porque alguém é um santo ou mesmo um doutor da Igreja não torna todo seu corpo de ensinar aceitável, somente o Magistério da Igreja pode decidir o que é ou não é conforme sua compreensão da verdade de Cristo. (Envoy, Setembro/Outubro de 1998)

Agostinho ensinou que o batismo é necessário para a salvação, mesmo de crianças (Sobre a alma e sua origem, 2:17). Em contraste, o catolicismo encoraja as pessoas a "confiá-las [as crianças não batizadas] à misericórdia de Deus, como ela faz em seus ritos funerários para eles" e "esperar que haja um caminho de salvação para as crianças que morreram sem batismo" (Catecismo da Igreja Católica, 1261). O apologista católico foi um pouco genérico na questão. A Igreja romana atualmente ensina que pessoas podem ser salvas sem o batismo, desde que elas desejassem explicitamente ou implicitamente o batismo – o chamado “batismo de desejo”, algo que Agostinho rejeitaria.

Cumpre mencionar que Agostinho está entre os advogados da regeneração batismal. Porém, essa doutrina foi contrariada por vários pais da igreja, em sua maioria mais antigos do que Agostinho. Tratamos da evidência pré-nicena aqui.

Confissão Auricular

O apologista católico traz o seguinte testemunho de Agostinho a respeito da confissão e penitência:

Quando você for batizado, mantenha uma vida boa nos mandamentos de Deus para que você possa preservar o seu batismo até o fim. Que eu não digo que você vai viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais que esta vida nunca está sem. O Batismo foi instituído para todos os pecados. Para pecados leves, sem os quais não podemos viver, a oração foi instituída... Mas não cometa esses pecados por conta de que você teria que ser separado do corpo de Cristo. Pereça o pensamento! para aqueles que você vê fazendo penitência cometeram crimes, seja adultério ou algumas outras enormidades. é por isso que eles estão fazendo penitência. Se seus pecados eram leves, a oração diária bastaria para apagá-los... Na Igreja, portanto, existem três maneiras em que os pecados são perdoados: nos batismos, na oração, e na maior humildade de penitência. (Sermão aos Catecúmenos sobre o Credo 7:15; 8:16)

Tratamos do desenvolvimento histórico da confissão e penitência aqui. O problema ignorado pelo católico é que Agostinho não ensinou a doutrina da confissão auricular defendida pela igreja romana. Pelo contrário, a contrariou explicitamente. Para ele, a confissão e a penitência era um processo de natureza pública e não privada (por isso não poderia ser considerada confissão auricular), e seria aplicável apenas aos pecados considerados grave e acessível apenas uma vez na vida. A igreja romana aplica a confissão e penitência mesmo para os pecados leves ou veniais e permite que pessoas sejam perdoadas através desse sacramento várias vezes ao longo da vida, mesmo em casos de pecados graves. Vejamos a citação acima em contexto:

Quando foste batizado, mantenha uma vida correta nos mandamentos de Deus para que você possa preservar o seu batismo até o fim. Eu não digo que você irá viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais, que nesta vida nunca se está sem. O Batismo foi instituído para todos os pecados. Para pecados leves, sem os quais não podemos viver, a oração foi instituída. Que direito tem a oração? "Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores." Uma única vez todos fomos lavados no batismo, mas todos os dias temos de nos limpar por meio da oração. Somente não cometa estas coisas para as quais é necessário ser separado do corpo de Cristo: que estejam longe de você! Àqueles a quem tendes visto fazendo penitência, foi porque cometeram atos abomináveis, como adultério ou alguns crimes graves: por isso, eles fazem penitência. Porque, se os seus pecados fossem leves, apagar estas manchas pela oração diária seria suficiente. Os pecados são perdoados de três formas na Igreja: pelo batismo, pela oração e pela maior submissão da penitência. (Sobre o Credo 15, 16).

Mas aqueles que pensam que todos os outros pecados são facilmente expiados por esmolas, já não tem dúvida de que estes três são mortais, e tal como, se exige que sejam punidos por excomunhões, até que eles tenham sido curados pela grande submissão da penitência. São estes pecados: a falta de castidade, a idolatria e o assassinato. (Sobre Fé e Obras 34)

O vício, entretanto, por vezes, faz tais usurpações entre os homens que, mesmo depois de terem feito penitência e serem readmitidos ao sacramento do altar, eles cometem os mesmos ou mais graves pecados, mas Deus faz nascer seu sol mesmo sobre tais homens e dá seus dons de vida e saúde como ricamente como Ele fazia antes de suas falhas. E, embora a mesma oportunidade de penitência não lhes é novamente concedida na Igreja, Deus não se esquece de exercer sua paciência para com eles. (The Fathers of the Church (Washington D.C.: Catholic University, 1953), Saint Augustine, Letters, Volume III, Letter 153, p. 284-285)

Vejam quão longe Agostinho está do catolicismo romano. Os pecados considerados graves eram “a falta de castidade, a idolatria e o assassinato”. Faltar por preguiça à missa aos domingos não estava entre eles – o que é considerado pela igreja romana pecado mortal. O recurso da penitência estava disponível apenas uma vez, enquanto um católico romano pode recorrer tantas vezes quanto quiser ao longo da vida. Além disso, ele defende que mesmo não podendo recorrer à penitência, o perdão de Deus ainda é possível. Já a igreja romana ensina a condenação ao inferno para aqueles que cometeram pecado mortal e não fez uso do sacramento.

O erudito patrístico J.N.D. Kelly, a quem o católico muito citou de forma distorcida, observa que “Agostinho também estava entre aqueles que acreditavam que poderia haver apenas uma penitência na vida para alguns pecados” (Kelly, Op. Cit, p. 438). Kelly nos dá uma visão de como era o processo:

Com o alvorecer do terceiro século, as linhas gerais de uma disciplina penitencial reconhecida estavam começando a tomar forma. Apesar dos argumentos engenhosos de certos estudiosos, ainda não há sinais de um sacramento da penitência privada (ou seja, a confissão a um padre, seguido pela absolvição e a imposição de uma penitência), tais como a cristandade católica conhece hoje. O sistema que parece ter existido na Igreja, neste momento, e durante séculos posteriores, era inteiramente público, envolvendo confissão, um período de penitência e exclusão da comunhão, a absolvição formal e a restauração - todo esse processo era chamado de exomologesis ... De fato, para os pecados menores, que mesmo os bons cristãos cometem diariamente e dificilmente podem evitar, nenhuma censura eclesiástica parece ter sido considerada necessária; esperava-se que os indivíduos lidassem com eles pela oração, atos de bondade e perdão mútuo. Penitência pública era para pecados graves; era, tanto quanto sabemos universal, sendo um caso extremamente solene, capaz de ser submetido somente uma vez na vida. (Ibid., pp. 216-217).

Purgatório

Agostinho é largamente considerado o pai do Purgatório. Os católicos romanos o citam muitas vezes referindo-se a algo semelhante à moderna doutrina católica. Mas o que não explicam é que Agostinho reconheceu que estava especulando. Em outras palavras, não estava transmitindo alguma tradição proferida de geração em geração em sucessão ininterrupta desde os apóstolos. Ao contrário, ele estava especulando sobre o que pode acontecer na vida após a morte. O famoso medievalista Jacques Le Goff explica:

[Joseph Ntedika] pôs o dedo num ponto chave, mostrando não apenas que a posição de Agostinho evoluiu ao longo dos anos, o que era de se esperar, mas que passou por uma mudança acentuada num ponto específico no tempo, que Ntedika situa no ano 413 (...) Na Carta a Dardinus (417), ele [Agostinho] esboçou uma geografia do além, onde não há lugar para o Purgatório. (The Birth of Purgatory [Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1986], pp 62, 70).

O historiador protestante George Salmon explica o significado desses fatos:

Da mesma forma, quando Agostinho ouve a ideia sugerida de que, como os pecados dos homens bons lhes causam sofrimento neste mundo, então também podem causar até certo ponto no próximo, diz que não vai arriscar dizer que nada do tipo não possa ocorrer, porque talvez possa. Bem, se a ideia de purgatório não tinha conseguido ir além de um "talvez" no início do século V, podemos dizer com segurança que não foi pela tradição que a Igreja mais tarde chegou à certeza sobre o assunto; pois, se a Igreja tivesse alguma tradição no tempo de Agostinho, esse grande Padre não podia ter deixado de conhecê-la. (The Infallibility of the Church [London, England: John Murray, 1914], pp. 133-134).

Aqui está um exemplo de Agostinho expressando a sua incerteza:

E não é impossível que algo do mesmo tipo possa ocorrer mesmo depois desta vida. É uma matéria que pode ser investigada, e apurada ou deixada na dúvida, se alguns crentes devem passar por uma espécie de fogo purificador, e na proporção em que amaram com mais ou menos devoção os bens que perecem, ser mais ou menos rapidamente livres dele. (O Enchiridion, 69).

Longe de ser uma boa testemunha da doutrina romana, Agostinho demonstra que o purgatório era uma inovação fruto de especulação, não havia em seu tempo nenhuma sólida tradição que suportasse essa doutrina, muito menos uma tradição de origem apostólica. Mais tarde, já no final do século sexto, o Papa Gregório Magno dará grande impulso à doutrina do purgatório. Aquilo que Agostinho especulou, Gregório tomou como certo.

Sucessão Apostólica

Trataremos esse ponto de forma resumida, pois já abordamos em artigos anteriores. O conceito de sucessão de Agostinho é radicalmente distinto do católico romano. Ele não acreditava em papado – o elemento básico do ensino romanista a respeito. As premissas do papado como o primado jurídico de Pedro, a transmissão da autoridade do apóstolo de forma exclusiva e integral ao bispo de Roma, a infalibilidade papal e a chefia de toda a igreja pelo bispo romano não eram cridos pelo africano. Além do mais, ele não acreditava que o critério final para definir a verdadeira igreja era a sucessão apostólica, mas a conformação da igreja à autoridade suprema das Escrituras, como demonstramos na parte 3 de nossa série.

O apologista católico traz a lista de Agostinho dos bispos de Roma. Essa não era uma lista de papas, mas apenas uma lista de bispos como já argumentado. Outro problema é que a lista de Agostinho é diferente da lista de papas. Ele coloca a seguinte sequência: Pedro – Lino – Clemente – Anacleto. Na lista romana, Anacleto vem antes de Clemente e não depois. Agostinho também coloca Aniceto depois de Pio, enquanto a lista oficial coloca antes:

O sucessor de Pedro foi Lino, e seus sucessores em continuidade ininterrupta foram estes: Clemente, Anacleto, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telesforo, Igino, Aniceto, Pio, Sotero, Eleutério, Victor.... (Carta 53:2)

Foi abordado na parte 1 a mudança da eclesiologia de Agostinho. Ele passou a compreender a igreja como a reunião dos eleitos que poderiam ser pessoas fora da igreja institucional num dado momento. O bispo africano também adotou o conceito de igreja invisível:

A segunda regra é sobre a dupla divisão do corpo do Senhor, mas esse na verdade não é um termo adequado, por que nenhuma parte do corpo de Cristo deixará de estar com Ele na eternidade. Devemos dizer que a regra é sobre o verdadeiro e o corpo misto do Senhor, ou o verdadeiro e o falso, ou algum outro nome, porque para não se falando da eternidade, pode ser dito que os hipócritas não estão Nele, embora eles pareçam estar na Sua Igreja. (A doutrina cristã 3:32)

Eleição Incondicional e Perseverança dos Santos

Agostinho defendeu a eleição incondicional:

Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). (...) Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo? (Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Consequentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou aos que predestinou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim. Portanto, Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram. (GRAÇA II, 1999, p.194, 195).

Sobre a perseverança dos santos:

É Ele, portanto, que os faz perseverar no bem, que os torna bons. Mas os que caem e perecem nunca foram do número dos predestinados. (A graça e o livre arbítrio, cap. 36)

Essa é apenas uma pequena amostra de muitas outras que mostram como a soteriologia agostiniana foi negada por Roma. Apesar de a igreja romana ter seguido Agostinho ao condenar o pelagianismo, nunca aderiu completamente às doutrinas agostinianas da salvação. Norman Geisler, um oponente da doutrina da eleição incondicional, escreve:

Nos seus escritos antipelagianos anteriores, por sua vez, Agostinho nunca adotara a posição radical sobre o livre-arbítrio e a expiação limitada que ele acabou manifestando em seus escritos posteriores, particularmente depois de 417. O endurecimento das artérias teológicas de Agostinho é manifesto em diversas áreas. Em sua visão anterior, igual à que foi sustentada por todos os pais ao longo de toda a história da Igreja até Lutero, ele abraçou a expiação ilimitada; posteriormente, afirmou a expiação limitada. No período anterior, ele sustentava que Deus nunca coage um ato livre; isso foi descartado em favor da graça irresistível sobre o que não quer, nos últimos anos de sua vida. Isso, naturalmente, resultou no endurecimento de sua visão da predestinação, em que Deus foi ativo tanto no destino do eleito quanto no do não-eleito, e na negação de que há condições para se receber o dom da salvação incondicional de Deus. De fato, para o Agostinho mais velho, em contraste com o Agostinho mais jovem, a raça humana está tão depravada que não tem livre-escolha em relação às coisas espirituais. (GEISLER, 2005, p. 190)

Roger Olson, um conhecido oponente dessas doutrinas, também escreve:

Toda a soteriologia de Agostinho decorre de duas crenças principais: a absoluta e total depravação dos seres humanos depois da queda e o poder e a soberania absoluta e total de Deus. (OLSON, 2001, p. 275)

Paul Tillich escreve sobre o testemunho de Agostinho:

Os predestinados não podem recair. Recebem o dom da perseverança que lhes impede de perder a graça uma vez recebida. Nada disso depende de mérito. (TILLICH, 2007, p. 141).

Salvação fora da Igreja

O apologista católico traz uma citação em que Agostinho afirma a necessidade da participação na Eucaristia para salvação:

[De acordo com] Tradição Apostólica... as Igrejas de Cristo mantém inerentemente que sem o batismo e a participação na mesa do Senhor é impossível para qualquer homem alcançar tanto o reino de Deus quanto a salvação e a vida eterna. Este é o testemunho da Escritura também. (Sobre o mérito e perdão dos pecados e o batismo de crianças 1:24:34)

O interessante desse item é que ao querer refutar o protestantismo, o apologista acaba demonstrando que Agostinho contrariava o romanismo. A igreja romana ensina atualmente que até mesmo homens não cristãos podem ser salvos. Em oposição à tradição histórica romanista, em que estar submetido ao papa não é mais uma necessidade para que qualquer homem seja salvo. Então mostrar que o bispo africano defendia a participação na Eucaristia como necessária para a salvação mostra apenas o que defendemos – Agostinho não era um católico romano. O catecismo afirma:

Significa que toda a salvação vem de Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é o seu corpo. Portanto não poderiam ser salvos os que, conhecendo a Igreja como fundada por Cristo e necessária à salvação, nela não entrassem e nela não perseverassem. Ao mesmo tempo, graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita. (846-848)

Já o Concílio de Florença disse:

A Igreja crê firmemente, professa e prega que todos aqueles que estão fora da Igreja Católica, não só pagãos, mas também judeus ou hereges e cismáticos, não podem compartilhar a vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos, a menos que eles estejam ligados à Igreja Católica antes do final de suas vidas, pois a unidade do corpo eclesiástico é de tal importância que somente aqueles que recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo jejuns, obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica. (Concílio de Florença, 1431-1445)

Esse é só um dos inúmeros exemplos de como o magistério romano se contradiz ao longo da história. O Concílio de Florença, supostamente infalível, foi claro – ninguém pode ser salvo se não estiver ligado a hierarquia romana e participando dos sacramentos. O pensamento agostiniano é claro:

Nenhum homem pode encontrar a salvação exceto na Igreja Católica. Fora da Igreja Católica se pode ter tudo, exceto a salvação. Uma pessoa pode ter honra, pode ter os sacramentos, pode cantar aleluia, pode responder amém, pode ter fé no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e pregá-lo também, mas nunca pode encontrar a salvação exceto na Igreja Católica. (Sermo ad Caesariensis Ecclesia plebem)

Nessa altura de nossos estudos, resta claro que a igreja católica a que se refere Agostinho não era católica romana. Os reformadores estão mais próximos desse ponto. Eles ensinavam que não havia salvação fora da igreja e rejeitariam a possibilidade de não cristãos serem salvos, pois apenas os regenerados e crentes em Cristo podem fazer parte da igreja. 

Os católicos costumam alegar que os não cristãos podem ser salvos através da igreja, mesmo não aderindo a ela. Obviamente, essa ideia não era compartilhada pelos pais da igreja ou mesmo pelos papas mais antigos. Além do mais é uma contradição. Alguém que nunca manifestou a fé em Cristo não pode fazer parte de sua igreja.

Conclusão da Série

Concluo aqui está série de sete artigos sobre Agostinho e o catolicismo romano. Espero que esse estudo seja útil aos leitores e tenha demonstrado de forma suficiente o quão longe o bispo de Hipona estava da atual igreja romana. O maior teólogo da igreja latina não era um católico romano, isso nos dá uma boa evidência de como as peculiares doutrinas do romanismo não encontram fundamento histórico. 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Os Pais da Igreja e a Eucaristia (Papa Gelásio - Resposta ao site apologistas católicos) - Parte 5

Gelásio I (410 – 492)

Gelásio foi bispo de Roma no final século quinto. É uma testemunha impressionante, pois além de sua clareza ao tratar o tema, era teoricamente um papa, portanto, com o carisma da infalibilidade ex cathedra. Se Gelásio rejeitou a transubstanciação, temos um bom argumento contra o dogma da infalibilidade papal.

Certamente o sacramento, que tomamos, do corpo e sangue de Cristo é uma coisa divina, pela qual somos feitos participantes da natureza divina; e contudo a substância ou natureza do pão e do vinho não deixa de existir. E certamente a imagem e semelhança do corpo e sangue de Cristo celebram-se na ação dos mistérios. (Sobre as duas naturezas de Cristo)

A citação é claríssima e embaraçosa para os apologistas romanistas. Não poderia haver uma negação mais óbvia da transubstanciação. Mas como não poderia ser diferente, os católicos precisam fazer malabarismos para negarem o óbvio. O católico não pode olhar para esse papa e reconhecer o óbvio, pois um simples erro detectado faz todo o castelo de areia da infalibilidade papal ruir. No protestantismo, não haveria problema, pode-se reconhecer que um determinado teólogo errou sem comprometer as bases de nossa teologia, pois acreditamos que apenas as Escrituras são infalíveis.

Basicamente três sites católicos tentaram contornar esse enorme problema:

O Veritatis respondendo a pergunta do apologista católico Fernando Nascimento que depois praticamente replicou a resposta no caiafarsa.

Depois o site apologistas católicos publicou uma resposta que basicamente é uma colagem de sites em inglês. Vamos então responder aos argumentos contidos em sua maioria no site apologistas católicos.

Entre as razões que “aniquilam a argumentação dos hereges”, Afirma-se: “Esta é uma obra Espúria que não pertence ao papa Gelásio I.”

Sinceramente, gostaria de crer que esse argumento baseia-se apenas em ignorância. O “especialista” citado para afirmar que a obra é espúria, chamado W. R Carson, nunca escreveu sequer um livro sobre o assunto, e não é reconhecidamente especialista em nada, apenas um apologista católico que escreveu um artigo e não um livro sobre a suposta antiguidade da transubstanciação (Link do artigo).

Deve-se acrescentar que o próprio autor sequer afirma que esta obra de Gelásio - Tratado sobre as duas naturezas contra Eutico e Nestório - é espúria, apenas limita-se a dizer que “deve-se acrescentar que as passagens atribuídas a Teodoreto e São Gelásio ocorrem em obras que são consideradas espúrias por muitos críticos competentes”. O interessante é que se abrir o link acima que contém o referido artigo, verá que não é citado NENHUM desses críticos, nem nas notas de rodapé há alguma citação. Seria interessante que fosse apontado um crítico competente reconhecido de fato como especialista afirmando que essa obra de Gelásio é espúria, pois em minha pesquisa não encontrei nenhum.

E contra a opinião do Sr. Rafael Rodrigues estão seus próprios colegas apologetas. O site Veritatis não acusou essa obra de ser espúria ao responder a questão. Pesquisando em fontes em inglês, verifiquei que eles não alegaram que a obra fosse uma falsificação como aquiaquiaqui e aqui:

Esses são apenas alguns exemplos. Mas, vejamos o que a enciclopédia católica diz:

Comparativamente pouco da sua obra literária chegou até nós, embora dele se diz ter sido o escritor mais prolífico de todos os pontífices dos primeiros cinco séculos. Existem quarenta e duas cartas e quarenta e nove outros fragmentos, além de seis tratados, dos quais três são concernentes ao cisma acaciano, a heresia dos pelagianos, outro aos erros de Nestório e Êutico, enquanto o sexto é dirigido contra o senador Andromachus e os defensores de Lupercalia. (Fonte)

Levemos em conta os fatos:
  •       W. R Carson é um apologista romanista e não é reconhecido como especialista no assunto;
  •     W. R Carson que escreveu meramente um artigo sobre o tema diz que alguns críticos competentes consideram a obra espúria, mas não cita o nome de nenhum deles;
  •     Outros apologistas católicos ao analisarem a mesma questão não lançaram mão do argumento da falsificação;
  •       A Enciclopédia Católica aponta a referida obra como autêntica.
Qual seria a conclusão lógica das premissas acima? Deixemos Rafael Rodrigues responder: “É certo que este texto não pertence ao Papa Gelásio I, portanto só isto já refuta e esclarece qualquer alegação ou dúvida contra a transubstanciação que se possa por na conta de Gelásio.”

Parece que a única pessoa no mundo que chegou a esta conclusão foi ele. Portanto esse argumento não procede. 

Vejamos então o que o reconhecido especialista católico jesuíta Edward J. Kilmartin disse:

Segundo Gelásio, os sacramentos da Eucaristia comunicam a graça do mistério principal. A sua principal preocupação, no entanto, é realçar, como fez Teodoreto, o fato de que, após a consagração os elementos permanecem o que eram antes da consagração (...) O ensino de Gelásio sobre o assunto dos sacramentos da Eucaristia tem sido frequentemente explicado como sendo de acordo com o ensinamento do Concílio de Trento. Mas, como uma questão de fato, Trento o rejeitou-o por duas razões. No cânon 1 da décima terceira sessão (1551), o concílio ensinou que a Eucaristia não significa apenas, mas contém "o totum Christum”. A explicação de Gelásio não a inclui. De fato parece excluir explicitamente a doutrina da presença real somática do "Cristo total". Em segundo lugar, o cânon 2 enfatiza a noção patrística de conversão. Para evitar a noção da união da substância do pão e do vinho com a substância da humanidade de Cristo. Este conceito já foi encontrado na lista de proposições atribuídas ao reformadores formuladas em 1547: "Não há na Eucaristia realmente o corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, mas com a substância do pão e do vinho, de modo que não há a transubstanciação, mas uma união hipostática da humanidade e da substância do pão e do vinho ". O Canon 2 foi formulado precisamente para evitar a ideia de que existe um paralelo rígido entre a união hipostática única do Logos e da humanidade e o sacramento da Eucaristia. Mas precisamente este ponto de vista é fundamental para a teologia Eucarística do Papa Gelásio. (Edward J. Kilmartin, S.J., “The Eucharistic Theology of Pope Gelasius I: A Nontridentine View” in Studia Patristica, Vol. XXIX (Leuven: Peeters, 1997), p. 288.)

Vamos a segunda razão “que aniquila a argumentação dos hereges”. Rafael Rodrigues e o Veritatis trazem a continuação da citação de Gelásio que supostamente mostraria que ele cria na transubstanciação. Resolvi traduzi-la da mesma fonte citada pelo apologista católico:

A sagrada escritura dá testemunho de que este mistério [da unidade pessoal de Cristo, Deus e homem começou assim desde o princípio da concepção bem aventurada, dizendo: a sabedoria edificou uma casa para si (Prov. 9:1) apoiada [a casa] na solidez do espírito septiforme, a qual nos servisse o alimento da encarnação de Cristo, pela qual nos fazemos participantes da natureza divina [2 Pedro 1:4]. Certamente os sacramentos que recebemos do corpo e sangue de Cristo são coisa divina, por meio da qual também mediante eles nos fazemos participantes da natureza divina; no entanto, a substância ou natureza do pão e vinho não deixam de existir. E certamente, a imagem e a semelhança do corpo e sangue de Cristo são celebradas na ação destes mistérios. Bastante evidentemente, pois, nos ensinam que devemos sentir acerca do mesmo Cristo Senhor o que confessamos, celebramos e tomamos em sua imagem, para que como o pão e o vinho, aperfeiçoados pelo Espírito Santo, passam a esta, que dizer, a substância divina, mas permanecendo na propriedade de sua natureza, assim demonstram aquele mesmo mistério principal, cuja eficiência e virtude com verdade nos representam, [a saber], que Cristo permanece uno, pois permanece íntegro e verdadeiro, permanecendo com as propriedades daqueles elementos de que constam. (Jesús Solano – Textos Eucarísticos Primitivos, Tomo II, Página 557-558)

Não há nesse texto nada que implique transubstanciação. Gelásio diz que com a ação do Espírito Santo, os elementos passam a ser uma substância divina, mas logo depois afirma “permanecendo na propriedade de sua natureza”. Se os elementos mantem a sua natureza, como eles poderiam ter transubstanciado? Esse papa não diz que os elementos se transformam no corpo físico de Cristo, que eles abandonam a sua natureza e passam a ter a natureza humana de Cristo. Pelo contrário, ele afirma repetidas vezes que os elementos mantem sua natureza e substância, e ainda chama o sacramento de imagem e semelhança, termos incompatíveis para alguém que sustentasse a doutrina romana.

Ao analisar os textos eucarísticos primitivos, os romanistas cometem a falácia da falsa dicotomia, ao presumir que se o Pai da Igreja não sustentava a transubstanciação, a única opção restante seria o mero simbolismo. Sabemos que isso é falso, a posição luterana da consubstanciação ou reformada da presença espiritual estariam perfeitamente de acordo com a afirmação: “passam a esta, que dizer, a substância divina, mas permanecendo na propriedade de sua natureza”. Independente da posição sustentada por este papa (seja consubstanciação ou presença espiritual), como afirmou Kilmartin, Gelásio contrariou o ensino católico romano.

A terceira e última razão apresentada pelo sr. Rafael Rodrigues tenta lançar sobre o textos várias obscuridades, expostas e refutadas abaixo:

O Tratado de Gelásio não era sobre a Eucaristia e sim sobre a encarnação de Cristo.

É uma falácia do não segue. Quem ao defender a sã doutrina contra heresias cristológicas iria cometer um erro doutrinário tão grave. Se Gelásio pensasse a eucaristia como pensam os romanistas, ele teria todo o cuidado do mundo ao expor a doutrina correta, e jamais cometeria o descalabro de dizer que a substância ou natureza dos elementos não deixa de existir. Seria equivalente ao protestante dizer que a justificação é somente pela fé, mas também pelas obras. Uma é a negação da outra. Alguém conceberia um teólogo protestante cometendo um erro crasso desse?

Gelásio não tinha ainda uma definição correta dos termos, pode ser que ele se referira aos acidentes dos elementos ao mencionar a natureza ou substância.

Esse sem dúvidas é o pior argumento de todos. Justamente por Gelásio utilizar a Eucaristia para explicar a Encarnação de Cristo contra Eutico e Nestório, podemos ter certeza que tinha uma exata compreensão dos termos natureza e substância. Esses termos foram usados em consonância à compreensão que a Igreja já tinha a respeito da natureza de Cristo, pois tanto o Concílio de Nicéia como Calcedônia utilizaram os termos “substância” e “natureza” num sentido bem claro e diverso de “acidente” ou “aparência”. Em hipótese alguma, ele iria utilizar natureza ou substância para se referir aos acidentes dos elementos, pois esses termos foram utilizados também por ele para se referir à essência de Cristo. Se Gelásio não estivesse se referindo a essência dos elementos eucarísticos, a sua analogia entre a encarnação e a ceia se tornaria bizarra.

Gelásio usou a eucaristia como analogia para explicar que a humanidade estava ao lado da divindade de Cristo desde a concepção. Se ele usasse natureza como significando acidentes ou propriedades aparentes, a conclusão seria que Cristo era apenas aparentemente humano, mas não em essência, ou seja, cairia em docetismo, uma heresia cristológica muito combatida pela Igreja nos primeiros séculos.

O apologista católico usa mais uma evidência anedótica ao afirmar “Alguns estudiosos interpretam a passagem acima para se referir aos acidentes do pão e do vinho”. Porém, não cita nenhum estudioso.

Gelásio errou na primeira parte ao negar a transubstanciação e corrigiu na segunda parte ao afirma-la

Já refutado. Em nenhum momento ele afirma a transubstanciação. Sem contar que teríamos de concluir que esse autor cristão sofria de sérios problemas psíquicos, para fazer duas afirmações mutuamente excludentes no mesmo trecho. Caso desejasse fazer uma correção, ele teria descartado a primeira parte ou então esclarecido que se tratava de uma correção. Seria muito estranho também um papa “infalível” ser tão descuidado com uma doutrina tão importante.

Não podemos basear sua compreensão apenas nesta passagem, temos que olhar outros autores da época.

Primeiro, ninguém está tentando saber a sua exata compreensão, mas apenas demonstrando que um papa não sustentava a doutrina da transubstanciação. Essa citação a luz do contexto de suas obras é mais do que suficiente. Seria válido analisar outros autores da época, algo que fizemos neste artigo com Agostinho que também era do século V. A conclusão é inequívoca, vários autores antes, durante e depois de Gelásio vão negaram a transubstanciação.

Assim como alguns Padres não possuíam definições exatas a respeito da trindade, Gelásio não tinha o vocabulário teológico adequado para a eucaristia.

É justamente o contrário, como os termos natureza e substância já estavam desenvolvidos no vocabulário teológico da Igreja, e Gelásio os utilizou no contexto da encarnação, podemos concluir que sua compreensão era adequada e se referia a essência dos elementos eucarísticos, não aos seus acidentes.

O Site Veritatis traz alguns argumentos a mais, igualmente risíveis e falaciosos. Afirmam que Gelásio chamou a eucaristia de “Sacramento do corpo e sangue do Senhor”. Um reformado ou luterano utilizaria os mesmos termos, nem por isso aceitam a interpretação romanista. Ainda, por ignorância, alega que os protestantes consideram a eucaristia um “mero símbolo”. Como visto a posição simbólica não é a única existente no meio protestante. Também diz: “e não encontrei nenhum site estrangeiro afirmando que este papa negara a transubstanciação” para dar a impressão de que é apenas uma teoria conspiratória da internet brasileira. Ele deve ter pesquisado muito pouco, pouco mesmo, há diversos artigos e até livros bem antigos em inglês que apontam essa questão aqui, aquiaqui e livro do séc. XVII.

A conclusão é inescapável. Temos o exemplo de um papa negando uma das principais doutrinas do romanismo. Além do importante testemunho contra a transubstanciação, é uma prova inequívoca da falibilidade papal.