Já
tratamos do testemunho dos pais da igreja até o séc. III sobre o papado aqui, e
também de Agostinho e
Jerônimo que são autores dos séculos IV e V muito citados pelos católicos. Dessa vez,
falaremos sobre outros pais da igreja desse período em ordem cronológica.
Os
católicos geralmente apelam a Eusébio para provar a lista dos bispos de Roma. O
que eles não percebem é que isso não é suficiente para provar o papado. Mesmo
que Pedro tivesse sido bispo de Roma e deixado ai uma sucessão de bispos,
algumas premissas papistas precisariam ainda ser provadas. Seria necessário provar
que o pescador era um papa. E mesmo sendo um papa, restaria demonstrar que
todas as suas prerrogativas papais foram transferidas exclusivamente aos bispos
de Roma. Eusébio afirma em sua história eclesiástica que Inácio, bispo de
Antioquia, era sucessor de Pedro, mas isso não é suficiente para afirmar o
papado de Inácio, porque então com os bispos de Roma deveria ser diferente?
Um
dos maiores problemas para quem deseja apresentar Eusébio como testemunha do
papado é que na sua história eclesiástica, o bispo de Roma nunca é mencionado
como o chefe de toda a igreja. Ele escreveu sobre o propósito de sua obra:
É meu propósito consignar as
sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador
até nós; o número e a magnitude dos feitos registrados pela história
eclesiástica e o número dos que nela se
sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim como
o número daqueles que em cada geração, de viva voz ou por escrito, foram os
embaixadores da palavra de Deus. (História Eclesiástica 1:1)
A
questão da autoridade era objeto dessa obra. Portanto, o fato de não haver
nenhuma menção ao ofício papal é revelador. Como ele iria ignorar doutrina tão
importante. Perceba que Eusébio fala sobre as “igrejas mais ilustres”, grupo da
qual Roma com certeza fazia parte, mas nunca coloca Roma como igreja chefe. Ainda
mais reveladora é sua exegese de Mateus 16:18:
Contudo, não cometerás
qualquer erro do âmbito da verdade se supores que “o mundo” é na realidade a
Igreja de Deus, e que o seu “fundamento” é em primeiro lugar aquela inefável
sólida pedra sobre a qual está fundada, como diz a Escritura: “Sobre esta pedra edificarei a minha
Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”; e em outro lado:
“E a pedra era Cristo”. Pois, como o Apóstolo indica com estas palavras:
“Ninguém pode pôr outro fundamento senão o que está posto, o qual é Cristo Jesus”. Então, também, depois do próprio Salvador, podes retamente julgar que os fundamentos
da Igreja são as palavras dos profetas e dos apóstolos, de acordo com a
afirmação do Apóstolo: “Edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos
profetas, sendo o próprio Cristo Jesus a pedra angular”. (Comentário
sobre os Salmos - PG 23:173, 176)
Eusébio
usa as passagens de 1 Coríntios 3:11 e 10:4 como pano de fundo para interpretar
Mateus 16:18 como sendo Cristo a rocha referida. Só que ele também diz “depois
do próprio Salvador, podes retamente julgar que os fundamentos da Igreja são as
palavras dos profetas e dos apóstolos”. Após o fundamento que era Cristo,
estava a mensagem dos profetas e apóstolos. Perceba que não eram as pessoas dos
apóstolos e profetas, mas a sua mensagem que era o fundamento da igreja. Essa
mensagem era um fundamento porque tinha origem na única pessoa que é a rocha da
igreja – Cristo. Era a mensagem de todos
os apóstolos e não apenas de Pedro. Eusébio não defendia uma exegese papista
desse texto. Católicos então citam a passagem abaixo:
E Pedro, sobre quem se edifica a Igreja de Cristo,
contra a qual não prevalecerão as portas do Hades, deixou só uma carta por
todos reconhecida. Talvez também uma segunda, pois é posta em dúvida. (HE
6:25)
Será
que Eusébio se contradisse ou mudou de ideia? Provavelmente não. Ele
considerava os apóstolos o fundamento da igreja por causa da mensagem que
pregaram. Nesse aspecto, a igreja estaria edificada sobre Pedro por causa de
sua mensagem, assim como sobre Paulo pelo mesmo motivo. Mas a única pessoa que
era a rocha da igreja era Cristo. O teólogo católico romano Michael Winter
escreve:
Na História Eclesiástica ele
diz sem qualquer explicação ou qualificação: "Pedro sobre a qual a igreja
de Cristo é edificada, contra a qual as portas do inferno não
prevalecerão..." Em outro lugar, ele fala de Cristo como o fundamento da
igreja de tal forma a excluir St. Pedro. Por exemplo, em seu comentário sobre
os Salmos, a referência ao fundamento da terra no Salmo 17 o leva a considerá-lo
o fundamento da igreja. Usando Mateus 16, ele declara que esse fundamento é uma
rocha, que é então identificada como Cristo na autoridade do 1Cor. 10:4. Essa
interpretação do texto de Mateus, que parece tão estranha ao leitor moderno
indica um problema que confundiu um bom número dos primeiros pais. Sua teologia da igreja era, graças a Paulo,
tão completamente cristocêntrica que era difícil para eles imaginar uma
fundação além de Cristo (...) A
terceira opinião que Eusébio apresentou foi uma interpretação de Mateus 16,
que via a rocha da igreja nem como Cristo nem precisamente o próprio Pedro, mas como a fé que ele manifesta em seu
reconhecimento do Cristo. Este último ponto de vista de Eusébio, em
conjunto com outra inovação, ou seja, que a rocha era Cristo, teve uma influência considerável sobre a
exegese posterior do texto em questão, tanto na igreja oriental como ocidental. (St.
Peter and the Popes (Baltimore: Helikon, 1960), p. 53)
A
interpretação de Eusébio era cristocêntrica. O fato de ele apontar Pedro ou sua
fé não contraria isso. A citação anterior deixou claro que a pessoa de Cristo
era a rocha, mas sobre ela estava a mensagem (ai incluso a fé) dos apóstolos. Uma
vez que não encontramos em Eusébio a tese que o bispo de Roma era o chefe de
toda a igreja e que a pessoa de Pedro era o fundamento da igreja, qualquer
tentativa de coloca-lo como testemunha do papado resta prejudica. Porém, ainda
existe um ponto que tem suscitado muitos debates – Eusébio teria dito que Pedro
foi o primeiro bispo de Roma? Apologistas católicos costumam citá-lo como
testemunha dos 25 anos do episcopado de Pedro em Roma. Independente disso, essa
tradição católica é largamente desacreditada pelos historiadores atualmente,
inclusive católicos romanos.
Eles têm duvidado não somente do período de 25 anos, mas também do fato em si –
Pedro não teria sido bispo dessa cidade. A evidência mais antiga a respeito foi
tratada aqui.
Raymond Brown, um dos maiores eruditos bíblicos do catolicismo no séc. XX,
sintetiza essa visão:
Obviamente, os cristãos do primeiro século não teriam
pensado em termos de jurisdição ou de muitas outras características que têm
sido associadas ao papado ao longo dos séculos. Nem os cristãos que viveram no tempo de Pedro teriam totalmente
associado Pedro com Roma, uma vez que foi, provavelmente, só nos últimos anos
de sua vida que ele veio a Roma. (Responses to 101 Questions on the Bible [Mahwah, New
Jersey: Paulist Press, 1990], p. 134)
É
muito improvável que Clemente fosse chamado de o bispo de Roma, ele seria numa moderna terminologia o secretário executivo da Igreja. No
entanto, desde que ele foi lembrado como o mais proeminente dos presbíteros de
seu tempo, seu nome aparece na lista como bispo de Roma. (Ibid.,
p. 132-133)
O que eu estou dizendo é que
essas listas de bispos foram preservadas para nós como as mais importantes
figuras na história de uma Igreja particular, mesmo antes da terminologia de
somente um bispo ser utilizada. Então, eu não estou tirando a importância de
Pedro, ou sua estadia em Roma, quando eu
apontei que é anacrônico pensar nele como um bispo local. De fato, uma vez que
a função do bispo era administrar uma pequena congregação e viver entre eles. (Ibid.,
p. 132-133)
Os
dados do Novo Testamento tornam impossível o bispado de 25 anos. Entre as
muitas evidências, podemos citar a ausência de menção a Pedro na carta aos
romanos escrita entre 54 e 56 D.C ou na segunda prisão de Paulo em Roma após o
ano 60. Por isso, até mesmo o erudito católico reconhece que Pedro deve ter
chegado a Roma somente no fim da vida. Voltemos então ao testemunho de Eusébio.
Os apologistas católicos apresentam a seguinte citação:
Pedro, de nacionalidade
galileia, o primeiro pontífice dos cristãos, tendo inicialmente fundado a
Igreja de Antioquia, se dirige a Roma,
onde, pregando o Evangelho, continua
vinte e cinco anos Bispo da mesma cidade.
Muitos
sites apresentam essa citação como sendo da História Eclesiástica, mas ela na
verdade está na tabela cronológica das crônicas de Eusébio. O problema é que
não temos acesso ao texto grego dessa crônica e dependemos de uma versão latina
traduzida por Jerônimo ou da versão armena. A versão latina traz a citação
acima e a armena afirma que o bispado de Pedro foi de apenas 20 anos. Até mesmo
a versão latina a que temos acesso é de data bem posterior à tradução de
Jerônimo e nela já foram identificadas muitas adições e interpolações. Há
também diversas informações que constam da tradução latina, mas não constam da
armena. Algumas dessas diferenças podem ser verificadas aqui com a versão armena destacada em verde. Trata-se, portanto, de uma citação no
mínimo suspeita, tendo em vista depender de uma obra retalhada, cuja
confiabilidade da versão que temos acesso é baixa.
A
Crônica foi escrita antes da História Eclesiástica. Dessa forma, se Eusébio
defendia o bispado de Pedro em Roma, tal informação deveria constar na História
Eclesiástica. Lembremos que essa obra foi escrita para mostrar a sucessão de
bispos das igrejas mais proeminentes. O problema é que Pedro não é colocado
como bispo de Roma apesar da sucessão dessa igreja ser um tema tratado na obra:
Depois do martírio de Paulo
e de Pedro, Lino foi designado como primeiro bispo de Roma. Ele é
mencionado por Paulo quando escreve de Roma a Timóteo, na despedida ao final da
carta. (HE 3:2:1)
Neste tempo os romanos eram
ainda regidos por Clemente, que também
ocupava o terceiro lugar dos que ali
foram bispos depois de Paulo e Pedro.
O primeiro foi Lino, e depois dele,
Anacleto. (HE 3:21:1)
Os bem-aventurados apóstolos [Pedro e Paulo], depois de
haverem fundado e edificado a Igreja, puseram
o ministério do episcopado em mãos de Lino. Este Lino é mencionado por
Paulo em sua carta a Timóteo. (HE 4:6:1)
A este Clemente sucede
Evaristo, e a Evaristo, Alexandre; depois é instituído Sixto, o sexto portanto
a partir dos apóstolos; e depois deste, Telésforo, que também sofreu
gloriosamente o martírio; logo Higinio; depois Pio, e depois deste, Aniceto;
havendo Sotero sucedido a Aniceto, agora é Eleutério que ocupa o cargo do
episcopado, em décimo segundo lugar a
partir dos apóstolos. (HE 4:6:4)
Eusébio
não conta Pedro como bispo de Roma. O primeiro seria Lino, o segundo Anacleto,
o terceiro Clemente e assim por diante. Além disso, ele sempre conta essa
sucessão a partir dos apóstolos Pedro e Paulo. Ambos são colocados igualmente
como organizadores da igreja romana. Se os católicos quiserem salvar o
testemunho de Eusébio, teriam que atribuir a Paulo o bispado. Dessa forma, a
igreja romana teria dois bispos simultâneos – algo que nenhum historiador
aceita, muito menos a igreja romana. É interessante contrastar a situação de
Roma com Antioquia:
Ao mesmo tempo adquiriram
notoriedade Papias, bispo da igreja de Hierápolis, e Inácio, o homem mais
célebre para muitos ainda hoje, segundo
a obter a sucessão de Pedro no episcopado de Antioquia. (HE
3:36:2)
Eusébio
não afirma que Pedro foi bispo em Antioquia, mas atribui a ele a sucessão dessa
igreja. É notório que nesse caso, ele coloca Pedro somente. Suponhamos então
que Eusébio queira dizer que Pedro foi bispo de Antioquia e também de Roma ao
afirmar que deixou ai uma lista de sucessores. Isso só reforçaria a conclusão
de que Paulo também seria bispo de Roma, o que contraria toda narrativa
católica. A hipótese mais provável é que tanto Paulo e Pedro estiveram pregando
em Roma e, segundo Eusébio, teriam deixado ai essa sucessão de bispos, sem que
tivessem sido bispos dessa igreja. Isso fica patente a seguir:
Clemente, no livro VI das
Hypotyposeis, adiciona o seguinte: "Porque dizem - depois da ascensão do
Salvador, Pedro, Tiago e João, mesmo
tendo sido os preferidos do Salvador, não tomaram para si esta honra, mas elegeram como bispo de Jerusalém Tiago
o Justo." E o mesmo autor, no livro VII da mesma obra, diz ainda sobre
ele o que segue: "O Senhor, depois de sua ascensão, fez entrega do
conhecimento a Tiago o Justo, a João e a
Pedro, e estes o transmitiram aos demais apóstolos, e os apóstolos aos
setenta, um dos quais era Barnabé”. (HE 2:1:3-4)
Pedro,
Tiago e João escolheram o bispo de Jerusalém sem terem sido bispos dessa
cidade. Isso reforça a percepção de que Eusébio não está colocando os apóstolos
como bispos ao afirmar que eles deixaram sucessões de bispos nas igrejas.
Nota-se também que os três apóstolos são colocados em pé de igualdade. Jesus
teria preferido os três e não apenas Pedro e feito a entrega do conhecimento
igualmente aos três. Eusébio traz ainda testemunhos de outros pais da igreja
que são incompatíveis com o bispado de 25 anos:
Que ambos sofreram martírio
na mesma ocasião é afirmado por Dionísio, bispo de Corinto, em sua
correspondência escrita com os romanos, nos seguintes termos: "Nisto
também vós, por meio de semelhante admoestação, fundistes as searas de Pedro e
de Paulo, a dos romanos e a dos Coríntios, porque
depois de ambos plantarem em nossa Corinto, ambos nos instruíram, e depois de
ensinarem também na Itália no mesmo lugar, os dois sofreram martírio na
mesma ocasião." Sirva também isto para maior confirmação dos fatos narrados. (HE
2:25:8)
Dionísio
coloca a ida de Pedro a Roma no mesmo período que Paulo. Ocorre que o apóstolo
dos gentios só chegou a Roma após o ano 60. Os 25 anos do bispado colocariam
Pedro em Roma no ano 42. Ele também traz o testemunho de Orígenes:
Pedro, segundo parece,
pregou no Ponto, na Galácia e na Bitínia, na Capadócia e na Ásia, aos judeus da
diáspora; por fim chegou a Roma e foi
crucificado com a cabeça para baixo, como ele mesmo pediu para sofrer. E o
que dizer de Paulo, que desde Jerusalém até o Ilírico cumpriu com a pregação do
Evangelho de Cristo e finalmente sofreu
martírio em Roma sob Nero? Isto é dito por Orígenes literalmente no tomo
III de seus Comentários ao Gênesis. (HE 3:1:2-3)
Orígenes
parece dizer que Pedro chegou a Roma no fim da sua vida. O mesmo é dito sobre
Paulo.
Pelas palavras de Pedro em
sua Carta, da qual já dissemos que é aceita, e que escreve aos hebreus da
diáspora, moradores do Ponto, da Galácia, da Capadócia, da Ásia e da Bitínia, percebe-se claramente em que províncias ele
pregou a Cristo e transmitiu a doutrina do Novo Testamento aos que procediam da
circuncisão. (HE 3:4:2)
Algumas
informações valiosas são apresentadas: (1) O ministério de Pedro era voltado
aos da circuncisão, o que contradiz uma suposta jurisdição universal. Como um
papa que lidera sobre toda a igreja poderia ter um ministério limitado a um
grupo étnico? (2) Os lugares em que Pedro principalmente pregou não inclui
Roma. Segundo os católicos, a maior parte do ministério de Pedro (25 de 32
anos) teria sido em Roma. Como Eusébio poderia ignorar tal fato destacando
outros lugares como recebedores de sua pregação? Uma citação é comumente
utilizada para provar o contrário:
Dizem mesmo que todos os
primeiros, inclusive os próprios apóstolos, receberam e ensinaram isto que
agora eles estão dizendo, e que se conservou a verdade da pregação até os
tempos de Victor, que era o décimo
terceiro bispo de Roma desde Pedro, mas que, a partir de seu sucessor,
Zeferino, falsificou-se a verdade. (HE 4:28:3)
Eusébio
continua não colocando Pedro como bispo. Victor foi o 13º, estando de acordo
com a contagem em que Lino é o 1º. Porém, dessa vez, ele coloca “desde” Pedro
sem mencionar Paulo. Já vimos em diversas outras citações da mesma obra que
Paulo também era considerado originador dessa sucessão. O fato de Eusébio não
mencioná-lo aqui é irrelevante. Eusébio está se referindo a uma sucessão
temporal e não epsicopal. Uma vez que Pedro junto com Paulo foi organizador da
igreja de Roma, seria correto dizer que após o tempo de Pedro, Victor foi o
13º. Isso não implica no bispado petrino. Católicos costumam usar as citações
abaixo que merecem especial análise:
[Simão Mago] Chegou à cidade de Roma, e com a grande ajuda do
poder que nela se assenta, em pouco tempo alcançou tamanho êxito em seu
empreendimento, que os habitantes do lugar chegaram a honrá-lo como a um Deus, dedicando-lhe uma estátua. Não chegaria
muito longe esta prosperidade. De fato, pisando em seus calcanhares, durante o próprio império de Cláudio, a
providência universal, santíssima e amantíssima dos homens, levava sua mão em direção a Roma, como contra um tão
grande flagelo da vida, o firme e grande
apóstolo Pedro, porta-voz de todos os outros devido a sua virtude. Como
nobre capitão de Deus, equipado com as armas divinas, Pedro levava do oriente aos homens do ocidente a apreciadíssima
mercadoria da luz espiritual, anunciando a boa nova da própria luz, da
doutrina que salva as almas: a proclamação do reino dos céus. (HE
1:14)
Um documento diz que Fílon, nos tempos de Cláudio, chegou a Roma para conversar com Pedro,
que então estava pregando aos dali. Isto
na verdade pode não ser inverossímil,
já que a própria obra de que falo - composta por ele mais tarde, passado muito
tempo - contém claramente as regras da Igreja, observadas ainda em nossos dias.
(HE
1:17:1)
Esses
dois relatos são importantes porque colocam Pedro pregando em Roma no tempo do
imperador Cláudio. O reinado de Cláudio foi de 41 a 54. Lembre-se que os
católicos alegam que Pedro foi bispo a partir do ano 42. Obviamente nada do
relato implica que Pedro era bispo dessa cidade, mas apenas que esteve lá em
algum período entre os anos 41 e 54. Além disso, o relato não implica que Pedro
permaneceu em Roma até o seu martírio. Sua primeira ida a Roma foi motivada
pela presença de Simão Mago lá – supostamente o mesmo Simão de Atos 8:9-24. Nós
vimos que Eusébio traz outros relatos que colocam Pedro indo para Roma apenas
no fim da vida, próximo ao seu martírio. Dessa forma, a hipótese mais provável
é que para ele, o apóstolo esteve em Roma nos tempos de Cláudio, não tendo
permanecido lá, e voltando apenas próximo a data de seu martírio.
Independente
da opinião de Eusébio, outra questão precisa ser discutida: os relatos de
Eusébio são confiáveis? Pedro de fato enfrentou Simão Mago em Roma ou conheceu
o judeu alexandrino Filo? O consenso dos historiadores é que ambos os relatos
são baseados em lendas. São o que o historiador católico Eamon Duffy chamaria
de “ficções piedosas”. Vejamos o que a própria Enciclopédia Católica fala a
respeito de Simão o Mago:
Simão não é mencionado
novamente nos escritos do Novo Testamento. O
relato nos Atos dos Apóstolos é a única informação oficial que temos sobre ele.
As declarações dos escritores do século
II que lhe digam respeito são em grande parte lendárias, sendo difícil ou
praticamente impossível extrair deles qualquer fato histórico cujos detalhes
são estabelecidos com certeza. São Justino de Roma (Primeira Apologia XXVI,
LVI; Diálogo com Trifo CXX) descreve Simão como um homem que, por instigação
dos demônios, afirmou ser um deus. Justino
diz ainda que Simão chegou a Roma durante o reinado do imperador Cláudio e
pelas suas artes mágicas ganhou muitos seguidores que ergueram na ilha do rio
Tibre uma estátua a ele como uma divindade com a inscrição "Simão o Deus
Santo". A estátua, no entanto, que Justino acreditou ser dedicada a Simão
era sem dúvida uma das antigas Sabina divindade Semo Sancus. Estátuas deste
antigo deus com inscrições semelhantes foram encontrados na ilha no rio Tibre e
em outros lugares em Roma (...) Se a opinião de Justino que Simão Mago veio
a Roma repousa apenas no fato por ele crido de que seguidores romanos tinham
erguido esta estátua a ele, ou se ele tinha outras informações sobre este
ponto, agora não pode ser determinado de
forma positiva. Seu testemunho não pode, portanto, ser verificado e assim
permanece duvidoso. Os escritores anti-heréticos posteriores que se
reportam a residência de Simão em Roma, apresentam Justino e o apócrifo Atos de
Pedro como sua autoridade, de modo que o
seu testemunho é de nenhum valor. Simão desempenha um papel importante nas
"Pseudo-Clementinas". Ele
aparece nelas como o principal antagonista do apóstolo Pedro, por quem ele está
em todos os lugares seguido e antagonizado. As supostas artes mágicas do mago e
os esforços de Pedro contra ele são descritos de uma maneira que é
absolutamente imaginária (...) Todas
estas narrativas pertencem naturalmente ao domínio da lenda. (Fonte)
Eusébio
basicamente misturou o relato de Justino com fontes apócrifas pouco confiáveis
como as Pseudo-Clementinas e Atos de Pedro. O relato de Justino era baseado num
engano. A estátua que ele acreditava ser de Simão Mago na verdade era de um
antigo deus pagão. Destaca-se que Justino não relata que Pedro foi a Roma
enfrentar o mago. Essa informação encontra-se apenas nas lendas apócrifas.
O
relato de que Filo conheceu Pedro em Roma também é baseado em lendas
improváveis. No cap. 17 do Livro I, Eusébio traz o relato de Fílon sobre judeus
ascetas que viviam no Egito chamados de “terapeutas”. Eusébio os representa
como ascetas cristãos – uma ideia sem fundamento histórico algum. O próprio
Fílon é representado como um cristão, sendo sabido que ele viveu e morreu como
um judeu helenista. David T. Runia escreve em seu livro sobre Fílon na
literatura cristã primitiva:
A partir desta breve visão é claro que a lenda do Fílon cristão
teve uma grande circulação e continha uma série de itens curiosos de
informações (...) Especificamente as
interações de Fílon com o cristianismo primitivo são lendárias em caráter,
e partem do desejo de apologistas cristãos relacionarem os primórdios de seu
movimento a representantes importantes e ilustres da sociedade greco-romana,
incluindo membros famosos das comunidades judaicas da época. (Philo in Early Christian Literature, Ed. Fortress
Press, Mineápolis 1993, pp. 7-8)
O
fato de Eusébio colocar Pedro em Roma nos tempos de Cláudio não implica em
bispado ali. Contudo, tais relatos são lendas piedosas, portanto, inúteis para
a causa papal. Eusébio também relata a controvérsia pascoal que demonstra que a opinião do bispo romano Victor não era final na questão.
Ele menciona como outros bispos (ex. Irineu) repreenderam o bispo romano com veemência:
Mas esta medida não agradou
a todos os bispos, que por sua parte
exortavam-no a ter em conta a paz e a união e a caridade para com o próximo.
Conservam-se inclusive as palavras destes, que
repreendem Victor com bastante energia. Entre eles está Irineu, na carta
escrita em nome dos irmãos da Gália, dos quais era o chefe. (HE
5:10-11)
Eusébio também chama o bispo de Antioquia de papa, o que demonstra que no mínimo esse título não era exclusivo do bispo de Roma. Obviamente, tal título não implica me nenhum tipo de primazia jurídica, mas era apenas a forma carinhosa de tratar alguns bispos. É de se destacar que ele não se referiu ao bispo romano de igual forma, o que no mínimo levantaria suspeita sobre a primazia desse bispo sobre toda a igreja:
Logo, depois de dizer algumas coisas sobre todas as heresias, acrescenta: ‘Eu recebi esta regra e este modelo de nosso bem-aventurado papa Heraclas. (HE 5:7:4)
Ele ainda diz:
Além disso, a tradição nos faz saber igualmente que também alguns profetas foram convertidos em Cristos, figuradamente, por meio da unção com o óleo, de forma que todos estes fazem referência ao verdadeiro Cristo, o Verbo divino e celestial, único sumo Sacerdote do universo, único rei de toda a criação e, entre os profetas, único sumo Profeta do Pai. (HE 1:3:8)
Eusébio expressou bem a crença da igreja primitiva numa comunhão que dispensava um líder supremo humano, pois a chefia de Cristo era suficiente. Diante tudo isso, podemos concluir que Eusébio não é uma testemunha do papado, pelo contrário, a ideia de um bispo sendo chefe supremo da igreja é estranha aos seus escritos.
Eusébio também chama o bispo de Antioquia de papa, o que demonstra que no mínimo esse título não era exclusivo do bispo de Roma. Obviamente, tal título não implica me nenhum tipo de primazia jurídica, mas era apenas a forma carinhosa de tratar alguns bispos. É de se destacar que ele não se referiu ao bispo romano de igual forma, o que no mínimo levantaria suspeita sobre a primazia desse bispo sobre toda a igreja:
Logo, depois de dizer algumas coisas sobre todas as heresias, acrescenta: ‘Eu recebi esta regra e este modelo de nosso bem-aventurado papa Heraclas. (HE 5:7:4)
Ele ainda diz:
Além disso, a tradição nos faz saber igualmente que também alguns profetas foram convertidos em Cristos, figuradamente, por meio da unção com o óleo, de forma que todos estes fazem referência ao verdadeiro Cristo, o Verbo divino e celestial, único sumo Sacerdote do universo, único rei de toda a criação e, entre os profetas, único sumo Profeta do Pai. (HE 1:3:8)
Eusébio expressou bem a crença da igreja primitiva numa comunhão que dispensava um líder supremo humano, pois a chefia de Cristo era suficiente. Diante tudo isso, podemos concluir que Eusébio não é uma testemunha do papado, pelo contrário, a ideia de um bispo sendo chefe supremo da igreja é estranha aos seus escritos.