Autoridade
da Escritura e da Igreja
Há
uma diferença fundamental entre católicos romanos e protestantes na questão da
relação entre Igreja e Escritura. O paradigma católico afirma que a Igreja
autentica a Escritura, portanto, a autoridade desta depende daquela. Já o
protestante afirma que Igreja recebe a Escritura e sua autoridade depende dela,
é a Escritura que confirma a Igreja e não o contrário. Isso é fundamental para
definir a verdadeira Igreja. Se alguém perguntasse ao protestante onde está a
verdadeira igreja, ele diria que devemos julgar o candidato pela Escritura. O
católico, por sua vez, diria que precisamos seguir uma linha de sucessão de
bispos que supostamente remeteria ao apóstolo Pedro, o que nos levaria a
reconhecer a autoridade infalível da Igreja romana. Qual desses paradigmas Agostinho
defendia? Felizmente o bispo africano respondeu essa questão de forma clara.
Ele teve que lidar com os donatistas. Esses fundaram uma igreja cismática no
norte da África. Ao combatê-los, Agostinho escreveu uma obra chamada Unidade da
Igreja, cujo original em latim pode ser visto aqui.
Dessa obra tiramos as citações abaixo:
A questão entre nós e os
donatistas é onde a Igreja é encontrada?
O que faremos então? Vamos procurá-la em nossas palavras ou nas palavras de seu chefe, nosso Senhor Jesus Cristo? Eu concebo
que devemos procurá-la em Suas palavras, Ele que é a verdade e conhece melhor
seu próprio corpo. (A Unidade da Igreja, cap. 2, §2)
Essa
era a disputa entre a igreja que Agostinho considerava verdadeira e a igreja
donatista. Como o impasse seria resolvido? Como se determinaria onde estava a
verdadeira igreja? A resposta é nas palavras do Senhor Jesus guardadas na
Escritura.
Não deixe que estas palavras
sejam ouvidas entre nós "eu digo" ou "você diz", mas vamos
ouvir "Assim diz o Senhor";
pois há certos livros de nosso Senhor em cuja autoridade ambos os lados
concordam; lá vamos procurar nossa Igreja, lá vamos julgar a nossa causa. Deixemos
que sejam removidas de nosso meio as coisas que citamos uns contra os outros,
não com apoio nos livros canônicos divinos, mas de outras fontes quaisquer.
Talvez alguém possa perguntar: Por que desejais remover essas coisas do vosso
meio? Porque não queremos a santa igreja
aprovada por documentos humanos, mas sim pelos oráculos divinos. (Ibid.,
cap. 3, §5)
A
autoridade final que resolveria a questão não era o bispo de Roma ou algum
concílio, mas a Escritura canônica. Qualquer romanista apelaria à autoridade do
sucessor de Pedro e diria “vocês não estão em comunhão com o papa, por isso não
fazem parte da igreja”. É precisamente esse o argumento papista final contra
todas as outras igrejas que arrogam ser cristãs. Se Agostinho detivesse uma
visão católica romana da autoridade, a ausência de tal argumento nessa obra é
inexplicável. O paradigma em questão era que a Escritura aprova a igreja e não
o contrário.
Quem
discorda das Sagradas Escrituras,
mesmo se eles são encontrados em todos os lugares em que a igreja é indicada, não são a igreja. (Ibid.,
cap. 4, §7)
Nós aderimos a esta Igreja; contra essas declarações divinas não
admitimos sofismas humanos. (Ibid., cap. 11, §28)
Tampouco devemos concordar
com os bispos católicos, se eles erram ou
decidem alguma coisa contra as Escrituras canônicas de Deus. (Ibid.,
cap. 11, §28)
Agostinho
não tinha qualquer noção da existência de um bispo católico infalível. Como
numa disputa contra um grupo cismático, ele se esqueceria de citar o bispo de
Roma como uma exceção. É notável que de todas as heresias surgidas na igreja
antiga, nenhuma delas tenha negado a autoridade infalível do bispo de Roma. Se
isso fosse parte do depósito da fé, o primeiro passo de qualquer grupo herético
seria negar essa autoridade infalível, como hoje toda igreja cristã não romana
nega a infalibilidade papal. Se o juiz final da verdade era o papa, qualquer heresia
teria que antes de tudo negá-lo para se estabelecer como o detentor da verdade.
Devemos
encontrar a Igreja assim como a Cabeça da Igreja nas santas canônicas
Escrituras,
não investiguem por ela nos diversos relatos, opiniões, ações, palavras e visões
de homens. (Ibid., cap. 19, §49)
Se eles [os donatistas] se
mantêm na Igreja, eles devem mostrar
pelos livros canônicos das divinas Escrituras somente, pois nós não dizemos
que deve ser crido porque estamos na
Igreja de Cristo ou porque Optato de Milevi ou Ambrósio de Milão ou
inúmeros outros bispos da nossa comunhão recomendaram esta Igreja a que pertencemos,
ou porque é exaltada pelos concílios dos nossos colegas. (Ibid.,
cap. 19, §50)
O
critério final era a Escritura canônica. Agostinho poderia citar em seu favor o
apoio de antigos bispos e concílios vizinhos, mas de nada adiantaria se a
Escritura não o apoiasse. Veja o trecho “pois
nós não dizemos que deve ser crido
porque estamos na Igreja de Cristo”. Esse é precisamente o argumento
católico romano sendo rejeitado por Agostinho.
Mas se eles não escolhem
entender, é suficiente para nós aderir a essa Igreja que é demonstrada por esses testemunhos extremamente claros das santas
e canônicas Escrituras. (Ibid., cap. 19, §50-51)
A
prova suficiente era demonstrada pela Escritura canônica. A implicação
inevitável é que ela seria a autoridade final, inclusive, sobre a própria
igreja.
Deixá-los mostrar a sua
igreja se puderem, não pelos discursos e murmúrios dos africanos, não pelos
concílios de seus bispos, não pelos escritos de qualquer um de seus defensores,
não por sinais e maravilhas fraudulentos, porque nós fomos preparados e feitos
prudentes também contra essas coisas pela palavra do Senhor. Mas [deixá-los mostrar sua igreja] por um
comando da Lei, pelas profecias dos profetas, pelas canções dos Salmos, pelas
palavras do próprio Pastor, pela pregação e trabalho dos evangelistas, isto é,
por todas as autoridades canônicas dos livros sagrados.
(Ibid., cap. 18, §47)
A
respeito disso Johann Joseph Ignaz von Döllinger escreveu:
Entre as copiosas obras (dez
infólios) de S. Agostinho, que exatamente por si só escreveu mais do que todos
os outros Padres juntos acerca da doutrina da igreja, sua unidade e autoridade,
— apenas se pode, em última análise, apanhar uma só palavra, perdida numa
carta, em que se diz haver tido sempre efetividade em Roma (35) o principado da
sé apostólica: — afirmativa esta que, com o mesmo acerto, podia então se
referir a Antioquia, Jerusalém e Alexandria. Àquele que, de olhos na doutrina jesuíta da infalibilidade, percorrer o
escrito de S. Agostinho acerca da unidade da igreja (epístola pastoral aos donatistas
dissidentes), parecerá incompreensível não contar com uma só palavra, nesses 75
capítulos, que diga respeito à necessidade da comunhão com Roma como centro da
unidade. Para persuadir os donatistas do dever de se unir novamente à
igreja, exibiu Agostinho as mais variadas razões, e, contudo, precisamente não assinala uma só das que a autoridade da sé
pontifícia lhe podia proporcionar. (Janus, The Pope and the Council, trans.
from the German, 2nd ed. London: Rivingtons 1869, pp. 88-89)
Os
donatistas precisavam provar sua igreja pela Escritura. Agostinho não apelou a
um suposto intérprete normativo. Ele não disse que a autoridade interpretativa
“x” era vinculante e que os donatistas precisariam mostrar que estavam conforme
essa autoridade. Era o apelo direto à Escritura que definia a causa. Contra esse farto testemunho, a Igreja romana
quer nos fazer acreditar que o bispo de Hipona acreditava justamente no inverso
a partir desta citação:
Eu
não creria no Evangelho, se a isso não me levasse a autoridade da Igreja
católica. (Contra a Carta de Mani 5,6)
Já
existe em português a excelente resposta de Calvino a essa questão aqui.
Já vimos que a Sola Scritptura não anula a autoridade da Igreja. É dentro da
igreja que a Escritura deve ser interpretada, sendo através dela que os
descrentes chegam ao conhecimento do evangelho. Portanto, desse prisma, é sim a
autoridade da igreja que nos leva a crer no evangelho, pois é através dela que
chegamos ao conhecimento da fé. É nesse aspecto que Agostinho apela à autoridade
da Igreja. Ele falou de forma parecida se referindo ao período anterior à sua
conversão: “Eu nunca teria entendido
Plotino se a autoridade de meus professores neoplatônicos não tivesse me movido”.
Um
exemplo bíblico ilustra o pensamento de Agostinho – o Eunuco evangelizado por
Felipe. Foi através de Felipe que o Eunuco pôde crer no evangelho. O Eunuco
aceitou a autoridade de Felipe para lhe transmitir o evangelho através da Escritura.
Isso de forma alguma torna Felipe uma autoridade maior do que a Escritura, pois
o mensageiro não é maior do que aquele que enviou. A mensagem do evangelho não
é originada na igreja, mas em Deus. Ela é dada à Igreja que tem como missão
pregá-lo fielmente e trazer as ovelhas desgarradas ao bom Pastor. Paulo
defendeu esse ponto ao dizer:
Irmãos, quero que saibam que
o evangelho por mim anunciado não é de
origem humana. Não o recebi de pessoa alguma nem me foi ele ensinado; pelo
contrário, eu o recebi de Jesus Cristo
por revelação. (Gálatas 1:11,12)
Paulo, apóstolo enviado, não da parte de homens nem por meio de
pessoa alguma, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dos
mortos. (Gálatas 1:1)
Paulo
precisava defender seu apostolado. Muitos na igreja duvidavam que ele fosse um
apóstolo verdadeiro, pois não fazia parte dos discípulos que acompanharam o
ministério terreno de Cristo. O partido judaizante também discordava da
teologia de Paulo. Ao se defender, Paulo não apelava à autoridade da Igreja,
mas a autoridade de Deus que era a fonte do seu apostolado e mensagem. Ele
precisava dar provas contundentes do evangelho que pregava, pois havia dito:
Mas ainda que nós ou um anjo
do céu pregue um evangelho diferente
daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado! Como já dissemos, agora
repito: Se alguém lhes anuncia um evangelho diferente daquele que já receberam,
que seja amaldiçoado! (Gálatas 1:8,9)
Se
Paulo fosse um católico romano, ele diria que era necessário obedecer a sua
pregação porque a igreja cujo chefe é Pedro assim determinou. Ele não fez isso,
mas apelou diretamente a autoridade de Deus. A atitude de Paulo com relação aos
demais apóstolos é reveladora:
Mas Deus me separou desde o
ventre materno e me chamou por sua graça. Quando lhe agradou revelar o seu
Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei pessoa alguma. Tampouco subi a Jerusalém para ver os que
já eram apóstolos antes de mim, mas de imediato parti para a Arábia, e tornei a
voltar a Damasco. (Gálatas 1:15-17)
O
apóstolo dos gentios não acreditava que sua autoridade precisasse ser
autenticada pelos demais apóstolos ou por um suposto papa que tinha autoridade
suprema. Sua atitude não foi de “ir correndo” à Jerusalém obter aprovação dos
demais, pois quem o autenticava era Deus e não Pedro. Católicos costumam
distorcer os capítulos 1 e 2 de Gálatas ao afirmarem que Paulo subiu à
Jerusalém para obter a aprovação de Pedro. Isso claramente não é verdade a
partir do que lemos acima, tanto é que ele ficou três anos pregando sem essa
suposta autenticação. Paulo desejava ter comunhão com os demais apóstolos, e
sua ida a Jerusalém não tem qualquer intenção de pedir aprovação dos demais.
Ainda que fosse, a causa papal estaria prejudicada, pois Paulo nos diz que
Tiago, Pedro e João igualmente eram tidos como colunas da Igreja (2:9). O
capítulo 2 termina com Pedro demonstrando temor diante de Tiago o irmão do
Senhor e Paulo o repreendendo por não andar conforme o Evangelho. Esse episódio
demonstra que nem Tiago o irmão do Senhor nem Paulo viam Pedro como o chefe
supremo da Igreja.
Não
há como ler esses textos de Gálatas e ainda acreditar que aquela igreja adotava
o paradigma católico romano. O bisturi não é superior ao médico, da mesma
forma, a igreja que é instrumento de propagação do evangelho não é superior ou
igual à palavra daquele que é o autor do evangelho. Os católicos, por lerem os
pais da igreja com as “lentes de Roma”, acabam perdendo esse ponto e lendo em
Agostinho algo que ele não cria, e isso podemos afirmar confiavelmente a partir
de tudo que ele escreveu.
Agostinho
estava respondendo ao maniqueísmo. Os maniqueus negavam a autoridade infalível
da Escritura. É notável que Agostinho ao responder esses ataques não apelou a
nenhuma autoridade infalível da Igreja contra o maniqueu Fausto:
A questão então é se devemos acreditar nas declarações de
um apóstolo que estava na companhia de Cristo enquanto Ele esteve na terra, ou
de um homem afastado na Pérsia, nascido
muito depois de Cristo. Talvez você vá citar algum outro livro que leva o
nome de um apóstolo conhecido por ter sido escolhido por Cristo [isto é uma
falsificação]; e você vai encontrar lá que Cristo não nasceu de Maria. Desde
que um desses livros deve ser falso, a questão neste caso é se vamos crer num livro reconhecido, aprovado e transmitido
desde o início pela Igreja fundada pelo próprio Cristo e mantida através dos
apóstolos e seus sucessores em uma conexão ininterrupta em todo o mundo até os
dias atuais ou num livro que esta Igreja
condena como desconhecido, e que, aliás, é levado adiante por homens que
provam sua veracidade louvando Cristo pela falsificação.
(Contra Fausto, 28:2)
Essa
citação é importante porque Agostinho lida com o reconhecimento de quais livros
eram canônicos. Nesse ponto, os romanistas afirmam que necessitamos de um
magistério infalível centrado no bispo de Roma para saber quais livros são
canônicos, ou seja, esse bispo seria a autoridade final pelo qual o cânon bíblico
é determinado. Já os protestantes alegam que a igreja é testemunha do cânon,
não o seu criador. A igreja reconheceu o que era ou não canônico, ou seja, reconheceu
uma realidade que já existia objetivamente, mas não determinou essa realidade. O
bispo de Hipona considerava a autoria apostólica o critério final para
reconhecimento do cânon e apelou ao testemunho corporativo da igreja como prova
da apostolocidade daqueles escritos. Esses livros eram desde o início
reconhecidos pela igreja, já os demais candidatos não. Será que Agostinho colocava
a autoridade da igreja em igual patamar a Escritura? Vejamos o que escreve em
outras partes da mesma obra:
... a
autoridade estabelecida da Escritura deve
superar todas as outras. (Contra Fausto, 13:5)
Como vocês podem até fazer
danos as suas próprias almas? Onde você
vai encontrar qualquer autoridade, se não no Evangelho e escritos apostólicos?
Como podemos ter a certeza da autoria de qualquer livro se duvidar da origem
apostólica daqueles livros que são atribuídas aos apóstolos pela Igreja que os
próprios apóstolos fundaram, e que ocupa tão notavelmente lugar em todas as
nações? E como ao mesmo tempo reconheceremos como produção indubitável dos
apóstolos o que é trazido por hereges em oposição à Igreja, cujos autores de quem eles derivam seu
nome, viveram muito tempo depois dos apóstolos?
(Contra Fausto 33:6)
Eu fecho com uma palavra de
conselho para vocês que estão inseridos naqueles chocantes e condenáveis erros:
que reconheçam a autoridade suprema da
Escritura. (Contra Fausto, 28:9)
A
autoridade da Escritura era superior a qualquer outra, inclusive a igreja. A
igreja era a notável testemunha que reconhecia essa autoridade, mas não era a
causa dela. Da mesma forma, os reformados reconhecem no testemunho corporativo
da igreja dos primeiros séculos o trabalho do Espírito Santo que a guiou na
recepção dos livros divinos. De igual
maneira, o Espírito Santo guiou os judeus na recepção dos livros da antiga
aliança, mesmo eles não dispondo de nenhuma autoridade infalível. Observa-se também
que Agostinho nunca apela à infalibilidade do bispo de Roma ao afirmar o cânon
reconhecido pela igreja. Ele sempre apela ao testemunho corporativo da igreja:
Agora,
a respeito das Escrituras canônicas, deve-se seguir o julgamento do maior
número de igrejas católicas; e entre estas, é claro, um lugar de destaque deve
ser dado ao que se achar digno de ser a
sede de um apóstolo ou receber epístolas. Consequentemente, entre as
Escrituras canônicas deve-se julgar de acordo com a seguinte regra: preferir aqueles que são recebidos por
todas as igrejas católicas do que aqueles que alguns não recebem. Entre
aqueles, novamente, que não são recebidos por todos, deve-se preferir aqueles que têm a sanção do maior número e daqueles de
maior autoridade, do que aqueles que são recebidos pelo menor número e os de
menos autoridade. Se, contudo, se achar que alguns livros são tidos pelo
maior número de igrejas e outros pelas igrejas de maior autoridade (apesar de
isto não ser algo muito provável de acontecer), eu acho que em tal caso a autoridade dos dois lados deve ser
considerada igual. (On Christian Doctrine, Livro 2, seção VIII (Nova York:
Liberal Arts Press, 1958), p. 41)
Ao
contrário dos papistas, Agostinho não reconheceu o cânon a partir de uma
decisão conciliar ou papal. Ele apelou ao virtual consenso emergido na igreja. Não
é apontado nenhum bispo ou igreja infalível, mas o testemunho da variedade de igrejas
que compunham a igreja católica. Elas poderiam divergir em alguns pontos, nesse
caso a posição sustentada pelo maior número de igrejas ou pelas igrejas mais
importantes deveria ser preferida.
É
preciso pontuar também que a concepção de igreja de Agosto é radicalmente diferente
dos papistas. Ao lerem os apelos agostinianos à autoridade da igreja, os
católicos tendem a identificar essa igreja como sendo a romana. Já argumentamos
o suficiente para provar que a igreja católica de Agostinho era radicalmente
diferente da igreja romana. Ele não acreditava que a comunhão com o bispo de
Roma era o critério final para definir quem faz ou não parte da verdadeira
igreja.
Agostinho
e os apócrifos
Inevitavelmente
o debate sobre a autoridade da igreja e da Escritura acaba abordando a questão
dos apócrifos. Agostinho aceitou os livros apócrifos como canônicos? A resposta
é nem todos. Os católicos tomam Agostinho como uma testemunha do cânon que hoje
é defendido pela igreja romana, mas essa não é a realidade. Agostinho, assim
como os concílios de Hipona e Cartago tinha como referência a antiga latina –
uma tradução para o latim da septuaginta e não a vulgata de Jerônimo que foi
adotada no concílio de Trento. O Livro de 1 Esdras da septuaginta foi
reconhecido como canônico por Agostinho mas rejeitado como apócrifo por Tentro.
Na Vulgata, 1 e 2 Esdras seriam o 2 Esdras da Septuaginta e o 1 e 3 Esdras da
Septuaginta eram 3 e 4 Esdras da Vulgata. Dessa forma o cânon de Agostinho não
é exatamente o mesmo da igreja romana. Isso é indicado pela sua referência a
uma história sobre uma discussão entre três homens, que está incluída na versão
da Septuaginta de 1 Esdras, mas não na Vulgata:
Depois destes três profetas,
Ageu, Zacarias e Malaquias, durante o mesmo período da libertação do povo da
servidão babilônica, Esdras também escreveu [um livro], que é mais histórico do
que profético, como também é o livro chamado Esther, no qual são encontrados e
relatados, para o louvor de Deus, eventos não muito distantes daqueles tempos. Talvez
Esdras deva ser entendido como profetizando Cristo naquela passagem onde, por
uma questão surgida entre alguns jovens sobre qual é o mais forte, quando um
tinha dito os reis, outro o vinho, e o terceiros as mulheres... (A
Cidade de Deus 18:36)
Agostinho
afirmou a canonicidade de Eclesiástico e Sabedoria embora reconheça que não são
de Salomão:
Para dois livros, um chamado
Sabedoria e o outro Eclesiástico, são atribuídos a Salomão a partir de certa
semelhança de estilo, mas a opinião mais
provável é que eles foram escritos por Jesus, filho de Sirac. São colocados
entre os proféticos livros, desde que obtiveram reconhecimento como sendo
autoridade. (Doutrina Cristã 2:8:13)
Porém,
ele se retratou dessa opinião mais tarde em sua famosa obra “Retratações”:
Além disso, parece que eu
incorretamente chamei de profético as palavras nesta passagem: "Porque são
a terra e cinzas orgulhosas?" [Eclesiástico 10: 9], pois o livro na qual é lida não é o trabalho de alguém a quem podemos
estar certos de que poderia ser chamado de profeta.
(Retratações seção 3)
Uma
vez que põe em dúvida a autoria profética de Eclesiástico, provavelmente deixou
de acreditar na sua canonicidade. O mesmo se aplica à Sabedoria, pois ele
identificava Jesus filho de Sirac como autor de ambos. Dessa forma, o cânon de
Agostinho não era igual ao protestante, mas também não era idêntico ao católico
romano. Agostinho reconhecia que os livros apócrifos que reconheceu não eram
aceitos pelos judeus:
Desde este tempo, quando o
templo foi reconstruído, até o tempo de Aristóbulo, os judeus não tiveram reis,
mas príncipes, e cálculo de suas datas não é encontrado nas Sagradas Escrituras
que são chamadas canônicas, mas em outros, entre os quais estão também os
livros dos Macabeus. Estes são tidos
como canônicos, não pelos judeus, mas pela Igreja, por conta dos
sofrimentos extremos e maravilhosos de certos mártires, que, antes de Cristo
vir em carne, sustentaram a lei de Deus até a morte, e suportaram males mais
graves e horríveis. (A Cidade de Deus 18:36)
Percebe-se
que a o fundamento sob o qual Agostinho aceitava esses livros era bem frágil –
os relatos de martírios. Nenhum protestante instruído duvida do valor histórico
desses livros, mas para aceita-los como canônicos, é preciso bem mais do que
relatar martírios.
Encerramos
a terceira parte de nossa série. Vimos que a autoridade da Escritura estava
acima da igreja, embora esta tivesse autoridade para trazer os descrentes à fé
e desempenhasse o papel de testemunha do cânon bíblico. Embora Agostinho
aceitasse os livros apócrifos, seu cânon era distinto da igreja romana porque
aceitou o 1 Esdras da Septuaginta. É provável também que tenha mudado de ideia
quanto à canonicidade de Eclesiástico e Sabedoria.
Já
foi demonstrado que esse pai da Igreja defendia a Sola Scritptura. No próximo artigo
forneceremos mais evidências desse fato ao provar que ele acreditava na
suficiência formal e material das Escrituras.
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