quinta-feira, 17 de março de 2016

Agostinho e o Catolicismo Romano - Parte 6 (Oração aos Santos, Culto aos Santos e às Imagens e Relíquias)


A oração aos Santos

Nós já tratamos dos pais pré-nicenos e oração dos santos aqui. Demonstramos que não há evidência confiável de um pai da Igreja desse período ensinando a oração a outro que não Deus. Agostinho que foi um bispo do séc. V acreditava que os crentes no céu oravam pela igreja na terra. Esse conceito de intercessão dos santos é encontrado em algumas igrejas protestantes. Porém, assim como outros pais da Igreja como Cipriano e Orígenes, ele ensinava que a oração deveria ser dirigida a Deus através de Cristo. Dessa forma, Maria ou os santos não deveriam ser diretamente invocados, o que é substancialmente diferente do conceito católico romano. Recomendo o artigo aqui do blog “conhecereis a verdade” que tratou dessa questão. Católicos costumam afirmar que pedir a intercessão dos santos é como pedir a um amigo que ore por você. Já que a Escritura estimula a prática de orar uns pelos outros, a intercessão dos santos estaria englobada nesse ensino. Essa analogia contém sérios defeitos. Um evangélico não ora diretamente a outro irmão de igreja para que esse então ore a Deus. Para que outra pessoa saiba de nossa intenção de oração, é preciso que nos comuniquemos com ela, e isso só é possível entre pessoas vivas. Os católicos têm sérias dificuldades em explicar como os falecidos podem ouvir e responder milhares de orações ao redor do mundo. A igreja romana também ensina que os santos acumularam méritos diante de Deus. Dessa forma, suas orações seriam mais eficazes. Por isso, muitos doutores da igreja romana como Afonso de Ligório ensinam que a oração de Maria é mais eficaz e seria atendida mais rapidamente do que orar diretamente a Deus.

O apologista católico traz várias citações aqui, mas em nenhuma delas Agostinho ensina a invocação de Maria ou dos santos. E nem poderia, pois ele escreveu:

E pode a sua própria oração ser considerada pecaminosa. Isto acontece porque nenhuma oração pode ser justa se não for oferecida através de Cristo, a quem Judas vendeu pelo seu pecado monstruoso. Uma oração feita de outra maneira que não através de Cristo não é meramente impotente para apagar o pecado; ela mesma se torna pecado. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Part 3, Vol. 19, trans. Maria Boulding, O.S.B., Expositions of the Psalms, Psalms 99-120, Exposition of Psalm 108.9 (Psalm 109) (Hyde Park: New City Press, 2003), p. 247.)

Qualquer oração não feita através de Cristo seria pecaminosa. Católicos alegam que substituir a medição de Cristo pela do santo não é errado, alguns diriam que é até recomendável. Comparemos Agostinho ao doutor da igreja romana Luís Maria Grignion de Montfort:

(...) Quando, pois, se lê nos escritos de São Bernardo, São Bernardino, São Boaventura etc., que no Céu e na Terra tudo está sujeito a Maria, até o próprio Deus, deve apenas entender-se que a autoridade que Deus lhe quis conceder é tão grande que parece igualar o poder divino, e que as suas orações e súplicas são tão poderosas junto de Deus que equivalem sempre a ordens junto da sua majestade. (Jesus, Filho de Maria)

Deus Espírito Santo comunicou a Maria, sua fiel esposa, os Seus dons inefáveis, e escolheu-a para dispensadora de tudo quanto possui. Deste modo, Ela distribui a quem quer, quanto quer, como e quando quer todos os Seus dons e graças, e nenhum dom celeste é concedido aos homens sem que passe por suas mãos virginais. (Capítulo Primeiro, Segundo princípio, A Obra da Santíssima Trindade em Maria)

Baseados na opinião dos Padres da Igreja (entre outros, de Santo Agostinho, Santo Efrém, diácono de Edessa, São Cirilo de Jerusalém, São Germano de Constantinopla, São João Damasceno, Santo Anselmo, São Bernardo, São Bernardino, São Tomás e São Boaventura), o douto e piedoso Suarez, da Companhia de Jesus, o sábio e devoto Justo Lípsio, doutor de Lovaina, e vários outros provaram, de maneira incontestável, que a Devoção à Santíssima Virgem é necessária para a salvação. Provaram ainda que é sinal infalível de reprovação - segundo o sentir do próprio Ecolampádio e de alguns outros heréticos -, a falta de estima e amor à Santíssima Virgem, e que, pelo contrário, é sinal certo de predestinação ser-lhe inteira e verdadeiramente dedicado ou devoto. (Tratado da verdadeira devoção à santíssima virgem Maria, item 40, pag. 53)

Esse ensino não é encontrado em nenhum desses pais da igreja. Comparemos também a Afonso de Ligório:

Muitas coisas se pedem a Deus, e não se alcançam. Pedem-se a Maria, e conseguem-se. (Glórias de Maria, pag. 118)

Tais ideias são inteiramente contrárias ao pensamento de Agostinho, como veremos a seguir:

Se alguém lhe disser: "Invoque o anjo Gabriel desta forma, invoque Miguel dessa outra; ofereça este pequeno ritual antigo, ou este mais moderno"; não se deixe levar, não concorde. E não se deixe enganar por ele só porque os nomes desses anjos podem ser lidos nas Escrituras; observe antes qual o papel dos anjos que lá pode ser lido, se eles alguma vez exigiram de algum homem qualquer tipo de veneração religiosa pessoal, ou em vez disso sempre desejaram que a glória fosse dada ao único Deus, a quem eles obedecem. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon 198.47 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 217)

Percebe-se a contradição explícita. Invocar e venerar santos ou anjos é o que a igreja romana ensina. Há um famoso vídeo na internet em que o Padre Paulo Ricardo diz que os evangélicos são otários e orgulhosos por não orarem aos santos. Agostinho não compartilharia dessa opinião:

Aqui o pensamento muito triste me ocorre de que eu deveria lembrá-lo que Parmeniano, que já foi bispo dos donatistas, teve a audácia de afirmar em uma de suas cartas que o bispo é o mediador entre o povo e Deus. Você pode ver que eles estão se colocando no lugar do noivo; eles estão corrompendo as almas dos outros com um adultério sacrílego. Esse não é um caso de presunção, que me pareceria totalmente incrível se não tivesse lido. Você vê, se o bispo é o mediador entre o povo e Deus, segue-se que devemos aprender disso que há muitos mediadores, já que há muitos bispos. Portanto, a fim de ler a carta de Parmeniano, vamos censurar a carta do apóstolo Paulo, onde ele diz, Porque há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem (1Tm 2:5). Mas, entre os quais ele é o mediador se não entre Deus e seu povo? Então entre Deus e seu corpo, porque a Igreja é o seu corpo. Verdadeiramente monstruoso, portanto, é essa arrogância da qual tem a audácia de tornar o bispo um mediador, culpado da ilusão adúltera de reivindicar para si o casamento de Cristo. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon 198.52 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 220)

É isso o que essas pessoas sem medo ou vergonha dizem, que o bispo é um mediador entre Deus e os homens. Claro, que o homem é um mediador, mas no partido de Donatus, para bloquear o caminho, não para liderar o caminho, como Donatus faz; ele apresenta o seu próprio nome, você vê, para fechar o caminho para Cristo. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon 198.55 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 222)

Agostinho trata de um exemplo específico – um bispo donatista se colocando como mediador entre os homens e Deus. Mas seu argumento é que colocar qualquer mediador entre os homens e Deus é falha grave. Católicos costumam alegar que a mediação dos santos não substitui a de Cristo, mas percebam que Agostinho diz “ele apresenta o seu próprio nome, você vê, para fechar o caminho para Cristo”. A interposição de qualquer outro mediador fechava o caminho para Cristo, enquanto os católicos alegam que Maria é o melhor caminho para Jesus. Obviamente o bispo donatista não afirmava que substituía Cristo ou seria outro caminho de salvação, mas o simples fato de se colocar como um mediador foi suficiente para causar a resposta de Agostinho.

Em duas coisas, portanto, ele deve ter cuidado ao orar; que ele não peça o que não deveria; e que ele não peça a quem não deveria. Do diabo, dos ídolos, dos espíritos malignos, nada deve ser pedido. Desde que o Senhor nosso Deus Jesus Cristo, Deus o Pai dos Profetas e dos Apóstolos e dos Mártires, do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do Deus que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que nele há, Dele devemos pedir tudo que temos necessidade. (Sermão 6, Seção 2)

Interessante que Agostinho menciona os mártires no contexto e ainda assim afirma que a Deus devemos pedir tudo que precisamos. Isso corrobora o ensino de que a oração deve ser dirigida somente a Deus através de Cristo.

Citações em que Agostinho supostamente ensina a oração aos mártires

Apesar do grande número de citações trazidas pelo apologista católico, somente duas delas mencionam pessoas orando aos mártires:

Em Hipona, certo Basso, sírio, orava sobre as relíquias do mesmo mártir [Estevão] por uma filha que se encontrava gravemente doente. Tinha trazido para lá um vestido dela. Nisto saem de casa uns servos para lhe anunciarem a morte da doente. Mas como ele estava a rezar, uns amigos detiveram-nos e impediram-nos de lhe falarem para não chorasse perante o público. Quando voltou a casa onde já ressoavam as lamentações dos seus, pôs sobre ela o vestido que trazia da filha e ela voltou à vida. (Cidade de Deus Livro XXII, Capitulo VIII)

Não se pode dizer que esse é o relato de alguém orando ao mártir. Agostinho menciona que o homem orava sobre as relíquias do mártir, mas não diz a quem orava. No mesmo capítulo, vários milagres envolvendo as relíquias são narrados, e na maioria deles não é mencionada qualquer oração ao mártir. A pressuposição de qualquer milagre narrado envolvia uma oração anterior ao mártir não se encontra nessa obra de Agostinho.

Ele orou aos 20 mártires, tão celebrados entre nós, e pediu-lhes em alta voz com o que se vestir (...) Mas o cozinheiro, ao abrir o peixe, encontrou no ventre um anel de ouro e imediatamente, tomado de compaixão e possuído de religioso temor, entregou-o ao homem, dizendo: Veja como os vinte mártires te vestiram. (Ibid)

De fato está claro que o homem orava ao mártir. Ele narra o fato sem reprová-lo e acredita que o homem foi abençoado, mas nenhum juízo de valor a respeito da oração em si é feito, seja aprovando ou reprovando. É possível que Agostinho tenha sido inconsistente aqui? Sim, isso não é incomum nos pais da igreja. Seria possível que ele tivesse mudado de ideia? Também é possível. Mas a luz de todas as outras obras desse pai da igreja, a hipótese mais provável é que ele passou a tolerar essa prática que ficava cada vez mais popular no final do quarto século, mas não a visse como doutrinariamente correta. O fato de ele acreditar que o homem foi abençoado pela oração não mostra que ele a aprovava. Muitos evangélicos acreditam que orações direcionadas a Maria ou aos santos podem ser respondias por Deus por pura misericórdia, mesmo considerando a prática em si errada. O bispo africano poderia partilhar de opinião semelhante. Nota-se também que a intenção dele é mostrar que os milagres ainda aconteciam, não fazendo nenhum juízo de valor sobre os meios pelos quais os milagres aconteceram.

Há uma disciplina eclesiástica, como os fiéis sabem, quando os nomes dos mártires são lidos em voz alta no altar de Deus, a oração não é oferecida por eles. A oração, no entanto, é oferecida pelos mortos que são lembrados. Por que é errado rezar por um mártir, a quem as orações nós mesmos deveríamos ser recomendados. (Sermões 159, 1)

A parte negritada foi apresentada como dizendo que devemos orar aos mártires. Não é o caso. O ponto de Agostinho é que não se deve orar pelos mártires, pois eles já venceram e estão no céu, os que ainda estão aqui é que precisam da oração deles. Esse é o significado de “a quem as orações nós mesmos deveríamos ser recomendados”. Seria como dizer “de quem das orações precisamos”. Isso fica mais claro a partir de outra citação:

(...) A justiça dos mártires é perfeita, porque se fizeram perfeitos ao sofrer a paixão. Esta é a razão pela qual não rezamos por eles na Igreja. Se reza pelos outros defuntos, não pelos mártires. Saíram tão perfeitos desta vida que não são nossos protegidos, mas nossos protetores. (...) (Sermão 285)

Esse é o argumento e ele não tem a invocação dos santos em vista. Encerro essa seção sobre oração chamando atenção ao fato de que Agostinho nunca menciona a intercessão de Maria. Mesmo tendo tratado desse tema em diversos contextos, a intercessão e o culto a Maria não são apontados, o que reforça nossa conclusão de um artigo anterior – Agostinho estava bem distante da mariologia romanista.

Incenso como figura de nossas orações

O incenso era empregado no Antigo Testamento no culto de adoração a Deus. O Novo Testamento identifica o incenso como uma figura das orações a Deus. Isso pode ser visto em Lc. 1:9-11 e Ap. 8:3-4. Está escrito:

Mas desde o nascente do sol até ao poente é grande entre os gentios o meu nome; e em todo o lugar se oferecerá ao meu nome incenso, e uma oferta pura; porque o meu nome é grande entre os gentios, diz o Senhor dos Exércitos. (Malaquias 1:11)

Suba a minha oração perante a tua face como incenso, e as minhas mãos levantadas sejam como o sacrifício da tarde. (Salmos 141:2)

Desde que a prática de oferecer incenso não fazia parte do culto da igreja primitiva, isso deveria se referir a outra coisa que o N.T indica serem as orações. Agostinho percebeu essa tipologia e escreveu:

"Suba a minha oração perante a tua face como incenso, e as minhas mãos levantadas sejam como o sacrifício da tarde" [Salmo 140: 2]. Oração então, puramente dirigida de um coração fiel, sobe como o incenso de um altar sagrado. Nada é mais agradável do que a fragrância do Senhor: tal fragrância é possuída por todos que acreditam. (Comentário sobre o Salmo 141:2)

Isso reforça a opinião de que Agostinho não ensinava que orações podiam ser endereçadas a outro que não Deus.

O culto aos santos

De modo que o bom servo, como eu disse, que já pode ser chamado um filho, não deseja que ele mesmo, mas que o seu senhor seja venerado. Pensai um pouco, irmãos e irmãs, e recordai o que assistis todos os dias; o que é realmente vos ensinado na igreja? Os fiéis sabem em que estilo os mártires são comemorados nos mistérios, quando os nossos desejos e orações são dirigidas a Deus. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon 198.12 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 190.)

Os mártires que a igreja comemorava em festas não deveriam ser venerados. E como deveria ser a comemoração? Envolvia algum tipo de culto religioso? Não, envolvia dirigir as orações a Deus. Se Agostinho ensinasse a invocação dos mártires, a comemoração do martírio seria o momento perfeito para invoca-los.

Pois Paulo e Barnabé estavam fazendo milagres em Cristo, porque eles tinham excedido os limites meramente humanos, os pagãos de acordo com seu costume chamaram Barnabé de Júpiter e Paulo de Mercúrio, porque ele era apto a falar, e eles já tinham começado a dedicar vítimas a eles. Eles ficaram tão horrorizados por esta honra que rasgaram as suas vestes e tentaram ensiná-los, da melhor forma possível, quem era o único a ser venerada, àquele por qual eles tinham o poder de fazer essas coisas. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon 198.13 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 193)

Ele (Deus) quer dizer que não tem necessidade de adoradores; você, no entanto, precisa adorá-lo. “Eu disse ao Senhor” diz o profeta, "meu Deus você é porque você não tem necessidade de minhas boas obras" (Sl 16: 2). Então, se somente Ele pode, sem orgulho exigir ser adorado, qualquer outro que exige isso e arrogar a si o direito de ser adorado como o seu pessoal e apropriado direito, não estando satisfeito com a veneração daquele que o criou, está exigindo isso por orgulho. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon 198.22 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 197)

Ele volta a repetir que apenas Deus deveria ser venerado.

Eu não digo que Ele é mediador porque Ele é a Palavra, pois como a Palavra, Ele é supremamente abençoado e supremamente imortal, e, portanto, longe das misérias mortais; mas Ele é Mediador como Ele é homem, pois pela sua humanidade Ele mostra-nos que, a fim de obter o bom e beatífico benefício, não precisamos procurar outros mediadores para nos conduzir através das etapas sucessivas desta realização, mas que o bem-aventurado e beatífico Deus, tendo se tornado participante da nossa humanidade nos proporcionou o pronto acesso na participação de Sua divindade. (NPNF1: Vol. II, The City of God, Book IX, Chapter 15)

A citação abaixo é utilizada para provar o contrário:

É verdade que os cristãos rendem honra religiosa à memória dos mártires, para excitar-nos a imitá-los, e para obter parte dos seus méritos, e a assistência das suas orações. Mas não construímos altares a nenhum mártir, mas ao Deus dos mártires, ainda que seja para a memória dos mártires (...) A oferta se faz a Deus, que deu a coroa do martírio, enquanto é em memória dos assim coroados (...) Consideramos os mártires com a mesma intimidade afetuosa que sentimos pelos homens santos de Deus nesta vida, quando sabemos que os seus corações estão preparados para suportar o mesmo sofrimento pela verdade do evangelho. Há mais devoção nos nossos sentimentos pelos mártires, porque sabemos que a sua luta terminou; e podemos falar com mais confiança em louvor daqueles já vencedores no céu, que dos que ainda combatem aqui. O que é culto propriamente divino, que os gregos chamam latria, e para o qual não há palavra em latim, tanto na doutrina como na prática, o damos só a Deus. A este culto corresponde a oferta de sacrifícios; como vemos na palavra idolatria, que significa dar este culto a ídolos. Consequentemente, nunca oferecemos, nem exigimos de ninguém que ofereça um sacrifício a um mártir, ou a uma alma santa, ou a algum anjo. Qualquer que caia neste erro é instruído pela doutrina, quer seja como correção ou como advertência. Pois os próprios seres santos, sejam santos ou anjos, se recusam a aceitar o que sabem que se deve só a Deus (...) Sacrificar aos mártires, mesmo jejuando, é pior que voltar a casa intoxicado da festa; sacrificar aos mártires, digo, o que é muito diferente que sacrificar a Deus em memória dos mártires, como o fazemos constantemente, da maneira requerida desde a revelação do Novo testamento, pois isso pertence ao culto ou latria que se deve só a Deus. (Contra Fausto XX)

Essa citação é comumente utilizada para referendar a invocação e o culto dos santos e Maria e o ensino do depósito de méritos. É notável que nessas passagens, ele nunca cita Maria. O foco são os mártires. Isso se deve porque o ponto de Agostinho não é render culto religioso ou invocar os mártires, mas através da comemoração do seu martírio, estimular nos crentes a mesma atitude fiel. Vamos por partes:

(1) Na primeira parte negritada, não é ensinado orar diretamente ao mártir, o que seria uma enorme inconsistência de Agostinho diante de outras citações de suas obras. É dito que através da honra a memória deles, os cristãos são estimulados a imitá-los;
(2) Obter parte de seus méritos se relaciona a toma-los como exemplo e realizar as mesmas obras. Não é dito que os méritos dos santos são transferidos aos crentes fazendo com que suas orações sejam respondidas. Isso é evidenciado na citação abaixo:

Não deixemos que nossa religião seja o culto aos mortos. Se eles viveram vidas piedosas, não se deve supor que eles procuram honras divinas. Eles querem que adoremos a Ele, em cuja luz se alegram por nos ter como participantes em seus méritos. Eles devem ser honrados por imitação e não adorados com ritos religiosos. (John H. S. Burleigh, trans., The Library of Christian Classics, Augustine: Earlier Writings, Of True Religion, lv, 108 (Philadelphia: The Westminster Press, 1953), p. 254)

O contexto acima permite inferir que participar nos méritos dos santos era honrá-los por imitação. Era tomar parte no exemplo que eles deram. Ele ainda diz que eles não devem ser cultuados ou adorados com ritos religiosos. A honra prestada aos mártires que Agostinho defendia não envolvia ritos religiosos. A prática romanista atual envolve exatamente o uso de ritos religiosos e não apenas a tomada dos mártires como exemplos de fé.

(3) Agostinho acredita que ao render honra a memória dos santos, eles são estimulados a orarem pelos cristãos, porém, mesmo nesse contexto, ele não diz que se deve orar ao santo para que ele ore pelo cristão. Para Agostinho, é possível que o santo ore pelo cristão sem que esse necessariamente ore a ele;
(4) Ele clarifica que a oferta e o altar eram feitos a Deus e não ao mártir, embora fosse em memória do mártir;
(5) Os católicos tentam enxergar ai uma distinção entre latia e dulia, mas ele diz que essa consideração com o mártir possui a mesma afetuosidade dispensada aos vivos, portanto, não pode se referir ao que se chama de dulia ou hiperdulia. Essa distinção entre latria, hiperdulia e dulia é do período escolástico e não faz parte da teologia de Agostinho.

Quanto a esses espíritos que são bons e que são não somente imortais, mas também abençoados, e a quem eles supõem que nós deveríamos dar o título de deuses e oferecer culto e sacrifícios para herdar a vida vindoura, devemos com a ajuda de Deus nos esforçar no seguinte livro para mostrar que esses espíritos, chamados pelo nome e atribuir a eles o que naturalmente você irá [atribuir], desejam que o culto religioso seja dado somente a Deus, por quem eles foram criados, e por cuja comunicação Dele próprio, eles são abençoados. (NPNF1-02 St. Augustine's City of God and Christian Doctrines, City of God, Chapter 23)

Agostinho afirma que o desejo dos mártires é que o culto religioso seja dado somente a Deus. No catolicismo romano, embora se diga que o culto aos santos é qualitativamente distinto, ainda assim é ensinado que culto de natureza religiosa deve ser dado a eles. A honra dada aos santos a que Agostinho se refere é distinta de um culto religioso. Seria a mesma honra que é dada a pessoas vivas. É possível reconhecer os méritos de cristãos ainda vivos que lutaram pela fé, assim como seria reconhecer e imitar a vida de homens já falecidos que batalharam pela fé. O que não é adequado é estabelecer um culto de natureza religiosa a esses homens. Os apologistas católicos trazem então uma citação, onde supostamente Agostinho adere a distinção latria, hiperdulia e dulia ensinada pela igreja romana:

Mas que o Espírito Santo não é uma criatura é muito simples por aquela passagem acima de todos os outros, onde somos ordenados para não servir a criatura, mas ao Criador, não no sentido em que somos ordenados a “servir” um ao outro pelo amor, que é douleuein [dúlia] em grego, mas naquele em que só Deus é servido, que está latreuein [latria] em grego. (Sobre a Santíssima Trindade Livro I, 6, 13 )

Agostinho traça sim uma distinção entre latria e dulia, mas o que ele chama de dulia é substancialmente diferente do conceito defendido pela igreja romana. Ele diz que um ato de dulia é servir amorosamente aos nossos irmãos. Ou seja, não há referência ao culto religioso aos santos. Alguém presta algum culto religioso aos seus irmãos vivos? Obviamente não, portanto, o que Agostinho tem em mente não é o que os católicos praticam. Tentando provar o contrário, é trazida a seguinte citação:

As almas dos falecidos piedosos não estão separadas da Igreja que mesmo hoje é o reino de Cristo. Caso contrário, não haveria memória deles no altar de Deus na comunhão do Corpo de Cristo. (A Cidade de Deus XX, 9, 2)

Essa citação é irrelevante para o pleito católico. Apenas expressa que os falecidos continuam fazendo parte da igreja. O que Agostinho chamou de dulia na citação anterior (servir ao outro) é distinto do que ele está falando nessa citação. Ninguém pode servir ao santo da maneira referida. Por já não estar entre nós, ninguém pode, por exemplo, ser caridoso com o falecido ou lhe prestar ajuda emocional, espiritual ou material. O que os católicos tentam identificar como culto aos santos era apenas honrar sua memória, relíquias e realizar festas em sua homenagem, mas Agostinho não ensinava que isso envolvesse orar aos santos – um dos elementos principais da doutrina romana, ou erguer altares e cultuar imagens. Agostinho também não ensinou o acúmulo de mérito pelos santos perante Deus, que poderiam ser transferidos a nós. Não por acaso, o ensino das indulgências era totalmente ausente das suas obras e só iria aparecer séculos depois:

Por último, apesar de irmãos morrerem por outros irmãos, o sangue de nenhum mártir é derramado para a remissão dos pecados dos irmãos, como foi o caso no que Ele [Jesus] fez por nós; e neste aspecto Ele não nos concedeu alguma coisa para a imitação, mas algo para felicitações. Na medida em que, como os mártires derramaram seu sangue pelos irmãos, eles apresentaram tais sinais de amor quando eles se perceberam na mesa do Senhor. Alguém poderia imitá-lo em morrer, mas ninguém poderia [imitá-lo] em redimir. (Tratado 84 sobre o Evangelho de João, Seção 2)

Comparem isso com o tesouro de méritos da igreja romana:

Este tesouro inclui também as orações e boas obras da Bem-Aventurada Virgem Maria. Eles são verdadeiramente imenso, insondável, e até mesmo como novos em seu valor diante de Deus. No tesouro também estão as orações e boas obras de todos os santos, todos aqueles que têm seguido os passos de Cristo Senhor e por sua graça fizeram suas vidas santas e realizaram a missão na unidade do Corpo Místico. (Catecismo §1477)

É adequado dizer que alguns homens tiveram méritos por viverem vidas santas e justas, mas o ensino que de os méritos desses homens formam um tesouro que a igreja pode aplicar aos crentes, inclusive remindo penas temporais é estanho ao pensamento agostiniano.  Para ele, apenas o sacrifício de Cristo redime pecados, nem mesmo o sacrifício dos mártires tem esse efeito.

O culto às imagens

O culto às imagens foi unanimemente condenado pelos pais da igreja mais antigos. Eles o consideravam uma prática pagã que os cristãos deveriam rejeitar como blasfemas. Veja aqui as citações a respeito. Agostinho não foi diferente:

Alguém cultua ou ora com os olhos fixos na imagem, sem estar convencido que a imagem está ouvindo a sua petição e sem esperança de que ela irá dar o que ele quer? Provavelmente não. Tão completamente enredados as pessoas se tornam em tais superstições que muitas vezes viram as costas para o sol real e fazem suas orações à estátua que eles chamam de sol; ou ainda, quando o som do mar os golpeia por trás, eles batem a estátua de Netuno com seus suspiros como se fosse consciente, aquela estátua que veneram como representante do mar real. O que causa esse erro, quase forçando a ilusão deles é a semelhança humana com todas as partes do corpo. As mentes dos adoradores estão acostumadas a viver com seus próprios sentidos corporais, e assim eles julgam que um corpo muito semelhante ao seu próprio é mais provavelmente sensível do que o sol, ou as grandes ondas, ou qualquer outro objeto claramente não construído no mesmo plano que as criaturas vivas que eles estão acostumados a ver. Pode-se alegar que nós mesmos temos muitos vasos e outros acessórios feitos de metais similares, que usamos na celebração dos sacramentos. Eles são consagrados ao serviço de Deus e são chamados santos em honra àquele que é adorado através da sua utilização para a nossa salvação. Tais vasos e instrumentos são obviamente a obra de mãos humanas: o que mais poderia ser? Mas eles têm bocas que nunca irão falar ou olhos que nunca irão ver? E o fato de que fazemos uso deles para oferecer as nossas súplicas a Deus significa que estamos implorando alguma coisa deles? Claro que não. A principal causa da insana e blasfema idolatria é esta: uma forma semelhante a uma pessoa viva - uma forma que por sua aparência realista parece exigir adoradores é mais poderosamente persuasiva para as emoções de seus suplicantes miseráveis do que o simples fato de que não está vivo e deve ser desprezado por quem está [vivo]. A evidência da boca, olhos, ouvidos, nariz, mãos e pés nos ídolos tem mais poder para conduzir uma alma infeliz ao desvio do que a incapacidade evidente da sua parte para falar, ver, ouvir, cheirar, pegar coisas, ou caminhar. O resultado inevitável é a deterioração que o salmo continua a descrever: Que aqueles que as formam se tornam como elas, e [também] todos os que põem a sua confiança neles. Deixam as pessoas com os olhos abertos e olhando as imagens que nem vivas estão, e deixar suas mentes ficarem fechadas e mortas como os que eles adoram. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Part 3, Vol. 19, trans. Maria Boulding, O.S.B., Expositions of the Psalms, Psalms 99-120, Exposition 2 of Psalm 113.5 (Psalm 114) (Hyde Park: New City Press, 2003), pp. 315-316)

Cinco apontamentos precisam ser feitos aqui:

(1)  Ele responde antecipadamente a objeção levantada pelos pagãos e hoje usada por muitos católicos de que não se cultua a imagem, mas apenas o que ela representa. Agostinho rejeitaria esse argumento usado para aprovação da prática;
(2)  A igreja cristã da época não tinha a prática de cultuar os santos através de imagens. Isso fica claro quando ele antevê a acusação pagã “temos muitos vasos e outros acessórios feitos de metais similares, que usamos na celebração dos sacramentos”. O melhor que os pagãos poderiam fazer era apontar para os utensílios dos sacramentos. Se os cristãos cultuavam imagens, essa seria uma acusação muito mais forte a ser usada pelos pagãos e Agostinho jamais iria ignorá-la nesse contexto;
(3)  O argumento de Agostinho para diferenciar o uso sacramental dos utensílios do culto às imagens pagãs poderia ser usado para atacar o culto às imagens dos santos. O argumento é que os utensílios não têm bocas que não falam e olhos que não veem e que ninguém suplicava aos próprios utensílios, mas dirigia a súplica a Deus. A mesma acusação feita contra os pagãos poderia ser feita contra a atual prática católica romana;
(4)  As imagens eram inúteis porque apesar de se assemelharem a pessoas vivas, elas estavam mortas. O mesmo se aplica às imagens de santos;
(5)  O culto às imagens era prejudicial ao que cultuava. O fato do bispo africano considerar essa prática tão blasfema sem estabelecer qualquer exceção a uma forma “santificada” desse culto torna impossível que apoiasse uma versão “cristã” da mesma prática.

Envergonhem-se todos os que servem a uma escultura, os que se gloriam nos ídolos! Mas avança um que se crê douto e diz: 'Eu não adoro uma pedra nem esta imagem que não tem sentimentos; porque não é possível que os vossos profetas tenham imaginado que tinham olhos e não viam, e que eu seja ignorante até ao ponto de não saber que a imagem não tem alma e não vê pelos seus olhos e não ouve pelos seus ouvidos. Eu não adoro isto; mas me inclino perante isto que vejo e sirvo àquele a quem não vejo', 'quem é este?'. 'Algum poder invisível - se nos diz - que radica nesta imagem'. Mediante este tipo de explicação acerca de suas imagens, pensam que são muito inteligentes e que de modo algum se os pode contar entre os adoradores de ídolos.  (Sobre Salmos 96, 2)

Agostinho condena novamente o argumento de que não se cultua a imagem, mas alguma coisa que ela representa. Os católicos podem objetar que ele estava condenando a prática de cultuar imagens de deuses pagãos, mas não faria o mesmo no caso de santos. Já argumentamos acima do porque esse raciocínio não se aplica. Destaca-se também que uma prática pecaminosa não se torna justa quando realizada num contexto cristão. Pelo contrário, ela se torna mais condenável.

[Varro] diz também que os antigos romanos, há mais de cento e setenta anos, adoravam os deuses sem uma imagem. "E se este costume", diz ele, "tivesse permanecido até agora, os deuses teriam sido mais puramente adorado". Em favor desta opinião, ele cita como testemunha entre outros a nação judaica, nem ele hesita em concluir que a passagem dita por aqueles que primeiro consagraram imagens ao povo, que tirou o temor religioso de seus concidadãos e aumentou o erro, por sabiamente pensarem que os deuses facilmente caíram em desprezo quando expostos sob a apatia das imagens. Mas, como ele não diz que eles têm transmitido erro, mas que eles têm aumentado, ele, portanto, deseja que seja entendido que houve erro, quando já não havia imagens. Por isso, quando ele diz que só eles têm percebido qual Deus é para ser acreditado como a alma que governa o mundo, e pensa que os ritos da religião teriam sido mais puramente observado sem imagens, quem não consegue ver quão perto ele chegou da verdade? Se ele tivesse sido capaz de fazer qualquer coisa contra tão inveterado erro, ele certamente teria dado como sua opinião, tanto que o único Deus deve ser adorado, e que Ele deve ser adorado sem uma imagem. (Cidade de Deus 4:31)

Quando essas coisas são encontradas em falhas tão supersticiosas, ele implica na culpa dos antigos que instituíram e adoraram tais imagens. Ou melhor, ele compromete a si mesmo que com a eloquência que tinha poderia livrar a si mesmo, mas ainda estava sob a necessidade de venerar essas imagens; nem se atrevia a não mais do que sussurrar em um discurso ao povo nesta disputa que ele claramente transmitiu adiante. Vamos cristãos dar graças ao Senhor nosso Deus, não para o céu e a terra, como o autor argumenta, mas para Aquele que fez o céu e a terra; porque essas superstições, as quais Balbo como um tagarela dificilmente reprendia, Ele, pela mais profunda humildade de Cristo, pela pregação dos apóstolos, pela fé dos mártires que morreram pela verdade e viveram por ela, tem derrubado, não só nos corações dos religiosos, mas mesmo nos templos dos supersticiosos, pelo seu próprio livre serviço. (Ibid., 4:30)

Agostinho dedica todo o livro quatro da obra “Cidade de Deus” para condenar as práticas da adoração pagã. Ele aponta autores pagãos que condenaram o uso das imagens. O bispo africano aprova a opinião desses autores. Isso deixa claro que ele não condenava a prática apenas num contexto pagão, mas também a condenaria num contexto cristão. Se ele concordou que mesmo no culto pagão, as imagens tornavam esse culto ainda mais reprovável, o problema não era apenas a quem as imagens representavam, mas o uso da imagem em si. É o que fica evidenciado quando diz “e pensa que os ritos da religião teriam sido mais puramente observado sem imagens, quem não consegue ver quão perto ele chegou da verdade?”. Destaca-se que o autor pagão e também Agostinho estavam cientes de que os judeus não cultuavam imagens. É de impressionar que apologistas católicos argumentem que a prática atual da igreja romana era aprovada na antiga nação de Israel. Por último, o pai da igreja procura contrastar a prática pagã com a prática cristã recomendada “Vamos cristãos dar graças ao Senhor nosso Deus, não para o céu e a terra, como o autor argumenta, mas para Aquele que fez o céu e a terra”. Em suma, enquanto os pagãos precisam de imagens para cultuarem os deuses, o cristão não precisava.

Os apologistas católicos trazem então citações irrelevantes que não contrariam nada do que foi exposto:

Pois, quando eles inventaram em suas mentes dizer que Cristo escreveu tal estirpe como esta aos Seus discípulos, eles se lembraram daqueles de Seus seguidores que poderiam ser melhores tomadas por pessoas a quem poderia mais facilmente ser crido como sendo os destinatário do que foi escritos por Cristo, os indivíduos que haviam mantido tido com ele mais amizade. E assim Pedro e Paulo lhes ocorreu, eu acredito que, só porque em muitos lugares tiveram a chance de ver esses dois apóstolos representados em imagens ambos em companhia com Ele. Pois Roma, de uma maneira especialmente honrada e solene, elogia os méritos de Pedro e de Paulo, por este motivo, entre outros, a saber, sofreram [martírio] no mesmo dia. (Harmonia dos Evangelhos Livro I, Capítulo X)

Primeiro, que não são imagens de escultura, mas figuras. Quem verificar a tradução em inglês aqui verá que o termo é “pictures” traduzido mais adequadamente como figuras ou retratos. Imagens em inglês seria “images”. E não é dito em lugar algum que os crentes cultuavam essas figuras. A fé reformada não condena o uso de figuras, ainda mais para educar os cristãos, como era o caso. O que é condenável é o culto a elas. O fato de muitas igrejas protestantes evitarem o uso de figuras ou imagens é uma medida de prudência, ainda mais em lugares como o Brasil em que a piedade popular é bastante idólatra. O que condenamos de fato é o culto as coisas criadas. Outra citação é a seguinte:

Mas no que diz respeito a imagens e estátuas, e outras obras deste tipo, que servem como representações das coisas, ninguém comete um erro, especialmente se elas são feitas por artistas qualificados, mas cada um, assim que vê as semelhanças, reconhece as coisas que são de semelhanças. (Doutrina Cristã livro II, Capítulo 25, Parágrafo 39)

O fato de os católicos apelarem a citações tão irrelevantes demonstra a falta de fundamentação para o seu pleito – provar o culto as imagens através dos pais da igreja. Agostinho não se referia a qualquer tipo de culto cristão, nem disse que deveriam ser feitas imagens dos santos e de Jesus para serem cultuadas. Ele apenas diz que não é errado fazer imagens ou esculturas artísticas. Isso fica óbvio quando afirma “especialmente se elas são feitas por artistas qualificados”. Ele está falando de arte e não de culto. Os protestantes concordam com isso. Mas na continuação da citação, ele diz:

E toda essa categoria é para ser contada entre os artifícios supérfluos dos homens...

Agostinho falava de coisas que não eram pecaminosas em si, mas as considerava supérfluas. Era apenas o capricho dos homens, o que mostra que ele não via nas esculturas uma forma de cultuar aos santos.

O apologista católico traz uma citação usada pelos protestantes para mostrar a condenação de Agostinho ao culto às imagens:

Confundidos sejam todos os que servem imagens esculpidas (Salmo 96,7). Porventura não fez isso acontecer? Porventura não foram confundidos? Não são eles diariamente confundidos? Pois imagens esculpidas são as imagens trazidas pela mão. Por que são todos os que servem imagens esculpidas, confundidos? Porque todas as pessoas têm visto Sua glória. Todas as nações agora confessam a glória de Cristo: que aqueles que adoram pedras se envergonhem. Porque as pedras estavam mortas, encontramos uma pedra viva, na verdade essas pedras nunca viveram, de modo que elas não podem ser chamadas até mesmo mortas, mas a nossa pedra está vivendo e já viveu com o Pai, e Ela morreu por nós, Ele reviveu, e vive agora, e a morte não tem mais domínio sobre ela. (Romanos 6, 9). Esta glória dele, nações reconheceram, eles deixam os templos, e correm para as igrejas. Será que eles ainda buscam adorar imagens de escultura? Será que eles não escolheram a abandonar seus ídolos? Eles foram abandonados por seus ídolos. Quem se glorifica nos seus ídolos. Mas há um certo opositor que parece que ele próprio aprendeu, e diz: ‘Eu não adoro essa pedra, nem que a imagem que é sem sentido...Eu não adoro esta imagem, mas eu adoro o que eu vejo, e servi-lo a quem eu ver não. Quem é esse? Uma divindade invisível,’ ele responde, ‘que preside essa imagem.’ Ao dar esta conta de suas imagens, eles parecem-se disputantes capazes, porque não adoram ídolos, e ainda adoram demônios. As coisas, porém, irmãos, diz o Apóstolo, que os gentios sacrificam, as sacrificam aos demônios, e não a Deus, sabemos que o ídolo não é nada, e que o que os gentios sacrificam, as sacrificam aos demônios e não a Deus, e não quero que sejais participantes com os demônios. Deixe-os, portanto, não se desculpar por esse motivo, que não são dedicados a ídolos insensatos, pois eles são bastante dedicados aos demônios, o que é mais perigoso. Porque, se eles apenas estavam adorando ídolos, pois não iriam ajudá-los, para eles não machucá-los, mas se você adorar e servir a demônios, eles mesmos serão os vossos mestres... (Salmo 96, 7)

O apologista tenta provar o contrário do significado claro com os seguintes argumentos:

(1)  Agostinho não condena a argumentação dos pagãos ao diferenciar a imagem do ídolo que é adorado. É o velho argumento de que a imagem apenas representa algo, sendo o representado o verdadeiro adorado;
(2)  Agostinho condena os pagãos porque eles utilizam essa diferenciação para adorar os deuses pagãos. Se essa mesma diferenciação fosse utilizada para cultuar imagens de santos, não haveria problema;
(3)  Se houvesse uma contradição real entre Agostinho e Tomás de Aquino, deveríamos preferir Tomás, pois ele representaria o amadurecimento da teologia agostiniana.

O argumento 1 já foi refutado nesse artigo em outras citações. Mas mesmo nessa citação ele não procede. O bispo africano diz “Confundidos sejam todos os que servem imagens esculpidas (Salmo 96,7)”. Ele não estabelece exceções ou qualificações. Todos aqueles que se servem de imagens esculpidas estão em engano. Mas o argumento dele é ainda mais profundo. Porque não devemos se utilizar de imagens esculpidas para cultuar algo? A resposta é “Porque todas as pessoas têm visto Sua glória. Todas as nações agora confessam a glória de Cristo”. Ou seja, como as nações viram a glória de Cristo e o confessavam, as imagens eram inúteis. Percebam que ele está se referindo a Cristo e não a um ídolo pagão. Se o argumento de Agostinho não fosse aplicável a Cristo, não faria nenhum sentido. Ele ainda faz um contraste entre os que adoram pedras e a pedra que era Cristo. O argumento é que as pedras estão mortas, mas Cristo está vivo. O mesmo caso se aplica ao culto das imagens dos santos e do próprio Cristo. As pedras que formam essas imagens também estão mortas. E porque ele utilizaria o exemplo de Cristo estando vivo, se ele aceitasse o culto à imagem do próprio Cristo?

Essa interpretação é ainda mais reforçada quando ele diz “Será que eles ainda buscam adorar imagens de escultura?”. As pessoas se convertiam e paravam de cultuar imagens. Como ele poderia usar esse argumento se as pessoas continuavam a cultuar imagens? Ele no mínimo daria muitas explicações como o culto às imagens na igreja cristã era diferente do paganismo. O problema é que mesmo condenando tão severamente os pagãos, ele nunca fez uma defesa de uma prática semelhante na igreja. A explicação plausível é que não havia prática semelhante na igreja. Vimos que os pagãos, ao acusarem os cristãos de fazerem a mesma coisa, apelaram aos utensílios dos sacramentos e não a imagens que eram cultuadas. 

A luz dos pontos acima, o argumento 2 também é falso. O bispo de Hipona condenava a prática em si, e não apenas porque era direcionada a ídolos pagãos. Vimos isso claramente numa citação anterior em que diz “Alguém cultua ou ora com os olhos fixos na imagem, sem estar convencido que a imagem está ouvindo a sua petição e sem esperança de que ela irá dar o que ele quer? Provavelmente não.” O fato de alguém orar a uma imagem e esperar que desse ato haja alguma reposta é uma atitude errada em si.

O argumento 3 é falacioso mesmo partindo de um pressuposto católico romano. Tomás de Aquino não era infalível e poderia cometer erros teológicos. Muito do seu pensamento nunca foi adotado pelo magistério oficial da igreja romana como a sua negação da concepção imaculada de Maria. E quem disse que ele iria amadurecer teologicamente as ideias de Agostinho, pelo contrário, sequer se pode dizer que eles faziam parte da mesma religião. Isso demonstramos ao longo dessa série de artigos.

As relíquias

Os apologistas católicos costumam citar o capítulo VIII do livro XXII da obra a Cidade de Deus. Nele, Agostinho cita pessoas que obtiveram milagres devido ao contato com as relíquias (restos mortais e objetos dos mártires). Nesse ponto, o bispo de Hipona ajudou involuntariamente a desenvolver o culto aos santos que já estava se tornando cada vez mais popular no início do séc. V, apesar de ele próprio não referendar esse culto. Isso pode ser visto a seguir:

Quando o bispo Prejecto chegou com uma relíquia do gloriosíssimo mártir Estêvão a Aguas Tibilitanas (ad Aquas Tibilitanas), veio ao seu encontro uma grande multidão. Uma mulher cega que ali se encontrava pediu que a levassem ao bispo portador da relíquia. Ofereceu as flores que levava, voltou a pegar nelas, aproximou-as dos olhos, e imediatamente ficou a ver. Exultando de alegria, caminhava ã frente dos que, estupefatos, ali estavam presentes, tomando o seu caminho sem precisar de guia para o resto da viagem. (Cidade de Deus Livro XXII, Capitulo VIII)

Observa-se que apesar do milagre ser atribuído ao contato com as relíquias, não é mencionado que alguém orou ao mártir antes obter o suposto milagre e mesmo quando ele menciona essa oração, não diz que invocar o mártir é correto. Outra questão seria se Agostinho ensinava a prestação de algum tipo de culto religioso às relíquias. A luz de tudo o que demonstramos, a resposta é não. A seguinte citação é comumente apontada:

Mas, no entanto, nós não construímos templos, e ordenamos sacerdotes, ritos e sacrifícios para estes mesmos mártires, porque não são nossos deuses, mas o seu Deus é o nosso Deus. Certamente honrarmos seus relicários, como os memoriais dos santos homens de Deus que se esforçaram para a verdade, mesmo até morte de seus corpos, para que a verdadeira religião pudesse ser conhecida, e as religiões falsas e fictícias expostas. (Cidade de Deus, livro VIII, capítulo 27)

Já demonstramos que o entendimento agostiniano de honrar aos mártires e suas relíquias é substancialmente diferente da atual prática romanista. Elementos primordiais dessa prática envolvem invocação dos falecidos, depósito de méritos, cultos às imagens, procissões, altares, promessas e outras manifestações. Esses elementos não faziam parte do ensino de Agostinho. Portanto, ele não pode ser contado como um apoiador das novidades romanistas. Para ele, honrar as relíquias envolvia tratar com respeito e cuidado os restos mortais e objetos de pessoas exemplares na caminhada da fé. Honrar a memória dos mártires era uma forma de incentivar os vivos a seguirem o exemplo de seus predecessores na fé. Óbvio que num cristianismo cada vez mais paganizado, essa prática originalmente inocente iria descambar na idolatria que saltava aos olhos nos tempos medievais e que ainda persiste nos dias atuais. Na continuação da citação acima, o bispo africano elucida o que ele considerava honrar as relíquias e memórias dos mártires:

Mas quem já ouviu um padre dos fiéis, de pé num altar construído para a honra e culto a Deus sobre o corpo santo de algum mártir, dizendo nas orações, eu ofereço-lhe um sacrifício a Pedro, Paulo ou Cipriano? Pois é a Deus que os sacrifícios são oferecidos em seus túmulos - o Deus que fez os homens e os mártires, e os associou aos anjos em honra celestial. A razão pela qual nós prestamos tais honras à sua memória é que ao fazê-lo, podemos tanto dar graças ao verdadeiro Deus por suas vitórias, e recordando-lhes de novo à memória, podemos nos estimular a imitá-los, procurando obter como coroas, chamando para nos ajudar esse mesmo Deus a quem eles chamavam. Portanto, a honra que o pedioso pode prestar nos lugares dos mártires é prestada à sua memória, e não por ritos sagrados ou sacrifícios oferecidos aos mortos como aos deuses.

A argumentação acima subentende que altares não eram construídos aos mártires, enquanto os romanistas constroem altares para os santos e Maria. Sacrifícios não eram oferecidos, hoje os católicos fazem promessas aos santos, sendo comum ver pessoas fazendo enormes sacrifícios envolvendo privações físicas ou materiais para algum santo. O princípio por detrás é o mesmo, enquanto os pagãos traziam oferendas para obterem o favor dos ídolos, os católicos fazem o mesmo para obter o favor do santo. A honra aqui referida não envolvia nada disso. O objetivo não era obter o favor ou proteção do falecido, mas honrar a Deus e estimular o exemplo. É notável o trecho “chamando para nos ajudar esse mesmo Deus a quem eles chamavam”. Mesmo nesse contexto, quem era invocado para obter ajuda? Eram os mártires invocados? Não, era o próprio Deus. Por tudo isso, podemos afirmar que Agostinho se oporia com veemência as práticas católicas romanas. 

2 comentários:

  1. Oi
    Eu já fui católico, hoje estou me distanciando do catolicismo, mas sempre fico confuso ao ver católicos usando falas de pais da igreja para justificar seus hábitos, e hoje vi uma sobre veneração de relíquias em que eles usam como desculpas um testemunho sobre Inácio de Antioquia que diz: "Apenas as partes mais duras de suas relíquias sagradas foram deixadas, as quais foram transportadas para Antioquia e envoltas em linho, como um tesouro inestimável deixado para a santa Igreja, pela graça que estava no mártir.” (Martírio de Santo Inácio de Antioquia – Capítulo VI)", como eu sei quais serão as desculpas dos católicos, queria saber se esse blog sabe me explicar: o que esse relato do martírio de Inácio quer dizer?
    Abraços

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    Respostas
    1. Meu último artigo trata disso:

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2017/08/a-veneracao-de-reliquias-e-evidencia.html

      Excluir

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