A oração aos Santos
Nós
já tratamos dos pais pré-nicenos e oração dos santos aqui. Demonstramos
que não há evidência confiável de um pai da Igreja desse período ensinando a
oração a outro que não Deus. Agostinho que foi um bispo do séc. V acreditava
que os crentes no céu oravam pela igreja na terra. Esse conceito de intercessão
dos santos é encontrado em algumas igrejas protestantes. Porém, assim como
outros pais da Igreja como Cipriano e Orígenes, ele ensinava que a oração
deveria ser dirigida a Deus através de Cristo. Dessa forma, Maria ou os santos
não deveriam ser diretamente invocados, o que é substancialmente diferente do
conceito católico romano. Recomendo o artigo aqui do blog “conhecereis a verdade” que tratou dessa questão. Católicos costumam afirmar
que pedir a intercessão dos santos é como pedir a um amigo que ore por você. Já
que a Escritura estimula a prática de orar uns pelos outros, a intercessão dos
santos estaria englobada nesse ensino. Essa analogia contém sérios defeitos. Um
evangélico não ora diretamente a outro irmão de igreja para que esse então ore
a Deus. Para que outra pessoa saiba de nossa intenção de oração, é preciso que
nos comuniquemos com ela, e isso só é possível entre pessoas vivas. Os
católicos têm sérias dificuldades em explicar como os falecidos podem ouvir e
responder milhares de orações ao redor do mundo. A igreja romana também ensina
que os santos acumularam méritos diante de Deus. Dessa forma, suas orações
seriam mais eficazes. Por isso, muitos doutores da igreja romana como Afonso de
Ligório ensinam que a oração de Maria é mais eficaz e seria atendida mais
rapidamente do que orar diretamente a Deus.
O
apologista católico traz várias citações aqui,
mas em nenhuma delas Agostinho ensina a invocação de Maria ou dos santos. E nem
poderia, pois ele escreveu:
E pode a sua própria oração
ser considerada pecaminosa. Isto
acontece porque nenhuma oração pode ser justa se não for oferecida através de
Cristo, a quem Judas vendeu pelo seu pecado monstruoso. Uma oração feita de outra maneira que não
através de Cristo não é meramente impotente para apagar o pecado; ela mesma se
torna pecado. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Part 3,
Vol. 19, trans. Maria Boulding, O.S.B., Expositions of the Psalms, Psalms 99-120,
Exposition of Psalm 108.9 (Psalm 109) (Hyde Park: New City Press, 2003), p.
247.)
Qualquer
oração não feita através de Cristo seria pecaminosa. Católicos alegam que
substituir a medição de Cristo pela do santo não é errado, alguns diriam que é
até recomendável. Comparemos Agostinho ao doutor da igreja romana Luís Maria
Grignion de Montfort:
(...)
Quando, pois, se lê nos escritos de São
Bernardo, São Bernardino, São Boaventura etc., que no Céu e na Terra tudo está
sujeito a Maria, até o próprio Deus, deve apenas entender-se que a autoridade
que Deus lhe quis conceder é tão grande que parece igualar o poder divino, e que as suas orações e súplicas são tão
poderosas junto de Deus que equivalem sempre a ordens junto da sua majestade.
(Jesus, Filho de Maria)
Deus Espírito Santo
comunicou a Maria, sua fiel esposa, os Seus dons inefáveis, e escolheu-a para dispensadora de tudo quanto possui.
Deste modo, Ela distribui a quem quer, quanto quer, como e quando quer todos os
Seus dons e graças, e nenhum dom celeste
é concedido aos homens sem que passe por suas mãos virginais. (Capítulo
Primeiro, Segundo princípio, A Obra da Santíssima Trindade em Maria)
Baseados na opinião dos
Padres da Igreja (entre outros, de Santo Agostinho, Santo Efrém, diácono de
Edessa, São Cirilo de Jerusalém, São Germano de Constantinopla, São João
Damasceno, Santo Anselmo, São Bernardo, São Bernardino, São Tomás e São
Boaventura), o douto e piedoso Suarez, da Companhia de Jesus, o sábio e devoto
Justo Lípsio, doutor de Lovaina, e
vários outros provaram, de maneira incontestável, que a Devoção à Santíssima
Virgem é necessária para a salvação. Provaram ainda que é sinal infalível
de reprovação - segundo o sentir do próprio Ecolampádio e de alguns outros
heréticos -, a falta de estima e amor à Santíssima Virgem, e que, pelo
contrário, é sinal certo de
predestinação ser-lhe inteira e verdadeiramente dedicado ou devoto.
(Tratado da verdadeira devoção à santíssima virgem Maria, item 40, pag. 53)
Esse
ensino não é encontrado em nenhum desses pais da igreja. Comparemos também a
Afonso de Ligório:
Muitas coisas se pedem a
Deus, e não se alcançam. Pedem-se a
Maria, e conseguem-se. (Glórias de Maria, pag. 118)
Tais
ideias são inteiramente contrárias ao pensamento de Agostinho, como veremos a
seguir:
Se alguém lhe disser:
"Invoque o anjo Gabriel desta forma, invoque Miguel dessa outra; ofereça
este pequeno ritual antigo, ou este mais moderno"; não se deixe levar, não concorde. E não se deixe enganar por ele só
porque os nomes desses anjos podem ser lidos nas Escrituras; observe antes qual
o papel dos anjos que lá pode ser lido, se
eles alguma vez exigiram de algum homem qualquer tipo de veneração religiosa
pessoal, ou em vez disso sempre desejaram que a glória fosse dada ao único Deus,
a quem eles obedecem. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint
Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P.,
Sermon 198.47 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 217)
Percebe-se
a contradição explícita. Invocar e venerar santos ou anjos é o que a igreja
romana ensina. Há um famoso vídeo na internet em que o Padre Paulo Ricardo diz que os evangélicos são otários e
orgulhosos por não orarem aos santos. Agostinho não compartilharia dessa
opinião:
Aqui o pensamento muito
triste me ocorre de que eu deveria lembrá-lo que Parmeniano, que já foi bispo
dos donatistas, teve a audácia de afirmar em uma de suas cartas que o bispo é o mediador entre o povo e Deus.
Você pode ver que eles estão se
colocando no lugar do noivo; eles estão corrompendo as almas dos outros com
um adultério sacrílego. Esse não é um caso de presunção, que me pareceria
totalmente incrível se não tivesse lido. Você vê, se o bispo é o mediador entre
o povo e Deus, segue-se que devemos aprender disso que há muitos mediadores, já
que há muitos bispos. Portanto, a fim de ler a carta de Parmeniano, vamos censurar
a carta do apóstolo Paulo, onde ele diz, Porque há um só Deus e um só Mediador
entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem (1Tm 2:5). Mas, entre os quais ele é
o mediador se não entre Deus e seu povo? Então entre Deus e seu corpo, porque a
Igreja é o seu corpo. Verdadeiramente
monstruoso, portanto, é essa arrogância da qual tem a audácia de tornar o bispo
um mediador, culpado da ilusão adúltera de reivindicar para si o casamento de
Cristo. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly
Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon
198.52 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 220)
É isso o que essas pessoas
sem medo ou vergonha dizem, que o bispo é um mediador entre Deus e os homens.
Claro, que o homem é um mediador, mas no partido de Donatus, para bloquear o caminho, não para liderar o
caminho, como Donatus faz; ele apresenta o seu próprio nome, você vê, para fechar o caminho para Cristo. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint
Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P.,
Sermon 198.55 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 222)
Agostinho
trata de um exemplo específico – um bispo donatista se colocando como mediador
entre os homens e Deus. Mas seu argumento é que colocar qualquer mediador entre
os homens e Deus é falha grave. Católicos costumam alegar que a mediação dos
santos não substitui a de Cristo, mas percebam que Agostinho diz “ele apresenta o seu próprio nome, você vê,
para fechar o caminho para Cristo”. A interposição de qualquer outro
mediador fechava o caminho para Cristo, enquanto os católicos alegam que Maria
é o melhor caminho para Jesus. Obviamente o bispo donatista não afirmava que
substituía Cristo ou seria outro caminho de salvação, mas o simples fato de se
colocar como um mediador foi suficiente para causar a resposta de Agostinho.
Em duas coisas, portanto,
ele deve ter cuidado ao orar; que ele não peça o que não deveria; e que ele não peça a quem não deveria.
Do diabo, dos ídolos, dos espíritos malignos, nada deve ser pedido. Desde que o
Senhor nosso Deus Jesus Cristo, Deus o Pai dos Profetas e dos Apóstolos e dos
Mártires, do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do Deus que fez o céu, a terra,
o mar e tudo o que nele há, Dele devemos
pedir tudo que temos necessidade. (Sermão 6, Seção 2)
Interessante
que Agostinho menciona os mártires no contexto e ainda assim afirma que a Deus
devemos pedir tudo que precisamos. Isso corrobora o ensino de que a oração deve
ser dirigida somente a Deus através de Cristo.
Citações
em que Agostinho supostamente ensina a oração aos mártires
Apesar
do grande número de citações trazidas pelo apologista católico, somente duas
delas mencionam pessoas orando aos mártires:
Em Hipona, certo Basso,
sírio, orava sobre as relíquias do mesmo
mártir [Estevão] por uma filha que se encontrava gravemente doente. Tinha
trazido para lá um vestido dela. Nisto saem de casa uns servos para lhe
anunciarem a morte da doente. Mas como ele estava a rezar, uns amigos
detiveram-nos e impediram-nos de lhe falarem para não chorasse perante o
público. Quando voltou a casa onde já ressoavam as lamentações dos seus, pôs
sobre ela o vestido que trazia da filha e ela voltou à vida.
(Cidade de Deus Livro XXII, Capitulo VIII)
Não
se pode dizer que esse é o relato de alguém orando ao mártir. Agostinho
menciona que o homem orava sobre as relíquias do mártir, mas não diz a quem
orava. No mesmo capítulo, vários milagres envolvendo as relíquias são narrados,
e na maioria deles não é mencionada qualquer oração ao mártir. A pressuposição
de qualquer milagre narrado envolvia uma oração anterior ao mártir não se
encontra nessa obra de Agostinho.
Ele
orou aos 20 mártires,
tão celebrados entre nós, e pediu-lhes em alta voz com o que se vestir (...)
Mas o cozinheiro, ao abrir o peixe, encontrou no ventre um anel de ouro e
imediatamente, tomado de compaixão e possuído de religioso temor, entregou-o ao
homem, dizendo: Veja como os vinte mártires te vestiram.
(Ibid)
De
fato está claro que o homem orava ao mártir. Ele narra o fato sem reprová-lo e
acredita que o homem foi abençoado, mas nenhum juízo de valor a respeito da
oração em si é feito, seja aprovando ou reprovando. É possível que Agostinho
tenha sido inconsistente aqui? Sim, isso não é incomum nos pais da igreja.
Seria possível que ele tivesse mudado de ideia? Também é possível. Mas a luz de
todas as outras obras desse pai da igreja, a hipótese mais provável é que ele passou
a tolerar essa prática que ficava cada vez mais popular no final do quarto
século, mas não a visse como doutrinariamente correta. O fato de ele acreditar
que o homem foi abençoado pela oração não mostra que ele a aprovava. Muitos
evangélicos acreditam que orações direcionadas a Maria ou aos santos podem ser
respondias por Deus por pura misericórdia, mesmo considerando a prática em si
errada. O bispo africano poderia partilhar de opinião semelhante. Nota-se
também que a intenção dele é mostrar que os milagres ainda aconteciam, não
fazendo nenhum juízo de valor sobre os meios pelos quais os milagres
aconteceram.
Há uma disciplina
eclesiástica, como os fiéis sabem, quando os nomes dos mártires são lidos em
voz alta no altar de Deus, a oração não
é oferecida por eles. A oração, no entanto, é oferecida pelos mortos que são
lembrados. Por que é errado rezar
por um mártir, a quem as orações nós mesmos deveríamos ser recomendados.
(Sermões 159, 1)
A
parte negritada foi apresentada como dizendo que devemos orar aos mártires. Não
é o caso. O ponto de Agostinho é que não se deve orar pelos mártires, pois eles
já venceram e estão no céu, os que ainda estão aqui é que precisam da oração
deles. Esse é o significado de “a quem as
orações nós mesmos deveríamos ser recomendados”. Seria como dizer “de quem
das orações precisamos”. Isso fica mais claro a partir de outra citação:
(...) A justiça dos mártires
é perfeita, porque se fizeram perfeitos ao sofrer a paixão. Esta é a razão pela qual não rezamos por
eles na Igreja. Se reza pelos outros defuntos, não pelos mártires. Saíram
tão perfeitos desta vida que não são nossos protegidos, mas nossos protetores.
(...) (Sermão 285)
Esse
é o argumento e ele não tem a invocação dos santos em vista. Encerro essa seção
sobre oração chamando atenção ao fato de que Agostinho nunca menciona a
intercessão de Maria. Mesmo tendo tratado desse tema em diversos contextos, a
intercessão e o culto a Maria não são apontados, o que reforça nossa conclusão
de um artigo anterior – Agostinho estava bem distante da mariologia romanista.
Incenso
como figura de nossas orações
O
incenso era empregado no Antigo Testamento no culto de adoração a Deus. O Novo
Testamento identifica o incenso como uma figura das orações a Deus. Isso pode
ser visto em Lc. 1:9-11 e Ap. 8:3-4. Está escrito:
Mas
desde o nascente do sol até ao poente é grande entre os gentios o meu nome; e em todo o lugar se oferecerá ao meu nome
incenso, e uma oferta pura; porque o meu nome é grande entre os gentios,
diz o Senhor dos Exércitos. (Malaquias 1:11)
Suba a minha oração perante
a tua face como incenso, e as minhas
mãos levantadas sejam como o sacrifício da tarde. (Salmos
141:2)
Desde
que a prática de oferecer incenso não fazia parte do culto da igreja primitiva,
isso deveria se referir a outra coisa que o N.T indica serem as orações.
Agostinho percebeu essa tipologia e escreveu:
"Suba a minha oração
perante a tua face como incenso, e as minhas mãos levantadas sejam como o
sacrifício da tarde" [Salmo 140: 2]. Oração então, puramente dirigida de um coração fiel, sobe como o incenso de um altar
sagrado. Nada é mais agradável do que a fragrância do Senhor: tal
fragrância é possuída por todos que acreditam.
(Comentário sobre o Salmo 141:2)
Isso
reforça a opinião de que Agostinho não ensinava que orações podiam ser
endereçadas a outro que não Deus.
O
culto aos santos
De modo que o bom servo,
como eu disse, que já pode ser chamado um filho, não deseja que ele mesmo, mas que o seu senhor seja venerado.
Pensai um pouco, irmãos e irmãs, e recordai o que assistis todos os dias; o que
é realmente vos ensinado na igreja? Os
fiéis sabem em que estilo os mártires são comemorados nos mistérios, quando os
nossos desejos e orações são dirigidas a Deus. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint
Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P.,
Sermon 198.12 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 190.)
Os
mártires que a igreja comemorava em festas não deveriam ser venerados. E como
deveria ser a comemoração? Envolvia algum tipo de culto religioso? Não,
envolvia dirigir as orações a Deus. Se Agostinho ensinasse a invocação dos mártires,
a comemoração do martírio seria o momento perfeito para invoca-los.
Pois Paulo e Barnabé estavam
fazendo milagres em Cristo, porque eles tinham excedido os limites meramente
humanos, os pagãos de acordo com seu costume chamaram Barnabé de Júpiter e
Paulo de Mercúrio, porque ele era apto a falar, e eles já tinham começado a
dedicar vítimas a eles. Eles ficaram tão
horrorizados por esta honra que rasgaram as suas vestes e tentaram
ensiná-los, da melhor forma possível, quem
era o único a ser venerada, àquele por qual eles tinham o poder de fazer essas
coisas. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly
Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon 198.13
(Hyde Park: New City Press, 1997), p. 193)
Ele (Deus) quer dizer que
não tem necessidade de adoradores; você, no entanto, precisa adorá-lo. “Eu disse
ao Senhor” diz o profeta, "meu Deus você é porque você não tem necessidade
de minhas boas obras" (Sl 16: 2). Então, se somente Ele pode, sem orgulho
exigir ser adorado, qualquer outro que
exige isso e arrogar a si o direito de ser adorado como o seu pessoal e
apropriado direito, não estando satisfeito com a veneração daquele que o criou,
está exigindo isso por orgulho. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint
Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P.,
Sermon 198.22 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 197)
Ele
volta a repetir que apenas Deus deveria ser venerado.
Eu não digo que Ele é
mediador porque Ele é a Palavra, pois como a Palavra, Ele é supremamente abençoado
e supremamente imortal, e, portanto, longe das misérias mortais; mas Ele é
Mediador como Ele é homem, pois pela sua humanidade Ele mostra-nos que, a fim
de obter o bom e beatífico benefício, não
precisamos procurar outros mediadores para nos conduzir através das etapas
sucessivas desta realização, mas que o bem-aventurado e beatífico Deus,
tendo se tornado participante da nossa humanidade nos proporcionou o pronto
acesso na participação de Sua divindade. (NPNF1: Vol. II, The City of God, Book IX, Chapter 15)
A
citação abaixo é utilizada para provar o contrário:
É
verdade que os cristãos rendem honra religiosa à memória dos mártires, para
excitar-nos a imitá-los, e para obter parte dos seus méritos, e a assistência
das suas orações.
Mas não construímos altares a nenhum mártir, mas ao Deus dos mártires, ainda
que seja para a memória dos mártires (...) A oferta se faz a Deus, que deu a
coroa do martírio, enquanto é em memória dos assim coroados (...) Consideramos os mártires com a mesma
intimidade afetuosa que sentimos pelos homens santos de Deus nesta vida, quando
sabemos que os seus corações estão preparados para suportar o mesmo sofrimento
pela verdade do evangelho. Há mais devoção nos nossos sentimentos pelos
mártires, porque sabemos que a sua luta terminou; e podemos falar com mais
confiança em louvor daqueles já vencedores no céu, que dos que ainda combatem
aqui. O que é culto propriamente divino,
que os gregos chamam latria, e para o qual não há palavra em latim, tanto na
doutrina como na prática, o damos só a Deus. A este culto corresponde a
oferta de sacrifícios; como vemos na palavra idolatria, que significa dar este
culto a ídolos. Consequentemente, nunca oferecemos, nem exigimos de ninguém que
ofereça um sacrifício a um mártir, ou a uma alma santa, ou a algum anjo.
Qualquer que caia neste erro é instruído pela doutrina, quer seja como correção
ou como advertência. Pois os próprios seres santos, sejam santos ou anjos, se
recusam a aceitar o que sabem que se deve só a Deus (...) Sacrificar aos mártires, mesmo jejuando, é pior que voltar a casa
intoxicado da festa; sacrificar aos mártires, digo, o que é muito diferente que
sacrificar a Deus em memória dos mártires, como o fazemos constantemente,
da maneira requerida desde a revelação do Novo testamento, pois isso pertence
ao culto ou latria que se deve só a Deus. (Contra Fausto XX)
Essa
citação é comumente utilizada para referendar a invocação e o culto dos santos
e Maria e o ensino do depósito de méritos. É notável que nessas passagens, ele
nunca cita Maria. O foco são os mártires. Isso se deve porque o ponto de
Agostinho não é render culto religioso ou invocar os mártires, mas através da
comemoração do seu martírio, estimular nos crentes a mesma atitude fiel. Vamos
por partes:
(1)
Na primeira parte negritada, não é ensinado orar diretamente ao mártir, o que
seria uma enorme inconsistência de Agostinho diante de outras citações de suas
obras. É dito que através da honra a memória deles, os cristãos são estimulados
a imitá-los;
(2)
Obter parte de seus méritos se relaciona a toma-los como exemplo e realizar as
mesmas obras. Não é dito que os méritos dos santos são transferidos aos crentes
fazendo com que suas orações sejam respondidas. Isso é evidenciado na citação
abaixo:
Não deixemos que nossa
religião seja o culto aos mortos. Se eles viveram vidas piedosas, não se deve
supor que eles procuram honras divinas. Eles
querem que adoremos a Ele, em cuja luz se alegram por nos ter como
participantes em seus méritos. Eles devem ser honrados por imitação e não
adorados com ritos religiosos. (John H. S. Burleigh, trans., The Library of Christian
Classics, Augustine: Earlier Writings, Of True Religion, lv, 108 (Philadelphia:
The Westminster Press, 1953), p. 254)
O
contexto acima permite inferir que participar nos méritos dos santos era
honrá-los por imitação. Era tomar parte no exemplo que eles deram. Ele ainda
diz que eles não devem ser cultuados ou adorados com ritos religiosos. A honra
prestada aos mártires que Agostinho defendia não envolvia ritos religiosos. A
prática romanista atual envolve exatamente o uso de ritos religiosos e não
apenas a tomada dos mártires como exemplos de fé.
(3)
Agostinho acredita que ao render honra a memória dos santos, eles são
estimulados a orarem pelos cristãos, porém, mesmo nesse contexto, ele não diz
que se deve orar ao santo para que ele ore pelo cristão. Para Agostinho, é
possível que o santo ore pelo cristão sem que esse necessariamente ore a ele;
(4)
Ele clarifica que a oferta e o altar eram feitos a Deus e não ao mártir, embora
fosse em memória do mártir;
(5)
Os católicos tentam enxergar ai uma distinção entre latia e dulia, mas ele diz
que essa consideração com o mártir possui a mesma afetuosidade dispensada aos
vivos, portanto, não pode se referir ao que se chama de dulia ou hiperdulia.
Essa distinção entre latria, hiperdulia e dulia é do período escolástico e não
faz parte da teologia de Agostinho.
Quanto a esses espíritos que
são bons e que são não somente imortais, mas também abençoados, e a quem eles
supõem que nós deveríamos dar o título de deuses e oferecer culto e sacrifícios para herdar a vida vindoura, devemos
com a ajuda de Deus nos esforçar no seguinte livro para mostrar que esses
espíritos, chamados pelo nome e atribuir a eles o que naturalmente você irá
[atribuir], desejam que o culto
religioso seja dado somente a Deus, por quem eles foram criados, e por cuja
comunicação Dele próprio, eles são abençoados. (NPNF1-02 St.
Augustine's City of God and Christian Doctrines, City of God, Chapter 23)
Agostinho afirma que o desejo dos mártires é que o
culto religioso seja dado somente a Deus. No catolicismo romano, embora se diga
que o culto aos santos é qualitativamente distinto, ainda assim é ensinado que
culto de natureza religiosa deve ser dado a eles. A honra dada aos santos a que
Agostinho se refere é distinta de um culto religioso. Seria a mesma honra que é
dada a pessoas vivas. É possível reconhecer os méritos de cristãos ainda vivos
que lutaram pela fé, assim como seria reconhecer e imitar a vida de homens já
falecidos que batalharam pela fé. O que não é adequado é estabelecer um culto
de natureza religiosa a esses homens. Os apologistas católicos trazem então uma
citação, onde supostamente Agostinho adere a distinção latria, hiperdulia e
dulia ensinada pela igreja romana:
Mas que o Espírito Santo não
é uma criatura é muito simples por aquela passagem acima de todos os outros,
onde somos ordenados para não servir a criatura, mas ao Criador, não no sentido em que somos ordenados a
“servir” um ao outro pelo amor, que é douleuein [dúlia] em grego, mas
naquele em que só Deus é servido, que está latreuein [latria] em grego. (Sobre
a Santíssima Trindade Livro I, 6, 13 )
Agostinho
traça sim uma distinção entre latria e dulia, mas o que ele chama de dulia é
substancialmente diferente do conceito defendido pela igreja romana. Ele diz
que um ato de dulia é servir amorosamente aos nossos irmãos. Ou seja, não há referência
ao culto religioso aos santos. Alguém presta algum culto religioso aos seus
irmãos vivos? Obviamente não, portanto, o que Agostinho tem em mente não é o
que os católicos praticam. Tentando provar o contrário, é trazida a seguinte
citação:
As
almas dos falecidos piedosos não estão separadas da Igreja que mesmo hoje é o reino de Cristo.
Caso contrário, não haveria memória
deles no altar de Deus na comunhão do Corpo de Cristo. (A
Cidade de Deus XX, 9, 2)
Essa
citação é irrelevante para o pleito católico. Apenas expressa que os falecidos
continuam fazendo parte da igreja. O que Agostinho chamou de dulia na citação
anterior (servir ao outro) é distinto do que ele está falando nessa citação.
Ninguém pode servir ao santo da maneira referida. Por já não estar entre nós,
ninguém pode, por exemplo, ser caridoso com o falecido ou lhe prestar ajuda
emocional, espiritual ou material. O que os católicos tentam identificar como
culto aos santos era apenas honrar sua memória, relíquias e realizar festas em
sua homenagem, mas Agostinho não ensinava que isso envolvesse orar aos santos –
um dos elementos principais da doutrina romana, ou erguer altares e cultuar
imagens. Agostinho também não ensinou o acúmulo de mérito pelos santos perante
Deus, que poderiam ser transferidos a nós. Não por acaso, o ensino das indulgências
era totalmente ausente das suas obras e só iria aparecer séculos depois:
Por último, apesar de irmãos
morrerem por outros irmãos, o sangue de
nenhum mártir é derramado para a remissão dos pecados dos irmãos, como foi
o caso no que Ele [Jesus] fez por nós; e neste aspecto Ele não nos concedeu
alguma coisa para a imitação, mas algo para felicitações. Na medida em que,
como os mártires derramaram seu sangue pelos irmãos, eles apresentaram tais
sinais de amor quando eles se perceberam na mesa do Senhor. Alguém poderia imitá-lo em morrer, mas
ninguém poderia [imitá-lo] em redimir. (Tratado 84 sobre o
Evangelho de João, Seção 2)
Comparem
isso com o tesouro de méritos da igreja romana:
Este tesouro inclui também
as orações e boas obras da Bem-Aventurada Virgem Maria. Eles são
verdadeiramente imenso, insondável, e até mesmo como novos em seu valor diante
de Deus. No tesouro também estão as
orações e boas obras de todos os santos, todos aqueles que têm seguido os
passos de Cristo Senhor e por sua graça fizeram suas vidas santas e realizaram
a missão na unidade do Corpo Místico. (Catecismo §1477)
É
adequado dizer que alguns homens tiveram méritos por viverem vidas santas e
justas, mas o ensino que de os méritos desses homens formam um tesouro que a
igreja pode aplicar aos crentes, inclusive remindo penas temporais é estanho ao
pensamento agostiniano. Para ele, apenas
o sacrifício de Cristo redime pecados, nem mesmo o sacrifício dos mártires tem
esse efeito.
O
culto às imagens
O
culto às imagens foi unanimemente condenado pelos pais da igreja mais antigos.
Eles o consideravam uma prática pagã que os cristãos deveriam rejeitar como
blasfemas. Veja aqui as citações a respeito.
Agostinho não foi diferente:
Alguém
cultua ou ora com os olhos fixos na imagem, sem estar convencido que a imagem
está ouvindo a sua petição e sem esperança de que ela irá dar o que ele quer?
Provavelmente não. Tão
completamente enredados as pessoas se tornam em tais superstições que muitas
vezes viram as costas para o sol real e fazem suas orações à estátua que eles
chamam de sol; ou ainda, quando o som do mar os golpeia por trás, eles batem a
estátua de Netuno com seus suspiros como se fosse consciente, aquela estátua
que veneram como representante do mar real. O que causa esse erro, quase
forçando a ilusão deles é a semelhança humana com todas as partes do corpo. As
mentes dos adoradores estão acostumadas a viver com seus próprios sentidos
corporais, e assim eles julgam que um corpo muito semelhante ao seu próprio é
mais provavelmente sensível do que o sol, ou as grandes ondas, ou qualquer
outro objeto claramente não construído no mesmo plano que as criaturas vivas
que eles estão acostumados a ver. Pode-se
alegar que nós mesmos temos muitos vasos e outros acessórios feitos de metais
similares, que usamos na celebração dos sacramentos. Eles são consagrados ao
serviço de Deus e são chamados santos em honra àquele que é adorado através da
sua utilização para a nossa salvação. Tais vasos e instrumentos são obviamente
a obra de mãos humanas: o que mais poderia ser? Mas eles têm bocas que nunca irão falar ou olhos que nunca irão ver? E
o fato de que fazemos uso deles para oferecer as nossas súplicas a Deus
significa que estamos implorando alguma coisa deles? Claro que não. A
principal causa da insana e blasfema idolatria é esta: uma forma semelhante a
uma pessoa viva - uma forma que por sua aparência realista parece exigir
adoradores é mais poderosamente persuasiva para as emoções de seus suplicantes
miseráveis do que o simples fato de que não está vivo e deve ser desprezado por
quem está [vivo]. A evidência da boca,
olhos, ouvidos, nariz, mãos e pés nos ídolos tem mais poder para conduzir uma
alma infeliz ao desvio do que a incapacidade evidente da sua parte para falar,
ver, ouvir, cheirar, pegar coisas, ou caminhar. O resultado inevitável é a
deterioração que o salmo continua a descrever: Que aqueles que as formam se tornam como elas, e [também] todos os que
põem a sua confiança neles. Deixam
as pessoas com os olhos abertos e olhando as imagens que nem vivas estão, e
deixar suas mentes ficarem fechadas e mortas como os que eles adoram. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint
Augustine, Part 3, Vol. 19, trans. Maria Boulding, O.S.B., Expositions of the
Psalms, Psalms 99-120, Exposition 2 of Psalm 113.5 (Psalm 114) (Hyde Park: New
City Press, 2003), pp. 315-316)
Cinco
apontamentos precisam ser feitos aqui:
(1) Ele
responde antecipadamente a objeção levantada pelos pagãos e hoje usada por
muitos católicos de que não se cultua a imagem, mas apenas o que ela
representa. Agostinho rejeitaria esse argumento usado para aprovação da
prática;
(2) A
igreja cristã da época não tinha a prática de cultuar os santos através de
imagens. Isso fica claro quando ele antevê a acusação pagã “temos muitos vasos
e outros acessórios feitos de metais similares, que usamos na celebração dos
sacramentos”. O melhor que os pagãos poderiam fazer era apontar para os
utensílios dos sacramentos. Se os cristãos cultuavam imagens, essa seria uma
acusação muito mais forte a ser usada pelos pagãos e Agostinho jamais iria
ignorá-la nesse contexto;
(3) O
argumento de Agostinho para diferenciar o uso sacramental dos utensílios do
culto às imagens pagãs poderia ser usado para atacar o culto às imagens dos
santos. O argumento é que os utensílios não têm bocas que não falam e olhos que
não veem e que ninguém suplicava aos próprios utensílios, mas dirigia a súplica
a Deus. A mesma acusação feita contra os pagãos poderia ser feita contra a
atual prática católica romana;
(4) As
imagens eram inúteis porque apesar de se assemelharem a pessoas vivas, elas estavam
mortas. O mesmo se aplica às imagens de santos;
(5) O
culto às imagens era prejudicial ao que cultuava. O fato do bispo africano
considerar essa prática tão blasfema sem estabelecer qualquer exceção a uma
forma “santificada” desse culto torna impossível que apoiasse uma versão
“cristã” da mesma prática.
Envergonhem-se
todos os que servem a uma escultura, os que se gloriam nos ídolos! Mas
avança um que se crê douto e diz: 'Eu não adoro uma pedra nem esta imagem
que não tem sentimentos; porque não é possível que os vossos profetas tenham
imaginado que tinham olhos e não viam, e que eu seja ignorante até ao ponto de
não saber que a imagem não tem alma e não vê pelos seus olhos e não ouve pelos
seus ouvidos. Eu não adoro isto; mas me inclino perante isto que vejo e sirvo
àquele a quem não vejo', 'quem é este?'. 'Algum poder invisível - se nos diz -
que radica nesta imagem'. Mediante este
tipo de explicação acerca de suas imagens, pensam que são muito inteligentes e
que de modo algum se os pode contar entre os adoradores de ídolos. (Sobre Salmos 96, 2)
Agostinho
condena novamente o argumento de que não se cultua a imagem, mas alguma coisa
que ela representa. Os católicos podem objetar que ele estava condenando a
prática de cultuar imagens de deuses pagãos, mas não faria o mesmo no caso de
santos. Já argumentamos acima do porque esse raciocínio não se aplica.
Destaca-se também que uma prática pecaminosa não se torna justa quando
realizada num contexto cristão. Pelo contrário, ela se torna mais condenável.
[Varro] diz também que os
antigos romanos, há mais de cento e setenta anos, adoravam os deuses sem uma imagem. "E se este costume",
diz ele, "tivesse permanecido até agora, os deuses teriam sido mais
puramente adorado". Em favor desta
opinião, ele cita como testemunha entre outros a nação judaica, nem ele
hesita em concluir que a passagem dita por aqueles que primeiro consagraram
imagens ao povo, que tirou o temor religioso de seus concidadãos e aumentou o
erro, por sabiamente pensarem que os deuses facilmente caíram em desprezo
quando expostos sob a apatia das imagens. Mas, como ele não diz que eles têm
transmitido erro, mas que eles têm aumentado, ele, portanto, deseja que seja
entendido que houve erro, quando já não havia imagens. Por isso, quando ele diz
que só eles têm percebido qual Deus é para ser acreditado como a alma que
governa o mundo, e pensa que os ritos da
religião teriam sido mais puramente observado sem imagens, quem não consegue
ver quão perto ele chegou da verdade? Se ele tivesse sido capaz de fazer
qualquer coisa contra tão inveterado erro, ele certamente teria dado como sua
opinião, tanto que o único Deus deve ser adorado, e que Ele deve ser adorado
sem uma imagem. (Cidade de Deus 4:31)
Quando essas coisas são
encontradas em falhas tão supersticiosas, ele
implica na culpa dos antigos que instituíram e adoraram tais imagens. Ou
melhor, ele compromete a si mesmo que com a eloquência que tinha poderia livrar
a si mesmo, mas ainda estava sob a
necessidade de venerar essas imagens; nem se atrevia a não mais do que
sussurrar em um discurso ao povo nesta disputa que ele claramente transmitiu
adiante. Vamos cristãos dar graças ao
Senhor nosso Deus, não para o céu e a terra, como o autor argumenta, mas para
Aquele que fez o céu e a terra; porque essas superstições, as quais Balbo
como um tagarela dificilmente reprendia, Ele, pela mais profunda humildade de
Cristo, pela pregação dos apóstolos, pela fé dos mártires que morreram pela
verdade e viveram por ela, tem derrubado, não só nos corações dos religiosos,
mas mesmo nos templos dos supersticiosos, pelo seu próprio livre serviço.
(Ibid., 4:30)
Agostinho
dedica todo o livro quatro da obra “Cidade de Deus” para condenar as práticas
da adoração pagã. Ele aponta autores pagãos que condenaram o uso das imagens. O
bispo africano aprova a opinião desses autores. Isso deixa claro que ele não
condenava a prática apenas num contexto pagão, mas também a condenaria num
contexto cristão. Se ele concordou que mesmo no culto pagão, as imagens
tornavam esse culto ainda mais reprovável, o problema não era apenas a quem as
imagens representavam, mas o uso da imagem em si. É o que fica evidenciado
quando diz “e pensa que os ritos da religião teriam sido mais puramente
observado sem imagens, quem não consegue ver quão perto ele chegou da verdade?”.
Destaca-se que o autor pagão e também Agostinho estavam cientes de que os
judeus não cultuavam imagens. É de impressionar que apologistas católicos
argumentem que a prática atual da igreja romana era aprovada na antiga nação de
Israel. Por último, o pai da igreja procura contrastar a prática pagã com a
prática cristã recomendada “Vamos cristãos dar graças ao Senhor nosso Deus, não
para o céu e a terra, como o autor argumenta, mas para Aquele que fez o céu e a
terra”. Em suma, enquanto os pagãos precisam de imagens para cultuarem os deuses,
o cristão não precisava.
Os
apologistas católicos trazem então citações irrelevantes que não contrariam
nada do que foi exposto:
Pois, quando eles inventaram
em suas mentes dizer que Cristo escreveu tal estirpe como esta aos Seus
discípulos, eles se lembraram daqueles de Seus seguidores que poderiam ser
melhores tomadas por pessoas a quem poderia mais facilmente ser crido como
sendo os destinatário do que foi escritos por Cristo, os indivíduos que haviam
mantido tido com ele mais amizade. E assim Pedro e Paulo lhes ocorreu, eu
acredito que, só porque em muitos
lugares tiveram a chance de ver esses dois apóstolos representados em imagens
ambos em companhia com Ele. Pois Roma, de uma maneira especialmente honrada
e solene, elogia os méritos de Pedro e de Paulo, por este motivo, entre outros,
a saber, sofreram [martírio] no mesmo dia. (Harmonia dos
Evangelhos Livro I, Capítulo X)
Primeiro,
que não são imagens de escultura, mas figuras. Quem verificar a tradução em
inglês aqui verá que o termo é “pictures” traduzido mais adequadamente como figuras ou
retratos. Imagens em inglês seria “images”. E não é dito em lugar algum que os
crentes cultuavam essas figuras. A fé reformada não condena o uso de figuras,
ainda mais para educar os cristãos, como era o caso. O que é condenável é o
culto a elas. O fato de muitas igrejas protestantes evitarem o uso de figuras
ou imagens é uma medida de prudência, ainda mais em lugares como o Brasil em
que a piedade popular é bastante idólatra. O que condenamos de fato é o culto
as coisas criadas. Outra citação é a seguinte:
Mas no que diz respeito a
imagens e estátuas, e outras obras deste tipo, que servem como representações
das coisas, ninguém comete um erro,
especialmente se elas são feitas por artistas qualificados, mas cada um,
assim que vê as semelhanças, reconhece as coisas que são de semelhanças.
(Doutrina Cristã livro II, Capítulo 25, Parágrafo 39)
O
fato de os católicos apelarem a citações tão irrelevantes demonstra a falta de
fundamentação para o seu pleito – provar o culto as imagens através dos pais da
igreja. Agostinho não se referia a qualquer tipo de culto cristão, nem disse
que deveriam ser feitas imagens dos santos e de Jesus para serem cultuadas. Ele
apenas diz que não é errado fazer imagens ou esculturas artísticas. Isso fica
óbvio quando afirma “especialmente se
elas são feitas por artistas qualificados”. Ele está falando de arte e não
de culto. Os protestantes concordam com isso. Mas na continuação da citação,
ele diz:
E toda essa categoria é para
ser contada entre os artifícios supérfluos dos homens...
Agostinho
falava de coisas que não eram pecaminosas em si, mas as considerava supérfluas.
Era apenas o capricho dos homens, o que mostra que ele não via nas esculturas
uma forma de cultuar aos santos.
O
apologista católico traz uma citação usada pelos protestantes para mostrar a condenação de Agostinho
ao culto às imagens:
Confundidos
sejam todos os que servem imagens esculpidas (Salmo 96,7). Porventura
não fez isso acontecer? Porventura não foram confundidos? Não são eles
diariamente confundidos? Pois imagens esculpidas são as imagens trazidas pela
mão. Por que são todos os que servem imagens esculpidas, confundidos? Porque
todas as pessoas têm visto Sua glória. Todas as nações agora confessam a glória
de Cristo: que aqueles que adoram pedras se envergonhem. Porque as pedras
estavam mortas, encontramos uma pedra viva, na verdade essas pedras nunca
viveram, de modo que elas não podem ser chamadas até mesmo mortas, mas a nossa pedra está vivendo e já viveu
com o Pai, e Ela morreu por nós, Ele reviveu, e vive agora, e a morte não tem
mais domínio sobre ela. (Romanos 6, 9). Esta glória dele, nações
reconheceram, eles deixam os templos, e correm para as igrejas. Será que eles ainda buscam adorar imagens
de escultura? Será que eles não escolheram a abandonar seus ídolos? Eles
foram abandonados por seus ídolos. Quem se glorifica nos seus ídolos. Mas há um
certo opositor que parece que ele próprio aprendeu, e diz: ‘Eu não adoro essa pedra, nem que a imagem que é sem sentido...Eu não
adoro esta imagem, mas eu adoro o que eu vejo, e servi-lo a quem eu ver não.
Quem é esse? Uma divindade invisível,’ ele responde, ‘que preside essa imagem.’
Ao dar esta conta de suas imagens, eles parecem-se disputantes capazes, porque
não adoram ídolos, e ainda adoram demônios. As coisas, porém, irmãos, diz o
Apóstolo, que os gentios sacrificam, as sacrificam aos demônios, e não a Deus,
sabemos que o ídolo não é nada, e que o que os gentios sacrificam, as
sacrificam aos demônios e não a Deus, e não quero que sejais participantes com
os demônios. Deixe-os, portanto, não se
desculpar por esse motivo, que não são dedicados a ídolos insensatos, pois eles
são bastante dedicados aos demônios, o que é mais perigoso. Porque, se eles
apenas estavam adorando ídolos, pois não iriam ajudá-los, para eles não
machucá-los, mas se você adorar e servir a demônios, eles mesmos serão os
vossos mestres... (Salmo 96, 7)
O
apologista tenta provar o contrário do significado claro com os seguintes
argumentos:
(1) Agostinho
não condena a argumentação dos pagãos ao diferenciar a imagem do ídolo que é
adorado. É o velho argumento de que a imagem apenas representa algo, sendo o
representado o verdadeiro adorado;
(2) Agostinho
condena os pagãos porque eles utilizam essa diferenciação para adorar os deuses
pagãos. Se essa mesma diferenciação fosse utilizada para cultuar imagens de
santos, não haveria problema;
(3) Se
houvesse uma contradição real entre Agostinho e Tomás de Aquino, deveríamos
preferir Tomás, pois ele representaria o amadurecimento da teologia
agostiniana.
O argumento 1 já foi
refutado nesse artigo em outras citações. Mas mesmo nessa citação ele não
procede. O bispo africano diz “Confundidos
sejam todos os que servem imagens
esculpidas (Salmo 96,7)”. Ele não estabelece exceções ou qualificações.
Todos aqueles que se servem de imagens esculpidas estão em engano. Mas o
argumento dele é ainda mais profundo. Porque não devemos se utilizar de imagens
esculpidas para cultuar algo? A resposta é “Porque
todas as pessoas têm visto Sua glória. Todas as nações agora confessam a glória
de Cristo”. Ou seja, como as nações viram a glória de Cristo e o
confessavam, as imagens eram inúteis. Percebam que ele está se referindo a
Cristo e não a um ídolo pagão. Se o argumento de Agostinho não fosse aplicável
a Cristo, não faria nenhum sentido. Ele ainda faz um contraste entre os que
adoram pedras e a pedra que era Cristo. O argumento é que as pedras estão
mortas, mas Cristo está vivo. O mesmo caso se aplica ao culto das imagens dos
santos e do próprio Cristo. As pedras que formam essas imagens também estão
mortas. E porque ele utilizaria o exemplo de Cristo estando vivo, se ele
aceitasse o culto à imagem do próprio Cristo?
Essa interpretação é ainda
mais reforçada quando ele diz “Será que
eles ainda buscam adorar imagens de escultura?”. As pessoas se convertiam e
paravam de cultuar imagens. Como ele poderia usar esse argumento se as pessoas
continuavam a cultuar imagens? Ele no mínimo daria muitas explicações como o
culto às imagens na igreja cristã era diferente do paganismo. O problema é que
mesmo condenando tão severamente os pagãos, ele nunca fez uma defesa de uma
prática semelhante na igreja. A explicação plausível é que não havia prática
semelhante na igreja. Vimos que os pagãos, ao acusarem os cristãos de fazerem a
mesma coisa, apelaram aos utensílios dos sacramentos e não a imagens que eram
cultuadas.
A luz dos pontos acima, o
argumento 2 também é falso. O bispo de Hipona condenava a prática em si, e não
apenas porque era direcionada a ídolos pagãos. Vimos isso claramente numa
citação anterior em que diz “Alguém cultua
ou ora com os olhos fixos na imagem, sem estar convencido que a imagem está
ouvindo a sua petição e sem esperança de que ela irá dar o que ele quer?
Provavelmente não.” O fato de alguém orar a uma imagem e esperar que desse
ato haja alguma reposta é uma atitude errada em si.
O argumento 3 é falacioso
mesmo partindo de um pressuposto católico romano. Tomás de Aquino não era
infalível e poderia cometer erros teológicos. Muito do seu pensamento nunca foi
adotado pelo magistério oficial da igreja romana como a sua negação da
concepção imaculada de Maria. E quem disse que ele iria amadurecer
teologicamente as ideias de Agostinho, pelo contrário, sequer se pode dizer que
eles faziam parte da mesma religião. Isso demonstramos ao longo dessa série de
artigos.
As
relíquias
Os apologistas católicos
costumam citar o capítulo VIII do livro XXII da obra a Cidade de Deus. Nele,
Agostinho cita pessoas que obtiveram milagres devido ao contato com as
relíquias (restos mortais e objetos dos mártires). Nesse ponto, o bispo de
Hipona ajudou involuntariamente a desenvolver o culto aos santos que já estava
se tornando cada vez mais popular no início do séc. V, apesar de ele próprio
não referendar esse culto. Isso pode ser visto a seguir:
Quando
o bispo Prejecto chegou com uma relíquia do gloriosíssimo mártir Estêvão a
Aguas Tibilitanas (ad Aquas Tibilitanas), veio ao seu encontro uma grande
multidão. Uma mulher cega que ali
se encontrava pediu que a levassem ao bispo portador da relíquia. Ofereceu as
flores que levava, voltou a pegar nelas, aproximou-as dos olhos, e
imediatamente ficou a ver. Exultando de alegria, caminhava ã frente
dos que, estupefatos, ali estavam presentes, tomando o seu caminho sem precisar
de guia para o resto da viagem. (Cidade de Deus Livro
XXII, Capitulo VIII)
Observa-se que apesar do
milagre ser atribuído ao contato com as relíquias, não é mencionado que alguém
orou ao mártir antes obter o suposto milagre e mesmo quando ele menciona essa
oração, não diz que invocar o mártir é correto. Outra questão seria se
Agostinho ensinava a prestação de algum tipo de culto religioso às relíquias. A
luz de tudo o que demonstramos, a resposta é não. A seguinte citação é
comumente apontada:
Mas,
no entanto, nós não construímos templos, e ordenamos sacerdotes, ritos e
sacrifícios para estes mesmos mártires, porque não são nossos deuses, mas o seu
Deus é o nosso Deus. Certamente
honrarmos seus relicários, como os memoriais dos santos homens de Deus que se
esforçaram para a verdade, mesmo até morte de seus corpos, para que a
verdadeira religião pudesse ser conhecida, e as religiões falsas e fictícias
expostas. (Cidade de Deus, livro VIII, capítulo 27)
Já demonstramos que o
entendimento agostiniano de honrar aos mártires e suas relíquias é
substancialmente diferente da atual prática romanista. Elementos primordiais dessa
prática envolvem invocação dos falecidos, depósito de méritos, cultos às
imagens, procissões, altares, promessas e outras manifestações. Esses elementos
não faziam parte do ensino de Agostinho. Portanto, ele não pode ser contado
como um apoiador das novidades romanistas. Para ele, honrar as relíquias
envolvia tratar com respeito e cuidado os restos mortais e objetos de pessoas
exemplares na caminhada da fé. Honrar a memória dos mártires era uma forma de
incentivar os vivos a seguirem o exemplo de seus predecessores na fé. Óbvio que
num cristianismo cada vez mais paganizado, essa prática originalmente inocente
iria descambar na idolatria que saltava aos olhos nos tempos medievais e que
ainda persiste nos dias atuais. Na continuação da citação acima, o bispo
africano elucida o que ele considerava honrar as relíquias e memórias dos
mártires:
Mas
quem já ouviu um padre dos fiéis, de pé num altar construído para a honra e
culto a Deus sobre o corpo santo de algum mártir, dizendo nas orações, eu
ofereço-lhe um sacrifício a Pedro, Paulo ou Cipriano? Pois é a Deus que os
sacrifícios são oferecidos em seus túmulos - o Deus que fez os homens e os
mártires, e os associou aos anjos em honra celestial. A razão pela qual nós prestamos tais honras à sua memória é que ao
fazê-lo, podemos tanto dar graças ao verdadeiro Deus por suas vitórias, e
recordando-lhes de novo à memória, podemos nos estimular a imitá-los,
procurando obter como coroas, chamando
para nos ajudar esse mesmo Deus a quem eles chamavam. Portanto, a honra que
o pedioso pode prestar nos lugares dos mártires é prestada à sua memória, e não por ritos sagrados ou sacrifícios
oferecidos aos mortos como aos deuses.
A argumentação acima subentende que altares não eram construídos aos
mártires, enquanto os romanistas constroem altares para os santos e Maria.
Sacrifícios não eram oferecidos, hoje os católicos fazem promessas aos santos, sendo
comum ver pessoas fazendo enormes sacrifícios envolvendo privações físicas ou
materiais para algum santo. O princípio por detrás é o mesmo, enquanto os pagãos
traziam oferendas para obterem o favor dos ídolos, os católicos fazem o mesmo
para obter o favor do santo. A honra aqui referida não envolvia nada disso. O
objetivo não era obter o favor ou proteção do falecido, mas honrar a Deus e
estimular o exemplo. É notável o trecho “chamando
para nos ajudar esse mesmo Deus a quem eles chamavam”. Mesmo nesse
contexto, quem era invocado para obter ajuda? Eram os mártires invocados? Não,
era o próprio Deus. Por tudo isso, podemos afirmar que Agostinho se oporia com
veemência as práticas católicas romanas.
Oi
ResponderExcluirEu já fui católico, hoje estou me distanciando do catolicismo, mas sempre fico confuso ao ver católicos usando falas de pais da igreja para justificar seus hábitos, e hoje vi uma sobre veneração de relíquias em que eles usam como desculpas um testemunho sobre Inácio de Antioquia que diz: "Apenas as partes mais duras de suas relíquias sagradas foram deixadas, as quais foram transportadas para Antioquia e envoltas em linho, como um tesouro inestimável deixado para a santa Igreja, pela graça que estava no mártir.” (Martírio de Santo Inácio de Antioquia – Capítulo VI)", como eu sei quais serão as desculpas dos católicos, queria saber se esse blog sabe me explicar: o que esse relato do martírio de Inácio quer dizer?
Abraços
Meu último artigo trata disso:
Excluirhttp://respostascristas.blogspot.com.br/2017/08/a-veneracao-de-reliquias-e-evidencia.html