terça-feira, 28 de novembro de 2017

Transubstanciação, Aristóteles e a Biologia Moderna


Para explicar como a transubstanciação é possível tendo em vista que o pão continua com todas as propriedades do pão comum, os apologistas católicos costumam apelar às categorias “substancia” e “acidentes” de Aristóteles. Substância é aquilo que pertence a essência do ser, que o define. Acidente seria uma característica do ser que não o define, inclusive podendo ser encontrada em outros seres de uma substância diferente. Por exemplo, olhos azuis é uma característica que homens diferentes podem ter em comum, portanto é um acidente. O mesmo pode ser dito de tamanho, peso, cor e etc.

Os católicos afirmam que o mesmo ocorre com o pão. Os acidentes do pão (cheiro, textura, cor) continuam os mesmos, mas a substância do pão é convertida no corpo físico de Cristo. É de se notar que esta explicação deturpa o pensamento aristotélico. Seria inimaginável para o filósofo a ideia de que uma substância poderia ser convertida em outra sem a mudança de seus acidentes (aqui). Ademais, a explicação não faz sentido a luz da biologia e física modernas. 

A biologia moderna afirma que tudo é feito de uma mesma substância (átomos compostos por partículas subatômicas). O que vai diferenciar um ser de outro é a combinação dessa substância. Uma determinada combinação de átomos forma água, outra combinação forma o metal. Ao olhar em mais detalhe, água e metal são compostos por uma mesma substância fundamental (partículas subatômicas). Fazendo uma ponte entre as categorias aristotélicas e a biologia molecular, devemos considerar que o DNA por exemplo é substância e não acidente. É impossível que algo seja humano sem possuir DNA humano. Retomando o exemplo, algo não humano poderia ter olhos azuis, mas jamais poderia ter o DNA humano.

Dessa forma, se a substância do pão se converte no corpo humano de Cristo, segue-se que deveríamos encontrar DNA humano na Eucaristia. Afinal, os acidentes do corpo de Cristo não estão lá, mas a substância (que inclui o DNA) está. Obviamente não há DNA humano no pão eucarístico, o que refuta a ideia de que o corpo de Cristo está presente. Além disso, mudanças no DNA necessariamente resultariam em mudanças nos acidentes. Se o DNA de um homem for convertido no DNA de uma cobra, os acidentes (cor, forma, tamanho e etc) irão acompanhar essa conversão.

A transubstanciação não faz sentido por várias razões. Veja aqui outras razões e aqui uma lista de artigos sobre tema.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

O Batismo Infantil e os Pais da Igreja


Neste artigo vamos analisar o desenvolvimento histórico do batismo infantil. A pergunta chave a ser respondida se tal prática remonta ao tempo dos apóstolos. Os defensores do batismo de bebês costumam apelar à história da igreja. O artigo do site católico veritatis afirma (aqui): “Nos primeiros quatro séculos da era cristã, é completa a unanimidade a respeito (Tertuliano sendo praticamente a única exceção)” . Esse tipo de afirmação é comum em artigos católicos que visam demonstrar que as práticas do romanismo foram o consenso dos tempos antigos. Obviamente afirmações dessa natureza nunca vem acompanhadas de citações de historiadores ou eruditos patrísticos. Isso se dá porque a prática em questão passa longe de ter sido um consenso. O próprio artigo se contradiz pois afirma que foi uma “completa unanimidade”, mas logo depois cita a oposição de Tertuliano. As conclusões que trarei são referendadas pelas modernas pesquisas sobre o assunto. Por isso, farei amplo uso de citações de historiadores da Igreja. Para todos os que desejam se aprofundar no tema, recomendo a obra mais completa sobre o assunto: Baptism in the Early Church do Dr. Everett (aqui). São “apenas” 900 páginas. É uma obra magistral escrita por um dos maiores historiadores da Igreja de nosso tempo.

Didaque (Início do séc. II)

A Didaque é provavelmente o documento cristão mais antigo fora do Novo Testamento. É de interesse para o nosso estudo pois contém instruções específicas em relação ao batismo:

Antes de batizar, tanto aquele que batiza como o batizando, bem como aqueles que puderem, devem observar o jejum. Você deve ordenar ao batizando um jejum de um ou dois dias. (cap. 7)

Não faria sentido exigir de um recém-nascido tal jejum. As instruções da Didaque se encaixam melhor com a tradição credobatista. Alguém pode argumentar que essa orientação tem em vista somente catecúmenos adultos sem descartar o batismo de crianças. É uma leitura possível, mas não é a mais provável. No cap. 7, há diversas orientações que tratam até mesmo da temperatura da água ou sobre o uso de água corrente, mas não há nenhuma orientação sobre o batismo de recém-nascidos. Uma vez que a Didaque foi concebida como um manual litúrgico a ser usado na igreja, essa ausência é relevante. Se a Igreja desse período batizasse recém-nascidos, seria esperado encontrar instruções específicas.

Aristides de Atenas (séc. II)

Aristides escreveu uma apologia em favor do cristianismo provavelmente dirigida ao imperador Adriano (117-138):

Mas quanto aos seus servos ou servas, ou seus filhos, se algum deles tem algum, eles [os cristãos] os persuadem para se tornarem cristãos pelo amor que têm para com eles; e quando eles se tornam cristãos, eles os chamam sem distinção de irmãos (...) (Apologia, cap. 15)

A versão traduzida dessa obra hospedada em sites católicos é mais curta e me parece ter usado o texto grego. Por isso, o trecho acima não é encontrado nelas. Eu traduzi da versão completa (a siríaca) que pode ser encontrada no site tertullian.org (referência em textos patrísticos). O trecho em questão é importante pois sugere que os filhos dos cristãos não eram automaticamente incluídos como membros da Igreja. Eles precisavam ser persuadidos e se tornarem cristãos, o que pressupõe uma decisão consciente.

Justino Mártir (100-165)

Em sua famosa I Apologia (150 d.C):

Todos os que se convencem e acreditam que são verdadeiras essas coisas que nós ensinamos e dizemos, e prometem que poderão viver de acordo com elas, são instruídos em primeiro lugar para que com jejum orem e peçam perdão a Deus por seus pecados anteriormente cometidos, e nós oramos e jejuamos juntamente com eles. Depois os conduzimos a um lugar onde haja água e pelo mesmo banho de regeneração com que também nós fomos regenerados eles são regenerados, pois então tomam na água o banho em nome de Deus, Pai soberano do universo, e de nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo. (cap. 61)

Justino trata especificamente do batismo aqui. Aquele que iria se batizar deveria atender exigências que um recém-nascido jamais poderia. Observem como confissão e arrependimento eram pré-requisitos. Duas objeções podem ser levantadas: (1) o texto não exclui de forma explícita o batismo de recém-nascidos e (2) a igreja desse período era predominantemente missionária – a maioria dos cristãos seriam pessoas que se converteram na fase adulta, por isso, quando se fala de batismo, o foco sempre está sobre o batismo de adultos. Sobre a primeira objeção, a continuação da citação é relevante:

A explicação que aprendemos dos apóstolos sobre isso é a seguinte: Uma vez que não tivemos consciência de nosso primeiro nascimento, pois fomos gerados por necessidade de um germe úmido, através da união mútua de nossos pais, e nos criamos em costumes maus e em conduta perversa, agora, para que não continuemos sendo filhos da necessidade e da ignorância, mas da liberdade e do conhecimento e, ao mesmo tempo, alcancemos o perdão de nossos pecados anteriores, pronuncia-se na água, sobre aquele que decidiu regenerar-se e se arrepender de seus pecados, o nome de Deus, Pai e soberano do universo. Aquele que conduz ao banho pronuncia este único nome sobre aquele que vai ser lavado. (cap. 61)

Ele contrasta o primeiro nascimento (marcado pela nossa falta de conhecimento) com o segundo nascimento que requer conhecimento. Ele contrasta o fato de que não pudemos escolher em nosso primeiro nascimento, por isso o batismo foi instituído, pois agora é possível a escolha. É muito improvável que alguém que concebesse o batismo de bebês argumentasse dessa forma. Os bebês continuariam sendo ignorantes a respeito do primeiro e segundo nascimentos e também não podem exercer qualquer tipo de escolha. O batismo foi discutido por Justino em vários lugares de suas apologias e outras obras, sem qualquer menção ao batismo de infantes. O argumento de que a Igreja era formada por conversos também me parece não prosperar. No período em que Justino escreveu (150), já havia muitas famílias cristãs com filhos pequenos. A obra Diálogo com Trifão é relevante também. Nela, Justino discute com um judeu e diz bastante coisa sobre a circuncisão. Os pedobatistas afirmam que o batismo substituiu a circuncisão. Justino aplica a circuncisão aos cristãos de diversas formas, sem recorrer a qualquer analogia que implique no batismo de infantes:

Jesus Cristo circuncida todos os que desejarem - como foi declarado acima - com facas de pedra, para que eles sejam uma nação justa, um povo que mantem a fé, a verdade e a paz. (Diálogo com Trifo, 24)

Ainda que um homem seja um scitiano ou persa, se ele tiver o conhecimento de Deus e de Seu Cristo, e guardar os decretos justos e eternos, ele é circuncidado com a boa e proveitosa circuncisão. Ele é amigo de Deus e regozija-se com seus presentes e ofertas. (Diálogo com Trifo, 28)

Aqueles também da circuncisão que se aproximam dele, isto é, acreditando nele e buscando suas bênçãos, Ele tanto o receberá como o abençoará. (Diálogo com Trifo, 33)

A sua primeira circuncisão [de Trifo o judeu] foi e é realizada por instrumentos de ferro, pois você permanece com coração duro. Mas a nossa circuncisão, que é a segunda, tendo sido instituída após a sua, nos circuncidou da idolatria e de absolutamente toda espécie de perversidade pelas pedras afiadas, ou seja, pelas palavras pregadas pelos apóstolos. E nossos corações são assim circuncidados do mal, de modo que estamos felizes em morrer pelo nome da boa Rocha, que faz com que a água viva inunde os corações (...) (Diálogo com Trifo, 33)

Observem que, sempre que Justino aplica a circuncisão ao contexto cristão, ele se refere a pessoas que creram no evangelho e foram circuncidadas em seu coração. No último trecho, ele é explícito ao dizer que fomos circuncidados pelas palavras dos apóstolos, ou seja, pelo evangelho. Justino não é tão explícito quanto Tertuliano. Mas, quando alguém discute muito o batismo, a circuncisão e outras questões relacionadas, nunca mencionando o batismo infantil e associando repetidamente o batismo a conceitos que excluem bebês, por que devemos pensar que é provável que ele acreditasse no batismo infantil?

Irineu de Lyon (130-202)

Irineu é a testemunha mais antiga citada em favor do batismo infantil. Ainda que esse pai da igreja apoiasse a prática, há dois problemas: (1) os pedobatistas pressupõe que a posição de Irineu era adotada pela Igreja desde o princípio e (2) a posição de Irineu era generalizada. O problema é que (1) e (2) não podem ser sustentadas com base nos escritos de Irineu. Como abordado acima, documentos mais antigos sugerem que o credobatismo é a tradição mais antiga. E como veremos mais adiante, a Igreja antiga comportava opiniões diversas em relação ao batismo. No entanto, vejamos a citação:

Porque veio salvar a todos. E digo ‘todos’, isto é, àqueles tantos que por Ele renascem para Deus, sejam recém-nascidos, crianças, adolescentes, jovens ou adultos. Por isso, quis passar por todas as idades, para tornar-se recém-nascido com os recém-nascidos, a fim de santificar os recém-nascidos; criança com as crianças, a fim de santificar aos de sua idade, oferecendo-lhes exemplo de piedade e sendo para eles modelo de justiça e obediência. Fez-se jovem com os jovens, para dar exemplo aos jovens e santificá-los para o Senhor. (Contra as Heresias 2:22:4)

O argumento é que como Jesus regenerou os recém-nascidos, segue que eles também deveriam ser batizados. A premissa aqui é santificar/regenerar = batizar. A questão é se Irineu tratava as duas coisas como implicação uma da outra. Irineu respondia a afirmação de que o ministério de Jesus durou apenas um ano. Ele usou o argumento de que como Jesus veio para regenerar pessoas de todas as idades, ele deveria ter passado por todas as idades. Nesse mesmo livro, Irineu afirma que Jesus viveu mais de 40 anos. Obviamente, o bispo de Lyon estava errado. Em todo o caso, nem a citação nem o seu contexto imediato falam sobre batismo. Os pedobatistas complementam o argumento com uma citação de outra obra do bispo:

Nós somos limpos de nossas antigas transgressões por meio da água sagrada e da invocação do Senhor. Nós, portanto, somos regenerados espiritualmente como recém-nascidos, assim como o Senhor declarou: "Se alguém não nascer de novo pela água e pelo Espírito, ele não entrará no reino dos céus". (Fragmento 34)

O argumento então é que Irineu defendia a regeneração batismal, logo, se os recém-nascidos foram regenerados, eles eram batizados. Primeiro, essa combinação de citações diferentes em contextos diferentes é problemática. Hendrick Stander e Johannes Louw explicam:

É bastante pretensioso insistir em substituir a noção de batismo cada vez que um escritor usa o termo "regeneração", a menos que o contexto se relacione claramente com o batismo (...) [esta passagem em Irineu] apenas nos diz que a obra redentora de Cristo se estende a qualquer pessoa (...) A passagem não fala sobre a idade em que as pessoas eram batizadas. (Baptism In The Early Church [Webster, Nova Iorque: Carey Publications, 2004], pp. 53, 55)

Além disso, mesmo supondo que Irineu sustentasse a regeneração batismal, não segue que todo o indivíduo regenerado foi necessariamente batizado. Mesmo os defensores dessa doutrina admitem exceções à regra (ex. o ladro da cruz). Além do mais, Irineu está entre os defensores da salvação infantil – mesmo crianças não batizadas seriam salvas (uma crença popular no séc. II):

E, novamente, quem são os que foram salvos e receberam a herança? São os que sem dúvida acreditam em Deus e continuaram em seu amor, assim como Caleb, filho de Jefoné e Josué o filho de Nun, e os filhos inocentes que não tiveram consciência do mal. (Contra Heresias, 4:28:3)

E também sobra a matança dos recém-nascidos de Belém:

Por essa causa também, ele removeu de repente aqueles filhos pertencentes à casa de Davi, cujo destino feliz era ter nascido naquele tempo, para que Ele pudesse enviá-los antes para o seu reino. Desde que ele mesmo era uma criança, planejou que os bebês humanos fossem mártires assassinados de acordo com as Escrituras, por causa de Cristo, que nasceu em Belém de Judá, na cidade de Davi. (Contra Heresias, 3:16:4)

Nestas passagens, Irineu sugere que as crianças foram salvas apenas por serem inocentes. Dessa forma, como na teologia de Irineu a regeneração é condição necessária para a salvação, segue que regenerado não necessariamente implica em ser batizado. O trecho do fragmento 34 “somos regenerados espiritualmente como recém-nascidos” também não sugere o batismo de infantes. A analogia é que quando nascemos de novo espiritualmente na regeneração, tornamo-nos como bebês em sentido espiritual. Assim, podemos concluir que Irineu não pode ser contado como uma testemunha provável a favor do pedobatismo. Encerramos o segundo século com nenhum pai da Igreja ensinando explicitamente o batismo de recém-nascidos. Isso é problemático para a afirmação de que esta é a prática da igreja desde o princípio.

Tertuliano de Cartago (160-220)

Tertuliano foi a primeira testemunha a tratar de forma explícita sobre o batismo infantil. Em seu tratado sobre o batismo, ele escreveu:

E assim, de acordo com as circunstâncias e o caráter, e até mesmo a idade de cada indivíduo, o atraso do batismo é preferível; especialmente no caso de crianças pequenas (...) O Senhor realmente diz: Não os proibais de virem até mim. Deixe-os vir, então, enquanto estão crescendo. Deixe-os vir enquanto estão aprendendo, enquanto estão aprendendo para onde vir; que se tornem cristãos quando conseguirem conhecer Cristo. Por que o período de vida inocente se apressa para a remissão de pecados? (...) Deixe-os saber como pedir a salvação, que você possa ao menos fazer-lhes essas perguntas (...) Se alguém entender a importância de peso do batismo, temerá a sua recepção mais do que a sua demora: a fé sólida é segura da salvação. (Tratado sobre o Batismo, cap. 18)

O argumento de Tertuliano é claro no sentido de que o batismo é um passo de grande importância. Portanto, deve ser uma decisão consciente e convicta. Agostinho iria desprezar a posição de Tertuliano por entender que ele estava negando a existência do pecado original. Acredito que esse não foi o caso. Ao que parece, como outros pais da Igreja do séc. II, Tertuliano cria na salvação universal das crianças inocentes. Como ele não via risco na salvação de crianças não batizadas, não havia razão para adiantar algo que seria mais adequadamente administrado em idade mais tardia. Os pedobatistas costumam argumentar que Tertuliano pressupõe que a prática do batismo infantil já existia em seu tempo, por isso ele a critica.

No entanto, não está explícito que ele responde alguém em específico. Não há menção a qualquer grupo de dentro da Igreja. Tertuliano poderia muito bem tratar de uma mera possibilidade. É possível que o batismo infantil já fosse praticado? Sim, mas não é o mais provável. De qualquer forma, o mesmo argumento pode ser feito em sentido contrário. Ao condenar o batismo infantil, Tertuliano não parece ter consciência de estar indo contra a uma doutrina da Igreja. Além disso, o tratado sobre o batismo é da fase pré-montanista de Tertuliano, o que invalida a objeção que apologistas católicos constumam levantar contra ele (apenas quando Tertuliano contradiz o romanismo obviamente).

Supondo que o batismo já fosse praticado. É necessário pontuar que a simples existência da prática não a tornaria normativa. Ademais, não sabemos quão generalizada tal prática seria, pois poderia ser característico de um grupo minoritário ou de uma região geográfica específica. Não sabemos se os que a adotavam representavam a ala ortodoxa da Igreja. Toda a evidência anterior a Tertuliano sugere que o pedobatismo seria uma inovação. O fato é que o primeiro pai da Igreja a oferecer uma declaração explícita sobre o pedobatismo está negando-o.

Hipólito de Roma (170-235)

Hipólito, escrevendo no início do séc. III, afirmou:

Os batizandos se despirão e serão batizadas, primeiro, as crianças. Todos os que puderem falar por si próprios, falem; contudo, os pais ou alguém da família falem por aqueles que não puderem falar por si mesmos. Depois batizem-se os homens e, por último, as mulheres. (Tradição Apostólica 3:5)

Há alguns problemas no uso dessa citação em favor do batismo infantil:

1 – Há sérias dúvidas quanto a autenticidade desse trecho. O erudito patrístico David Wright afirmou:

Quase tudo concernente a esse texto continua sendo objeto de vigorosas discussões acadêmicas. (What Has Infant Baptism Done To Baptism? [England: Paternoster Press, 2005], p. 38)

Hendrick Stander and Johannes Louw também afirmam:

Esta citação da Tradição Apostólica é encontrada em uma tradução latina que data do século IV. Alguns estudiosos sugeriram até mesmo que não é improvável que este verso tenha sido inserido na tradução latina, pois foi no século IV que o batismo infantil se tornou popular (...) deve-se lembrar que os antigos tradutores não tinham objeções em inserir e omitir frases no texto a qual eles traduziam. Eles geralmente adaptavam os textos para sua situação atual. Isso pode ser claramente visto quando se compara, por exemplo, as seções existentes das traduções grega, saídica, árabe, etíope e boharica da tradição apostólica (...) O argumento mais importante, no entanto, para a adição posterior desta frase é que não se encaixa bem com o restante da obra. Como Aland (1963:43) apontou, as seções que precedem esta regulação batismal lidam exclusivamente com os catecúmenos adultos(...) Ele também se refere à tradução copta que contém uma declaração de que três anos de instrução na fé cristã são necessários para que uma pessoa receba o batismo. (Baptism In The Early Church [Webster, New York: Carey Publications, 2004], pp. 77-78)

2 – O texto não necessariamente implica em batismo de recém-nascidos. Stander e Louw explicam:

Aqueles que não podiam falar por si mesmos podiam ser crianças muito novas que precisavam de assistência para responder ao pronunciar as fórmulas necessárias. Elas não estavam isentas das preliminares de ensino e jejum etc. (Baptism In The Early Church [Webster, New York: Carey Publications, 2004], p. 77)

A obra em questão comina que os batizandos deveriam passar por um longo processo de instrução catequética e deveriam jejuar antes do batismo. Tais requisitos não poderiam ser atendidos por recém-nascidos, mas poderiam ser cumpridos por crianças pequenas. Dessa forma, a luz do contexto, parece improvável que Hipólito se referisse a recém-nascidos. Um destaque é importante aqui – os credobatistas não afirmam taxativamente que crianças não podem ser batizadas. Uma criança de 6, 7 anos pode estar em condições de entender e responder positivamente ao evangelho. David Wright assevera que a ideia de que um adulto falasse por uma criança, ainda que esta tivesse capacidade de falar não eram sem precedentes:

O que está em vista é a capacidade física e mental da criança ou a habilidade jurídica, implicando o reconhecimento romano de que com a idade de sete anos as crianças adquiriam certos direitos para falar por si mesmas? Agostinho e Jerônimo mais tarde considerariam sete como a nova idade de responsabilidade cristã. Agostinho [afirmou a idade de sete], em relação ao batismo de um menino falando por si mesmo. Em que termos um pai ou outro parente respondia por uma criança, ainda não sabemos e nenhuma fonte nos diz até cerca de 400. (What Has Infant Baptism Done To Baptism? [England: Paternoster Press, 2005], p. 40)

Ou seja, nos tempos de Agostinho, uma criança de 7 anos já poderia responder por si mesma. Isso implica que uma criança de 5, 6 anos não poderia. Todavia, crianças com tais idades não eram incapazes de falar. Elas apenas não tinham o direito jurídico de falar por si mesmas. Obviamente, Agostinho não pertence ao mesmo contexto que Hipólito. Mas isso no mínimo nos leva a concluir que a interpretação pedobatista da citação não é definitiva e necessitaria de mais dados para ser sustentada. Além disso, um concílio em Cartago permitia que alguém falasse pelas pessoas doentes nas cerimônias de batismo (veja o cânon 45 aqui). Isto vem a reforçar que o simples falar por alguém não implica que o catecúmeno fosse totalmente incapaz de se expressar.

Orígenes de Alexandria (185-254)

Orígenes foi o primeiro pai da Igreja a defender claramente o batismo infantil:

Um recém-nascido era capaz de pecar? Ainda assim ele tem um pecado pelo qual é ordenado que sacrifícios sejam oferecidos, e a partir do qual é negado que alguém seja puro, mesmo que sua vida dure apenas um dia (...) É também por isso que a Igreja recebeu dos apóstolos a prática de dar o batismo até aos filhos pequenos. (Comentário sobre Romanos, Livro 5, cap. 9)

A afirmação de Orígenes obviamente não tem raízes históricas confiáveis. Vimos que pele menos um pai da igreja anterior a ele ensinou explicitamente o contrário. Tertuliano não se oporia ao batismo infantil se o considerasse uma prática herdada dos apóstolos. O apoio de Orígenes ao pedobatismo se baseia na pecaminosidade dos bebês. Ele derivou este ensino da pré-existência das almas. Segundo o alexandrino, as almas foram criadas e teriam pecado antes da criação do mundo. Todas essas almas (exceto de Jesus) foram exiladas em corpos humanos. Obviamente, essa visão de queda e redenção não é apostólica. Por isso rejeitamos a doutrina de Orígenes, pois se baseia numa doutrina contrária ao que os apóstolos ensinaram.

Cipriano de Cartago (200-258)

Enquanto Orígenes foi o primeiro a defender o batismo de infantes na igreja oriental, Cipriano foi o primeiro na igreja oriental.

“É no batismo que nós (...) recebemos a remissão dos pecados" (Carta 58 a Fido). Em resposta ao bispo Fido, que sugeriu que o batismo deveria ser no oitavo dia, Cipriano e o Sínodo de Cartago (cerca de 252) disseram que o 2º ou 3º dia eram melhores e que a espera "negaria a misericórdia e a graça de Deus" e "devemos fazer tudo o que possamos para evitar a destruição de qualquer alma".

É inegável que Cipriano ensinou o pedobatismo e que se tratava de uma prática já estabelecida na igreja norte africana em meados do séc. III. Cipriano cria na indispensabilidade do batismo para a salvação. Dessa forma, crianças não batizadas estaria correndo risco de irem para o inferno. Esta é uma visão contrária ao que os pais do segundo século ensinaram, nos quais a salvação infantil independente do batismo foi a visão majoritária.

Basílio Magno (330-379)

Sites católicos como o já mencionado Veritatis trazem uma citação de Basílio acerca da necessidade do batismo. Todavia, nada é falado sobre o batismo de crianças. De fato, nem poderia, pois Basílio via a fé como condição necessária:

A fé e o batismo são dois modos de salvação iguais e inseparáveis: a fé é aperfeiçoada através do batismo, o batismo é estabelecido através da fé, e ambos são completados pelos mesmos nomes. Pois, como acreditamos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, também somos batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; primeiro vem a confissão, apresentando-nos a salvação, e o batismo segue, estabelecendo o selo sobre o nosso consentimento. (O Espírito Santo, Cap. 12:28)

Na mesma obra, ele continua a ensinar a fé que precede o batismo:

Como, então, conseguimos a descida para o inferno? Ao imitar, através do batismo, o enterro de Cristo. Pois os corpos dos batizados estão, por assim dizer, enterrados na água. O batismo simboliza expulsar as obras da carne. (O Espírito Santo, Cap. 15:35)

No que diz respeito ao batismo (...) é impossível que alguém seja imerso três vezes, sem emergir três vezes. (O Espírito Santo, Cap. 15:35)

São descrições incompatíveis com o batismo de infantes.

Gregório Nazianzeno (329-389)

Gregório expressa uma opinião peculiar. É possível dizer que ele ficou no meio termo entre o credo e pedobatismo:

Tudo isto é dito para aqueles que pedem o batismo por si mesmos; mas o que podemos dizer das crianças, ainda de pouca idade, que são incapazes de perceber o perigo em que se encontram e a graça do sacramento? Certamente, no caso de perigo imediato, é melhor batizá-las sem o seu consentimento do que deixá-las morrer sem ter recebido o selo da iniciação. Somos obrigados a dizer o mesmo acerca da prática da circuncisão, que era realizada no oitavo dia prefigurando o batismo, também realizada nos meninos desprovidos de razão. Da mesma forma, realizava-se a unção dos umbrais da porta que, embora se tratasse de coisas inanimadas, protegia os primogênitos. E quanto às demais crianças? Eis aqui a minha opinião: esperai que alcancem a idade de três anos, de modo que sejam capazes de compreender e expressar superficialmente os mistérios; apesar da imperfeição da sua inteligência, recebem o sinal, e o seu corpo e a sua alma se encontram santificados pelo grande sacramento da iniciação. Elas renderão conta dos seus atos no momento preciso em que, com plena posse da razão, chegarem ao pleno conhecimento do Mistério, já que não serão responsáveis das faltas que, pela ignorância da idade, tiverem cometido. Ademais, de todos os modos, lhes resulta vantajoso possuir a muralha do batismo para se proteger dos perigosos ataques que caem sobre nós e ultrapassam as nossas forças (…) Porém, alguém dirá: ‘Cristo, que é Deus, se fez batizar aos trinta anos e tu nos empurras desde logo o batismo’. Afirmar assim a sua divindade é o que responde a essa objeção. Ele – a própria pureza – não precisava de purificação, mas se fez purificar por vós, assim como por vós se fez carne, uma vez que Deus não tem corpo. Além disso, Ele não corria nenhum perigo por retardar o seu batismo, pois podia livremente regular o seu sofrimento assim como regulou o seu nascimento. Para vós, ao contrário, não seria pequeno o perigo no caso de deixardes este mundo sem terdes recebido, no vosso nascimento, nada além que uma vida perecível, sem estardes revestidos da incorruptibilidade. (Sermão 40,26-27)

Gregório expressa a liberdade existente ainda no séc. IV sobre o batismo de crianças. Se a criança corria risco de morte, deveria ser batizada. Em caso contrário, dever-se-ia esperar até os três anos. Mas porque essa idade? Ele acreditava que nessa idade já seria possível expressar de forma superficial o consentimento ao evangelho. Percebam como a regra era que a criança deveria expressar algum consentimento, ainda que com razão imperfeita. Trata-se de uma posição incompatível com o pedobatismo, mas não necessariamente incompatível com o credobatismo. A maioria dos credobatistas discordaria de Gregório quando a idade do batizando, mas concordaria com o requisito do consentimento. Além disso, o bispo cristão atesta que em seus dias havia indivíduos provavelmente cristãos contrários ao batismo de infantes. Estes argumentavam que Cristo foi batizado apenas aos 30 anos, portanto, não faria sentido batizar crianças. Gregório rebate tal argumento. De todo modo, seu testemunho é importante para atestar a liberdade que havia a respeito dessa questão. Se a Igreja desde cedo creu que a prática era apostólica e obrigatória, a existência de opiniões como a de Gregório é inexplicável. Everett Ferguson escreve:

Gregório claramente não rejeita, mas incentiva o batismo de bebes. No entanto, não o reconhece como a prática regular, como também conhece questionamentos a respeito - fatores que não estimulam a ideia de que era uma prática rotineira de longa data. (Baptism in the Early Church, Grand Rapids, 2009, p. 595)

Pais da Igreja que nasceram em famílias cristãs

A evidência de que havia ampla liberdade sobre o batismo de crianças está no fato de que boa parte dos pais da igreja do séc. IV, que nasceram em famílias cristãs, somente foram batizados na idade adulta. S. L Greenslade escreveu:

Ambrósio nasceu no ano de 339 (...) era filho de cristãos e foi criado como cristão, mas, à maneira de seu tempo, teve seu batismo adiado. (Early Latin Theology, S. L. Greenslade, The Westminster Press, Louisville, 1956, p. 175)

O historiador Stefan Rebenich escreveu:

Jerônimo nasceu em 347 (...) [perto] da Dalmácia (...) Os pais de Jerônimo eram cristãos, que cuidaram para que ele tivesse sido como bebê "alimentado com o leite católico". Ele não foi batizado quando era criança (...) mas como jovem (...) Naquele tempo, o batismo foi adiado até a maturidade (...) Os amigos de Agostinho e Jerônimo, Rufino e Heliodoro, são casos paralelos. (Jerome, Stefan Rebenich, Routledge, London 2002, p. 2)
O erudito patrístico J. N. D. Kelly escreveu sobre João Crisóstomo:

Sua família (...) era cristã (...) Apesar disso, ele não foi batizado na infância. Seguindo a prática amplamente aceita naqueles dias (...) foi apenas como um jovem aproximando-se dos vinte que ele se ofereceu para o batismo. (Golden Mouth: The Story of John Chrysostom, Ascetic, Preacher, Bishop, J.N.D.Kelly, Cornell University Press, 1995, p. 5)

Agostinho também testemunha que ele próprio não foi batizado quando criança:

Eu pergunto-lhe, meu Deus, pois, se é sua vontade, eu desejo saber - para que propósito meu batizado foi adiado neste momento? Foi para o meu bem que as rédeas que me privaram do pecado fossem diminuídas? Ou não é verdadeiro que elas estavam relaxadas? (Confessions. Trans. R.S. Pine-Coffin. London: Penguin Books, 1961. Book 1.11, p. 31-32)

Na infância, Agostinho foi acometido por uma doença. Sua mãe Mônica – uma cristã piedosa – considerou a possibilidade de batizá-lo uma vez que o filho corria risco de vida. O bispo de Hipona foi curado e. como era o costume de seus dias, teve seu batismo adiado para a idade adulta. Todos esses exemplos demonstram que adiar o batismo não apenas era aceitável, como foi a posição padrão. Esse é um dado problemático para aqueles que defendem o batismo infantil como uma prática apostólica. O fato de tantos pais cristãos piedosos adiarem o batismo de seus filhos até a idade adulta demonstra que a igreja não havia dogmatizado sobre o tema. Comparemos com o que diz o catecismo:

A Igreja e os pais negariam a uma criança a graça inestimável de se tornar filho de Deus se não conferissem a ele o batismo pouco depois do nascimento (...) Mais urgente é o apelo da Igreja para não impedir que as crianças pequenas venham a Cristo através do presente do santo batismo (...) Com respeito a crianças que morreram sem o batismo, a liturgia da Igreja nos convida a confiar na piedade de Deus e a rezar pela salvação. (Catecismo da Igreja Católica, 1250, 1261, 1283)

Percebam que a prática do batismo infantil não é uma opção, mas uma obrigação dos pais. Negar o batismo às crianças poria em risco a salvação. Isso contrasta com a liberdade que houve na igreja antiga. O ponto de inflexão da história foi Agostinho. Apesar de ele mesmo não ter sido batizado na infância, tornou-se o voraz defensor dessa prática. Foi ele quem ofereceu a justificativa teológica para dogmatização do batismo infantil. Ele viu no pedobatismo um poderoso argumento em sua controvérsia contra os pelagianos. Para o bispo de Hipona, negar o batismo equivalia a negar o pecado original. 

O que a erudição moderna diz a respeito das raízes históricas do batismo infantil?

A erudição moderna realiza a opinião de que o batismo não foi uma prática dos apóstolos. Esta opinião tem sido seguida por muitos teólogos pedobatistas. O batismo de infantes teria sua origem nos filhos de cristãos que corriam risco de vida.  O estudioso luterano pedobatista H.A.W. Meyer diz:

O batismo dos filhos dos cristãos, do qual nenhum vestígio é encontrado no N.T, não deve ser considerado uma ordenança apostólica, pois, de fato, encontrou longa e precoce resistência; mas é uma instituição da igreja, que surgiu gradualmente nos tempos pós-apostólicos em conexão ao desenvolvimento da vida eclesiástica e do ensino doutrinário. Certamente não foi observado antes de Tertuliano, e por ele ainda foi decididamente combatido. Embora defendido por Cipriano, só se tornou uma prática generaliza após o tempo de Agostinho (...). (Commentary on Acts [16:15], New York: Funk & Wagnalls, 1883, p. 312)

O erudito patrístico pedobatista David Wright é um exemplo dessa tendência da erudição moderna:

Nós rastreamos, em grande parte nesta palestra, atendendo aos textos do desenvolvimento batismal ocidental, uma mudança verdadeiramente maciça na história da igreja de Cristo. De uma instituição que recrutava por resposta intencional ao evangelho pelo imperativo do discipulado e batismo, tornou-se uma sociedade inscrita desde o nascimento. Foi indiscutivelmente uma das maiores mudanças na história do cristianismo. Ela levou, como vimos, à formação da cristandade, compreendendo um império cristão, nações ou povos cristãos. O cristianismo tornou-se uma questão de hereditariedade e não de decisão. As famosas palavras de Tertuliano "feunt, non nascuntur, Christiani" - "pessoas são feitas, não nascidas cristãs", foram viradas de cabeça para baixo. (What Has Infant Baptism Done To Baptism? (England: Paternoster Press, 2005), p. 74)

Wright ainda diz sobre os credos ecumênicos:

O único credo ecumênico a mencionar o batismo é o niceno (nenhum menciona a eucaristia) na frase "um batismo para a remissão dos pecados". Tenho argumentado em outro lugar que isso não pode ter compreendido originalmente bebês, porque nos círculos em que este credo surgiu, para ser aprovado no Concílio de Constantinopla em 381 (se aceitarmos o testemunho dos Padres no Concílio de Calcedônia setenta anos depois, como a maioria dos eruditos faz), acreditava-se que os recém-nascidos não tinham pecados. (Ibid., p. 93)

E continua:

Peter Leithart afirmou recentemente que "a igreja foi salva da teologia e prática batista por Agostinho de Hipona". Se “batista” aqui implique a rejeição ao batismo infantil, essa afirmação corajosa é um exagero, mas dentro de limites perdoáveis (...) Para Leithart "o fato notável sobre o batismo na igreja primitiva é que o batismo infantil se tornou (...) a prática dominante da Igreja". Esta não é a maneira como a história geralmente é contada! Na verdade, é bastante enganador ver a era dos pais simplesmente como uma era de batismo infantil. Na verdade, dentre os indivíduos mais conhecidos daqueles séculos que eram cristãos e foram batizados em datas conhecidas, a grande maioria foi batizada pela profissão de fé (...) Como Leithart resume de forma útil: "as primeiras liturgias batismais (...) foram construídas sobre pressupostos batistas, mesmo quando as crianças era incluídas" (...) Leithart não consegue tirar a conclusão óbvia dessa evidência - o batismo infantil nunca pode ter sido a norma neste período inicial (...) O prazo do reinado do batismo de bebês se prolonga desde o início do período medieval, a partir do século VI, isto é, depois de Agostinho de Hipona, que morreu em 430. Foi ele quem forneceu a teologia que levou o batismo infantil a se tornar uma prática geral pela primeira vez na história da igreja. (Ibid., pp. 4-6, 8, n. 7 na p. 8, 12, 17)

O estudioso Anthony Lane expressa uma opinião peculiar:

A situação nos primeiros séculos foi de que as duas formas de batismo existiram lado a lado, tanto por causa do grande afluxo de conversos quanto porque de modo algum todos os cristãos trouxeram seus bebês ao batismo. A "dupla prática" de permitir aos cristãos a escolha de que os seus filhos fossem batizados ou não, e, em caso afirmativo, em que idade, pode parecer hoje confuso e sem princípio. O fato claro é que tal variedade de prática existiu no terceiro e quarto séculos e ninguém criou nenhum princípio opositor contra ela. Na verdade, pode-se argumentar com este fato que é muito provável que tal aceitação de variedades remonta aos tempos apostólicos. (Ibid., p. 7-8)

Everett Ferguson – autor do estudo mais detalhado sobre o tema – escreve:

Há concordância geral de que não há evidências firmes para o batismo infantil antes da última parte do segundo século (...) A explicação mais plausível para a origem do batismo infantil é encontrada no batismo de emergência de crianças doentes que se esperava que morressem em breve, de modo a garantir a entrada no reino dos céus. (Baptism in the Early Church, Grand Rapids, 2009, p. 856)

A respeito do período em que o batismo infantil se tornou dominante:

[Batismo infantil] foi geralmente aceito, mas questionamentos continuaram a ser levantados sobre a sua propriedade no século V. Tornou-se a prática habitual nos séculos V e VI. (p. 857)

Mesmo os eruditos pedobatistas tendem a afirmar que o batismo infantil não é uma prática que remonta aos apóstolos. Nós situamos a primeira evidência patrística favorável em meados do séc. III (Orígenes e Cipriano) e argumentamos contra aqueles que citam Irineu como a primeira evidência. Em todo o caso, o consenso sugere que o batismo infantil começou a ser praticado em virtude de crianças no leito de morte. Até o séc. V, não havia qualquer posição dogmática a respeito. Por isso, era usual que mesmo os filhos de pais cristãos tivessem o batismo adiado. Os defensores do batismo infantil costumam apontar para a história como o argumento decisivo em favor de sua posição. No entanto, concluímos que a história oferece mais problemas do que apoio a posição pedobatista.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

O magistério da Igreja Romana é suficiente?


Uma das objeções mais populares à Sola Scriptura é o argumento da diversidade de interpretações. Se a Escritura é suficiente, porque há tantas interpretações diferentes? A objeção pode ser feita em outros termos - A Escritura não contém sua própria interpretação, logo não é suficiente. Eu já respondi essas objeções em outros artigos. Neste, pretendo demonstrar como tal objeção (assim como boa parte das objeções levantadas contra a Sola Scritpura) são autodestrutíveis. Os apologistas católicos são mais antiprotestantes do que católicos. Eles usam argumentos contra a regra de fé protestante que se fossem verdadeiros, refutariam também a regra de fé católica. O apologista católico é como um homem que deseja defender sua casa contra a invasão de bandidos. Ao invés de matar apenas os bandidos, ele implode toda a casa como ele próprio junto. Um comentarista católico postou em meu blog:

“Mesmo que as escrituras fossem única regra de fé, e contivesse todos os ensinamentos, ainda assim seria necessário compreender infalivelmente o que está escrito ali, para ser verdadeiramente palavra de Deus.”

Como bem comentou o autor do excelente blog Conhecereis a Verdade, ele cometeu “suicídio” epistemológico. O argumento é que nós precisamos da interpretação infalível que só o magistério (o de Roma é claro) pode fornecer. Sem isso, você não tem a Palavra de Deus. O problema óbvio desse argumento é que você precisa estabelecer que: (1) existe um magistério infalível e (2) qual dos candidatos é o verdadeiro magistério infalível. Isso só pode ser conhecido usando seu próprio julgamento falível, logo, o próprio estabelecimento do magistério infalível não seria palavra de Deus. Ou seja, o próprio paradigma católico cairia por terra.

Mas, neste artigo eu gostaria de destacar outro argumento. Todo o tipo de comunicação, seja escrita ou oral, precisa ser interpretada. Isso é válido para a Bíblia e também para os documentos do magistério. A interpretação sempre envolve um agente externo e requer conhecimentos que o próprio texto não contém. Assim, as declarações do magistério precisam ser interpretadas pelos católicos falíveis. Usando o raciocínio do comentarista, teríamos que concluir que os católicos não têm a palavra de Deus. Poderíamos escrever um livro de centenas de páginas só tratando das divergências interpretativas dos documentos do magistério. Vou me ater aqui a alguns exemplos (em especial o Concílio Vaticano II) por uma questão de brevidade, mas qualquer pesquisa rápida vai revelar muitos outros. Eu recomendo a todos este artigo do renomado Cardeal Dulles (aqui). Ele documenta alguns fatos desconcertantes:

(1)   Há vários grupos interpretando as declarações do Concílio de forma divergente;
(2) Joseph Ratzinger e Carol Wojtyla (ex papas) participaram do concílio como consultor teológico e bipo respectivamente. Ainda assim eles tinham interpretações divergentes a respeito das declarações do concílio.
(3)  Joseph Ratzinger mudou suas interpretações ao longo do tempo.

Agora, se esses homens que participaram do Concílio podem interpretar errado, imagine os católicos leigos. Como esse sistema evitaria o erro? Vejamos os trechos mais relevantes:

Embora o filósofo polonês e o teólogo alemão tenham perspectivas diferentes, eles concordam que o Concílio foi seriamente mal interpretado.

O contraste entre o Papa Bento e seu predecessor é impressionante.

“Inegavelmente, houve algumas mudanças na avaliação que Ratzinger faz do Vaticano II. Quando ainda estava encontrando seu próprio caminho teológico, ele foi nos primeiros anos do Concílio impropriamente dependente de Karl Rahner como mentor. Só gradualmente ele chegou a ver que ele e Rahner viviam, falando teologicamente, em planetas opostos. Enquanto Rahner encontrava a revelação e a salvação primariamente nos movimentos interiorizantes do espírito humano, Ratzinger encontra-as nos eventos históricos atestados pela Escritura e pelos primeiros Padres da Igreja.”

Importa mencionar que Ratzinger atuou como consultor teólogo de Rahner. As decisões do concílio foram grandemente influenciadas pelos bispos alemães, dentre os quais Rahner era um dos expoentes.

“O abandono da Tradição viva, segundo o Cardeal prefeito, foi um dos mais graves erros da exegese pós-conciliar. Outro foi a redução da exegese ao método histórico-crítico. Num artigo sobre a interpretação bíblica contemporânea, ele comenta o aparente impasse entre exegetas e teólogos dogmáticos.”

O Ratzinger amadurecido fala de uma perspectiva diferente, mais confessionalmente Católica. Embora ainda considere a constituição sobre a divina revelação como um dos textos mais salientes do Concílio, ele sustenta que ela ainda está para ser verdadeiramente recebida. Nas interpretações predominantes ele detecta dois defeitos principais.

Reparem que Ratzinger aponta não apenas a existência de interpretações erradas, mas que elas são predominantes. Destaco também que esses intérpretes não são católicos leigos, mas bispos da Igreja.

“Uma das questões mais disputadas na interpretação da Lumen Gentium é o significado da afirmação de que a Igreja de Cristo “subsiste” na Igreja Católica. Alguns interpretaram isso como uma admissão de que a Igreja de Cristo é encontrada em diversas igrejas denominacionais, sendo que nenhuma delas pode alegar ser a verdadeira Igreja

“Uma mudança similar é manifesta na visão de Ratzinger sobre as conferências episcopais, as quais ele antes caracterizara como órgãos colegiais com uma verdadeira base teológica. Mas em 1986 ele diz: “Não podemos nos esquecer de que as conferências episcopais não têm base teológica” (...)

“Na esfera da Mariologia, Ratzinger lamenta o que ele enxerga como mais uma interpretação equivocada do Concílio. A inclusão do capítulo sobre Maria como o ápice da constituição sobre a Igreja, acredita ele, deveria ter suscitado uma nova pesquisa e não o abandono do mistério de Maria.”

As falsas interpretações, de acordo como Ratzinger, devem ser superadas antes que uma recepção autêntica possa começar. Os tradicionalistas e os progressistas, disse ele, caíram no mesmo erro”.

Cardeal Dulles também atesta como se tomaram as várias decisões conciliares. É um processo bem mais “humano” do que muitos suporiam. Diferentes grupos disputam o texto final. Aqueles com maior poder de persuasão (e os motivos nem sempre são teológicos) tendem a prevalecer. Isso explica porque há tantas interpretações divergentes. As declarações conciliares são documentos de acordo. Um grupo com uma posição minoritária precisa mitigar sua posição para que seja aceitável por um grupo maior. Dessa forma, é inevitável o uso de linguagem ambígua para acomodar as várias posições.

O Concílio Vaticano II contradiz o magistério anterior. É impossível afirmar que o juramento contra omodernismo não foi traído. O Silabo de Erros também. O lema “não há salvação fora da Igreja” foi radicalmente mudado em relação ao que declarou o Concílio de Florença (aqui). Como Roma então resolve essas e outras contradições? Raymond Brown (um dos maiores eruditos católicos do século XX) nos responde:

Essencial para uma interpretação crítica dos documentos da igreja é a percepção de que a Igreja Católica Romana não altera sua posição oficial de forma direta. As declarações passadas não são rejeitadas, mas são citadas com elogios e depois reinterpretadas ao mesmo tempo. (Raymond Brown, “The Critical Meaning of the Bible” New York, NY: Paulist Press ©1981, Nihil Obstat and Imprimitur, page 18 footnote 41)

Se as declarações do magistério podem ser por séculos interpretadas de forma errada, como a igreja estaria preservada do erro? Brown também diz:

Devo começar com a (...) suposição (...) de que nenhuma Igreja do século XX é a mesma que a Igreja das Igrejas dos tempos do NT [Novo Testamento] (...) Um estudo crítico do NT pode apontar diferenças inesperadas, lembrando-nos do quanto as coisas mudaram e o que foi perdido (ou ganhado) (...) As igrejas e os cristãos, confrontados por uma imagem crítica dos tempos do NT, podem ser levados a uma reforma necessária (...) O que acabei de descrever não é pura teoria. Isso é possível e verificável pelo que aconteceu no catolicismo romano neste século (...) Os estudiosos podem ser removidos uma ou duas vezes, mas uma nova geração continua chegando; e, eventualmente, a Igreja deve dialogar com eles. Assim, [o segundo dos três períodos em que Brown divide a erudição bíblica católica no século XX] viu a introdução da crítica bíblica e a aceitação gradual, mas relutante de seus resultados através do Concílio Vaticano II. Mais do que por qualquer outro fator, a auto reforma do catolicismo romano nesse Concílio foi influenciada pela abordagem moderna da Bíblia. O domínio católico da crítica bíblica progrediu desde o Vaticano II, e as implicações revelaram-se mais abrangentes do que os líderes mais perceptíveis do Concílio previram. O terceiro período do século (1970-2000) em que vivemos, portanto, envolveu a dolorosa assimilação dessas implicações para a doutrina, teologia e prática católica. (Raymond E. Brown, “The Critical Meaning of the Bible,” New York, NY: Paulist Press ©1981, Nihil Obstat and Imprimitur, from the Preface, p 9)

Brown parte de uma premissa – nenhuma igreja é igual àquela do N.T (inclusive a igreja romana). Ao olhar para o passado, a Igreja viu a necessidade reformas. Dentre essas reformas está a aceitação dos modernos estudos da Bíblia (com uma dose “cavalar” de liberalismo teológico). Percebam quão importante esse tipo de mudança é. A Igreja Romana está adotando uma abordagem diferente que reinterpreta muitos dos textos bíblicos historicamente usados. Esse processo não se restringe à Escritura somente, mas se aplica aos documentos do magistério. Obviamente Brown é um modernista, mas suas obras (inclusive a citada) obtiveram a aprovação da igreja. Dessa forma, ele não representa uma voz dissonante da maioria, mas a tendência na hierarquia da igreja (dentre os quais está o Papa Francisco). Tomemos o exemplo abaixo dessas novas interpretações críticas. O catecismo afirma:

Mas ninguém foi uma testemunha ocular da Ressurreição de Cristo e nenhum evangelista descreveu isso. Ninguém pode dizer como ocorreu fisicamente. Ainda menos como era sua essência mais íntima, sua passagem para outra vida, perceptível aos sentidos. Embora a Ressurreição tenha sido um evento histórico que possa ser verificado pelo sinal do túmulo vazio e pela realidade dos encontros dos apóstolos com o Cristo ressuscitado, ainda permanece no coração do mistério da fé como algo que transcende e supera história. (CCC 647)

Aparentemente uma declaração ortodoxa sobre a ressurreição. Vejamos então como Richard McBrien (professor de teologia na Universidade Católica de Notre Dame) interpretou:

"O problema é que ninguém realmente viu a ressurreição. Não temos testemunhas oculares. Na medida em que conhecemos algo sobre isso, nós o conhecemos por meio de seus efeitos. É um evento histórico? A resposta deve ser "não", se por histórico se quer dizer um evento que poderia ter sido fotografado quando estava ocorrendo ou que uma pessoa desinteressada poderia ter observado acontecer. Não há indicação no registro do Novo Testamento de que a Igreja primitiva acreditava que a ressurreição tinha estado na mesma categoria de história que a crucificação, por exemplo ". (Catholicism, p. 437)

Ratzinger nos dá um exemplo claro de como as declarações do magistério podem ser ambíguas:

Uma análise detalhada deste texto muito intrincado nos levaria aqui muito longe. O resultado final, que é o que nos interessa, seria a constatação de que não criou uma situação substancialmente nova. Sem dúvida, as escalas aqui foram mais adiantadas em favor da primazia papal em oposição à colegialidade. Mas, para cada afirmação feita em uma direção, o texto oferece uma que suporte o outro lado, e isso restaura o equilíbrio, deixando as interpretações abertas em ambos os sentidos. Podemos ver o texto como "primacialista" ou colegial. Assim, podemos falar de uma certa ambivalência no texto da "nota explicativa", refletindo a atitude ambivalente daqueles que trabalharam no texto e tentaram conciliar as tendências conflitantes. A consequente ambiguidade é um sinal de que a completa harmonia dos pontos de vista não foi alcançada nem mesmo possível. (Ratzinger, “Theological Highlights of Vatican II”, p. 170-171)

O texto em questão pertence aos documentos do Vaticano II e tratava do primado papal e o colégio dos bispos. Como o documento é fruto de um acordo, o uso de linguagem ambígua para conciliar lados opostos é inevitável. O magistério romano faz uso frequente de linguagem ambígua. Se você clama ser infalível e não deseja ser pego no futuro em suas próprias palavras, o uso de ambiguidades é o melhor caminho. É dessa forma que os apologistas católicos tornam o catolicismo não falseável. Você sempre pode apelar à interpretação ou então afirmar que aquela declaração não era infalível.

Por isso, os apelos à infalibilidade da Igreja são vazios. As inúmeras contradições do magistério são resolvidas através de decisões arbitrárias dos católicos leigos. Não há uma lista infalível de todos os ensinamentos infalíveis do magistério. O leigo precisa arbitrariamente decidir o que está ou não sujeito ao erro. Esta não é uma tarefa simples, pois o magistério extraordinário (infalível) nem sempre traz uma indicação de que determinado ensino é reformável. Não há consenso sobre quantos são os concílios ecumênicos. Não há consenso sobre quantos são os concílios infalíveis. E mais, os teólogos católicos admitem que mesmo num concílio infalível, nem todos as declarações são infalíveis. Todavia, há consenso de que o exercício do magistério extraordinário é extremamente raro. Não seria exagero dizer que nem 1% das declarações do magistério podem ser classificadas como “infalíveis”. Cardeal Dulles afirma:

Não existe, no entanto, uma lista canônica de todos os concílio ecumênicos. (Magisterium: Teacher and Guardian of the Faith (Sapientia Press 2007) p. 68)

Dulles também diz:

Concílios como a Trento e o Vaticano I muitas vezes dividiram seus decretos em capítulos e cânones, de modo que os capítulos declararam positivamente o contraditório do que o anátema nega. O ensino do capítulo é definitivo pelo menos na medida em que contradiz o anátema no cânon. Mas, além de incluir doutrina definida, os capítulos geralmente contêm questões explicativas adicionais que não são infalivelmente ensinadas. (Ibid. p. 68)

E também:

Exceto pela definição da Imaculada Conceição, há pouca clareza sobre quais declarações papais antes do Vaticano I são irreformáveis. A maioria dos autores concordaria com cerca de meia dúzia de declarações. (Ibid. p. 72)

Dulles demonstra que nem o magistério tem conclusões exatas sobre o exercício do próprio magistério:

No início do século XX, houve um debate inconclusivo sobre se a Igreja pode definir dogmaticamente o que é apenas "virtualmente" ao invés de "formalmente” revelado. (p. 75).
Além disso, o católico que acredita poder dispensar o magistério ordinário (falível) e seguir sua consciência está agindo em desacordo com a doutrina historicamente defendida pela Igreja Romana. Liberdade de consciência sempre foi vista como uma “heresia” protestante ou praga da modernidade. O catecismo afirma:

A assistência divina é também dispensada aos sucessores dos Apóstolos, quando ensinam em comunhão com o sucessor de Pedro, e de modo particular ao bispo de Roma, pastor de toda a Igreja, quando, mesmo sem chegarem a uma definição infalível e sem se pronunciar de «modo definitivo», no exercício do seu Magistério ordinário, propõem uma doutrina que leva a uma melhor inteligência da Revelação em matéria de fé e de costumes. A este ensinamento ordinário devem os fiéis «prestar o assentimento religioso do seu espírito» (429), o qual, embora distinto do assentimento da fé, é, no entanto, seu prolongamento. (CCC 892)

Há também um problema de origem histórica. Essa distinção entre magistério ordinário e extraordinário é um desenvolvimento recente (lembremos que a infalibilidade papal só foi declarada no séc. XIX). Além disso, os cristãos das diferentes épocas dificilmente saberiam onde o magistério oficial estava. Cardeal Dulles escreve:

No ensino católico moderno, o termo "Magistério" geralmente designa os professores hierárquicos - o papa e os bispos que em virtude de seu ofício têm autoridade para ensinar publicamente em nome de Cristo e julgar oficialmente o que pertence à fé cristã e o que não pertence. Este conceito do Magistério, embora pareça quase evidente hoje, é relativamente recente. Antes do século XIX, a dicotomia entre privado e público, não oficial e oficial não estava tão claramente desenhada. (Ibid., p. 35)

Dulles expressa que muitas questões (no campo do direito natural) necessitam de declarações infalíveis. Ninguém sabe ao certo quando será respondido. Um católico pode viver toda a sua vida sem ter a resposta infalível. O que difere esse católico de um protestante então?

Em uma conferência com o Cardeal Ratzinger e outros representantes da CDF e vários Comitês de Doutrina, o Arcebispo Daniel Pilarczyk, como presidente do Comitê de Doutrina da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, observou: "Mais esclarecimentos sobre a capacidade da Igreja de ensinar infalivelmente sobre questões de direito natural seriam desejáveis. De acordo com uma opinião (...) De acordo com outra opinião (...) (p. 79)

Isso não exclui a possibilidade de que, no futuro, a Igreja possa progredir até o ponto em que esse ensinamento [a reserva de ordens sacerdotais aos homens] possa ser definido como uma doutrina para acreditar como divinamente revelada. (p. 90)

Muitos leigos, teólogos e bispos católicos afirmam que a ordenação exclusiva para homens é uma regra de ordenamento eclesiástico. Portanto, estaria sujeito a reforma no futuro. Caso a possibilidade aludida por Dulles se concretize, tais pessoas estariam ensinando uma heresia. A conclusão é que até o católico mais fervoroso pode ser herege, afinal não se sabe o que o magistério vai declarar no futuro. A doutrina está sempre em aberto. Dulles demonstra como esse processo de revisão já ocorreu:

Tal reclassificação, de acordo com o comentário, não seria sem precedentes (...) Como exemplos de verdades relacionadas com o depósito da fé por necessidade histórica, o comentário Ratzinger-Bertone sugere (...) a invalidez das ordens anglicanas, conforme declarado pelo papa Leão XIII (...) No entanto, desde o Vaticano II, houve novos debates sobre a possibilidade de reconhecer as ordens anglicanas. (p. 90-91)

O teólogo jesuíta Klaus Schatz lista a declaração do papa Leão XII entre as “ex cathedra”. Todavia, não há acordo. Até mesmo isso pode estar em aberto.

Mesmo no caso do ensino definitivo, o desenvolvimento ocorre através de uma espécie de dialética da proclamação e da resposta. (p. 106)

Em que sentido o ensino é definitivo se continuar a sofrer evolução dialética? Em que ponto você pode dizer: "Isto é o que ensinamos"?

O Vaticano II, de fato, superou muitos desequilíbrios que afetaram o ensino oficial católico durante os anos desde Trento. (p. 106)

Assim, por 400 anos (Trento, 1563, Vaticano II, 1965), a teologia católica estava fora de equilíbrio. Qual é o objetivo de um órgão de ensino divino se ele pode permitir que esta situação continue por 400 anos antes de ser corrigido?

Alguns estudiosos acreditam que não só preencheram deficiências, mas, em alguns aspectos, corrigiram o ensino anterior não infalível sobre assuntos como a adesão à Igreja, a Igreja e o Estado, a liberdade religiosa, o ecumenismo e as religiões não-cristãs. (p. 106)

Desde que não há uma definição infalível do que é ou não infalível, apelar ao ensinamento infalível da igreja não funciona.

Muitas vezes leva várias gerações antes de chegar a um consenso ou até que o Magistério emita uma interpretação autêntica (...) Em 1985, no vigésimo aniversário da conclusão do Concílio, o Papa João Paulo II convocou uma assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos para estabelecer orientações para a interpretação correta. (p. 108)

O Concílio interpreta a revelação. Depois vem outro Concílio que interpreta o primeiro. Então vários grupos interpretam o último Concílio de forma divergente. Então, um sínodo de bispos interpreta falivelmente o último Concílio. Isso leva a uma regressão infinita. Simplesmente não funciona. Agora, pense no leigo católico. Ele realmente pode professar firmemente a fé católica como os apologistas alegam? Como o magistério romano pode preservá-lo do erro? Encerro trazendo conclusões óbvias: (1) O argumento católico contra a Sola Scriptura se volta contra o magistério romano; (2) A pretensa unidade do catolicismo é uma fábula; (3) Se Deus realmente tivesse estabelecido uma autoridade para manter do depósito da fé e preservar a igreja do erro, essa autoridade não é o magistério de Roma.