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quinta-feira, 17 de março de 2016

Agostinho e o Catolicismo Romano - Parte 7 (Eucaristia, Batismo, Confissão e Penitência, Purgatório, Sucessão Apostólica e Salvação)


Transubstanciação e sacrifício propiciatório da Missa

Já temos nesse blog um artigo sobre Agostinho e a Eucaristia. Por isso, serei breve nesse ponto e redireciono o leitor ao artigo aqui. Longe de defender uma presença física de Cristo, ele sustentou a posição que mais tarde as igrejas reformadas adotariam – Cristo estaria presente espiritualmente, sendo a eucaristia um meio de graça, mas sem qualquer transformação física dos elementos. Adiciono aqui a opinião de Gary Wills, um estudioso católico romano, especialista em história da Igreja e que também escreveu uma obra sobre Agostinho:

Na verdade, a Eucaristia no seu sentido mais tardio, de repartir o pão e o vinho como o corpo e o sangue de Cristo, nunca é usado no Novo Testamento, nem mesmo na carta aos Hebreus, a única que chama Jesus de sacerdote. Mesmo quando o termo "Eucaristia" surgiu, como acontece nas cartas de Inácio de Antioquia, ainda era, como em Paulo, simplesmente uma celebração de unidade do povo num "único altar". Que esse significado para o "corpo de Cristo" persistiria tão tarde quanto os séculos IV e V, [é visto] na negação de Agostinho da presença real de Jesus nos elementos da ceia.

Veja, isso é recebido, isso é comido, isso é consumido. É o corpo de Cristo consumido, é a Igreja de Cristo consumida, são os membros de Cristo consumidos? Nem pensar! (Sermão 227)

Se você quer saber o que é o corpo de Cristo, ouça o que o apóstolo [Paulo] diz aos crentes: "Você são o corpo de Cristo, e seus membros" [1Co 12.27]. Se, então, vocês são o corpo de Cristo e seus membros, esse é o seu símbolo que se encontra no altar do Senhor - o que você recebe é um símbolo de vocês mesmos. Quando você diz "Amém", você deve ser o corpo de Cristo para fazer com que esse "Amém" tenha efeito. E por que você é o pão? Ouça novamente o apóstolo falando desse próprio símbolo: "Nós somos um só pão, um só corpo, mesmo sendo muitos" [1Co 10.17]. (Sermão 272)

Os crentes reconhecem o corpo de Cristo quando eles tomam cuidado por serem [os crentes] o corpo de Cristo. Eles devem ser o corpo de Cristo se eles querem viver a partir do espírito de Cristo. Nenhuma vida vem para o corpo de Cristo, mas do espírito de Cristo. (In Joannem Tractatus 26.13) (Why Priests?: A Failed Tradition. Ed. Penguin, 2013, p. 16)

Wills dedica todo o capítulo 5 da obra a Agostinho e a transubstanciação. Ele escreve:

Eu mencionei antes que Agostinho não acreditava no que é chamado de "presença real" de Jesus na Eucaristia e citei vários lugares onde ele disse isso. Aqui está sua afirmação mais explícita de que o que é alterado na Missa não é o pão, mas os crentes que o recebem:

Esse pão deixa claro como você deve amar sua união com o outro. Poderia o pão ser feito de apenas um grão, ou seriam muitos grãos de trigo necessários? No entanto, antes de serem juntados como um pão, cada grão era isolado. Eles foram misturados em água, depois de serem triturados juntos. A menos que o trigo seja batido, e depois umedecido com água, dificilmente poderia assumir a nova identidade que chamamos de pão. Da mesma forma, você tinha que ser moído e batido pela provação de jejum e o mistério do exorcismo na preparação para o batismo da água. Dessa forma vocês foram regados, a fim de assumir a nova identidade do pão, depois que a água do batismo umedeceu você na massa. Mas a poção da massa não se transforma em pães até que seja cozido em fogo. E o que o fogo representa para você? É a [pós-batismal] unção com óleo. Óleo que alimenta o fogo, que é o mistério do Espírito Santo. . . O Espírito Santo vem a você, fogo depois da água, e você está cozido no pão que é o corpo de Cristo. É assim que a sua unidade é simbolizada. (Sermão 227)

Essa visão agostiniana da Eucaristia é o verdadeiro significado que não morreu com ele, embora a igreja fez  longos esforços para descartá-lo. Em 1944, o jesuíta francês Henri de Lubac publicou um livro, Corpus Mysticum, que traçou uma linha de teólogos no primeiro milênio cristão que se baseou em Agostinho para fornecer uma teoria da Eucaristia oposta à transubstanciação. (Ibid., p. 55-56)

Wills continua (p. 57) explicando que o Vaticano se opôs ao livro de Lubac e o puniu, juntamente com outros "líderes dos pensadores liberais" como: Jean Daniélou, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu, Karl Rahner, Teilhard de Chardin, e John Courtney Murray. No entanto, depois do Vaticano II, esses homens foram restaurados a tal ponto que em 1981, João Paulo II fez de Lubac um cardeal. Da mesma forma, Jean Daniélou e Yves Congar se tornaram cardeais após a reintegração. Em nosso artigo, trouxemos uma citação do Schaffer afirmando que muitos teólogos medievais citaram Agostinho como uma testemunha contra a transubstanciação. Ninguém menos do que o próprio discípulo do bispo de Hipona seria um deles.

Necessidade do batismo para salvação

Agostinho de fato defendia essa ideia como demonstrou o católico. Em conexão a isso, também defendia o batismo o infantil (o que não o coloca necessariamente em desacordo com muitas das igrejas reformadas). Porém, a doutrina de Agostinho a esse respeito era diferente da atual doutrina católica romana. Peter Stravinskas, um padre conservador e apologista católico, escreveu para uma revista católica:

Apesar da tremenda influência de Agostinho, várias de suas opiniões nunca ganharam aceitação na Igreja. Entre elas, podemos destacar as seguintes teorias: que Deus condenaria crianças não batizadas ao inferno, simplesmente por causa da herança do pecado original; que Deus justamente condena adultos que nunca tiveram a oportunidade de serem apresentados ao Evangelho, mais uma vez, devido unicamente ao pecado original contraído por eles; que algumas pessoas sofreriam condenação eterna por nenhuma outra razão do que a falta de interesse de Deus em salvá-las. Ao refletirmos sobre essas posições agostinianas, devemos lembrar do fato de que só porque alguém é um santo ou mesmo um doutor da Igreja não torna todo seu corpo de ensinar aceitável, somente o Magistério da Igreja pode decidir o que é ou não é conforme sua compreensão da verdade de Cristo. (Envoy, Setembro/Outubro de 1998)

Agostinho ensinou que o batismo é necessário para a salvação, mesmo de crianças (Sobre a alma e sua origem, 2:17). Em contraste, o catolicismo encoraja as pessoas a "confiá-las [as crianças não batizadas] à misericórdia de Deus, como ela faz em seus ritos funerários para eles" e "esperar que haja um caminho de salvação para as crianças que morreram sem batismo" (Catecismo da Igreja Católica, 1261). O apologista católico foi um pouco genérico na questão. A Igreja romana atualmente ensina que pessoas podem ser salvas sem o batismo, desde que elas desejassem explicitamente ou implicitamente o batismo – o chamado “batismo de desejo”, algo que Agostinho rejeitaria.

Cumpre mencionar que Agostinho está entre os advogados da regeneração batismal. Porém, essa doutrina foi contrariada por vários pais da igreja, em sua maioria mais antigos do que Agostinho. Tratamos da evidência pré-nicena aqui.

Confissão Auricular

O apologista católico traz o seguinte testemunho de Agostinho a respeito da confissão e penitência:

Quando você for batizado, mantenha uma vida boa nos mandamentos de Deus para que você possa preservar o seu batismo até o fim. Que eu não digo que você vai viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais que esta vida nunca está sem. O Batismo foi instituído para todos os pecados. Para pecados leves, sem os quais não podemos viver, a oração foi instituída... Mas não cometa esses pecados por conta de que você teria que ser separado do corpo de Cristo. Pereça o pensamento! para aqueles que você vê fazendo penitência cometeram crimes, seja adultério ou algumas outras enormidades. é por isso que eles estão fazendo penitência. Se seus pecados eram leves, a oração diária bastaria para apagá-los... Na Igreja, portanto, existem três maneiras em que os pecados são perdoados: nos batismos, na oração, e na maior humildade de penitência. (Sermão aos Catecúmenos sobre o Credo 7:15; 8:16)

Tratamos do desenvolvimento histórico da confissão e penitência aqui. O problema ignorado pelo católico é que Agostinho não ensinou a doutrina da confissão auricular defendida pela igreja romana. Pelo contrário, a contrariou explicitamente. Para ele, a confissão e a penitência era um processo de natureza pública e não privada (por isso não poderia ser considerada confissão auricular), e seria aplicável apenas aos pecados considerados grave e acessível apenas uma vez na vida. A igreja romana aplica a confissão e penitência mesmo para os pecados leves ou veniais e permite que pessoas sejam perdoadas através desse sacramento várias vezes ao longo da vida, mesmo em casos de pecados graves. Vejamos a citação acima em contexto:

Quando foste batizado, mantenha uma vida correta nos mandamentos de Deus para que você possa preservar o seu batismo até o fim. Eu não digo que você irá viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais, que nesta vida nunca se está sem. O Batismo foi instituído para todos os pecados. Para pecados leves, sem os quais não podemos viver, a oração foi instituída. Que direito tem a oração? "Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores." Uma única vez todos fomos lavados no batismo, mas todos os dias temos de nos limpar por meio da oração. Somente não cometa estas coisas para as quais é necessário ser separado do corpo de Cristo: que estejam longe de você! Àqueles a quem tendes visto fazendo penitência, foi porque cometeram atos abomináveis, como adultério ou alguns crimes graves: por isso, eles fazem penitência. Porque, se os seus pecados fossem leves, apagar estas manchas pela oração diária seria suficiente. Os pecados são perdoados de três formas na Igreja: pelo batismo, pela oração e pela maior submissão da penitência. (Sobre o Credo 15, 16).

Mas aqueles que pensam que todos os outros pecados são facilmente expiados por esmolas, já não tem dúvida de que estes três são mortais, e tal como, se exige que sejam punidos por excomunhões, até que eles tenham sido curados pela grande submissão da penitência. São estes pecados: a falta de castidade, a idolatria e o assassinato. (Sobre Fé e Obras 34)

O vício, entretanto, por vezes, faz tais usurpações entre os homens que, mesmo depois de terem feito penitência e serem readmitidos ao sacramento do altar, eles cometem os mesmos ou mais graves pecados, mas Deus faz nascer seu sol mesmo sobre tais homens e dá seus dons de vida e saúde como ricamente como Ele fazia antes de suas falhas. E, embora a mesma oportunidade de penitência não lhes é novamente concedida na Igreja, Deus não se esquece de exercer sua paciência para com eles. (The Fathers of the Church (Washington D.C.: Catholic University, 1953), Saint Augustine, Letters, Volume III, Letter 153, p. 284-285)

Vejam quão longe Agostinho está do catolicismo romano. Os pecados considerados graves eram “a falta de castidade, a idolatria e o assassinato”. Faltar por preguiça à missa aos domingos não estava entre eles – o que é considerado pela igreja romana pecado mortal. O recurso da penitência estava disponível apenas uma vez, enquanto um católico romano pode recorrer tantas vezes quanto quiser ao longo da vida. Além disso, ele defende que mesmo não podendo recorrer à penitência, o perdão de Deus ainda é possível. Já a igreja romana ensina a condenação ao inferno para aqueles que cometeram pecado mortal e não fez uso do sacramento.

O erudito patrístico J.N.D. Kelly, a quem o católico muito citou de forma distorcida, observa que “Agostinho também estava entre aqueles que acreditavam que poderia haver apenas uma penitência na vida para alguns pecados” (Kelly, Op. Cit, p. 438). Kelly nos dá uma visão de como era o processo:

Com o alvorecer do terceiro século, as linhas gerais de uma disciplina penitencial reconhecida estavam começando a tomar forma. Apesar dos argumentos engenhosos de certos estudiosos, ainda não há sinais de um sacramento da penitência privada (ou seja, a confissão a um padre, seguido pela absolvição e a imposição de uma penitência), tais como a cristandade católica conhece hoje. O sistema que parece ter existido na Igreja, neste momento, e durante séculos posteriores, era inteiramente público, envolvendo confissão, um período de penitência e exclusão da comunhão, a absolvição formal e a restauração - todo esse processo era chamado de exomologesis ... De fato, para os pecados menores, que mesmo os bons cristãos cometem diariamente e dificilmente podem evitar, nenhuma censura eclesiástica parece ter sido considerada necessária; esperava-se que os indivíduos lidassem com eles pela oração, atos de bondade e perdão mútuo. Penitência pública era para pecados graves; era, tanto quanto sabemos universal, sendo um caso extremamente solene, capaz de ser submetido somente uma vez na vida. (Ibid., pp. 216-217).

Purgatório

Agostinho é largamente considerado o pai do Purgatório. Os católicos romanos o citam muitas vezes referindo-se a algo semelhante à moderna doutrina católica. Mas o que não explicam é que Agostinho reconheceu que estava especulando. Em outras palavras, não estava transmitindo alguma tradição proferida de geração em geração em sucessão ininterrupta desde os apóstolos. Ao contrário, ele estava especulando sobre o que pode acontecer na vida após a morte. O famoso medievalista Jacques Le Goff explica:

[Joseph Ntedika] pôs o dedo num ponto chave, mostrando não apenas que a posição de Agostinho evoluiu ao longo dos anos, o que era de se esperar, mas que passou por uma mudança acentuada num ponto específico no tempo, que Ntedika situa no ano 413 (...) Na Carta a Dardinus (417), ele [Agostinho] esboçou uma geografia do além, onde não há lugar para o Purgatório. (The Birth of Purgatory [Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1986], pp 62, 70).

O historiador protestante George Salmon explica o significado desses fatos:

Da mesma forma, quando Agostinho ouve a ideia sugerida de que, como os pecados dos homens bons lhes causam sofrimento neste mundo, então também podem causar até certo ponto no próximo, diz que não vai arriscar dizer que nada do tipo não possa ocorrer, porque talvez possa. Bem, se a ideia de purgatório não tinha conseguido ir além de um "talvez" no início do século V, podemos dizer com segurança que não foi pela tradição que a Igreja mais tarde chegou à certeza sobre o assunto; pois, se a Igreja tivesse alguma tradição no tempo de Agostinho, esse grande Padre não podia ter deixado de conhecê-la. (The Infallibility of the Church [London, England: John Murray, 1914], pp. 133-134).

Aqui está um exemplo de Agostinho expressando a sua incerteza:

E não é impossível que algo do mesmo tipo possa ocorrer mesmo depois desta vida. É uma matéria que pode ser investigada, e apurada ou deixada na dúvida, se alguns crentes devem passar por uma espécie de fogo purificador, e na proporção em que amaram com mais ou menos devoção os bens que perecem, ser mais ou menos rapidamente livres dele. (O Enchiridion, 69).

Longe de ser uma boa testemunha da doutrina romana, Agostinho demonstra que o purgatório era uma inovação fruto de especulação, não havia em seu tempo nenhuma sólida tradição que suportasse essa doutrina, muito menos uma tradição de origem apostólica. Mais tarde, já no final do século sexto, o Papa Gregório Magno dará grande impulso à doutrina do purgatório. Aquilo que Agostinho especulou, Gregório tomou como certo.

Sucessão Apostólica

Trataremos esse ponto de forma resumida, pois já abordamos em artigos anteriores. O conceito de sucessão de Agostinho é radicalmente distinto do católico romano. Ele não acreditava em papado – o elemento básico do ensino romanista a respeito. As premissas do papado como o primado jurídico de Pedro, a transmissão da autoridade do apóstolo de forma exclusiva e integral ao bispo de Roma, a infalibilidade papal e a chefia de toda a igreja pelo bispo romano não eram cridos pelo africano. Além do mais, ele não acreditava que o critério final para definir a verdadeira igreja era a sucessão apostólica, mas a conformação da igreja à autoridade suprema das Escrituras, como demonstramos na parte 3 de nossa série.

O apologista católico traz a lista de Agostinho dos bispos de Roma. Essa não era uma lista de papas, mas apenas uma lista de bispos como já argumentado. Outro problema é que a lista de Agostinho é diferente da lista de papas. Ele coloca a seguinte sequência: Pedro – Lino – Clemente – Anacleto. Na lista romana, Anacleto vem antes de Clemente e não depois. Agostinho também coloca Aniceto depois de Pio, enquanto a lista oficial coloca antes:

O sucessor de Pedro foi Lino, e seus sucessores em continuidade ininterrupta foram estes: Clemente, Anacleto, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telesforo, Igino, Aniceto, Pio, Sotero, Eleutério, Victor.... (Carta 53:2)

Foi abordado na parte 1 a mudança da eclesiologia de Agostinho. Ele passou a compreender a igreja como a reunião dos eleitos que poderiam ser pessoas fora da igreja institucional num dado momento. O bispo africano também adotou o conceito de igreja invisível:

A segunda regra é sobre a dupla divisão do corpo do Senhor, mas esse na verdade não é um termo adequado, por que nenhuma parte do corpo de Cristo deixará de estar com Ele na eternidade. Devemos dizer que a regra é sobre o verdadeiro e o corpo misto do Senhor, ou o verdadeiro e o falso, ou algum outro nome, porque para não se falando da eternidade, pode ser dito que os hipócritas não estão Nele, embora eles pareçam estar na Sua Igreja. (A doutrina cristã 3:32)

Eleição Incondicional e Perseverança dos Santos

Agostinho defendeu a eleição incondicional:

Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). (...) Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo? (Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Consequentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou aos que predestinou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim. Portanto, Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram. (GRAÇA II, 1999, p.194, 195).

Sobre a perseverança dos santos:

É Ele, portanto, que os faz perseverar no bem, que os torna bons. Mas os que caem e perecem nunca foram do número dos predestinados. (A graça e o livre arbítrio, cap. 36)

Essa é apenas uma pequena amostra de muitas outras que mostram como a soteriologia agostiniana foi negada por Roma. Apesar de a igreja romana ter seguido Agostinho ao condenar o pelagianismo, nunca aderiu completamente às doutrinas agostinianas da salvação. Norman Geisler, um oponente da doutrina da eleição incondicional, escreve:

Nos seus escritos antipelagianos anteriores, por sua vez, Agostinho nunca adotara a posição radical sobre o livre-arbítrio e a expiação limitada que ele acabou manifestando em seus escritos posteriores, particularmente depois de 417. O endurecimento das artérias teológicas de Agostinho é manifesto em diversas áreas. Em sua visão anterior, igual à que foi sustentada por todos os pais ao longo de toda a história da Igreja até Lutero, ele abraçou a expiação ilimitada; posteriormente, afirmou a expiação limitada. No período anterior, ele sustentava que Deus nunca coage um ato livre; isso foi descartado em favor da graça irresistível sobre o que não quer, nos últimos anos de sua vida. Isso, naturalmente, resultou no endurecimento de sua visão da predestinação, em que Deus foi ativo tanto no destino do eleito quanto no do não-eleito, e na negação de que há condições para se receber o dom da salvação incondicional de Deus. De fato, para o Agostinho mais velho, em contraste com o Agostinho mais jovem, a raça humana está tão depravada que não tem livre-escolha em relação às coisas espirituais. (GEISLER, 2005, p. 190)

Roger Olson, um conhecido oponente dessas doutrinas, também escreve:

Toda a soteriologia de Agostinho decorre de duas crenças principais: a absoluta e total depravação dos seres humanos depois da queda e o poder e a soberania absoluta e total de Deus. (OLSON, 2001, p. 275)

Paul Tillich escreve sobre o testemunho de Agostinho:

Os predestinados não podem recair. Recebem o dom da perseverança que lhes impede de perder a graça uma vez recebida. Nada disso depende de mérito. (TILLICH, 2007, p. 141).

Salvação fora da Igreja

O apologista católico traz uma citação em que Agostinho afirma a necessidade da participação na Eucaristia para salvação:

[De acordo com] Tradição Apostólica... as Igrejas de Cristo mantém inerentemente que sem o batismo e a participação na mesa do Senhor é impossível para qualquer homem alcançar tanto o reino de Deus quanto a salvação e a vida eterna. Este é o testemunho da Escritura também. (Sobre o mérito e perdão dos pecados e o batismo de crianças 1:24:34)

O interessante desse item é que ao querer refutar o protestantismo, o apologista acaba demonstrando que Agostinho contrariava o romanismo. A igreja romana ensina atualmente que até mesmo homens não cristãos podem ser salvos. Em oposição à tradição histórica romanista, em que estar submetido ao papa não é mais uma necessidade para que qualquer homem seja salvo. Então mostrar que o bispo africano defendia a participação na Eucaristia como necessária para a salvação mostra apenas o que defendemos – Agostinho não era um católico romano. O catecismo afirma:

Significa que toda a salvação vem de Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é o seu corpo. Portanto não poderiam ser salvos os que, conhecendo a Igreja como fundada por Cristo e necessária à salvação, nela não entrassem e nela não perseverassem. Ao mesmo tempo, graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita. (846-848)

Já o Concílio de Florença disse:

A Igreja crê firmemente, professa e prega que todos aqueles que estão fora da Igreja Católica, não só pagãos, mas também judeus ou hereges e cismáticos, não podem compartilhar a vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos, a menos que eles estejam ligados à Igreja Católica antes do final de suas vidas, pois a unidade do corpo eclesiástico é de tal importância que somente aqueles que recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo jejuns, obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica. (Concílio de Florença, 1431-1445)

Esse é só um dos inúmeros exemplos de como o magistério romano se contradiz ao longo da história. O Concílio de Florença, supostamente infalível, foi claro – ninguém pode ser salvo se não estiver ligado a hierarquia romana e participando dos sacramentos. O pensamento agostiniano é claro:

Nenhum homem pode encontrar a salvação exceto na Igreja Católica. Fora da Igreja Católica se pode ter tudo, exceto a salvação. Uma pessoa pode ter honra, pode ter os sacramentos, pode cantar aleluia, pode responder amém, pode ter fé no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e pregá-lo também, mas nunca pode encontrar a salvação exceto na Igreja Católica. (Sermo ad Caesariensis Ecclesia plebem)

Nessa altura de nossos estudos, resta claro que a igreja católica a que se refere Agostinho não era católica romana. Os reformadores estão mais próximos desse ponto. Eles ensinavam que não havia salvação fora da igreja e rejeitariam a possibilidade de não cristãos serem salvos, pois apenas os regenerados e crentes em Cristo podem fazer parte da igreja. 

Os católicos costumam alegar que os não cristãos podem ser salvos através da igreja, mesmo não aderindo a ela. Obviamente, essa ideia não era compartilhada pelos pais da igreja ou mesmo pelos papas mais antigos. Além do mais é uma contradição. Alguém que nunca manifestou a fé em Cristo não pode fazer parte de sua igreja.

Conclusão da Série

Concluo aqui está série de sete artigos sobre Agostinho e o catolicismo romano. Espero que esse estudo seja útil aos leitores e tenha demonstrado de forma suficiente o quão longe o bispo de Hipona estava da atual igreja romana. O maior teólogo da igreja latina não era um católico romano, isso nos dá uma boa evidência de como as peculiares doutrinas do romanismo não encontram fundamento histórico.