sábado, 11 de outubro de 2025

Os sete sacramentos da Igreja de Roma foram instituídos por Cristo?


Neste artigo, vamos abordar a questão dos sacramentos da Igreja de Roma. O Concílio de Trento afirmou:

“Se alguém disser que os sacramentos da Nova Lei não foram todos instituídos por nosso Senhor Jesus Cristo, ou que são mais ou menos que sete — a saber: batismo, confirmação, Eucaristia, penitência, unção dos enfermos, ordem e matrimônio —, ou ainda que algum desses sete não é verdadeiramente e propriamente um sacramento, seja anátema.” (Concílio de Trento, Sessão VII, cân. 1; Denzinger-Hünermann 1601).

Ou seja, todos os sete sacramentos citados foram instituídos por Cristo e o número fixado é sete, não podendo ser mais ou menos. Quem nega qualquer uma destas verdades esta sob anátema. Embora teólogos modernos tentem suavizar, estar sob anátema é estar condenado ao inferno na teologia do Concílio de Trento. Se alguém nega por exemplo que a penitência é um sacramento ou alega que não foi instituída por Cristo, estará condenado ao inferno. Como de costume, vamos trazer a obra de um reconhecimento acadêmico católico. O autor da vez será o especialista em sacramentologia Joseph Martos. Ele publicou um livro em que descontrói a teologia sacramental católica (veja AQUI https://www.amazon.com.br/Deconstructing-Sacramental-Theology-Reconstructing-Catholic/dp/1498221793), a qual será objeto de artigos mais detalhados no futuro.  O mesmo autor também publicou um artigo que fornece um resumo dos argumentos livros. As citações abaixo serão todas deste artigo, que pode ser visto AQUI https://www.academia.edu/36713440/A_Summary_of_My_Book).

Nós protestantes concordamos que o batismo e a Eucaristia (ou Santa Ceia) são verdadeiros sacramentos, pois foram de fato instituídos por Cristo e são sinais visíveis da nova aliança, vindo a substituir a circuncisão (rito de iniciação) e a ceia pascoal. Contudo, defendemos que os cinco sacramentos adicionais da Igreja Romana são adições feitas por homens e neste artigo vamos demonstrar que tanto a evidência bíblica quanto histórica suporta tal afirmação.

Os sete sacramentos não foram instituídos por Jesus

Martos afirma:

“Os católicos geralmente têm uma compreensão ingênua sobre as origens de seus sacramentos. Quer estejam mal informados e acreditem que os sacramentos remontam à Igreja primitiva ou ao próprio Jesus, quer estejam conscientes de que os rituais de sua Igreja evoluíram ao longo dos séculos, eles têm a sensação de que há algo basicamente correto em haver sete sacramentos”.

E também:

Não há textos do Novo Testamento que possam ser usados para sustentar a teologia sacramental escolástica”.

Sobre o Batismo

“Organizar esses textos em ordem cronológica mostra uma evolução clara da linguagem teológica, desde o uso metafórico das palavras nos primeiros textos até uma interpretação metafísica dessas palavras em textos posteriores. Por exemplo, o “selo do Espírito” de que Paulo escreveu era, muito provavelmente, a manifestação exterior de uma conversão espiritual; mas, séculos mais tarde, quando tornar-se cristão já não implicava uma mudança dramática de estilo de vida, ele foi interpretado como uma realidade metafísica impressa na alma pelo rito do batismo”.

Martos se refere as passagens paulinas que mencionam o “selo do Espírito” (Efésios 1:13-14 e Efésios 4:30, além de 2 Coríntios 1:22). De fato, em nenhuma destas há qualquer conexão com o batismo. Ele prossegue:

“O substantivo baptisma não aparece nos escritos do Novo Testamento, exceto em referência ao ministério de João Batista, até o final do primeiro século. Em contraste, o verbo baptizein é usado com bastante frequência. Isso sugere que os primeiros seguidores de Jesus viam o que estavam fazendo como uma imersão simbólica, não como a realização de um ritual que tivesse um nome próprio. A compreensão que Paulo tinha do significado dessa imersão simbólica vinha de sua própria experiência e da experiência de outros. A “garantia” ou “penhor do Espírito” é, com toda a probabilidade, uma referência à experiência de dons carismáticos, com a expectativa de que ainda haveria mais. As imagens de um corpo, de imersão ou mergulho, e de morrer e ressuscitar podem todas ser interpretadas como referências a mudanças na pertença ao grupo, nas atitudes e nos comportamentos que foram vivenciados por Paulo e outros primeiros membros do movimento de Jesus”.

Ele trata da evidência patrística em Justino Mártir:

“Justino Mártir descreve o processo de “ser renovado por meio de Cristo”, que envolve uma lavagem que não é chamada de batismo. O processo pode ser entendido como regeneração moral: abandonar os pecados do passado e aprender o modo correto de viver. A lavagem simboliza isso, mas não o causa”.

Gary Wills (Priests: a failed tradition) também confirma a opinião de Martos:

“Como não há sacerdotes no Novo Testamento, os leigos foram os primeiros batizadores — um papel que lhes foi concedido de forma relutante em tempos posteriores. Nos primeiros séculos, o batismo era dado a adultos apenas após longo catecumenato nas verdades do cristianismo, com múltiplos exames corporais, purificações e exorcismos”. (Wills, p. 280)

Sobre a Eucaristia

Martos comenta o texto de 1 Coríntios 11:

“A ceia do Senhor descrita em 1 Coríntios é melhor entendida como uma refeição comunitária para a qual muitas pessoas levavam comida. Não há indício de que as chamadas “palavras da instituição” tenham sido pronunciadas durante a refeição; ao contrário, essas palavras de Jesus são dadas como a razão para a refeição. O corpo do Senhor ao qual o texto se refere é mais provavelmente a comunidade local do que o que mais tarde foi chamado de pão consagrado”.

Era a chamada refeição ágape. “Não discernir o corpo” (1 Coríntios 11:27-29)  era não respeitar a unidade do corpo eclesial de Cristo, uma vez que os que chegavam primeiro comiam toda a comida não deixando nada para os irmãos que chegavam depois. O pecado dos crentes de Corinto não era uma correta compreensão metafísica dos elementos eucarístico (algo não discutido no texto) mas não ser caridoso com os demais irmãos da Igreja. Nosso autor também comenta as passagens dos Evangelhos, inclusive de João 6, que são usadas em favor da transubstanciação católica:

“As palavras de Jesus sobre o pão e o vinho, conforme relatadas nos evangelhos sinóticos, não podem ser usadas como textos-prova para crenças eucarísticas cristãs posteriores, porque a cópula “é” não teria sido usada em aramaico. Da mesma forma, o discurso do pão da vida no quarto evangelho pode ser interpretado simbolicamente, como os protestantes têm feito desde a Reforma. Em outras palavras, não há razão para tomar essas passagens literalmente, exceto pelo interesse de sustentar doutrinas católicas posteriores”.

Confissão e Penitência

“No ensino de Jesus, perdoar os pecados dos outros é algo que deve ser feito por todos os seus seguidores, não apenas por ministros designados”.

Mattos traz o seguinte panorama durante o período pré-niceno:

“Durante essa era, um processo de arrependimento público permitia que apóstatas arrependidos e outros pecadores retornassem à plena participação na Igreja sob a supervisão do bispo local. Era compreendido universalmente que o penitente era perdoado por Deus, não pelo bispo”.

Já temos um artigo completo sobre confissão e penitência (AQUI), mas, no século III, tratava-se de um processo público (não havia confissão auricular), possível apenas uma vez na vida e somente para pecados públicos e graves. Não havia absolvição sacerdotal e a recepção novamente na comunhão da Igreja era operada por toda a Igreja. Já no século IV, Martos afirma:

“Ao discutir o processo de penitência pública, alguns escritores desse período começam a falar como se bispos e presbíteros tivessem o poder de perdoar, embora outros continuem a falar do perdão como vindo de Deus quando um pecador é verdadeiramente arrependido”.

 

 

Extrema unção ou unção dos enfermos

“A referência à unção feita por presbíteros na Epístola de Tiago não pode ser usada para justificar um ritual eclesiástico que apenas padres têm permissão de realizar”.

Martos também aponta que os leigos praticam a unção dos enfermos no séc. III:

“A unção dos enfermos era uma prática leiga, não clerical”.

Já no séc. IV:

“O óleo usado para a unção dos enfermos começa a ser visto como um sacramentum, mas ainda não existe um rito clerical de unção”.

Ordenação

“Não há referência no Novo Testamento a uma imposição de mãos que possa, de forma plausível, ser interpretada como um ritual de ordenação”.

Martos também afirma que no período pré-niceno:

“Até o século III, não há evidência direta de ordenação no sentido de ser introduzido em uma ordem clerical. No máximo, há evidência de que aprovação e bênção eram simbolizadas por uma imposição de mãos”.

Ainda não havia o sacramento da ordem. Já no séc. IV:

“O ministério eclesiástico passa a ser organizado em ordens sagradas, principalmente o episcopado, o presbiterato e o diaconato. A iniciação nessas ordens é realizada através de um rito de ordenação que introduz uma pessoa em um ofício local, mas não confere um poder que possa ser exercido em outros lugares”.

A estrutura hierárquica

“Os supervisores, anciãos e servidores mencionados no Novo Testamento não eram os mesmos que os bispos, presbíteros e diáconos que mais tarde surgiram na estrutura organizacional da Igreja”.

Matrimônio:

“A relação de cuidado mútuo e doação entre marido e esposa é simbólica da relação Cristo–Igreja. Contudo, o mistério referido em Efésios 5 se encontra na relação entre Cristo e sua Igreja”.

E também:

“Até o século III, o matrimônio era um assunto familiar, arranjado por pais para seus filhos ou contratado por casais adultos por conta própria. Não havia cerimônia cristã de casamento”

 

 

O desenvolvimento do século V até a alta idade média

Martos traz o desenvolvimento histórico dos sacramentos que ocorreria a partir do séc. V culminando com a teologia escolástica dos sacramentos que só amadureceria na alta idade média:

“A idade para o batismo diminui até que ele passa a ser praticado principalmente em crianças. Quando a teoria do pecado original de Agostinho se torna amplamente aceita, o momento para o batismo muda de uma vez por ano para logo após o nascimento. O rito usado para o batismo infantil passa a ser utilizado até mesmo para adultos, quando tribos inteiras se convertem ao cristianismo. A compreensão cultural do batismo torna-se essencialmente mágica, ou seja, entende-se que o ritual lava o pecado original e todos os outros pecados passados, desde que seja realizado corretamente”.

Ele fala especificamente da confirmação como um rito separado do batismo:

“A bênção pós-batismal do bispo torna-se um rito separado de confirmação, mas é amplamente ignorada por pais e bispos. Reformadores francos fabricam as chamadas falsas decretais, em parte para provar que os primeiros papas incentivavam o uso do sacramento, dizendo que ele proporciona fortalecimento pelo Espírito Santo”.

Também fala sobre a confissão:

“A confissão privada evolui da prática de direção espiritual dos monges e torna-se um ritual generalizado. O entendimento é que Deus perdoa os pecados dos que se arrependem, mas os confessores também absolvem os penitentes de terem que realizar obras de penitência se ficarem doentes e morrerem antes de concluí-las”.

Os francos criam um rito específico para a unção dos enfermos:

“Os mesmos bispos francos que tentaram incentivar a confirmação também criam um rito clerical de unção dos enfermos. Com o tempo, ele se torna uma unção dos moribundos e passa a ser conhecido como extrema-unção”.

Sobre o matrimônio:

“O clero lentamente começa a se envolver nos matrimônios, primeiro atuando como testemunhas públicas, depois oferecendo uma bênção, mas não existe ainda um ritual de casamento eclesiástico. Os bispos tornam-se cada vez mais envolvidos na adjudicação de casos matrimoniais”.

Sumário do estado da Evidência em Martos

“Os católicos mais velhos foram ensinados de que os sacramentos são “sinais exteriores instituídos por Cristo para dar a graça”. O novo Catecismo usa essencialmente a mesma linguagem. Tal linguagem é enganosa. Transmite a ideia de que o próprio Jesus disse a seus seguidores para realizarem sete rituais religiosos. Os estudiosos do Novo Testamento, no entanto, dizem que apenas o batismo e a eucaristia podem ser remontados a Jesus. Os historiadores, por sua vez, nos dizem que a reconciliação eclesiástica provavelmente começou no século II, que os primeiros ritos de ordenação registrados são do século III, que a confirmação foi separada do batismo no século IV, que a unção dos enfermos foi pela primeira vez reservada a padres no século IX, e que os casamentos na igreja se tornaram comuns apenas no século XII”.

Gary Wills também traz um importante sumário histórico

“No século XII, Pedro Lombardo peneirou diversas tradições, pronunciamentos e práticas, e os compilou em suas Sentenças, que se tornaram a fonte de todos os tratamentos posteriores dos sete sacramentosComo cada sacramento precisava ser validado como vindo diretamente de Deus, e a base escriturística para essa alegação é muito frágil para a maioria deles, por muito tempo não houve certeza sobre o que deveria ser incluído na lista. Pois, por exemplo, não havia sacerdotes na igreja primitiva; logo, a ordem, que faz de um homem um sacerdote, não poderia existir então. Sustenta-se que Jesus instituiu o sacerdócio, mas a igreja teria levado tempo para entender o que Pedro e Paulo jamais entenderam. Além disso, quando se pensava que os Últimos Dias eram iminentes, não havia previsão de perdão após a grande ablução canceladora de pecados do batismo. O matrimônio, como Jesus o confirmou em Caná, era uma instituição judaica, não algo que ele tenha transformado em um serviço cristão quando ajudou o casal de Caná a festejar seus convidados. Jesus não ungiu ninguém com óleo, como se requer em quatro sacramentos. Por outro lado, ele expulsou demônios, embora o exorcismo não seja um dos sacramentos, apenas um “sacramental” (ST 3.67 a3 ad2)”. (Wills, p. 275)

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

O SACERDÓCIO ORDENADO NÃO É PARTE DA FÉ CRISTÃ: UMA ANÁLISE BÍBLICA E HISTÓRICA

 


A doutrina católica romana ensina que o sacerdócio ordenado é o ministério recebido no Sacramento da Ordem que configura o homem a Cristo Sacerdote e lhe confere um caráter indelével e uma potestas sacra (poder sagrado) para santificar o povo de Deus, sobretudo administrando validamente os sacramentos — em especial fazendo presente e oferecendo sacramentalmente o sacrifício eucarístico, perdoando os pecados e ungindo os enfermos — agindo em pessoa de Cristo Cabeça e em nome da Igreja, na sucessão apostólica. (Cf. Lumen gentium 10, 28; Presbyterorum ordinis 2; CIC 1983, cânn. 1008–1009; Catecismo 1536; 1547; 1551–1553; 1566; Trento, Sess. XXII–XXIII.)

A caráter sacerdotal está diretamente vinculado aos sacramentos. Alguns destes só podem ser administrados por um sacerdote. Somente ele tem o poder de dispensar a graça que flui através do sacramento, fazendo do ministro um canal mediador. Dessa forma, não há o milagre da Eucaristia sem ele, não há absolvição de certos pecados sem ele. A grande questão é se essa doutrina era parte da Igreja apostólica ou mesmo do cristianismo dos primeiros séculos. A fim de responder tal pergunta utilizaremos principalmente o autor católico romano que escreveu sobre o sacerdócio: Garry Wills (Why Priests?: A Failed Tradition) – (aqui).

Ausência da doutrina no Novo Testamento

Wills é especialmente enfático sobre a ausência do sacerdócio ordenado no Novo Testamento:

"Sem o sacerdócio, haveria crença na sucessão apostólica, na presença real na Eucaristia, na interpretação sacrificial da Missa ou na teoria do resgate da redenção? Este livro argumentará que não haveria. Sem o sacerdócio, tudo isso teria uma base frágil para se sustentar — e o próprio sacerdócio tem uma base duvidosa. Isso não significa, como alguns protestariam imediatamente, que o próprio cristianismo deva ter uma base fraca. Pelo contrário, ele existiu sem o sacerdócio desde o início e pode se manter mais forte sem ele agora (...) Não deveria ser difícil imaginar o cristianismo sem sacerdotes. Leia cuidadosamente o Novo Testamento inteiro e você não encontrará um sacerdote humano individual mencionado nas comunidades cristãs (apenas sacerdotes judeus em serviço no Templo). Apenas um livro do Novo Testamento, a Carta aos Hebreus, menciona um sacerdote individual, e ele é único — Jesus. Ele não tem sucessores nesse ofício, de acordo com a Carta. Não é surpreendente, então, que algumas comunidades protestantes consigam ser bons cristãos sem terem sacerdotes". (Wills, p. 12)

Ou seja, no Novo Testamento há apenas o sacerdócio dos judeus, o sacerdócio único de Cristo e o sacerdócio de todos os crentes. Não há de fato qualquer menção a uma sucessão sacerdotal de ministros cristãos. Wills menciona que as primeiras comunidades cristãs eram carismáticas. Isto quer dizer que as funções exercidas nestas comunidades estavam ligadas aos dos distribuídos pelo Espírito Santo. Paulo é especialmente importante pois menciona em diversas passagens os dons que são conferidos para edificação do corpo de Cristo e não dentre eles nada que se assemelhe ao sacerdócio ordenado:

“De fato, não havia ‘igreja’ na primeira geração de seguidores de Jesus — apenas “reuniões” (ekklisíai, que significava “reuniões em casas”), onde os seguidores se encontravam. Os seguidores de Jesus eram chamados de “companheiros de casa”, Oikeioi (Gl 6.10, Ef 2.19). Nessas reuniões, não havia sacerdotes, embora houvesse muitos “carismas” — atividades inspiradas pelo Espírito Santo. Não é curioso que — com tantos dos primeiros seguidores de Jesus inspirados pelo Espírito para servir a seus irmãos e irmãs — nenhum desses ministérios fosse o de sacerdote? (...) Nada é dito no primeiro século sobre uma “consagração” que transformasse comida em qualquer coisa além de um sinal de comunhão compartilhada”. (Wills, p. 14)

Wills defende que o surgimento da ideia do sacerdócio está diretamente ligado a visão da Eucaristia em si como uma atualização do sacrifício de Cristo, no qual os elementos (pão e vinho) são literalmente o corpo e o sangue de Cristo. Contudo, esta visão eucarística não existia no primeiro século da era Cristã, o que explica a ausência do sacerdotalismo neste período. Ele prossegue afirmando a ausência do termo sacerdote (hiereus) para se referir aos que receberam os dons:

"Em nenhum lugar, a palavra sacerdote (hiereus) é usada para se referir aqueles que receberam charismata". (Wills, p. 20-21)

"Ver-se-á, então, que há uma grande variedade de carismas, funções e tarefas mencionadas no Novo Testamento. Se o sacerdócio existisse naquela época, não teria sido incluído nessa lista exaustiva, ou ao menos mencionado? Mas, de fato, Jesus em nenhum momento chama seus Seguidores ou Discípulos de sacerdotes. Paulo nunca se chama — nem a Timóteo, nem a qualquer um de seus colaboradores — de sacerdote. Ele nunca confere esse status a ninguém, seja como carisma ou como cargo”. (Wills, p. 25)

Além desta ausência do cargo de sacerdote, não se encontra também a estrutural sacramental hoje associada ao sacerdócio:

"Não apenas não há menção a um único sacerdote entre os Seguidores e Discípulos no Novo Testamento, como também não há menção aos atos que agora associamos ao sacerdócionão há confissão de pecados ouvida, nem unção dos enfermos, nem celebração de casamentos, nem confirmação, nem presidência da Missa, nem consagração da Eucaristia. O batismo nunca foi um rito exclusivo de sacerdotes. Quando facções rivais em Corinto estavam envolvidas em diferentes batismos, Paulo se colocou acima da contenda apontando que normalmente não batizava (1Co 1.14–17)”. (Wills, p. 25)

Wills também afirma que os pagãos não consideravam o cristianismo uma religião justamente pela ausência de um sistema sacrificial, pois este era um traço comum às religiões do mundo antigo:

"Portanto, para resumir: embora houvesse muitos carismas de serviço no movimento inicial de Jesus — muitas funções, alguns ofícios incipientes — não havia sacerdotes nem serviços sacerdotais; nenhum dirigente masculino da refeição ágape, nenhuma reencenação da Última Ceia de Jesus, nenhum “sacrifício da Missa”, nenhuma consagração do pão e do vinho; nada que se assemelhasse ao que os sacerdotes hoje afirmam fazer. De fato, críticos pagãos do movimento de Jesus diziam que ele não podia ser uma religião de modo algum, já que não tinha sacerdotes, nem altares, nem lugares designados de culto. (Wills, p. 28)

A ausência da ordenação sacerdotal na carta aos Hebreus

Outro importante lugar onde o sacerdócio ordenado não aparece é na carta aos Hebreus. Esta carta foi dirigida a um público de raízes judaicas que estava desanimando da fé cristã e voltando ao judaísmo. O argumento principal do autor de Hebreus é demonstrar como a nova aliança é superior à antiga. Em função disso, ele apresenta Jesus como o detentor de um sacerdócio único do qual não há menção a nenhuma sucessão. Wills afirma:

“Também precisamos prestar atenção ao que a Carta não afirma. Em nenhum lugar ela diz que o sacerdócio seria uma instituição contínua para homens (ou mulheres) cristãos. Na verdade, diz o oposto. Jesus é o último sacerdote, cuja oferta única torna obsoletos todos os outros sacerdócios. Como Melquisedeque, Jesus não tem linhagem antes ou depois dele, apenas o ato único e isolado de um sacrifício que tudo realiza”. (Wills, p. 187)

Não só a ideia de uma sucessão, mas também a ideia de uma atualização constante do ato sacrificial de Cristo está ausente nesta carta. O exegeta da Carta aos Hebreus Craig R. Koester afirma:

“Hebreus chama Cristo de ‘apóstolo’ e ‘sumo sacerdote’ (3,1), mas não usa esses termos para os líderes da comunidade. Nenhuma forma de sacrifício sacerdotal é identificada de modo exclusivo com os líderes. Ao contrário, todos na comunidade oferecem sacrifícios de louvor e amor (13,15)”. (Craig R. Koester, Hebrews: A New Translation with Introduction and Commentary, Anchor Bible 36, New York: Doubleday, 2001, p. 76)

O espírito da carta também se opõe a ideia de hierarquia burocrática que tenha acesso a um canal exclusivo de graça. Isto fica bem claro quando se diz que os crentes têm livre acesso ao trono da graça (Hebreus 4:16). A noção de que os cristãos dependem de um clero constituído para obter perdão de pecados ou mesmo para realizar um verdadeiro culto cristão é estranha a teologia da carta.

De uma liderança carismática para uma liderança institucional

Wills cataloga 16 ou 17 dons conferidos para se servir o corpo de Cristo, mas, nenhum deles se refere ao sacerdócio. Esta estrutura inicialmente carismática se desenvolveria depois numa expressão institucional mais robusta:

"Assim, a literatura pós-evangélica do movimento de Jesus introduz pessoas em funções administrativas — Servos, Anciãos, Supervisores. Estes não são carismas concedidos pelo Espírito, mas cargos para os quais as pessoas são designadas por seus semelhantese, mais uma vez, o sacerdócio está ausente da lista". (Wills, p. 22)

Os servos são hoje conhecidos como diáconos, os anciãos como presbíteros e os supervisores como bispos. Os cargos de bispo e presbítero são intercambiáveis no Novo Testamento, de forma que a liderança da Igreja, mesmo nesta versão mais institucionalizada, ainda era colegiada. A estrutural atual da Igreja Romana compreende um bispo monárquico que governa presbíteros e diáconos, porém, esta estrutura surge pela primeira em Inácio (embora haja controvérsia sobre a autenticidade de suas cartas). Mesmo quando surgem essas funções de liderança, não há sacerdote.

"Essas cartas pastorais estão caminhando em direção ao sistema de supervisor único — o chamado episcopado monárquico — que aparece plenamente desenvolvido nas cartas de Inácio de Antioquia (datadas por John Meier entre 108–117 d.C.). Ele observa que até mesmo o supervisor único de sua época precisava presidir em conjunto com presbíteros (presbyteroi) e diáconos (diakonoi). De fato, Inácio refere-se a si mesmo como diácono (diakonos) assim como supervisor. Apesar da ênfase de Inácio em sua própria autoridade como supervisor, está claro que ele já havia perdido o controle da igreja em Antioquia antes mesmo de sua prisão pelas autoridades imperiais". (Wills, p. 24-25)

Mesmo em Inácio de Antioquia, o cargo de bispo monárquico ainda era instável.

O conceito de um sacerdócio ordenado surge tardiamente no século III

Além da ausência do conceito no período apostólico, também não o encontramos dentre os autores cristãos do século II. Mesmo entre os pais apostólicos e apologistas, embora haja referências numerosas à celebração da Eucaristia (veja mais aqui), não há qualquer defesa de uma sucessão sacerdotal. Philip Schaff, após afirmar a ausência do sacerdócio no Novo Testamento, traz um sumário da questão histórica:

“Depois do declínio gradual da extraordinária elevação espiritual da era apostólica, a distinção de uma classe regular de mestres em relação aos leigos tornou-se mais fixa e proeminente. Isso aparece primeiro em Inácio, que, em seu espírito episcopalista, considera o clero o meio necessário de acesso do povo a Deus. Contudo, ele não representa em nenhum lugar o ministério como um ofício sacerdotal. A Didaque chama os “profetas” de sumos sacerdotes, mas provavelmente em sentido espiritual. Clemente de Roma, ao escrever à congregação de Corinto, traça um paralelo significativo e frutífero entre o ofício cristão de presidir e o sacerdócio levítico, e usa a expressão “leigo” (laïkós ánthropos) em contraste com sumo sacerdote, sacerdotes e levitas. Esse paralelo contém o germe de todo o sistema do sacerdotalismo. Mas, no máximo, é apenas um argumento por analogia. Tertuliano foi o primeiro a afirmar expressa e diretamente reivindicações sacerdotais em favor do ministério cristão, e o chama de sacerdotium, embora também afirme fortemente o sacerdócio universal de todos os crentes. Cipriano (†258) vai ainda mais longe e aplica todos os privilégios, deveres e responsabilidades do sacerdócio aarônico aos oficiais da Igreja cristã, chamando-os constantemente de sacerdotes e sacerdotium. Ele pode, portanto, ser chamado de verdadeiro pai da concepção sacerdotal do ministério cristão como uma agência mediadora entre Deus e o povo. Durante o século III tornou-se costume aplicar o termo “sacerdote” direta e exclusivamente aos ministros cristãos, especialmente aos bispos”. (Philip Schaff, § 42Clergy and Laity)

Schaff identifica Cipriano de Cartago como o pai do ofício sacerdotal como um mediador entre Deus e o povo. A seção sobre o clero e os leigos do link acima merece leitura, pois mostra como, no princípio, não havia uma divisão de rígida entre clero e leigos, sendo que muitas funções como o direito de ensinar e de escolher seus próprios bispos eram dados ao leigo (veja mais aqui)

 Conclusão

A partir de uma análise bíblica e histórica, podemos concluir que o sacerdócio ordenado não é parte inexorável da fé cristã. Como bem disse Gary Wills, o cristianismo viveu durante séculos sem o sacerdócio e não há motivo, portanto, para acreditar que não poderia voltar a ser assim. De fato, esta doutrina obliterou o papel dos leigos que era proeminente na Igreja Primitiva e suplantou a liberdade cristã em prol de uma hierarquia espiritual abusiva. A Igreja Romana se transformou numa espécie de cartório celestial, no qual o acesso a graça se tornara um processo burocrático que em nada lembraria os ensinos de Jesus e dos Apóstolos. No próximo artigo, vamos analisar o surgimento da estrutural sacramental romana que, assim como o sacerdócio, não encontra evidência favorável nem nas Escrituras nem na Igreja antiga.