quarta-feira, 2 de julho de 2025

O Sacerdócio Universal de Todos os Crentes na Igreja Pré-Nicena

 

A imagem comum que muitos cristãos têm da Igreja Antiga é a de uma instituição altamente hierarquizada, em que bispos e presbíteros concentravam toda autoridade litúrgica, doutrinária e disciplinar. No entanto, uma análise atenta das fontes do cristianismo pré-niceno — isto é, anterior ao Concílio de Niceia em 325 d.C. — revela uma configuração bem diferente, marcada por ampla participação dos leigos na vida comunitária e eclesial.

Este artigo apresenta evidências textuais e análises acadêmicas que demonstram que, nos primeiros séculos do cristianismo, os leigos tinham uma presença mais ativa e, em muitos aspectos, mais próxima dos princípios defendidos por várias tradições protestantes posteriores — especialmente no que se refere ao ensino, batismo, carismas e liderança comunitária. O teólogo católico Yves Congar escreveu:

Na Igreja primitiva ainda não aparece a distinção entre clérigos e leigos; vê-se apenas ministérios diversos, nascidos dos carismas e reconhecidos pela comunidade.” (Lay People in the Church: A Study for a Theology of Laity, p. 18)

A participação de leigos no ensino e na celebração de sacramentos

No cristianismo pré-niceno, a distinção entre clero e laicato existia, mas não carregava o peso sacramental, jurídico e institucional que teria a partir do século IV. A Igreja era, sobretudo, uma comunidade carismática, com dons diversos concedidos pelo Espírito a todos os crentes, conforme 1 Coríntios 12.

A Didaque menciona os profetas itinerantes, que não pertenciam ao quadro local de “bispos e diáconos” (15,1), e podiam presidir livremente: “Quando o profeta quiser dar graças, deixe-o fazê-lo como quiser.”

Tertuliano de Cartago (séc. III), ao tratar da celebração da Eucaristia e do batismo permite que leigos o façam, na ausência de clero ordenado, o parecia ser comum neste período, uma vez que novas Igrejas estavam se formando diariamente devido à atividade missionária:

“Portanto, onde não houver reunião da ordem eclesiástica, tu mesmo ofereces (o sacrifício) e batizas, e és sacerdote para ti próprio; mas onde houver três, aí está uma Igreja, ainda que sejam leigos.” (Tertuliano, De Exhortatione Castitatis 7)

“Além desses [bispo, presbítero e diácono], até os leigos têm autoridade para batizar, pois aquilo que se recebe de forma igual pode ser concedido de forma igual.” (Tertuliano, De Baptismo 17)

Hipólito de Roma, escreveu no século III, sobre a possibilidade de mestres leigos ensinarem:

Se chegar um mestre dotado de carisma, não tardeis em ir ao lugar onde a palavra está sendo dada, pois graça será concedida ao orador para dizer coisas proveitosas a todos.” (Trad. Apost. 35:3)

“Se alguém disser: ‘Recebi do Senhor o dom de ensinamento’, seja provado; se ensinar conforme a regra da fé e permanecer humilde, então que ensine, pois a Igreja é edificada por todos; mas, se se ensoberbecer, exaltando-se a si mesmo e ensinando algo estranho à regra, deve ser silenciado.” (Tradição Apostólica 11:1-2)

Orígenes de Alexandria (séc. III) afirma:

“Porém cada pessoa individualmente é chamada ora apóstolo, ora profeta, ora mestre (doctor)… de acordo com aquilo em que pode ser útil aos outros.” (Comentário sobre Romanos, Prólogo).

Ou seja, os testemunhos acima demonstram que leigos participavam do ensino e da celebração de sacramentos como o batismo/ceia. Paul F. Bradshaw afirma:

“O Novo Testamento, claro, nada nos diz; e, embora argumentos a partir do silêncio sejam perigosos, o próprio silêncio pode indicar que não havia qualquer ministério cujo encargo principal fosse pronunciar a oração eucarística: ninguém foi ordenado ou instituído num ofício que consistisse primariamente em dizer a bênção sobre o pão e o vinho.” (Liturgical Presidency in the Early Church, Grove Liturgical Studies 32, 1983, p. 8)

A participação da comunidade na reconciliação dos que cometiam pecados graves

A confissão auricular obrigatória a um sacerdote, tal como estabelecida na Idade Média, não existia no cristianismo primitivo. A confissão era aplicável a pecados graves e envolviam a participação da comunidade e não apenas do sacerdote isoladamente.

A Didaque, no início do século II, nos traz:

Na Igreja confessa as tuas transgressões, e não te aproximes da oração com consciência má. Este é o caminho da vida.” (Didaque 4,14; Ante-Nicene Fathers 7)

“Mas em todo Domingo do Senhor, reuni-vos para partir o pão e dar graças, depois de terdes confessado as vossas transgressões, a fim de que o vosso sacrifício seja puro. E ninguém que esteja em litígio com o irmão se junte a vós, até que se reconciliem, para que o sacrifício não seja profanado.” (Didaque 14,1-2; Ante-Nicene Fathers 7)

As passagens acima sugerem um processo público e comunitário que ocorria dentro da liturgia do culto. O pastor de Hermas, escrevendo no século II, diz:

“O anjo que preside ao arrependimento ordena a Hermas: ‘Publica a tua falta a todos, para que a assembleia ore por ti, e o pecado seja curado’.” (Pastor de Hermas, Mandamento 4)

Tertuliano, no século III, escreveu:

“Esse ato, comumente designado pelo nome grego exomologesis, no qual confessamos nossos pecados ao Senhor, é uma disciplina de prostração e humildade: manda ao penitente deitar-se em saco e cinza, cobrir o corpo de luto, abater o espírito em gemidos; prescreve que não se alimente senão do mais simples, que nutra as orações com jejuns, que se prostre aos pés dos presbíteros e se ajoelhe diante dos ‘amigos de Deus’, suplicando a todos os irmãos que sejam embaixadores da sua prece de perdão.” (De paenitentia 9, 3-4; ANF 3, p. 661-662)

A Didascália dos Apóstolos, um documento do século III, também diz:

Os bispos são exortados a “reunir todo o povo” para chorar, jejuar e impor as mãos sobre o pecador, “para que a Igreja inteira ore e ele seja recebido.”

Igrejas fundadas por leigos e o papel das casas como centros eclesiais

O Novo Testamento menciona um processo não formal de fundação de Igrejas:

“Então os que haviam sido dispersos por causa da perseguição que se levantou por ocasião de Estêvão chegaram até a Fenícia, Chipre e Antioquia, não anunciando a palavra a ninguém, senão somente aos judeus. Alguns deles, porém — homens de Chipre e de Cirene —, chegando a Antioquia, falavam também aos gregos, anunciando o Senhor Jesus. A mão do Senhor estava com eles, e grande número creu e se converteu ao Senhor.” (Atos 11:19-21)

Tertuliano menciona Igrejas que eram formadas sem estarem inclusas na cadeia da sucessão apostólica, mas, eram apostólicas na medida em que ensinam a doutrina dos apóstolos:

“Assim, em primeiro lugar, é evidente que os próprios apóstolos fundaram igrejas em cada cidade; dessas, todas as demais recebem todos os dias a semente da fé para se tornarem igrejas. Toda doutrina que, por parentesco, concorda com a das igrejas apostólicas deve ser tida por verdadeira (...) Há ainda outras bem mais recentes, que de fato hoje mesmo se estão formando; não por isso são tidas como menos apostólicas, pois, embora não possam exibir uma sucessão que remonte aos apóstolos, são reputadas apostólicas pelo parentesco da doutrina e pela unidade da fé.” (De praescriptione haereticorum 20, 5-6; 32, 5-6)

O renomado erudito Adolf Harnack atesta:

“Não podemos hesitar em crer que a grande expansão do cristianismo foi, de fato, realizada por meio de missionários informais”. (The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries, Book III, chap. IV §1; ed. engl. CCEL)

As primeiras igrejas reuniam-se em casas particulares de cristãos leigos, que muitas vezes lideravam essas comunidades. Exemplos do Novo Testamento:

"Saudai igualmente a igreja que se reúne na casa deles" (Romanos 16:5)

"Saudai os irmãos de Laodiceia, bem como Ninfa e a igreja que está em sua casa" (Colossenses 4:15)

"À igreja que está em tua casa" (Filemom 1–2)

Wayne Meeks também diz:

“Nossas fontes nos dão bons motivos para pensar que [a casa/lar] foi a unidade básica no estabelecimento do cristianismo na cidade, assim como, de fato, era a unidade básica da própria cidade. (The First Urban Christians, p. 29)

A participação dos leigos na escolha e deposição dos líderes da Igreja

Mesmo nas comunidades cristãs mais institucionalizadas do período pré-niceno, os leigos não eram excluídos da escolha dos líderes espirituais. Pelo contrário, há ampla evidência de que a eleição de presbíteros e bispos envolvia a aprovação da comunidade local, incluindo os fiéis leigos.

Clemente de Roma, em sua primeira epístola aos Coríntios (c. 95 d.C.), afirma: "Aqueles que foram nomeados bispos e diáconos por homens aprovados pelo Espírito, e com o consentimento de toda a igreja..." (1 Clemente 44).

A Didaquê também instrui as comunidades a escolherem seus próprios líderes: "Escolhei para vós bispos e diáconos dignos do Senhor" (Didaquê 15.1).

Cipriano de Cartago é ainda mais claro:

“E o bispo deve ser ordenado na presença do povo, que conhece plenamente a vida de cada candidato e já observou a conduta habitual de cada um.” (Epístola 67:5)

Ele também reconhece que um bispo impopular poderia ser rejeitado pela comunidade:

“Pois o próprio povo tem autoridade para escolher os dignos e rejeitar os indignos.” (Epístola 67:3)

O grande historiador da Igreja Henry Chadwick observa:

“A eleição dos bispos era frequentemente feita por aclamação popular; tentar impor um bispo a uma comunidade relutante provocava resistência feroz.” (The Early Church, cap. 2 “Faith and Order”, London / Harmondsworth: Penguin, 1967, p. 45)

Conclusões

As evidências patrísticas e historiográficas permitem concluir que:

1. Os leigos tinham papéis ativos no ensino, batismo, disciplina e assistência;

2. A exclusividade clerical ainda não era um modelo dominante;

3. A Igreja funcionou durante um período inicial como um corpo carismático e comunitário;

4. O sacerdócio universal dos crentes tem base na prática da Igreja primitiva;

5. A reconciliação dos pecadores envolvia toda a comunidade, não só o clero;

7. Muitas igrejas eram fundadas e lideradas por leigos;

8. Os leigos participavam da escolha (e rejeição) dos líderes da Igreja.


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