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segunda-feira, 23 de maio de 2016

A virgindade perpétua de Maria e a evidência histórica - Parte 2


Orígenes (?-254)

J. B. Carol nos dá um bom resumo da visão de Orígenes:

Há uma perspectiva bastante diferente entre Tertuliano e Orígenes sobre a virgindade perpétua de Maria. Depois de examinar de perto estas divergências e seus fundamentos, dificilmente se pode evitar a impressão de que a resposta pode ser encontrada em práticas ascéticas cristãs e na medida em que elas influenciaram esses dois autores. Tertuliano foi, sem dúvida, um asceta, mas como em todas as outras coisas, de acordo com suas próprias luzes e temperamento singular. (ibid)

Carol toca num ponto fundamental que nos explica o principal fundamento do aparecimento e desenvolvimento da virgindade perpétua na igreja. Esse ponto é o surgimento e ascensão do ascetismo. Os ascetas acreditavam que para servir a Cristo idealmente era necessário “sair do mundo”. Entre outras coisas, isso incluía viver uma vida isolada de oração e celibato. Entre eles, era vigente a ideia de que a vida celibatária era superior ao casamento. Uma pessoa atingiria maior santidade vivendo dessa forma. Dessa ideia errada é que surge a virgindade perpétua. Ou seja, a ideia não surge como uma tradição independente e objetiva em si, mas como uma implicação de outra ideia. Se o estado virginal era superior, como poderia então a própria mãe de Jesus não ter sido sempre virgem? Percebam a relação de causa e efeito. Não foi um suposto exemplo virginal de Maria sempre ensinado pela igreja que inspirou o ascetismo. Foi o ascetismo que projetou em Maria seus próprios ideias popularizando uma visão sem apoio bíblico e histórico.

O problema é que se trata de anacronismo. Maria não era uma cristã asceta do séc. I. Ela era uma mulher judia e casada. Não havia no judaísmo do século I um ideal asceta. Pelo contrário, os filhos eram vistos como uma bênção de Deus. Uma mulher casada não ter filhos era motivo de tristeza e sinal de maldição. A Escritura relata o caso de Ana que orou a Deus pedindo um filho que não podia ter por ser estéril. Deus a atendeu e ela se tornaria a mãe de Samuel (1 Sm. 1:10). Então, além de Maria não viver segundo um ideal asceta, ele ainda de fato se casou. Seria muito improvável que ela não mantivesse uma vida conjugal normal com seu marido. Paulo chega a dizer que é um direito do cônjuge ter relações sexuais com seu companheiro (1 Cor. 7:3). Não é de se estranhar que uma crença equivocada tenha gerado outra crença equivocada. Carol ainda nos dá outra informação valiosa. Ele afirma que Tertuliano também era um asceta. Isso coloca ainda mais peso em seu testemunho, pois mostra que não tinha alguma pré-disposição para negar a virgindade perpétua. Muito pelo contrário, a pré-disposição seria no sentido oposto. Carol prossegue:

Quando Orígenes tratou a questão da virgindade perpétua de Maria após o nascimento de Cristo, ao contrário de Tertuliano, ele não tinha considerações polêmicas, mas enfrentou o problema de frente, objetivamente, e para seu próprio bem. No entanto, em sua solução ele foi inspirado, em sua própria admissão, pelos pontos de vista de certos ascetas contemporâneos, dedicados a uma vida de virgindade consagrada; na sua opinião, era impossível e inconcebível que Maria tivesse se submetido a qualquer homem depois de ela ter sido ofuscada pelo poder do Altíssimo (...) Será que Orígenes e os ascetas de sua época consideravam que a virgindade perpétua de Maria excluía a perda dos sinais de integridade virginal em seu corpo no momento de dar à luz Cristo? Esta questão não pode ser respondida com certeza absoluta. Parece, no entanto, que o próprio Orígenes não reconheceu a conexão entre o que hoje chamamos de virgindade no parto e a virgindade pós-parto. A primeira não era desconhecida para ele. Ele enfrentou o problema em seu comentário sobre a Epístola a Tito e rejeitou o nascimento virginal (141). Além disso, não encontramos nenhuma indicação contrária em quaisquer textos de Orígenes que são certamente autênticos. Assim, ele se expressou em termos incompatíveis com a virgindade de Maria no parto em suas Homilias sobre São Lucas, (142) traduzidas por São Jerônimo. Do ponto de vista contrário expresso na tradução Rufino das homilias de Orígenes sobre Levítico podemos concluir que Orígenes vacilou sobre este assunto ou que ele mudou sua opinião definitivamente? G. Jouassard é da opinião que Rufino muito provavelmente reescreveu o texto original de Orígenes para torná-lo conforme a sua visão pessoal de que Maria permaneceu virgem no parto. (Ibid)

As duas referências onde Orígenes nega a virgindade no parto são as seguintes:

(141) Texto preservado na Apologia para Orígenes por Panfilo e Eusébio; PG, 17, 554, e reproduzido na PG, 12, 493 f.

(142) Homilia em Lucas, 14; PG, 13, 1834, 1836 f

Infelizmente, não encontrei nenhum recurso online com essas obras em inglês. Resumidamente, nós temos Clemente defendendo a virgindade no parto e Orígenes no pós-parto. Nenhum dos dois pode ser contado como testemunha para virgindade perpétua. A questão é se algum deles considerava essas ideias artigos de fé ou tradições apostólicas. Carol responde:

O contraste entre a posição inflexível de Clemente e a posição vacilante de Orígenes (e as próprias declarações de Clemente corroboram isso) mostram que os católicos no Egito consideravam que a questão da virgindade de Maria no parto foi aberta à discussão e de maneira nenhuma resolvida definitivamente. O mesmo era verdade para virgindade pós-parto de Maria? Sem dúvida, pois apesar de Orígenes adotar a opinião de Clemente aqui, ele nunca afirma ou mesmo implica que havia qualquer obrigação para um católico fazê-lo. Em vez disso expressa sua clara compreensão de que a virgindade de Maria após o parto era a visão particular daqueles ascetas dedicados à prática da virgindade e foi baseada em seu conceito de sua virgindade completa e perpétua. (Ibid)

Ao defender um ou outo elemento da doutrina romanista, Clemente e Orígenes definitivamente não estavam defendendo um artigo de fé. Eles basicamente estavam adotando uma opinião influenciados por ascetas cristãos ou narrativas de pouco valor histórico. Carol ainda escreve:

Assim, temos o seguinte quadro de uma parte considerável do mundo católico no final do segundo século e a primeira parte do terceiro, ou seja, a liberdade completa para representar a virgindade de Maria como se quisesse, com exceção de sua concepção virginal, que foi claramente considerada como um dogma além de toda disputa. (Ibid)

Um último apontamento – boa parte dos argumentos usados pelos católicos para dispensar Tertuliano também deveriam ser usados para Orígenes. Ele foi visto como um herege por alguns pais da igreja posteriores (Jerônimo por exemplo). Muitas de suas obras inclusive foram queimadas como uma condenação às suas ideias. Por esse motivo, diferente de outros autores do período, ele não foi canonizado pela igreja romana. Apesar de tudo isso, quando o testemunho de Orígenes favorece a igreja romana num certo ponto, eles não veem problema em usá-lo.

Vitorino de Pettau (250-304)

No famoso debate entre Jerônimo e Helvídio, o segundo apresentou Vitorino como testemunha contra a virgindade perpétua. Jerônimo então respondeu:

Você, se sentindo uma pessoa sem conhecimentos, usou Tertuliano como sua testemunha e citou as palavras de Vitorino, bispo de Perávio. De Tertuliano não direi senão que não pertenceu à Igreja. Mas com respeito a Vitorino, afirmo que já ficou provado pelo Evangelho - que ele falou dos irmãos de Nosso Senhor não como sendo filhos de Maria, mas irmãos no sentido que expliquei, ou seja, irmãos sob o ponto de vista de parentesco, não de natureza. Estamos, contudo, desperdiçando nosso percurso com ninharias e deixando a fonte da verdade, estamos seguindo insignificantes pontos de opinião. Não deveríamos arrolar contra você toda a série de escritores antigos? Inácio, Policarpo, Irineu, Justino Mártir e muitos outros homens apostólicos e eloquentes, que expuseram as mesmas explicações contra Ebião, Theodoro de Bizâncio e Valentino, escreveram volumes repletos de conhecimentos. Se você alguma vez lesse o que eles escreveram, você se tornaria um homem sábio. Mas eu penso que é melhor refutar brevemente cada ponto do que prolongar meu livro por uma extensão indevida. (Contra Helvídio cap. 19)

Jerônimo aceita o testemunho de Tertuliano, mas não aceita o de Vitorino. Uma boa parte das obras de Vitorino se perdeu, mas parece que ele fez declarações relevantes sobre o tema.  Quem estaria certo? Infelizmente não conhecemos nada da obra de Helvídio sobre o assunto, a não ser pelo que Jerônimo escreveu. Como ele era um oponente no debate, não é uma fonte muito confiável. Mas, será que podemos descobrir qual lado estava certo? Entendemos que o testemunho de Helvídio é mais credível pelos seguintes motivos:

(1)  Helvídio é mais cuidadoso. Ele cita apenas dois autores em favor de sua opinião (embora pudesse citar mais), enquanto Jerônimo cita vários pais da igreja e outros homens apostólicos;

(2)  Jerônimo cita quatros escritores antigos nos quais não há nenhuma afirmação da virgindade perpétua em obras preservadas. Estariam então em obras não preservadas? Muito improvável. Jerônimo não parece conhecer qualquer obra além das que conhecemos hoje. Na verdade, em outros lugares ele menciona apenas os oito documentos de Inácio e Policarpo que temos hoje, sugerindo que não tinha conhecimento de quaisquer outras disponíveis em sua geração (Vidas dos Homens Ilustres 16-7). Eusébio, escrevendo várias décadas mais cedo, confirma que esses oito documentos eram tudo o que tinha sido preservado de Inácio e Policarpo (História da Igreja 3:36 e 4:14). E como já vimos, em seus escritos que são existentes, Irineu parece contradizer a virgindade perpétua de Maria. Não há também em qualquer obra de Justino uma afirmação dessa doutrina. Pelo menos Policarpo e Inácio foram deturpados por Jerônimo. O que esses autores fizeram foi apenas afirmar a concepção virginal de Cristo;

(3)  Jerônimo não diz que Vitorino afirmou explicitamente a virgindade perpétua. Ele se limita a dizer que quando Vitorino se referiu aos irmãos de Jesus os entendia como primos. Ou seja, ele não nega as palavras de Vitorino trazidas por Helvídio, apenas dá a elas um significado diferente daquele aplicado pelo seu oponente. Ocorre que a tese de Jerônimo não foi defendida por nenhum pai da igreja anterior. Àqueles que afirmavam a virgindade perpétua defendiam que os irmãos de Jesus eram filhos de outro casamento de José. Além disso, a interpretação de Jerônimo estava errada, uma vez que os autores do Novo Testamento escreveram em grego e tinham à disposição palavras específicas para designar primos e irmãos. Como Jerônimo deturpou outros pais da igreja, não é improvável que tivesse feito o mesmo com Vitorino.

O erudito patrístico J.N.D Kelly sumariza os problemas da resposta de Jerônimo:

A evidência do Novo Testamento ainda está em discussão, mas a grande maioria dos estudiosos críticos concordam que a sua [Helvídio] interpretação e não a de Jerônimo é a correta. Os esforços de Jerônimo para contornar o significado óbvio dos textos são tidos por pessoas hoje como apelo especial, o subproduto de sua convicção prévia de que a relação sexual é impura. Sua lista dos pais ortodoxos que o apoiavam era uma desonesta cortina de fumaça típica de seu estilo de debate; é duvidoso que ele tivesse qualquer familiaridade com os escritores que listou, mais duvidoso ainda que eles mantivessem os pontos de vista que atribuiu a eles. (Jerome [Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2000], 106-7)

Kelly também faz o ponto de que a visão de Jerônimo mudou ao longo do tempo, ele teria inicialmente rejeitado a virgindade no parto, mas depois a aceitou (p. 106). Esse desenvolvimento nos dá ainda mais razão para confiar em Helvídio ao invés de Jerônimo. Além disso, essa mudança de opinião evidencia a improcedência de um elemento central da defesa católica: a ideia de que essa sempre foi a fé da igreja. Como temos demonstrado em nossos artigos, os católicos costumam se agarrar a qualquer testemunho em favor de sua doutrina e rapidamente concluir que ela sempre foi a fé da igreja e acreditada por todos os autores ortodoxos. Ao fazer isso, eles “varrem para debaixo do tapete” qualquer autor cristão contrário sob o argumento de que se trata apenas de uma opinião privada. O fato de mesmo autores favoráveis a uma determinada doutrina católica mudarem de posição ao longo da vida revela a falsidade desse argumento. Se a virgindade no parto era algo sempre crido pela igreja, seria esperado igualmente que Jerônimo sempre tivesse sempre crido nela. Mais a frente vamos discutir novamente a posição de Jerônimo sobre a virgindade no parto. Defendemos que na verdade ele nunca mudou de posição.

A virgindade perpétua no século IV

É no século IV que a ideia da virgindade perpétua começa a se sedimentar na igreja. No entanto, isso não se deu sem resistência. Vamos dar uma boa olhada nos testemunhos patrísticos desse período.

Eusébio de Cesareia (263-339)

Carol escreve:

Aqui [início do séc. IV] encontramos a doutrina do nascimento virginal vista com uma certa inquietação nos círculos católicos, por causa do medo do docetismo e maniqueísmo. Este fato não deveria ser surpreendente, pois por volta da mesma época, Eusébio de Cesareia manifesta os mesmos sentimentos, embora ele negue explicitamente que os "irmãos do Senhor" são filhos de Maria. (Ibid)

Eusébio não acreditava na virgindade no parto. Embora ele afirme que os irmãos de Jesus são filhos de Maria, não há nele afirmação da virgindade pós parto. Na nota de rodapé n. 157, Carol aponta as referências a respeito da resistência de Eusébio à virgindade no parto:

Cf. Texto de Orígenes citado com aprovação na Apologia reeditada em colaboração com Pânfilo, PG, 17, 554, e, especialmente, Demonstr. Evangel, 10; PG, 22, 773-776.

Lembremos que esse texto de Orígenes continha uma negação explícita da virgindade no parto.

Atanásio de Alexandria (296-373)

Atanásio é frequentemente citado como testemunha da virgindade perpétua, por outro lado, Carol escreve:

Santo Atanásio estava totalmente convencido dos pontos de vista de seu mestre e antecessor relativos à vida de virgindade, no entanto, na medida em que ele falou muito de Maria em seus escritos que chegaram até nós em grego, ele manifesta tal reserva em relação à Maria que é difícil determinar se ele acreditou no nascimento virginal. Por outro lado, em um trabalho que nos foi transmitido em copta, e muito provavelmente verdadeiro, ele é muito menos reservado. O manuscrito deste ensaio é incompleto e também textualmente imperfeito; no entanto, o suficiente pode ser lido para entender que Atanásio defende vigorosamente contra seus adversários que Nossa Senhora não tinha filhos, senão a Jesus (...) No Egito, encontramos Santo Atanásio ensinando claramente virgindade pós-parto de Maria. No entanto, ele está ciente de que sua visão não é universalmente aceita, mas é ainda atacada. Ele não revela surpresa com esta oposição, e de forma alguma propõe seus próprios pontos de vista como um artigo da fé católica. Nada mais forte pode ser encontrado em seu contemporâneo, São Cirilo de Jerusalém. Por uma questão de registro, nem uma palavra pode ser encontrada sobre a virgindade pós-parto de Nossa Senhora em suas famosas catequeses. Eusébio de Cesaréia foi igualmente reservado. Se a Acta Archelai é um produto deste meio palestino, eles confirmam a atitude de reserva em relação a virgindade pós-parto de Maria, e mostram hostilidade contra o nascimento virginal. (Ibid)

Atanásio era um asceta, logo é de se supor a base sobre a qual afirmava a virgindade pós-parto de Maria, Todavia, embora não haja uma declaração explícita, ele provavelmente não acreditava na virgindade no parto. Carol levantou um ponto fundamental que é vital para o nosso estudo. Mesmo no séc. IV, muitos defensores da ideia não a consideravam um artigo de fé.  Como esclarecido no início, a crença na virgindade perpétua em si não é um problema para a teologia protestante. No máximo, tratar-se-ia de um equívoco histórico. O verdadeiro problema é esse equívoco ser elevado a condição de dogma. Vemos que pais da igreja séculos depois dos apóstolos não consideravam a questão uma crença obrigatória.

Efrém o Sírio (306-373)

Carol prossegue:

Restringindo a nossa atenção para estes escritos apenas [escritos autênticos], não podemos evitar a conclusão de que ele também é bastante reservado, e que o que ele escreve sobre Maria está longe de sempre ser à sua honra. Nós encontramos testemunho positivo à virgindade pós-parto de Maria apenas em seu comentário sobre o Diatessaron, e isso por meio de uma tradução armênia. Mesmo aqui, não há questão de propor virgindade pós-parto de Maria como um objeto de crença dogmática; um fato que deveria nos tornar menos surpresos ao encontrar no Oriente, até mesmo no meio do quarto século, pessoas às vezes de considerável autoridade e prestígio, que atribuíram a Jesus um verdadeiro cortejo de irmãos e irmãs.

Apologistas católicos costumam argumentar que somente hereges afirmavam que Jesus tinha irmãos. Nada poderia estar mais longe da realidade.

Basílio de Cesareia (330-379)

Tal é o fato inegável [muitas pessoas de autoridade negavam a virgindade perpétua]; talvez não no caso de Apolinário, apesar do rumor bastante comum que ele negou a virgindade pós-parto de Nossa Senhora. Santo Epifânio, que estava ciente do rumor, achava difícil de acreditar. Qualquer que seja a verdade a respeito das opiniões de Apolinário, não pode haver absolutamente nenhuma dúvida sobre o famoso bispo Eunomio de Cyzicum, que não hesitou em arejar a sua negação da virgindade pós-parto de Maria, em uma catedral cristã, provavelmente em Constantinopla, e na presença do Patriarca Eudoxio. Estes homens eram arianos, é verdade, e esse fato provavelmente explica a sua autoconfiança em parte, mas apenas em parte, uma vez que os arianos, bem como os católicos chamavam Maria de "Virgem" ou mesmo "Santa Virgem".

Carol traz o testemunho do ariano Eunomio e um possível testemunho de uma fonte ortodoxa (Apolinário). Os católicos obviamente vão alegar que se trata de um ariano, mas o que é mais esclarecedor vem a seguir na resposta dada por Basílio:

A resposta provocada pelo discurso Eunomius é típica do temperamento e atitude dos tempos. A resposta veio de uma fonte católica, que temos fortes razões para acreditar que foi São Basílio, na forma de um discurso sobre a festa da Teofania. Neste sermão, após breves comentários sobre a geração eterna do Verbo, o autor retoma o seu ponto principal, que é comentar o relato do nascimento temporal do Cristo dada por São Mateus. O autor também concentra a sua atenção sobre a possibilidade de relações conjugais entre Maria e St. José depois do nascimento de Cristo. Ele rejeita essa possibilidade, mas não apelando à crença dogmática. Ele não tem consciência de qualquer obrigação sob este ângulo, e até mesmo generosamente admite que não existe tal obrigação. A fé, ele candidamente admite, exige apenas que se acredite na permanência da virgindade de Maria até (e incluindo) a Encarnação. Após a concepção virginal não há nenhuma obrigação imposta pela fé.

Essa é uma evidência claríssima de que a virgindade pós-parto não era um artigo de fé mesmo no sec. IV. O ônus da alegação romanista é não apenas mostrar a presença da ideia, mas sua elevação à artigo de fé. Vejamos a citação diretamente de Basílio:

[A opinião de que Maria deu à luz várias crianças depois de Cristo] (...) não é contrária à fé, pois a virgindade foi imposta à Maria como uma necessidade, apenas até o tempo em que ela serviu como um instrumento para a Encarnação, enquanto, por outro lado, a sua virgindade subsequente não tinha grande importância no que diz respeito ao mistério da Encarnação. (Homilia in sanctum Christi generationem; PG, 31, 1457-1476)

O erudito J.N.D Kelly também escreve:

O interesse na virgem bendita aumentou consideravelmente no século que se seguiu ao concílio de Nicéia, mas se o tratamento de alguns temas marianos experimentava avanço significativos, em certos locais a abordagem de outros permanecia estagnada. Tanto no Oriente como no Ocidente, houve uma poderosa influência exercida pelo prestígio imenso, e cada vez maior, alcançado pela virgindade nos círculos ascéticos (...) mas devemos observar que, conquanto Cirilo de Jerusalém tenha se calado a respeito, não apenas os antidicomarianos atacados por Epifânio e o ariano Eunômio ensinavam abertamente que os “irmãos do Senhor” eram filhos de Maria com José, mas também Basílio de Cesareia, ao criticar este último, deixou implícito que tal ideia era amplamente aceita e, embora ele próprio não a aceitasse, não era incompatível com a ortodoxia. (J.N.D Kelly, Patrística, Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã [Editora Vida Nova, 1994], p. 377-378)

Kelly adiciona que essa visão, além de não ser contra a fé da igreja, era amplamente aceita naquele tempo. Apesar disso, o que levava Basílio a defender a virgindade pós-parto? Carol diz:

Apesar deste aberto reconhecimento da liberdade de opinião, o autor passa a enfatizar que muitos excelentes cristãos - ele os chama de "Philochristoi" - recusariam admitir que Nossa Senhora teve relações conjugais com St. José. Ele aceita e defende seus pontos de vista e acrescenta como uma razão a narrativa de um certo Zacarias, que morreu em defesa da honra de Maria. Podemos passar sobre esta razão confirmatória, que não é certamente adequada para provar a virgindade pós-parto de Maria, mas não devemos encobrir a situação revelada por tal fábula sendo usada como prova. Pois, é evidente a partir deste discurso que em uma região do mundo grego, aparentemente, a Ásia Menor, um importante homem da igreja, sem dúvida, o Arcebispo de Cesaréia, St. Basílio nem suas Igrejas metropolitanas não detinham a virgindade perpétua de Maria como uma verdade dogmática.

Basílio acreditava no apócrifo de Zacarias. Tratava-se de uma lenda segundo o qual um judeu chamado Zacarias – testemunha ocular dos fatos – teria morrido por defender que Jesus não teve um pai terreno. Na nota de rodapé n. 173 se escreve:

A referência à fonte apócrifa concernente a um determinado Zacarias, mencionada por Orígenes em seu comentário em Mat., Serm. 25; PG, 13, 1631 f. A partir destas indicações em Orígenes e Basílio, parece claro que esta história foi pela primeira vez dada ao público para conciliar em favor para Zacarias, como uma testemunha autorizada e, além disso, um judeu, em apoio da virgindade pós-parto de Maria. Zacarias, então a história prossegue, foi condenado à morte por ter considerado que Jesus não nasceu de um pai terreno. Posteriormente, a história foi utilizada para insinuar algo mais, ou seja, que Maria nunca teve relações conjugais com o marido. O mesmo incidente e uso dela é encontrado num discurso que pode vir de Gregório de Nissa; cf. PG, 46, 1136 f.

Epifânio de Salamina (320-403)

Os pontos de vista de Santo Epifânio estavam destinados a ter uma influência cada vez maior no Oriente, e, finalmente, serem aceitos sem questionamento. A grande autoridade desfrutada por ele como Bispo de Constância é bem conhecida. Ele colocou no seu catálogo de heresias a visão que negou a virgindade pós-parto de Nossa Senhora, sem, no entanto, citar qualquer precedente eclesiástico; sua palavra era suficiente. Embora o termo "heresia" naquela época não era muito preciso e de maneira nenhuma tinha o significado técnico rigoroso dos nossos dias, é bastante claro que, embora não em todos os lugares, nem imediatamente, a doutrina atacada por Epifânio foi geralmente considerada como oposta à ortodoxia (...) Foi este conceito que parece ter sido o fundamento da sua [João Crisóstomo] segurança sobre a virgindade de Maria, pois ele estava absolutamente convencido de sua virgindade perpétua, e especificou o nascimento virginal - uma convicção não encontrada, como vimos, em Epifânio, nem em São Gregório Nazianzeno, e apenas vagamente proposta por Anfilóquio.

Epifânio foi o primeiro a afirmar a virgindade pós-parto como um artigo de fé. No entanto, como bem observou Carol, ele não citou nenhuma tradição eclesiástica precedente, nem poderia porque não havia. O próprio Epifânio, porém, negou a virgindade no parto. Kelly escreve:

Embora Epifânio ainda sustentasse que “o Unigênito abriu o ventre virginal” (Haer 78:19), não nos surpreendemos ao encontrar Crisóstomo proclamando em harmonia com Gregório de Nissa a virgindade de Maria no nascimento de Jesus e também depois. (Op Cit, p.378)

No Oriente, serão Crisóstomo e Gregório de Nissa os primeiros a defenderem a virgindade perpétua.  São teólogos que escreveram na segunda metade do século IV e início do século V. Carol prossegue:

Será que estamos justificados em afirmar que a virgindade perpétua de Nossa Senhora foi universalmente aceita neste momento no Oriente? Temos todas as razões para fazer a pergunta, porque no fim deste período, São Nilo escreveu contra determinadas pessoas que afirmavam o contrário. Sua posição é apresentada em três cartas endereçadas a um elevado homem da igreja chamado Cirilo, provavelmente Cirilo de Alexandria. Naturalmente, se levanta a questão de saber os próprios pontos de vista de Cirilo sobre o assunto, mas temos de nos contentar em dizer que não há nada nos escritos de Cirilo antes de 428 contra a virgindade perpétua de Maria, nem, é preciso confessar, a favor.

Apesar de não dispormos hoje das obras de Cirilo a respeito da virgindade de Maria, Carol admite que era ele a quem provavelmente Nilo respondia. De qualquer forma, é certo que se tratava de um homem da igreja de posição elevada e não de alguém considerado herege. Isso evidencia que mesmo no século V, a virgindade perpétua de Maria ainda não era considerada um artigo de fé obrigatório no Oriente. Traçada a evolução histórica no Oriente, passemos aos pais do ocidente.

Pais da igreja do Ocidente sobre a virgindade perpétua

Hilário (300-368) foi o primeiro defensor no ocidente da virgindade pós-parto. Porém, negou a virgindade no parto. Kelly escreve:

Hilário, por exemplo, atacou com violência as pessoas que afirmavam que Maria não havia permanecido virgem depois do nascimento de Jesus e foi enfático em dizer que os “irmãos de Jesus eram filhos que José teve num casamento anterior”. Mas, ainda assim, ele considerava que o nascimento teria acontecido naturalmente (De Trin 01.47). (Kelly, p. 379)

Sem dúvida, os principais responsáveis pela aceitação da virgindade perpétua no Ocidente foram Ambrósio, Jerônimo e mais tarde Agostinho. Kelly diz:

Mas foram Jerônimo, Ambrósio e Agostinho os que mais contribuíram para a mariologia no Ocidente. Deve-se notar que, durante muito tempo, Jerônimo rejeitou abertamente a virgindade no parto, ao passo que defendia vigorosamente a virgindade pós-parto. Ele foi responsável pela teoria, que mais tarde prevaleceria no Ocidente, de que os “irmãos” de Jesus tinham sido, na verdade, seus primos, e que tanto Maria como José foram virgens a vida inteira. Quanto a Ambrósio, apesar de hesitações iniciais quanto à sua virgindade no parto [Exposição em Lucas 2:57], ele se tornou um ferrenho defensor da virgindade perpétua de Maria (...) Agostinho reuniu e aprimorou os temas mariológicos então estabelecidos. Ele foi um eloquente defensor da virgindade perpétua de Maria, sustentando que, se o Cristo ressuscitado podia entrar num ambiente passando por portas fechadas, não havia razão que o impedisse de sair do ventre dela sem violá-lo. (Ibid)

Na sua reposta a Helvídio (um oponente da virgindade perpétua), Jerônimo diz:

Você pergunta: "São as virgens melhores do que Abraão, Isaac e Jacó, que foram casados? Não são as crianças diariamente moldadas pelas mãos de Deus no útero de suas mães? E se assim é, somos constrangidos a nos ruborizarmos pelo pensamento de Maria tendo um marido depois do parto? Se julgam que há alguma desgraça nisto, não deviam coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem por parto normal. Porque de acordo com esses, há mais desonra numa virgem dando à luz a Deus pelos órgãos geradores, do que numa virgem que se juntou a seu próprio esposo depois que deu à luz".

Acrescente, se quiser, Helvídio, as outras humilhações da natureza, o útero de nove meses se tornando cada vez maior, a doença, o parto, o sangue, os cueiros. Imagine você mesmo o menino envolto na placenta. Imagine a dura manjedoura, o choro do menino, a circuncisão no oitavo dia, o tempo de purificação, de modo que possa ficar comprovado que tudo era impuro. Não enrubescemos, você não nos impõe silêncio. Maior humilhação Ele sofreu por mim, a maior que o atingiu. E quando você tiver dado todos os detalhes, não estará apto a apontar nada mais vergonhoso do que a cruz que confessamos, na qual acreditamos e pela qual triunfamos sobre todos nossos inimigos. (Contra Helvídio 18)

Helvídio afirma que por coerência, os defensores da virgindade deveriam aceitar o parto normal. Em sua resposta, Jerônimo não nega o parto normal, mas o confirma. Ele se defende afirmando que nada disso era desonroso para Cristo, pois humilhação maior sofreu na cruz. No cap. 12, ele é ainda mais claro. Ao responder o argumento de que Jesus foi chamado de primogênito, ele o define não como necessariamente um filho único, mas como o primeiro filho a “abrir o útero da mãe”:

A palavra de Deus define "primogênito" como todo aquele que abriu o útero (...) À toda hora a Escritura assim fala do Salvador: "E quando chegou o dia de sua purificação, de acordo com a lei de Moisés, eles o levaram a Jerusalém para apresentá-lo ao Senhor [como está prescrito na lei do Senhor, todo macho que abre o útero deve ser consagrado ao Senhor] e para oferecer em sacrifício de acordo com o que é prescrito na lei do Senhor, um par de rolinhas ou duas pombas novas" (...) Mas visto que, como aquele que não tem irmãos mais novos, é sujeito à lei do primogênito, deduzimos que é chamado primogênito aquele que abre o útero da mãe (...)

Carol nos dá um relato da controvérsia causada por Helvídio:

Além disso, desde o início do seu episcopado, Ambrósio foi um fervoroso defensor da virgindade e das práticas ascéticas do monaquismo egípcio, feito conhecido no Ocidente por Santo Atanásio, que passou vários períodos de exílio em Treves, Roma e norte da Itália. Estes ideais e práticas não eram recebidos com favor universal. No ano 380, um certo Carterio entrou em Roma para abraçar a causa da virgindade e práticas monásticas. Ele formulou o argumento principal de sua afirmação a partir da virgindade absoluta e perpétua de Maria. Na época havia hostilidade acentuada em alguns círculos romanos contra essas práticas ascéticas, devido, provavelmente, a uma reação contra priscilianismo e maniqueísmo. O próprio Prisciliano visitou Roma e Milão nos anos 381-382, em uma tentativa de firmar suas visões doutrinárias. Entre certos grupos parece ter tido uma forte tentação para identificar e fixar em conjunto todos os defensores da vida ascética e da prática da virgindade com a facção priscilianista.

Carterio logo encontrou um claro oponente em Helvídio. Apesar das tentativas de St. Jerônimo para desacreditá-lo completamente, Helvídio era um homem de inteligência e de nenhuma maneira desprovido de boa formação teológica e literária. Ele escreveu um ensaio bem construído com a intenção de provar que Maria teve outros filhos além de Jesus, mas sem qualquer desejo malicioso de denegrir a Mãe de Cristo. Pelo contrário, sua intenção era exaltar o que ele considerava sua dupla grandeza - a virgindade admirável e milagrosa até o nascimento de Cristo e sua maternidade exemplar ao dar à luz aos irmãos e irmãs do Senhor mencionados nos Evangelhos. Seu propósito final era provar contra Carterio que a virgindade não é superior ao casamento, mas sim perfeitamente igual em perfeição; os dois estados de vida foram vividos com igual perfeição pela Mãe do Salvador.

Esse tratado de Helvídio impressionou o meio Romano profundamente e de forma tão eficaz que até converteu ao seu ponto de vista alguns dos principais promotores do ascetismo e da prática da virgindade. Entre os que permaneceram firmes em sua convicção da superioridade da virgindade havia grande ansiedade, mas a hierarquia não tomou parte no conflito. Nesta conjuntura, St. Jerônimo tomou a defesa contra Helvídio.

Esse relato nos os seguintes pontos importantes: 

(1) Helvídio não era um herege, mas sim um cristão ortodoxo com boa formação teológica e gozava de prestígio em Roma;

(2) A questão central não era a pessoa de Maria, mas um embate de visões sobre a superioridade da virgindade ao casamento. Isso só reforça o argumento de que a igreja não recebeu nenhuma sólida tradição a respeito da virgindade de Maria. O estado virginal da mãe de Jesus era o efeito e não a causa das ideias ascéticas;

(3) A hierarquia da própria igreja romana não se envolveu na questão. Não poderia haver evidência mais clara de que a virgindade perpétua não era um artigo de fé mesmo em Roma nesse período.

A defesa de Jerônimo fez sucesso. Ele conseguiu suprimir Helvídio e reanimar o ascetismo em Roma. Todavia, ainda restava oponentes. Carol prossegue:

No entanto, os adversários não foram de modo algum silenciados. Um pouco mais tarde, 389-390, eles renovaram o ataque mais uma vez em Roma. O papa São Dâmaso tinha morrido e foi sucedido pelo papa Sírico que estava longe de ser contados entre os amigos de Jerônimo. Na verdade, antes da eleição eles haviam sido rivais. Daí a situação de Jerônimo em Roma era completamente diferente dos dias de Dâmaso, e ele foi obrigado a fugir para o Oriente, fulminando profecias terríveis contra a Babilônia [Roma]. O novo ataque foi lançado por Joviniano que tinha por um tempo seguido a vida ascética, mas tinha cansado e relaxado em seus esforços. A partir deste momento, começou a zombar furtivamente de seus antigos companheiros, em palavras e por escrito. Agora, no entanto, a Santa Sé interveio prontamente.

A reação da igreja de Roma foi diferente contra Joviniano. Sírico condenou suas teses e contou com a ajuda de Ambrósio de Milão:

Imediatamente após a recepção do pedido do Papa, St. Ambrósio trouxe toda a matéria diante de um sínodo composto pelos bispos do norte da Itália. Este sínodo não só fez a sua própria condenação romana, mas mesmo a ultrapassou, por sinalizar como errônea a negação da virgindade de Maria no parto, que tinha passado em silêncio pela condenação de Roma a Joviniano. Esta negação foi considerada pelos bispos do norte da Itália como sendo tão grave quanto à negação da virgindade pós-parto de Nossa Senhora.

Toda essa questão gerou uma situação delicada. O sínodo de Milão afirmou como necessário a crença na virgindade no parto, no entanto, o próprio Jerônimo havia negado isso:

São Jerônimo, com a sua autoridade inquestionável e prestígio, tinha tomado a defesa de Maria contra Helvídio sem admitir que ela era virgem no nascimento de Cristo. Na verdade, sua descrição do nascimento de Cristo igualou-se ao realismo da descrição de Tertuliano. Sem dúvida, Jerônimo foi motivado por seu horror aos apócrifos e sua repulsa de aceitar a sua doutrina sobre o nascimento virgem.

Percebe-se que Jerônimo, um asceta e advogado ferrenho da virgindade pós-parto, não conseguia encontrar nenhum fundamento para a virgindade no parto nas Escrituras. Os documentos mais antigos a que se podia apelar era somente os apócrifos. Mas, pela delicadeza da questão, Jerônimo teve que a contragosto escrever uma resposta:

Tudo isto deve ter sido profundamente embaraçoso para St. Jerônimo. Sem dúvida, ele teria preferido declinar, mas as circunstâncias não lhe permitiria permanecer em silêncio. Ele finalmente escreveu seu "Contra Joviniano", um extenso trabalho em que ele passa a maior parte de seu esforço na defesa dos advogados da virgindade e das práticas ascéticas. Por outro lado, ele fala muito pouco da Virgem. De fato, seu papel é tão pequeno que um leitor que não sabia nada sobre as circunstâncias históricas nunca poderia suspeitar que a questão da sua virgindade no parto foi a única ocasião do trabalho. A única indicação disso está contida em poucas linhas misturadas a um desenvolvimento exegético.

Jerônimo claramente não estava convicto da virgindade no parto e não poderia considera-la um artigo da fé católica. Obviamente a resposta a Joviniano não satisfez os círculos ascéticos, mas Jerônimo não escreveu nenhum esclarecimento adicional:

A questão da visão real de São Jerônimo sobre o nascimento virginal, e do seu acordo ou desacordo com St. Ambrósio e o Sínodo de Milão, não foram elucidados além deste ponto. St. Ambrósio teve a caridade, bem como tato para perceber e apreciar a posição embaraçosa de St. Jerome (...)

Carol parece implicar que Jerônimo de fato nunca acreditou na virgindade no parto. Se fosse o caso, ele teria dado uma resposta clara e enérgica como fez contra Helvídio. Joviniano não seria o último oponente ocidental da “sempre virgem”. Ambrósio teria que enfrentar outro:

Nesse meio tempo, St. Ambrósio estava prestes a entrar em uma nova polêmica envolvendo Bonoso, o Bispo de Sardica na Ilíria, que pertencia à zona de penumbra em que o latim e línguas e culturas grega se misturavam. Por volta do ano 390, Bonoso tomou e espalhou a ideia de que Nossa Senhora não permaneceu virgem após o nascimento de Cristo. Nós já vimos que, durante este período, no Oriente, este ponto de vista poderia ser apresentado sem provocar qualquer escândalo, mesmo entre os católicos de Constantinopla. Não é, portanto, surpreendente que a mesma doutrina tenha alcançado o interior da Ilíria, e tenha encontrado um defensor. Mas a influência de Jerônimo, Ambrósio e dos sínodos de Roma e Milão eram muito poderosas e generalizadas para permitir que tais pontos de vista passassem em branco nesta fronteira do Leste. As alegações de Bonoso provocaram a reação hostil dos bispos vizinhos, que remeteram o assunto para um sínodo convocado em Capua durante o inverno de 391-392. Em vez de emitir uma decisão, este sínodo preferiu enviar o caso de volta aos Bispos da Ilíria, que um pouco mais tarde voltou-se para Milão em busca de orientação, como o próprio Bonoso tinha feito anteriormente. St. Ambrósio se recusou a julgar o assunto, já que Bonoso não estava sob sua jurisdição. No entanto, ele forneceu aos bispos de Ilíria as diretivas e argumentos para uma solução da crise.

O principal argumento de St. Ambrósio derivava da maternidade divina e suas exigências. Assim supridos com bem documentadas opiniões, os bispos da Ilíria não tardaram em solenemente na excomunhão de Bonoso e na classificação de sua doutrina como herética. Temos, assim, uma nova intervenção da autoridade eclesiástica sobre a questão da virgindade pós-parto de Maria; ocorrida em uma seção do mundo católico que tinha ligações naturais entre o Oriente e o Ocidente, e, portanto, não podia deixar de exercer uma influência muito superior ao que se poderia esperar de um sínodo puramente local. Pelo que vimos, a sua influência talvez não fosse completamente decisiva para a Igreja Oriental. Já para o Ocidente, limitava-se a enfatizar uma doutrina que já era totalmente aceita. (Ibid)

Somente no final do século IV é possível verificar a existência de sínodos locais condenando opiniões contrárias à virgindade perpétua como herética. Essa opinião se restringia a determinadas localidades da igreja. A parte Oriental ainda seria tolerante a essas opiniões. Destaca-se que Bonoso era bispo de uma importante igreja. Apesar de sua posterior condenação, ele não poderia ser contado como participante de algum grupo herético. Tratava-se da oposição de alguém da própria igreja. Agostinho por sua vez foi influenciado por Ambrósio e defenderia opiniões exatamente iguais:

St. Agostinho, sem hesitação, chamou tanto Helvídio como Joviniano de hereges, e a virgindade perpétua de Maria foi colocada para além de qualquer discussão ou dúvida no Ocidente.

No século V, a virgindade perpétua já estava solidificada no Ocidente. Os protestantes corretamente observam que o desenvolvimento dessa doutrina se deu sob uma base equivocada. Não foi por uma sólida exegese do texto bíblico ou uma confiável tradição histórica. Carol esclarece os motivos:

Neste desenvolvimento, temos observado constantemente a influência lenta, mas profunda dos ascetas sobre a doutrina da virgindade de Maria. Esta influência começou muito cedo, em grande parte devido a Orígenes. Seu efeito não pode ser devidamente avaliado, a menos que nós lembramos que a questão da virgindade de Maria nunca foi dissociada da questão da sua santidade pessoal na visão dos ascetas. Uma implicava a outra necessariamente, e elas eram inseparáveis. O movimento ascético aumentou imensamente no século IV.

O próprio Juniper Carol reconhece que sob uma base puramente histórica, nenhuma igreja poderia exigir fé dogmática na virgindade perpétua. O ponto de vista asceta era apenas um dentre outros vigentes historicamente na igreja. Essa sequer era uma visão muito antiga. Vimos que a primeira defesa explícita da virgindade perpétua só foi acontecer 300 anos depois dos apóstolos. O especialista católico escreve:

Sob a orientação infalível do Espírito Santo, o Magistério finalmente deu a sua decisão irrevogável em conformidade essencial com os pontos de vista primeiramente expostos e desenvolvidos pela escola ascética. Esta decisão nunca teria sido tomada, se a Igreja não tivesse reconhecido na sua doutrina uma verdadeira expressão de fé.

Esse é o único motivo razoável para alguém acreditar não apenas nesse, mas nos outros dogmas marianos. A evidência bíblica ou histórica não os favorece. Apenas a crença numa igreja infalível os torna aceitáveis. Ou seja, é preciso aderir a um equívoco para acreditar em outro equívoco. É importante mencionar que a virgindade perpétua só seria afirmada pelo Sexto Concílio Ecumênico em 680. Nenhum dos cinco concílios anteriores tratou da questão. Ainda assim, mesmo no século V, não se poderia falar de um consenso da igreja:

Esta plena consciência não se desenvolveu de forma consistente ou de forma uniforme em todas as partes do mundo católico. O período que acabamos de traçar revelou esta desigualdade, especialmente entre o Oriente e o Ocidente. O Ocidente, pouco antes do Concílio de Éfeso (431), tinha avançado muito além do Oriente e tinha chegado a uma convicção resolvida e inabalável a respeito santidade pessoal de Maria e de sua virgindade perpétua. No Oriente, nada absolutamente decisivo tinha sido aceito universalmente sobre estes dois pontos fundamentais da teologia mariana. Ainda havia adversários de sua virgindade, que não eram, por esta razão, considerados hereges.

Conclusão

Após esta longa viagem histórica, somos capazes de afirmar alguns pontos:

(1) A evidência histórica não favorece a virgindade perpétua de Maria;

(2) Apesar de se desenvolver rapidamente no século quarto e atingir um virtual consenso no quinto, isso se deveu a bases frágeis como literatura apócrifa de nenhum valor histórico ou preconceitos ascetas;

(3) Quando analisamos a evidência histórica mais antiga (especialmente do século II), verificamos um claro direcionamento para negação da virgindade perpétua.

A virgindade perpétua de Maria e a evidência histórica - Parte 1



A igreja romana ensina que a virgindade perpétua de Maria é um artigo de fé.  Em outras palavras, quem nega esse dogma é um herege em risco de perder a salvação. Essa doutrina se tornou parte do evangelho de Roma. O dogma possui três elementos: (a) virgindade antes do parto: um ensino bíblico também defendido pelo protestantismo; (b) a virgindade no parto (Maria não teria perdido sua virgindade ao dar a luz); e (c) virgindade pós-parto (Maria permaneceu virgem durante toda a vida, não tendo filhos e não tendo relações maritais com José). O fato de alguém crer ou não nessa ideia não deveria representar um grave problema. Uma pessoa pode estar sinceramente equivocada sobre algo. O problema é quando uma ideia errada é elevada ao status de dogma.

Acredito que a evidência bíblica contra a virgindade perpétua é clara. Maria teve outros filhos. Recomendo o artigo sobre a evidência bíblica aqui. Não deixem de verificar a caixa de comentários onde há uma boa discussão. Aqui há outros artigos sobre o tema, em especial sobre Tiago o irmão de Jesus. Mesmo que a evidência bíblia seja clara, é sempre bom dar uma olhada na história. Saber como uma ideia ganhou o status de doutrina ou se desenvolveu pode ser muito importante para determinar sua veracidade ou não. Por isso, vamos dar uma boa olhada no tema ao longo dos primeiros séculos da igreja cristã.

Flavio Josefo (37-100)

Josefo não era um cristão. Ele era um historiador judeu que viveu no século I (contemporâneo dos apóstolos). Suas obras tem um valor histórico inestimável, inclusive para o cristianismo. Ele é importante para o nosso estudo porque falou sobre Tiago “o irmão do Senhor”:

Mas o jovem Anano, que, como já dissemos, assumia a função de sumo-sacerdote, era uma pessoa de grande coragem e excepcional ousadia; era seguidor do partido dos saduceus, os quais, como já demonstramos, eram rígidos no julgamento de todos os judeus. Com esse temperamento, Anano concluiu que o momento lhe oferecia uma boa oportunidade, pois Festo havia morrido, e Albino ainda estava a caminho. Assim, reuniu um conselho de juízes, perante o qual trouxe Tiago, irmão de Jesus chamado Cristo, junto com alguns outros, e, tendo-os acusado de infração à lei, entregou-os para serem apedrejados. (Antiguidades Judaicas, Parte 1, Livro XX, Cap. 8)

Quando desejam apresentar a virgindade perpétua como um artigo de fé sempre crido pela igreja, os católicos recorrem geralmente aos pais da igreja do séc. IV. Eles não estavam em boa posição para conhecer uma tradição histórica genuína. Mas, aqui temos Josefo vivendo no séc. I e muito próximo dos fatos. O testemunho dele se torna importante, pois escreveu em grego koiné (o mesmo idioma do Novo Testamento) e claramente diferenciava primo de irmão nos seus escritos (no grego koiné há palavras distintas para irmão, primo e parente, no caso, Adelphos, Anepsios e Suggenes). Em vários lugares da mesma obra, Josefo diferencia primo de irmão:

Eis como Caio procedeu para executar uma resolução tão detestável contra aquele, com o qual a justiça obrigava a dividir a suprema autoridade. Mandou vir o jovem Tibério, reuniu seus amigos e disse-lhes falando dele: ‘Eu não o amo somente como meu primo, mas como se ele fosse meu próprio irmão, e desejaria, de todo meu coração, poder agora associá-lo ao governo, para satisfazer à última vontade de Tibério, mas vedes que, sendo tão jovem, ele tem mais necessidade de governante do que de ser governador. (Antiguidades Judaicas, Livro Único, Cap. 3)

Em uma das passagens mais interessantes, Josefo nomeia todos os familiares, fazendo nítida distinção de cada um deles:

Mas eu quisera bem saber de quem ele teria podido aprender o que diz; eu fui instruído desde o berço por meu pai, meus irmãos, meus primos, meus avós, meus bisavós e tantos outros grandes príncipes, de quem sou descendente dos lados paterno e materno, sem falar das sementes de virtude que a mesma natureza introduz no sangue daqueles que ela destina a governa. (Ibid., cap. 4)

O testemunho de Josefo tem um peso enorme nessa discussão. Além disso, há a evidência arqueológica do ossuário de Tiago datado do século I, que traz a inscrição em aramaico: “Tiago, filho de José, irmão de Jesus” (Ya'akov bar Yosef achui d'Yeshua). O ossuário foi datado de 63 d.C, precisamente a data da morte de Tiago atribuída pela tradição cristã. Um tribunal israelense, após um longo processo que envolveu a participação de inúmeros peritos, concluiu que o homem que encontrou o ossuário não o falsificou. Para mais detalhes sobre Josefo e o ossuário de Tiago, veja aqui.

Papias de Hierápolis (70?-150?)

Papias provavelmente teve contato com pessoas que conheceram os apóstolos. Páginas católicas como o Veritatis o apontam como defensor da virgindade perpétua de Maria:

(1) Maria, a mãe do Senhor; (2) Maria, a esposa de Cléofas ou Alfeu, que era mãe de Tiago, bispo e apóstolo, de Simão, de Tadeu e de um dos que se chamavam José; (3) Maria Salomé, esposa de Zebedeu, mãe de João, o evangelista, e Tiago; (4) e Maria Madalena. Estas quatro mulheres são encontradas no Evangelho. Tiago, Judas e José são filhos de uma tia do Senhor. Maria, mãe de Tiago, o menor, e José, esposa de Alfeu, era irmã de Maria, mãe do Senhor, e que João liga a Cléofas; eram irmãs por parte de pai, por parte da família do clã ou por outra ligação qualquer. Maria Salomé é chamada simplesmente por Salomé por causa de seu marido ou de seu vilarejo. Alguns afirmam que ela é a mesma pessoa que Maria de Cléofas, já que teria se casado duas vezes. (Fragmento 10)

Papias não fez nenhuma afirmação a favor da virgindade perpétua. Ele apenas parece afirmar que os supostos filhos de Maria eram na verdade filhos de uma irmã de Maria (no caso Maria de Cleofas). Além disso, há outros problemas:

(1)  Como o próprio Veritatis reconhece, a autenticidade desse fragmento (e de outros mais) é disputada. B.F. Westcott é um dos estudiosos que adota essa posição;

(2)  Mesmo concedendo que seja autêntico, restam os seguintes problemas:

(a)  Papias diz que Maria mãe de Jesus e Maria de Cleofas eram irmãs. É extremamente improvável que duas irmãs tivessem o mesmo nome;

(b) É evidente que Papias não tinha acesso a uma tradição confiável, o que vemos nesse trecho: “Alguns afirmam que ela é a mesma pessoa que Maria de Cléofas, já que teria se casado duas vezes”. Papias não expressa certeza a respeito dessa informação. Além do mais, a própria hipótese está errada, uma vez que em João 19:25, Mateus 27:56 e Marcos 15:40 (passagens que retratam as mulheres aos pés da cruz) demonstram que Maria de Cleofas e Salomé eram personagens distintos;

(c) Ele parece identificar Tiago (irmão do senhor) como Tiago filho de Zebedeu ao chama-lo de bispo e apóstolo. A partir dos dados do Novo Testamento, sabemos certamente que se trata de pessoas distintas.

Hegésipo (110-180)

Hegésipo se refere a Judas “como irmão do senhor segundo a carne” (História Eclesiástica 3:20). Em outro lugar, ele se refere a Simeão “um primo do Senhor” (HE 4:22). Ele conhecia a diferença dos termos gregos para irmão e primo e se referiu a Judas como “segundo a carne” e também a Tiago como “irmão do senhor” (HE 2:23:4). A teóloga católica Ruether afirma:

Sua frase "seu irmão segundo a carne" decisivamente aponta para a tradição de Jerusalém que esses irmãos eram conhecidos como os irmãos de Jesus. (Citado em Eric Svendsen, Who Is My Mother? [Amityville, New York: Calvary Press, 2001], pp. 66)

O renomado estudioso católico John P. Meier escreve:

(...) no século II, por exemplo, Hegésipo, um convertido do judaísmo, provavelmente vindo da Palestina parece ter considerado os irmãos e irmãs de Jesus como sendo verdadeiros irmãos, distintos dos primos e tios que Hegésipo também menciona. (Meier, John P. "A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus". p. 360, footnote 39)

Proto-Evangelho de Tiago (150?)

Não se sabe ao certo a data correta da criação do proto-evangelho de Tiago, mas a maioria dos estudiosos concorda que se trata de uma compilação (no séc. III) de narrativas apócrifas do séc. II. Uma tradução em português pode ser vista aqui. Católicos costumam citá-lo como testemunha da virgindade perpétua, porém essa evidência tem sérios problemas:

(1) Ele afirma que José era um homem velho que já tinha filhos quando recebeu Maria como esposa. Isso daria suporte à tese de que os irmãos de Jesus eram filhos de um casamento anterior. Ocorre que essa não é a tese de Jerônimo adotada pela maioria dos apologistas católicos. Os irmãos de Jesus seriam primos ou parentes distantes;

(2) José fala no cap. 17 sobre seus filhos sem mencionar filhas. Nós, porém, sabemos que Jesus também tinha irmãs (Marcos 6:3). O cap. 18 menciona apenas dois filhos de José, mas sabemos que Jesus tinha mais de dois irmãos. De onde vieram então os outros irmãos e irmãs de Cristo?

(3) Ele menciona que Maria foi virgem no parto (Cap. 19:3-20:1), mas não afirma que Maria permaneceu virgem para sempre. Essa informação pode chocar alguns ouvidos dado que o proto evangelho de Tiago é sempre citado em apoio à virgindade perpétua, mas em nenhum lugar é afirmado que Maria não teve outros filhos ou não teve um casamento normal;

(4) Ele sugere que Maria não tinha feito nenhum voto de virgindade perpétua, uma vez que ela se pergunta se vai conceber por meio de relações sexuais (Cap. 11). Também relata que após receber a visita do anjo, Maria ainda permanecia ignorante sobre a obra realizada por Deus. No sexto mês de gravidez, quando José descobre que Maria estava grávida, ela responde: “Respondeu Maria: ¨Juro pelo Senhor, meu Deus, que não sei como isto se sucedeu¨ (Cap. 13). Como Maria poderia não saber? Ela já havia recebido a visita do anjo;

(5) As contradições entre o relato do proto-evangelho e dos Evangelhos canônicos são explícitas e irresolúveis:

Proto-Evangelho de Tiago
Evangelhos canônicos
Gabriel é descrito como um arcanjo (Cap. 12)
Gabriel nunca é descrito como um arcanjo, mas sim Miguel (Judas 1:9)
A resposta de Maria ao anjo é diferente: “Conceberei por graça do Deus vivo e darei à luz como as demais mulheres?¨ (9:12)
Lucas 1:34 afirma: Perguntou Maria ao anjo: "Como acontecerá isso, se sou virgem? "
Isabel fugiu de Belém com seu filho João (Batista) para as montanhas por causa da ira de Herodes quando decidiu matar todos os meninos. (Cap. 22:3).
Lucas 1:80 afirma: “E o menino crescia e se fortalecia no espírito; e viveu no deserto, até aparecer publicamente a Israel.”

Jesus nasceu numa caverna fora da cidade de Belém (Cap. 18:1)
Jesus nasceu em Belém, a cidade de Davi, de acordo com Lucas 2:4 e Mateus 2:1
O anjo do Senhor, quando fala a José em sonho diz-lhe para receber Maria, mas não menciona tê-la como esposa. O sacerdote castiga Jose e o acusa de tomar Maria como esposa secretamente. Jose a leva para sua casa, mas está relutante em chamá-la de sua esposa quando eles vão a Belém (Capítulos Caps. 13-16).
Mateus 1:19 revela que Jose já era o marido de Maria (eles já estavam noivos) antes de o anjo visita-lo em sonho. Mateus 1:24 aponta que depois que o anjo visitou José, ele a manteve como esposa.
Maria envolveu Jesus em panos e o escondeu numa manjedoura na pousada para salvá-lo do massacre de Herodes. (Cap. 22)
Maria e José foram avisados da trama de Herodes por um anjo e então fugiram para o Egito (Mateus 2:13-14).
Os sábios foram a Belém perguntar onde tinha nascido o rei dos judeus. (Cap. 21)
Os sábios chegaram a Jerusalém e perguntaram onde tinha nascido o rei dos judeus. (Mateus 2:1)

(6) O protoevangelho de Tiago é um relato historicamente não confiável. As histórias que ele traz não passam de lendas. Outro livro apócrifo chamado “Ascensão de Isaías”, com clara influência gnóstica, também afirma a virgindade no virgindade no parto, sem afirmar a virgindade pós-parto. Todos esses relatos são fantasiosos. Eric Svendsen cita vários estudiosos, inclusive católicos, que afirmam o caráter lendário dessas obras:

Tanto o protoevangelho de Tiago como o Evangelho da Infância de Tomé são na própria admissão de Bauckham "certamente obras da imaginação, não da historiografia". E ambos, juntamente com o Evangelho de Pedro, são obras apócrifas de valor histórico duvidoso [segundo Meier]. Meier caracteriza o proto-evangelho de Tiago como "uma imaginativa narrativa popular que é escandalosamente incorreta sobre eventos do NT bem como as coisas judaicas" (1992:16). Similarmente, Elliott (1993:51) nos diz em seu prefácio ao proto-evangelho de Tiago que seu valor histórico é "insignificante", citando inúmeras imprecisões e inconsistências. Graef (1964:36), que é solidário à visão católica romana de Maria, observa que este documento revela "grande ignorância sobre as condições dos judeus" sendo, portanto, de "pouca importância teológica." (Op. Cit., p. 70)

Ireneu de Lyon (130-202)

E como a substância de Adão, o primeiro homem plasmado, foi tirada da terra simples e ainda virgem - "Deus ainda não fizera chover e o homem ainda não a trabalhara” - e foi modelado pela mão de Deus, isto é, pelo Verbo de Deus com efeito, "todas as coisas foram feitas por ele”, e o "Senhor tomou do lodo da terra e modelou o homem”, assim o Verbo que recapitula em si Adão, recebeu de Maria, ainda virgem, a geração da recapitulação de Adão. (Contra as Heresias 3:21:10)

O paralelo implica que Maria não permaneceu virgem. Adão foi formado a partir da terra ainda virgem. Da mesma forma, Cristo foi formado a partir de Maria ainda virgem. Ocorre que a terra deixou de ser virgem, logo Maria teria também deixado de ser. Ninguém que acreditasse em algo como a virgindade perpétua (ainda mais se fosse um artigo de fé) faria esse tipo de paralelo.

Único e idêntico é, pois, o Espírito de Deus que nos profetas anunciou as características da vinda do Senhor e que nos anciãos traduziu bem as coisas profetizadas. Foi ainda ele que, pelos apóstolos, anunciou ter chegado a plenitude dos tempos da adoção filial, que o Reino dos céus estava próximo e que se encontrava dentro dos homens que criam no Emanuel nascido da Virgem. Assim eles testemunharam que antes que José se juntasse à Maria, enquanto ela era ainda virgem, achou-se grávida pelo Espírito Santo. (Ibid., 3:21:4)

Irineu faz alusão a Mateus 1:18. Ele compreendeu que após se juntar a José, Maria passou a ter um casamento normal. Maria era “ainda” virgem até se juntar a José, o que implica que ela não permaneceu nesse estado após se juntar a ele. Os apologistas católicos por sua vez trazem uma citação que provaria o contrário:

Como por uma virgem desobediente foi o homem ferido, caiu e morreu, assim também por meio de uma virgem obediente à palavra de Deus, o homem recobrou a vida. Era justo e necessário que Adão fosse restaurado em Cristo, e que Eva fosse restaurada em Maria, a fim de que uma virgem feita advogada de uma virgem, apagasse e abolisse por sua obediência virginal a desobediência de uma virgem. (Ibid., 5:19:1)

Do paralelo entre Maria e Eva os católicos tiram falsas implicações. Essa passagem é utilizada para provar os dogmas marianos. Nenhum elemento desse paralelo implica que Maria foi sempre virgem ou teve uma concepção imaculada ou ascendeu aos céus. Basta observar que Irineu qualifica Maria como uma virgem se referindo ao seu ato de obediência. A questão é – quando esse ato de obediência ocorreu? Outra passagem clarifica:

Da mesma forma, encontramos Maria, a Virgem obediente, que diz: "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra", e, em contraste, Eva, que desobedeceu quando ainda era virgem. Como esta, ainda virgem se bem que casada - no paraíso estavam nus e não se envergonhavam, porque, criados há pouco tempo ainda não pensavam em gerar filhos, sendo necessário que, primeiro, se tomassem adultos antes se multiplicassem -, pela sua desobediência se tornou para si e para todo o gênero humano causa da morte, assim Maria, tendo por esposo quem lhe fora predestinado e sendo virgem, pela sua obediência se tomou para si e para todo o gênero humano causa de salvação. (Ibid., 3:22:4)

O ato de obediência referido ocorre na anunciação do anjo, quando Maria de fato ainda era virgem. Por outro lado, nada implica que ela permaneceria nesse estado para sempre. Se alguma implicação pudesse ser tirada, a mais provável seria afirmar que ela não permaneceu virgem, afinal Eva (o outro elemento do paralelo) não permaneceu virgem. Não creio que essa seja uma implicação válida, mas seria mais plausível do que afirmar a virgindade perpétua.

Clemente de Alexandria (150-215)

Mas, como parece, muitos mesmo até ao nosso próprio tempo consideram Maria, por causa do nascimento da sua criança, como tendo estado na condição puerperal, embora não o tenha estado. Pois alguns dizem que, depois de parir, se a achou ainda virgem quando foi examinada. (Stromata 7:16)

Clemente de fato expressa sua crença pessoal na virgindade no parto, mas não dispomos de evidência confiável sobre sua crença na virgindade pós-parto. Todavia, ele afirma que essa opinião é negada por muitos de seu tempo. Destaca-se que ele se referia a cristãos. Na verdade, a virgindade no parto era uma crença presente entre os hereges docetistas. Mas porque Clemente cria que o parto de Maria não foi normal? Juniper Carol – o estudioso católico e editor responsável por uma obra de referência sobre Mariologia – escreve:

As observações de Clemente sobre Nossa Senhora são breves. Se a adaptação Latina de Clemente, Adumbrationes em epistolas catholicas, expressa suas opiniões pessoais com precisão, ele certamente realizava a virgindade pós-parto de Maria (147) e, portanto, pode muito bem ter sido um daqueles ascetas, mencionado por Orígenes, que se recusaram absolutamente a admitir a possibilidade de Maria de ter tido outros filhos depois do nascimento de Cristo. Não pode haver dúvida sobre o nascimento virginal. Clemente o sustentava explicitamente. Ele afirmava que não foi acreditado por um grande número, que desejavam manter que o nascimento de Cristo em relação à Sua mãe era perfeitamente normal e natural (...) Muito menos há alguma evidência de que o docetismo foi responsável pela doutrina de Clemente sobre o nascimento virginal, que foi provavelmente muito influenciada por essas diferentes fontes apócrifas que serviram de base para a compilação agora conhecido como proto evangelho de Tiago. (Juniper B. Carol, Mariologia, vol. II)

A opinião de Clemente sobre a virgindade no parto foi influenciada pelo proto evangelho, ou seja, uma base histórica nada confiável. Sobre a crença de Clemente na virgindade pós-parto, segue abaixo a nota de rodapé n. 147:

Adumbrationes em epistolas catholicas; PG, 9, 731. Estas Adumbrationes são apenas uma adaptação latina de Hypotypses de Clemente. Nós não podemos confiar absolutamente neste texto, uma vez que é uma adaptação traduzida com a intenção expressa de expurgar qualquer coisa que possa ser ofensiva, cf. PG, 70, 1120. Por outro lado, não há nenhuma indicação de que na questão da virgindade de Maria havia qualquer correção às próprias palavras de Clemente. Podemos notar que os textos de Clemente citados por Eusébio (Historia Ecclesiastica, II, 1, 3-4 f., 9, 2 e seguintes) são, infelizmente, demasiado vagos para ser decisivo e dissipar qualquer hesitação.

Carol admite que a fonte não seja decisiva e sobre ela pairam dúvidas.

Tertuliano de Cartago (160-220)

Sobre Tertuliano e Orígenes (tratado mais adiante), o blog protestante Conhecereis a Verdade já fez um ótimo trabalho aqui e aqui. Por isso, vou repetir o material que ele trouxe e fazer alguns acréscimos. Tertuliano foi o primeiro a tratar da questão de forma mais explícita. Ele nega a virgindade no parto e pós-parto:

As duas sacerdotisas de santidade cristã, a monogamia e a castidade: uma modesta em Zacarias o sacerdote, outra absoluta em João o mensageiro: uma apazigua Deus; outra prega Cristo; uma proclama um sacerdote perfeito; outra exiba "mais do que um profeta" - ele que não só tem pregado ou pessoalmente apontado, mas batizou Cristo. Pois quem era mais digno de realizar o rito inicial sobre o corpo do Senhor, do que carne semelhante em tipo àquela que concebeu e deu à luz esse [corpo]? E na verdade era uma virgem, prestes a casar-se uma vez por todas depois do seu parto, que deu à luz Cristo, para que cada título de santidade pudesse cumprir-se na parentela de Cristo, por meio de uma mãe que era tanto virgem, como esposa de um só marido. (Sobre a Monogamia 8)

O argumento é bem sútil. As duas principais características da santidade eram a monogamia e a castidade. Ele então aponta dois exemplos de cada uma: Zacarias pai de João Batista (exemplo de Monogamia) e o próprio João (exemplo de castidade). O ponto chave é a afirmação “para que cada título de santidade pudesse cumprir-se na parentela de Cristo”. Maria deveria experimentar tanto o estado virginal como o monogâmico. Percebam que Zacarias casou e obviamente teve relações maritais – o mesmo tipo de vida marital que Maria deveria viver. Todo o argumento pressupõe que Maria teve um casamento normal nesse aspecto. A inferência óbvia é que se refere ao texto evangélico de Mateus 1:25, "e não a conhecia até que ela deu à luz um filho; e pôs-lhe o nome de Jesus". Em outras palavras, o matrimônio não se consumou até depois do parto. Este sentido é o único compatível com o fato de Tertuliano ter insistido repetidamente que Jesus tinha irmãos.

Ele também coloca tanto a monogamia como a santidade como iguais estados de santidade. O equívoco que levou pais da igreja do séc. IV (como Jerônimo e Agostinho) a projetarem em Maria a virgindade perpétua foi a ideia de que a virgindade fosse superior ao casamento. Tertuliano, uma testemunha muito mais próxima da era apostólica, não concordaria com isso. John P. Meier (padre e um dos maiores estudiosos bíblicos do séc. XX) escreve:

O paralelo com Zacarias sugere naturalmente a relação sexual normal e fértil. (Op. Cit., p. 68)

“Quem é minha mãe e meus irmãos?” (...) Ele estava justamente indignado de que pessoas tão próximas d`Ele “permanecessem fora”, enquanto uns estranhos estivessem dentro aferrando-se às Suas palavras. Isto é particularmente assim dado que sua mãe e seus irmãos desejavam apartá-lo da obra solene que tinha entre mãos. Mais que negá-los, Ele os desautorizou. Portanto, à pergunta prévia, “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” acrescentou a resposta: “Ninguém senão os que ouvem as minhas palavras e as praticam”. Deste modo transferiu os nomes das relações consanguíneas a outros que considerava mais estreitamente relacionados com Ele por causa da fé deles (...) Não é surpreendente que preferisse gente de fé aos seus próprios parentes, que não possuíam tal fé. (Contra Marcião 4:19).

Todo argumento implica que os irmãos de Jesus eram de fato irmãos de sangue e, portanto, filhos de Maria. Tertuliano interpreta Mateus 12:46-50. Ele capta o correto sentido da passagem. Jesus opôs os lanços familiares e sanguíneos aos laços espirituais. Era mais valoroso ser um crente em Jesus do que ser um familiar. Toda essa passagem do evangelho perderia o sentido caso se tratassem apenas de primos ou parentes mais distantes. Tertuliano explicitamente nega a virgindade no parto:

Ela que pariu, pariu; e embora fosse uma virgem quando concebeu, era uma esposa (nupsit) quando deu à luz a seu filho. Ora, como uma esposa, ela estava sob a própria lei da "abertura do ventre" pelo que foi completamente irrelevante se o nascimento do varão foi por causa da cooperação do marido ou não; foi o mesmo sexo [o varão] que abriu o seu ventre. Na verdade, seu é o ventre por causa do qual está escrito de outros também: "Todo varão que abra o ventre será chamado santo para o Senhor". Pois, quem é realmente santo senão o Filho de Deus? Quem abriu propriamente o ventre senão Aquele que abriu um que estava fechado? Mas é o matrimónio que abre o ventre em todos os casos. O ventre da virgem, portanto, foi especialmente aberto, porque estava especialmente fechado. Na verdade, ela devia ser chamada não (simplesmente) uma virgem, mas uma virgem tornando-se uma mãe num pulo, por assim dizer, antes de ser uma esposa. E que mais deve dizer-se sobre este ponto? Já que foi neste sentido que o apóstolo declarou que o Filho de Deus nasceu, não de uma virgem, mas "de uma mulher", ele em tal afirmação reconheceu a condição do "ventre aberto" que tem lugar no matrimónio. (Da Carne de Cristo 23)

O parto de Maria foi natural. Ela teve seu “ventre aberto”. Na mesma obra, escreve:

Primeiro de tudo, ninguém teria dito a ele que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora, se ele não estivesse certo de que tinha uma mãe e irmãos, e que eles eram as pessoas a quem estava anunciando. (ibid., 7)

Substitua irmãos por primos e perceba como todo o argumento e o próprio relato evangélico perde o sentido. Ruether escreve:

Ele assume que eles eram filhos naturais de Maria e José, nascidos após o nascimento de Jesus, e ele não está ciente de nenhuma tradição ortodoxa em contrário. (Op. Cit., p. 67)

Importa notar que Tertuliano estava escrevendo contra os docetistas. Ou seja, a posição da virgindade de Maria no parto não encontra apoio nos escritos apostólicos, mas é primeiramente formulada por hereges. Não por acaso, os apologistas católicos usam literatura apócrifa do séc. II (protoevangelho de Tiago, ascensão de Isaías) para provar essa doutrina. Católicos não costumam negar o testemunho claro de Tertuliano. Eles geralmente o desqualificam. Alegam que ele aderiu ao montanismo e abandonou a igreja, se tornando um herege. Esse argumento tem os seguintes problemas:

(1) É um argumento hipócrita. Os apologistas católicos citam Tertuliano (geralmente de forma distorcida) em favor de suas doutrinas com frequência aqui, aqui e aqui. É algo tão descarado que o site apologistas católicos diz sobre Tertuliano:

Os escritos de Tertuliano (assim como os escritos dos Padres da Igreja e outros escritores eclesiásticos) são muito importantes, não só para os estudantes da patrística e patrologia, porque permitem conhecer a fundo o pensamento da Igreja primitiva e sua forma de interpretar as Escritura. (Fonte)

E também:

Tertuliano, o eminente pai da igreja menciona, por volta do ano 218 (...) [Se foi em 218, já se tratava da fase montanista de Tertuliano]

Mas no artigo sobre a virgindade perpétua:

Definitivamente Tertuliano não é uma boa fonte contra a Igreja e chega ser desonesto usá-lo. Sobre ele São Jerônimo nem perdeu tempo, apenas disse: “De Tertuliano não direi senão que não pertenceu à Igreja.”

Como ele próprio disse, Tertuliano é uma importante fonte para entender o pensamento da igreja primitiva. Nós usamos Tertuliano não para atacar as doutrinas da igreja a qual ele pertencia, essa não era romana e não acreditava na virgindade perpétua como um artigo de fé. A igreja que Tertuliano contraria é a romana, que apostatou da fé católica primitiva.

(2) A importância histórica de Tertuliano é indubitável. Ele foi o primeiro pai da igreja a tratar de forma mais explícita a virgindade perpétua de Maria. A evidência patrística mais próxima dos apóstolos a tratar explicitamente a questão nega o dogma;

(3) A adesão de Tertuliano ao montanismo é um argumento irrelevante. Não há evidência de que ele cria na virgindade perpétua e então passou a não crer nessa doutrina. Não há em seus escritos mais antigos qualquer referência a essa doutrina. Além disso, não há qualquer evidência de que o montanismo repudiasse a virgindade perpétua de Maria. Pelo contrário, o montanismo era um grupo moralmente rigorista, portanto, eles estariam mais propensos a terem uma opinião positiva sobre a virgindade. Se alguma mudança tivesse ocorrido, seria no sentido de passar a crer na virgindade perpétua e não o contrário;

(4) Tertuliano nunca deixou de fato a igreja. Ele se tornou um crítico das práticas cada vez mais flexíveis da igreja para com os que pecavam após o batismo, mas nunca a deixou para montar um grupo cismático. A afirmação de Jerônimo de que ele não era mais um homem da igreja é falsa. O teólogo e padre católico Francis Sullivan escreveu:

Deve-se notar, contudo, que Tertuliano permaneceu ortodoxo em relação aos dogmas cristãos fundamentais, e enquanto rejeitou algumas reinvindicações feitas por bispos católicos, não há evidência de que tenha deixado a Igreja Católica para se juntar ou formar um grupo cismático. (From Apostles to Bishops: the development of the episcopacy in the early church. Newman Press, Mahwah (NJ), 2001, pp. 155-156)

Isso é tão verdade que ele escreveu sua famosa fórmula trinitária depois de se tornar montanista. O erudito ortodoxo John McGuckin escreve:

Por volta de 205 seus [de Tertuliano] escritos mostram um respeito cada vez maior às ideias Montanistas, mas o estilo de Montanismo que era então influente no Norte da África era uma forma muito moderada do movimento original da Ásia Menor, e não há nenhuma indicação clara de que ele saiu da comunidade católica. (The Westminster Handbook To Patristic Theology [Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 2004], p. 325)

(5) Embora alguns pais da igreja posteriores (Jerônimo) tivesse uma opinião negativa sobre Tertuliano, outros pensavam o contrário. O próprio Jerônimo escreve sobre a elevada opinião de Cipriano sobre Tertuliano:

Eu mesmo vi um certo Paulo, um velho de Concordia - uma cidade da Itália, que quando era um homem muito jovem, tinha sido secretário do beato Cipriano que já estava em idade avançada. Ele disse que tinha visto como Cipriano estava acostumado a nunca passar um dia sem ler Tertuliano, e que frequentemente lhe dizia: "Dá-me o mestre," significando com isso Tertuliano. (Vidas dos homens ilustres 53)

Hipólito de Roma (170-235)

O renomado erudito patrístico Hans von Campenhausen escreve:

No Ocidente antes de Hilário - isto é, até meados do século IV - não há nenhuma testemunha para a "sempre virgem" [virgindade perpétua], o que dificilmente pode ser um mero acaso (...) Hipólito também se refere aos "irmãos de Jesus" como os filhos de José e Maria (...) [citando Hipólito:] "Ele [Jesus] não reconheceu como irmãos aqueles que eram considerados como seus irmãos de acordo com a carne. O redentor não os reconheceu, porque na verdade aqueles não [eram] os seus irmãos que nasceram de José através da semente, mas da Virgem e do Espírito Santo; e eles os consideravam como seus irmãos, mas ele não os reconhecia." (The Virgin Birth In The Theology Of The Ancient Church [Eugene, Oregon: Wipf & Stock, 2011], n. 4 on 48-9)

Hans aponta essa citação de Hipólito a partir de uma obra ainda não traduzida para o inglês (até onde eu sei). Hipólito afirma que as pessoas olhavam para aqueles como irmãos de Cristo, mas ele não os reconhecia como irmãos porque não eram nascidos da virgem e do Espírito Santo. Veja que o argumento é que os irmãos de Jesus não tiveram uma concepção virginal, e não que eles não eram filhos de Maria. Campenhausen afirma que Hipólito negou a virgindade perpétua. No entanto, Hipólito é apresentado por alguns sites católicos como testemunha da virgindade perpétua no século III:

Mas a confissão piedosa do crente é que, tendo em vista a nossa salvação, e a fim de conectar o universo com o imutável, o Criador de todas as coisas incorporou a si próprio uma alma racional e um corpo sensível da toda santa Maria, sempre virgem, por uma concepção imaculada, sem conversão, e se fez homem na natureza, mas separado da maldade: o mesmo era Deus perfeito e homem perfeito; o mesmo era na natureza perfeitamente Deus e homem. (Fragmento 8)

Esse é o fragmento 8 de uma da obra cujo título é “Contra Beron e Helix”. Ela foi escrita para refutar mestres valentinianos. O tema central do livro é a natureza humana e divina de Cristo. Não consideramos que esta seja uma evidência confiável da virgindade perpétua porque Hipólito está se referindo ao momento da encarnação de Cristo. Nesse momento, ele recebeu um “corpo sensível” da "sempre virgem" Maria. Obviamente até esse ponto, Maria poderia ser chamada de "sempre virgem", o que não implica que ela permaneceu virgem por toda a vida. Seria como alguém dizer: “até ingressar na faculdade, eu sempre fui um bom aluno”. Estudiosos patrísticos de renome pensam o mesmo, como o já citado Campenhausen que afirma que Hipólito negou a ideia. Ainda podemos citar o estudioso católico Carol:

É lamentável que nós não tenhamos nenhum testemunho claro de seus contemporâneos, como Santo Hipólito. No Ocidente, Cipriano, Novaciano, Arnóbio e Lactâncio, como já mencionado, não contribuem em nada positivo; o mesmo acontece com Gregório o taumaturgo e Denis de Alexandria no Oriente. Embora um defensor das práticas ascéticas da virgindade, Metódio é tão vago quanto Hipólito sobre a virgindade de Maria. (Ibid)

Carol é um especialista e com certeza conhecia essa citação de Hipólito. Ele escreve na nota de rodapé n. 152:

Os textos mais pertinentes que conhecemos de Hipólito relativos à virgindade de Maria são extratos da "A Arca da Aliança" (conservado por Teodoreto); cf. a edição em Griechische christliche Schriftsteller, publicado pela Kirchenvater Kommission da Academia Prussiana, Vol. 1, Parte 2 (Leipzig), p. 146 f.; Também PG, 1, 83, 85-88. Há também uma passagem da Benedictiones Moysis, se alguém pode invocar a versão georgiana que temos em Texte und Untersuchungen, Vol. 26, Parte 1, p. 75. Os dois textos não são definitivos a favor ou contra a virgindade de Maria. Cf. Também G. Jouassard, art. cit. (Supra, nota 129), Vol. 12, 1932, pp. 509-532 e Vol. 13, 1933, pp. 25-37. (Ibid)

Carol ainda cita outro especialista católico – G. Jouassard. Ou seja, mesmo estudiosos católicos não colocam Hipólito como testemunha da doutrina romana. Importa observar que Carol sequer coloca a citação em questão entre aquelas que favoreceriam o dogma mariano. Ele não afirma em seu livro, mas é possível que considerasse a expressão sempre virgem (ἀειπαρθένου) uma adição espúria nas obras de Hipólito. Entre as obras espúrias ou duvidosas, encontramos a mesma interpolação. Pode ser visto aqui no capítulo XXII. Na nota de rodapé n. 150 está escrito: 

Num códice B lê-se “Imaculada sempre virgem Maria”.

Leve-se em conta que a expressão “sempre virgem” não foi utilizada por nenhum pai da igreja anterior (séc. II), contemporâneo (séc. III) ou nos 100 anos seguintes a morte de Hipólito. O primeiro a utilizar esse termo seria Epifânio (séc. IV). Dessa forma, é muito provável que se trate de uma interpolação de algum tradutor. 


Carol ainda cita vários outros pais da igreja e expressa que a virgindade perpétua não encontra nenhum testemunho a favor. Essa ausência é relevante pelos motivos já tratados e pela natureza da alegação católica romana. Se de fato a virgindade perpétua é uma daquelas doutrinas legadas pelos apóstolos através da tradição oral e mantida como artigo de fé pela igreja, tais omissões são inexplicáveis. Isso nos permite concluir que para os três primeiros séculos do cristianismo não dispomos de nenhum testemunho confiável a favor da virgindade perpétua de Maria, muito menos como um artigo de fé obrigatório para os cristãos.

Resumo do segundo século

Católicos alegam que a virgindade perpétua de Maria é uma tradição de origem apostólica sempre crida pela igreja. Após varrermos a evidência do segundo século, percebemos que essa não é a realidade. Nenhum pai da igreja desse período defendeu a virgindade perpétua. O máximo que se pode encontrar é o testemunho da virgindade no parto em Clemente de Alexandria que derivava de uma fonte nenhum pouco confiável. E mesmo em Clemente, é evidente que essa opinião não era um artigo de fé. Muitos cristãos ortodoxos da época não criam no mesmo.

Por outro lado, temos afirmação explícita de Tertuliano contra a virgindade no parto e pós-parto. Apesar de todas as tentativas de desqualificar seu testemunho, trata-se da evidência antiga e confiável sobre a questão. Além de Tertuliano, temos as prováveis posições de Irineu e Hegésipo. Os papistas geralmente subestimam a falta de evidência para sua doutrina, porém essa ausência é relevante. Isso se dá porque a concepção virginal de Cristo já era considerada um artigo de fé. Pense bem, se eles já consideravam o primeiro elemento da doutrina romana um artigo de fé (a virgindade antes do parto), e supostamente receberam dos apóstolos a doutrina da virgindade no parto e pós-parto, a menção seria inevitável. Trata-se de ideias diretamente correlacionadas. No entanto, vemos o oposto. O renomado mariólogo Juniper Carol escreve:

Mesmo no início deste período [Século II], a crença na concepção virginal de Cristo foi proposta como um artigo de fé por Santo Irineu, e muito provavelmente antes dele por São Justino e Aristides (...) Será que a maravilhosa profundidade de Santo Irineu na concepção virginal de Cristo o levou para mais esclarecimentos relacionados à virgindade de Nossa Senhora? Infelizmente não, pelo menos de acordo com os escritos autênticos que chegaram até nós em sua maior parte apenas em traduções. Não há nada nessas passagens traduzidas mostrando que Irineu sustentava a continuidade da virgindade de Maria, isto é, depois da Anunciação, no nascimento de Cristo, e, posteriormente, ao final de sua vida na terra. Certos críticos têm acreditado estarem justificados em considerar que Irineu negou a virgindade perpétua de Maria, mas sem qualquer prova decisiva. Por outro lado, devemos confessar que não há textos decisivos para mostrar o contrário (...) Seja qual for a sua origem, não temos motivos para concluir que os apócrifos continham e transmitiram uma autêntica tradição apostólica relativa ao dogma da virgindade perpétua de Maria. Em cada caso, tal tradição teria que ser estabelecida – uma tarefa impossível com as nossas fontes documentais atuais. Além disso, as próprias narrativas apócrifas dificilmente oferecem a qualidade da objetividade sóbria que é uma característica da transmissão de uma doutrina autenticamente apostólica na origem. Em vez disso, eles parecem carregar o testemunho de certas tendências ingênuas e mais ou menos espontâneas cuja origem exata dificilmente pode ser avaliada criticamente hoje. (Mariologia –Juniper B. Carol)

Nós situamos Tertuliano como uma testemunha do segundo século, pois ele começa a escrever no final desse período. Porém, é provável que as citações que trouxemos provêm de obras do início de do terceiro século. Carol comenta:

Tertuliano é inequivocamente claro e radical. Ele aceita a concepção virginal de Cristo como uma verdade dogmática. Mas, uma vez que entrou em sua polêmica com os docetistas, marcionitas e valentinianos, ele é implacável na defesa do nascimento de Cristo como inteiramente normal e na descrição de Maria como a mãe de vários filhos depois de Cristo. Tertuliano em sua franqueza não pretende ser tradicional e nunca agrada a qualquer autoridade dogmática. Por outro lado, ele não manifesta a menor consciência de que suas negações da virgindade perpétua de Nossa Senhora contradizem qualquer tradição eclesiástica, pelo menos, conhecidas por ele. Por isso não podemos deixar de indagar se existia qualquer tradição na África no tempo de Tertuliano sobre o nascimento virginal e a virgindade subsequente de Maria. Ao mesmo tempo, São Cipriano, Arnóbio, e Lactâncio surgem testemunhas como prováveis, mas os seus testemunhos são totalmente negativos. São Cipriano, por exemplo, não diz absolutamente nada para afirmar ou negar os pontos de vista de Tertuliano. O mesmo é verdadeiro sobre os escritores anônimos do período, cujas obras têm sido às vezes atribuída a Cipriano e ao próprio Tertuliano (...) Não encontramos absolutamente nenhuma evidência de que as suas declarações durante este período causaram qualquer ofensa. (Ibid)

Esse estudioso católico romano faz um poderoso caso a respeito da validade do testemunho de Tertuliano. Uma das formas mais confiáveis de se saber a opinião majoritária da igreja num determinado período é verificar a reação dos cristãos ortodoxos quando um artigo de fé é atacado. Isso foi especialmente evidente quando os gnósticos negaram doutrinas da fé crista. Se Tertuliano estivesse negando aquilo que seria um artigo de fé, esperar-se-ia poderosas reações dos círculos ortodoxos, principalmente de contemporâneos ou autores do século III. No entanto, esta reação não aconteceu, o que torna muito provável a conclusão de que a igreja desse período não mantinha a virgindade perpétua como parte da fé revelada.