A
igreja romana ensina que a virgindade perpétua de Maria é um artigo de fé. Em outras palavras, quem nega esse dogma é um
herege em risco de perder a salvação. Essa doutrina se tornou parte do
evangelho de Roma. O dogma possui três elementos: (a) virgindade antes do
parto: um ensino bíblico também defendido pelo protestantismo; (b) a virgindade
no parto (Maria não teria perdido sua virgindade ao dar a luz); e (c)
virgindade pós-parto (Maria permaneceu virgem durante toda a vida, não tendo
filhos e não tendo relações maritais com José). O fato de alguém crer ou não
nessa ideia não deveria representar um grave problema. Uma pessoa pode estar
sinceramente equivocada sobre algo. O problema é quando uma ideia errada é
elevada ao status de dogma.
Acredito
que a evidência bíblica contra a virgindade perpétua é clara. Maria teve outros
filhos. Recomendo o artigo sobre a evidência bíblica aqui. Não deixem de
verificar a caixa de comentários onde há uma boa discussão. Aqui há outros artigos
sobre o tema, em especial sobre Tiago o irmão de Jesus. Mesmo que a evidência
bíblia seja clara, é sempre bom dar uma olhada na história. Saber como uma
ideia ganhou o status de doutrina ou se desenvolveu pode ser muito importante
para determinar sua veracidade ou não. Por isso, vamos dar uma boa olhada no
tema ao longo dos primeiros séculos da igreja cristã.
Flavio Josefo
(37-100)
Josefo
não era um cristão. Ele era um historiador judeu que viveu no século I
(contemporâneo dos apóstolos). Suas obras tem um valor histórico inestimável,
inclusive para o cristianismo. Ele é importante para o nosso estudo porque
falou sobre Tiago “o irmão do Senhor”:
Mas o jovem Anano,
que, como já dissemos, assumia a função de sumo-sacerdote, era uma pessoa de
grande coragem e excepcional ousadia; era seguidor do partido dos saduceus, os
quais, como já demonstramos, eram rígidos no julgamento de todos os judeus. Com
esse temperamento, Anano concluiu que o momento lhe oferecia uma boa
oportunidade, pois Festo havia morrido, e Albino ainda estava a caminho. Assim,
reuniu um conselho de juízes, perante o
qual trouxe Tiago, irmão de Jesus chamado Cristo, junto com alguns outros,
e, tendo-os acusado de infração à lei, entregou-os para serem apedrejados. (Antiguidades
Judaicas, Parte 1, Livro XX, Cap. 8)
Quando
desejam apresentar a virgindade perpétua como um artigo de fé sempre crido pela
igreja, os católicos recorrem geralmente aos pais da igreja do séc. IV. Eles
não estavam em boa posição para conhecer uma tradição histórica genuína. Mas,
aqui temos Josefo vivendo no séc. I e muito próximo dos fatos. O testemunho
dele se torna importante, pois escreveu em grego koiné (o mesmo idioma do Novo
Testamento) e claramente diferenciava primo de irmão nos seus escritos (no
grego koiné há palavras distintas para irmão, primo e parente, no caso,
Adelphos, Anepsios e Suggenes). Em vários lugares da mesma obra, Josefo
diferencia primo de irmão:
Eis como Caio
procedeu para executar uma resolução tão detestável contra aquele, com o qual a
justiça obrigava a dividir a suprema autoridade. Mandou vir o jovem Tibério,
reuniu seus amigos e disse-lhes falando dele: ‘Eu não o amo somente como meu primo, mas como se ele fosse meu próprio irmão, e desejaria, de todo
meu coração, poder agora associá-lo ao governo, para satisfazer à última
vontade de Tibério, mas vedes que, sendo tão jovem, ele tem mais necessidade de
governante do que de ser governador. (Antiguidades Judaicas, Livro Único, Cap. 3)
Em
uma das passagens mais interessantes, Josefo nomeia todos os familiares,
fazendo nítida distinção de cada um deles:
Mas eu quisera bem
saber de quem ele teria podido aprender o que diz; eu fui instruído desde o
berço por meu pai, meus irmãos, meus
primos, meus avós, meus bisavós e tantos outros grandes príncipes, de quem
sou descendente dos lados paterno e materno, sem falar das sementes de virtude
que a mesma natureza introduz no sangue daqueles que ela destina a governa. (Ibid., cap. 4)
O
testemunho de Josefo tem um peso enorme nessa discussão. Além disso, há a
evidência arqueológica do ossuário de Tiago datado do século I, que traz a
inscrição em aramaico: “Tiago, filho de José, irmão de Jesus” (Ya'akov bar
Yosef achui d'Yeshua). O ossuário foi datado de 63 d.C, precisamente a data da
morte de Tiago atribuída pela tradição cristã. Um tribunal israelense, após um
longo processo que envolveu a participação de inúmeros peritos, concluiu que o
homem que encontrou o ossuário não o falsificou. Para mais detalhes sobre Josefo e o ossuário de Tiago, veja aqui.
Papias de Hierápolis
(70?-150?)
Papias
provavelmente teve contato com pessoas que conheceram os apóstolos. Páginas
católicas como o Veritatis o apontam como
defensor da virgindade perpétua de Maria:
(1) Maria, a mãe do
Senhor; (2) Maria, a esposa de Cléofas ou Alfeu, que era mãe de Tiago, bispo e apóstolo, de Simão, de Tadeu e de um dos
que se chamavam José; (3) Maria Salomé, esposa de Zebedeu, mãe de João, o
evangelista, e Tiago; (4) e Maria Madalena. Estas quatro mulheres são
encontradas no Evangelho. Tiago, Judas e José são filhos de uma tia do Senhor. Maria, mãe de Tiago, o menor, e José,
esposa de Alfeu, era irmã de Maria, mãe do Senhor, e que João liga a
Cléofas; eram irmãs por parte de pai,
por parte da família do clã ou por outra ligação qualquer. Maria Salomé é
chamada simplesmente por Salomé por causa de seu marido ou de seu vilarejo. Alguns afirmam que ela é a mesma pessoa que
Maria de Cléofas, já que teria se casado duas vezes. (Fragmento 10)
Papias
não fez nenhuma afirmação a favor da virgindade perpétua. Ele apenas parece
afirmar que os supostos filhos de Maria eram na verdade filhos de uma irmã de
Maria (no caso Maria de Cleofas). Além disso, há outros problemas:
(1)
Como
o próprio Veritatis reconhece, a autenticidade desse fragmento (e de outros
mais) é disputada. B.F. Westcott é um dos estudiosos que adota essa posição;
(2)
Mesmo
concedendo que seja autêntico, restam os seguintes problemas:
(a)
Papias
diz que Maria mãe de Jesus e Maria de Cleofas eram irmãs. É extremamente
improvável que duas irmãs tivessem o mesmo nome;
(b)
É evidente que Papias não tinha acesso a uma tradição confiável, o que vemos
nesse trecho: “Alguns afirmam que ela é a mesma pessoa que Maria de Cléofas, já
que teria se casado duas vezes”. Papias não expressa certeza a respeito dessa
informação. Além do mais, a própria hipótese está errada, uma vez que em João
19:25, Mateus 27:56 e Marcos 15:40 (passagens que retratam as mulheres aos pés
da cruz) demonstram que Maria de Cleofas e Salomé eram personagens distintos;
(c)
Ele parece identificar Tiago (irmão do senhor) como Tiago filho de Zebedeu ao
chama-lo de bispo e apóstolo. A partir dos dados do Novo Testamento, sabemos
certamente que se trata de pessoas distintas.
Hegésipo (110-180)
Hegésipo
se refere a Judas “como irmão do senhor segundo a carne” (História Eclesiástica
3:20). Em outro lugar, ele se refere a Simeão “um primo do Senhor” (HE 4:22). Ele
conhecia a diferença dos termos gregos para irmão e primo e se referiu a Judas
como “segundo a carne” e também a Tiago como “irmão do senhor” (HE 2:23:4). A
teóloga católica Ruether afirma:
Sua frase "seu
irmão segundo a carne" decisivamente aponta para a tradição de Jerusalém que esses irmãos eram conhecidos como os
irmãos de Jesus.
(Citado em Eric Svendsen, Who Is My Mother?
[Amityville, New York: Calvary Press, 2001], pp. 66)
O renomado estudioso católico John P. Meier escreve:
(...) no século II, por exemplo, Hegésipo, um convertido do judaísmo, provavelmente vindo da Palestina parece ter considerado os irmãos e irmãs de Jesus como sendo verdadeiros irmãos, distintos dos primos e tios que Hegésipo também menciona. (Meier, John P. "A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus". p. 360, footnote 39)
O renomado estudioso católico John P. Meier escreve:
(...) no século II, por exemplo, Hegésipo, um convertido do judaísmo, provavelmente vindo da Palestina parece ter considerado os irmãos e irmãs de Jesus como sendo verdadeiros irmãos, distintos dos primos e tios que Hegésipo também menciona. (Meier, John P. "A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus". p. 360, footnote 39)
Proto-Evangelho de
Tiago (150?)
Não
se sabe ao certo a data correta da criação do proto-evangelho de Tiago, mas a
maioria dos estudiosos concorda que se trata de uma compilação (no séc. III) de
narrativas apócrifas do séc. II. Uma tradução em português pode ser vista aqui. Católicos costumam
citá-lo como testemunha da virgindade perpétua, porém essa evidência tem sérios
problemas:
(1)
Ele afirma que José era um homem velho que já tinha filhos quando recebeu Maria
como esposa. Isso daria suporte à tese de que os irmãos de Jesus eram filhos de
um casamento anterior. Ocorre que essa não é a tese de Jerônimo adotada pela
maioria dos apologistas católicos. Os irmãos de Jesus seriam primos ou parentes
distantes;
(2)
José fala no cap. 17 sobre seus filhos sem mencionar filhas. Nós, porém,
sabemos que Jesus também tinha irmãs (Marcos 6:3). O cap. 18 menciona apenas
dois filhos de José, mas sabemos que Jesus tinha mais de dois irmãos. De onde
vieram então os outros irmãos e irmãs de Cristo?
(3)
Ele menciona que Maria foi virgem no parto (Cap. 19:3-20:1), mas não afirma que
Maria permaneceu virgem para sempre. Essa informação pode chocar alguns ouvidos
dado que o proto evangelho de Tiago é sempre citado em apoio à virgindade
perpétua, mas em nenhum lugar é afirmado que Maria não teve outros filhos ou
não teve um casamento normal;
(4)
Ele sugere que Maria não tinha feito nenhum voto de virgindade perpétua, uma
vez que ela se pergunta se vai conceber por meio de relações sexuais (Cap. 11).
Também relata que após receber a visita do anjo, Maria ainda permanecia ignorante
sobre a obra realizada por Deus. No sexto mês de gravidez, quando José descobre
que Maria estava grávida, ela responde: “Respondeu Maria: ¨Juro pelo Senhor,
meu Deus, que não sei como isto se sucedeu¨ (Cap. 13). Como Maria poderia não
saber? Ela já havia recebido a visita do anjo;
(5)
As contradições entre o relato do proto-evangelho e dos Evangelhos canônicos
são explícitas e irresolúveis:
Proto-Evangelho de
Tiago
|
Evangelhos
canônicos
|
Gabriel é descrito como um arcanjo (Cap. 12)
|
Gabriel nunca é descrito como um arcanjo,
mas sim Miguel (Judas 1:9)
|
A resposta de Maria ao anjo é diferente: “Conceberei
por graça do Deus vivo e darei à luz como as demais mulheres?¨ (9:12)
|
Lucas 1:34 afirma: Perguntou Maria ao anjo:
"Como acontecerá isso, se sou virgem? "
|
Isabel fugiu de Belém com seu filho João
(Batista) para as montanhas por causa da ira de Herodes quando decidiu matar
todos os meninos. (Cap. 22:3).
|
Lucas 1:80 afirma: “E o menino crescia e se
fortalecia no espírito; e viveu no deserto, até aparecer publicamente a
Israel.”
|
Jesus nasceu numa caverna fora da cidade de
Belém (Cap. 18:1)
|
Jesus nasceu em Belém, a cidade de Davi, de
acordo com Lucas 2:4 e Mateus 2:1
|
O anjo do Senhor, quando fala a José em
sonho diz-lhe para receber Maria, mas não menciona tê-la como esposa. O sacerdote
castiga Jose e o acusa de tomar Maria como esposa secretamente. Jose a leva
para sua casa, mas está relutante em chamá-la de sua esposa quando eles vão a
Belém (Capítulos Caps. 13-16).
|
Mateus 1:19 revela que Jose já era o marido
de Maria (eles já estavam noivos) antes de o anjo visita-lo em sonho. Mateus
1:24 aponta que depois que o anjo visitou José, ele a manteve como esposa.
|
Maria envolveu Jesus em panos e o escondeu
numa manjedoura na pousada para salvá-lo do massacre de Herodes. (Cap. 22)
|
Maria e José foram avisados da trama de
Herodes por um anjo e então fugiram para o Egito (Mateus 2:13-14).
|
Os sábios foram a Belém perguntar onde
tinha nascido o rei dos judeus. (Cap. 21)
|
Os sábios chegaram a Jerusalém e perguntaram
onde tinha nascido o rei dos judeus. (Mateus 2:1)
|
(6)
O protoevangelho de Tiago é um relato historicamente não confiável. As
histórias que ele traz não passam de lendas. Outro livro apócrifo chamado
“Ascensão de Isaías”, com clara influência gnóstica, também afirma a virgindade
no virgindade no parto, sem afirmar a virgindade pós-parto. Todos esses relatos
são fantasiosos. Eric Svendsen cita vários estudiosos, inclusive católicos, que
afirmam o caráter lendário dessas obras:
Tanto o
protoevangelho de Tiago como o Evangelho da Infância de Tomé são na própria
admissão de Bauckham "certamente
obras da imaginação, não da historiografia". E ambos, juntamente com o
Evangelho de Pedro, são obras apócrifas
de valor histórico duvidoso [segundo Meier]. Meier caracteriza o
proto-evangelho de Tiago como "uma
imaginativa narrativa popular que é escandalosamente incorreta sobre eventos do
NT bem como as coisas judaicas" (1992:16). Similarmente, Elliott
(1993:51) nos diz em seu prefácio ao proto-evangelho de Tiago que seu valor histórico é
"insignificante", citando inúmeras imprecisões e inconsistências.
Graef (1964:36), que é solidário à visão católica romana de Maria, observa que
este documento revela "grande
ignorância sobre as condições dos judeus" sendo, portanto, de "pouca
importância teológica." (Op. Cit., p. 70)
Ireneu de Lyon
(130-202)
E como a substância
de Adão, o primeiro homem plasmado, foi
tirada da terra simples e ainda virgem - "Deus ainda não fizera chover
e o homem ainda não a trabalhara” - e foi modelado pela mão de Deus, isto é,
pelo Verbo de Deus com efeito, "todas as coisas foram feitas por ele”, e o
"Senhor tomou do lodo da terra e modelou o homem”, assim o Verbo que
recapitula em si Adão, recebeu de Maria,
ainda virgem, a geração da recapitulação de Adão. (Contra as Heresias
3:21:10)
O
paralelo implica que Maria não permaneceu virgem. Adão foi formado a partir da
terra ainda virgem. Da mesma forma, Cristo foi formado a partir de Maria ainda
virgem. Ocorre que a terra deixou de ser virgem, logo Maria teria também
deixado de ser. Ninguém que acreditasse em algo como a virgindade perpétua
(ainda mais se fosse um artigo de fé) faria esse tipo de paralelo.
Único e idêntico é,
pois, o Espírito de Deus que nos profetas anunciou as características da vinda
do Senhor e que nos anciãos traduziu bem as coisas profetizadas. Foi ainda ele
que, pelos apóstolos, anunciou ter chegado a plenitude dos tempos da adoção
filial, que o Reino dos céus estava próximo e que se encontrava dentro dos
homens que criam no Emanuel nascido da Virgem. Assim eles testemunharam que antes que José se juntasse à Maria, enquanto
ela era ainda virgem, achou-se grávida pelo Espírito Santo. (Ibid., 3:21:4)
Irineu
faz alusão a Mateus 1:18. Ele compreendeu que após se juntar a José, Maria
passou a ter um casamento normal. Maria era “ainda” virgem até se juntar a
José, o que implica que ela não permaneceu nesse estado após se juntar a ele.
Os apologistas católicos por sua vez trazem uma citação que provaria o
contrário:
Como por uma virgem
desobediente foi o homem ferido, caiu e morreu, assim também por meio de uma
virgem obediente à palavra de Deus, o homem recobrou a vida. Era justo e
necessário que Adão fosse restaurado em Cristo, e que Eva fosse restaurada em
Maria, a fim de que uma virgem feita advogada de uma virgem, apagasse e
abolisse por sua obediência virginal a desobediência de uma virgem. (Ibid., 5:19:1)
Do
paralelo entre Maria e Eva os católicos tiram falsas implicações. Essa passagem
é utilizada para provar os dogmas marianos. Nenhum elemento desse paralelo implica
que Maria foi sempre virgem ou teve uma concepção imaculada ou ascendeu aos
céus. Basta observar que Irineu qualifica Maria como uma virgem se referindo ao
seu ato de obediência. A questão é – quando esse ato de obediência ocorreu?
Outra passagem clarifica:
Da mesma forma,
encontramos Maria, a Virgem obediente,
que diz: "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua
palavra", e, em contraste, Eva, que desobedeceu quando ainda era virgem. Como esta, ainda virgem se bem que casada
- no paraíso estavam nus e não se envergonhavam, porque, criados há pouco tempo
ainda não pensavam em gerar filhos, sendo necessário que, primeiro, se tomassem adultos antes se
multiplicassem -, pela sua desobediência se tornou para si e para todo o gênero
humano causa da morte, assim Maria, tendo por esposo quem lhe fora predestinado
e sendo virgem, pela sua obediência se tomou para si e para todo o gênero
humano causa de salvação. (Ibid., 3:22:4)
O
ato de obediência referido ocorre na anunciação do anjo, quando Maria de fato
ainda era virgem. Por outro lado, nada implica que ela permaneceria nesse
estado para sempre. Se alguma implicação pudesse ser tirada, a mais provável
seria afirmar que ela não permaneceu virgem, afinal Eva (o outro elemento do
paralelo) não permaneceu virgem. Não creio que essa seja uma implicação válida,
mas seria mais plausível do que afirmar a virgindade perpétua.
Clemente de Alexandria (150-215)
Mas, como parece, muitos mesmo
até ao nosso próprio tempo consideram Maria, por causa do nascimento da sua
criança, como tendo estado na condição puerperal, embora não o tenha
estado. Pois alguns dizem que, depois de parir, se a achou ainda virgem quando
foi examinada. (Stromata 7:16)
Clemente de fato expressa sua crença pessoal
na virgindade no parto, mas não dispomos de evidência confiável sobre sua
crença na virgindade pós-parto. Todavia, ele afirma que essa opinião é negada por
muitos de seu tempo. Destaca-se que ele se referia a cristãos. Na verdade, a
virgindade no parto era uma crença presente entre os hereges docetistas. Mas
porque Clemente cria que o parto de Maria não foi normal? Juniper Carol – o
estudioso católico e editor responsável por uma obra de referência sobre
Mariologia – escreve:
As observações de Clemente sobre Nossa Senhora são breves. Se a adaptação Latina de Clemente,
Adumbrationes em epistolas catholicas, expressa suas opiniões pessoais com
precisão, ele certamente realizava a
virgindade pós-parto de Maria (147) e, portanto, pode muito bem ter sido um
daqueles ascetas, mencionado por Orígenes, que se recusaram absolutamente a
admitir a possibilidade de Maria de ter tido outros filhos depois do nascimento
de Cristo. Não pode haver dúvida sobre o nascimento virginal. Clemente o
sustentava explicitamente. Ele afirmava
que não foi acreditado por um grande número, que desejavam manter que o
nascimento de Cristo em relação à Sua mãe era perfeitamente normal e natural
(...) Muito menos há alguma evidência de que o docetismo foi responsável pela
doutrina de Clemente sobre o nascimento virginal, que foi provavelmente muito influenciada por essas diferentes fontes
apócrifas que serviram de base para a compilação agora conhecido como proto
evangelho de Tiago. (Juniper B. Carol, Mariologia, vol. II)
A opinião de Clemente sobre a virgindade no
parto foi influenciada pelo proto evangelho, ou seja, uma base histórica nada
confiável. Sobre a crença de Clemente na virgindade pós-parto, segue abaixo a
nota de rodapé n. 147:
Adumbrationes em epistolas catholicas; PG, 9, 731. Estas Adumbrationes
são apenas uma adaptação latina de Hypotypses de Clemente. Nós não podemos confiar absolutamente neste texto, uma vez que é uma
adaptação traduzida com a intenção expressa de expurgar qualquer coisa que
possa ser ofensiva, cf. PG, 70, 1120. Por outro lado, não há nenhuma
indicação de que na questão da virgindade de Maria havia qualquer correção às
próprias palavras de Clemente. Podemos notar que os textos de Clemente citados
por Eusébio (Historia Ecclesiastica, II, 1, 3-4 f., 9, 2 e seguintes) são, infelizmente, demasiado vagos para ser
decisivo e dissipar qualquer hesitação.
Carol admite que a fonte não seja decisiva e sobre
ela pairam dúvidas.
Tertuliano de Cartago
(160-220)
Sobre
Tertuliano e Orígenes (tratado mais adiante), o blog protestante Conhecereis a
Verdade já fez um ótimo trabalho aqui e aqui.
Por isso, vou repetir o material que ele trouxe e fazer alguns acréscimos.
Tertuliano foi o primeiro a tratar da questão de forma mais explícita. Ele nega
a virgindade no parto e pós-parto:
As duas sacerdotisas
de santidade cristã, a monogamia e a castidade: uma modesta em Zacarias o
sacerdote, outra absoluta em João o mensageiro: uma apazigua Deus; outra prega
Cristo; uma proclama um sacerdote perfeito; outra exiba "mais do que um
profeta" - ele que não só tem pregado ou pessoalmente apontado, mas batizou
Cristo. Pois quem era mais digno de realizar o rito inicial sobre o corpo do
Senhor, do que carne semelhante em tipo àquela que concebeu e deu à luz esse
[corpo]? E na verdade era uma virgem,
prestes a casar-se uma vez por todas depois do seu parto, que deu à luz
Cristo, para que cada título de
santidade pudesse cumprir-se na parentela de Cristo, por meio de uma mãe que era tanto virgem, como esposa de um só marido. (Sobre a
Monogamia 8)
O
argumento é bem sútil. As duas principais características da santidade eram a
monogamia e a castidade. Ele então aponta dois exemplos de cada uma: Zacarias
pai de João Batista (exemplo de Monogamia) e o próprio João (exemplo de
castidade). O ponto chave é a afirmação “para que cada título de santidade
pudesse cumprir-se na parentela de Cristo”. Maria deveria experimentar tanto o
estado virginal como o monogâmico. Percebam que Zacarias casou e obviamente
teve relações maritais – o mesmo tipo de vida marital que Maria deveria viver.
Todo o argumento pressupõe que Maria teve um casamento normal nesse aspecto. A
inferência óbvia é que se refere ao texto evangélico de Mateus 1:25, "e
não a conhecia até que ela deu à luz um filho; e pôs-lhe o nome de Jesus".
Em outras palavras, o matrimônio não se consumou até depois do parto. Este
sentido é o único compatível com o fato de Tertuliano ter insistido
repetidamente que Jesus tinha irmãos.
Ele
também coloca tanto a monogamia como a santidade como iguais estados de
santidade. O equívoco que levou pais da igreja do séc. IV (como Jerônimo e
Agostinho) a projetarem em Maria a virgindade perpétua foi a ideia de que a
virgindade fosse superior ao casamento. Tertuliano, uma testemunha muito mais
próxima da era apostólica, não concordaria com isso. John P. Meier (padre e um
dos maiores estudiosos bíblicos do séc. XX) escreve:
O paralelo com
Zacarias sugere naturalmente a relação
sexual normal e fértil. (Op. Cit., p. 68)
“Quem é minha mãe e
meus irmãos?” (...) Ele estava justamente indignado de que pessoas tão próximas d`Ele “permanecessem fora”, enquanto
uns estranhos estivessem dentro aferrando-se às Suas palavras. Isto é particularmente assim dado que sua
mãe e seus irmãos desejavam apartá-lo da obra solene que tinha entre mãos.
Mais que negá-los, Ele os desautorizou. Portanto, à pergunta prévia, “Quem é
minha mãe, e quem são meus irmãos?” acrescentou a resposta: “Ninguém senão os
que ouvem as minhas palavras e as praticam”. Deste modo transferiu os nomes das relações consanguíneas a
outros que considerava mais estreitamente relacionados com Ele por causa da fé
deles (...) Não é surpreendente que preferisse gente de fé aos seus próprios
parentes, que não possuíam tal fé. (Contra Marcião 4:19).
Todo
argumento implica que os irmãos de Jesus eram de fato irmãos de sangue e, portanto,
filhos de Maria. Tertuliano interpreta Mateus 12:46-50. Ele capta o correto
sentido da passagem. Jesus opôs os lanços familiares e sanguíneos aos laços
espirituais. Era mais valoroso ser um crente em Jesus do que ser um familiar.
Toda essa passagem do evangelho perderia o sentido caso se tratassem apenas de
primos ou parentes mais distantes. Tertuliano explicitamente nega a virgindade
no parto:
Ela que pariu, pariu;
e embora fosse uma virgem quando
concebeu, era uma esposa (nupsit) quando deu à luz a seu filho. Ora, como
uma esposa, ela estava sob a própria lei
da "abertura do ventre" pelo que foi completamente irrelevante se o
nascimento do varão foi por causa da cooperação do marido ou não; foi o
mesmo sexo [o varão] que abriu o seu
ventre. Na verdade, seu é o ventre por causa do qual está escrito de outros
também: "Todo varão que abra o ventre será chamado santo para o
Senhor". Pois, quem é realmente santo senão o Filho de Deus? Quem abriu propriamente o ventre senão Aquele que abriu um que estava
fechado? Mas é o matrimónio que abre o ventre em todos os casos. O ventre
da virgem, portanto, foi especialmente
aberto, porque estava especialmente fechado. Na verdade, ela devia ser
chamada não (simplesmente) uma virgem, mas uma virgem tornando-se uma mãe num
pulo, por assim dizer, antes de ser uma esposa. E que mais deve dizer-se sobre
este ponto? Já que foi neste sentido que o apóstolo declarou que o Filho de
Deus nasceu, não de uma virgem, mas "de uma mulher", ele em tal afirmação reconheceu a condição
do "ventre aberto" que tem lugar no matrimónio. (Da Carne de Cristo
23)
O
parto de Maria foi natural. Ela teve seu “ventre aberto”. Na mesma obra,
escreve:
Primeiro de tudo,
ninguém teria dito a ele que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora, se ele não estivesse certo de que tinha uma
mãe e irmãos, e que eles eram as pessoas a quem estava anunciando. (ibid., 7)
Substitua
irmãos por primos e perceba como todo o argumento e o próprio relato evangélico
perde o sentido. Ruether escreve:
Ele assume que eles eram filhos naturais de Maria e José, nascidos após o nascimento de Jesus, e ele
não está ciente de nenhuma tradição ortodoxa em contrário. (Op. Cit., p. 67)
Importa
notar que Tertuliano estava escrevendo contra os docetistas. Ou seja, a posição
da virgindade de Maria no parto não encontra apoio nos escritos apostólicos,
mas é primeiramente formulada por hereges. Não por acaso, os apologistas
católicos usam literatura apócrifa do séc. II (protoevangelho de Tiago,
ascensão de Isaías) para provar essa doutrina. Católicos não costumam negar o
testemunho claro de Tertuliano. Eles geralmente o desqualificam. Alegam que ele
aderiu ao montanismo e abandonou a igreja, se tornando um herege. Esse
argumento tem os seguintes problemas:
(1)
É um argumento hipócrita. Os apologistas católicos citam Tertuliano (geralmente
de forma distorcida) em favor de suas doutrinas com frequência aqui, aqui e aqui. É algo tão
descarado que o site apologistas católicos diz sobre Tertuliano:
Os escritos de Tertuliano (assim como os escritos dos Padres da Igreja e outros
escritores eclesiásticos) são muito importantes, não só para os estudantes da
patrística e patrologia, porque permitem
conhecer a fundo o pensamento da Igreja primitiva e sua forma de interpretar as
Escritura.
(Fonte)
E
também:
Tertuliano, o eminente pai da igreja menciona, por
volta do ano 218
(...) [Se foi em 218, já se tratava da fase montanista de Tertuliano]
Mas
no artigo sobre a virgindade perpétua:
Definitivamente Tertuliano não é uma boa fonte contra a
Igreja e chega ser desonesto usá-lo. Sobre ele São Jerônimo nem perdeu
tempo, apenas disse: “De Tertuliano não direi senão que não pertenceu à
Igreja.”
Como
ele próprio disse, Tertuliano é uma importante fonte para entender o pensamento
da igreja primitiva. Nós usamos Tertuliano não para atacar as doutrinas da
igreja a qual ele pertencia, essa não era romana e não acreditava na virgindade
perpétua como um artigo de fé. A igreja que Tertuliano contraria é a romana, que apostatou da fé católica primitiva.
(2)
A importância histórica de Tertuliano é indubitável. Ele foi o primeiro pai da
igreja a tratar de forma mais explícita a virgindade perpétua de Maria. A
evidência patrística mais próxima dos apóstolos a tratar explicitamente a
questão nega o dogma;
(3)
A adesão de Tertuliano ao montanismo é um argumento irrelevante. Não há
evidência de que ele cria na virgindade perpétua e então passou a não crer
nessa doutrina. Não há em seus escritos mais antigos qualquer referência a essa
doutrina. Além disso, não há qualquer evidência de que o montanismo repudiasse
a virgindade perpétua de Maria. Pelo contrário, o montanismo era um grupo
moralmente rigorista, portanto, eles estariam mais propensos a terem uma
opinião positiva sobre a virgindade. Se alguma mudança tivesse ocorrido, seria
no sentido de passar a crer na virgindade perpétua e não o contrário;
(4)
Tertuliano nunca deixou de fato a igreja. Ele se tornou um crítico das práticas
cada vez mais flexíveis da igreja para com os que pecavam após o batismo, mas
nunca a deixou para montar um grupo cismático. A afirmação de Jerônimo de que
ele não era mais um homem da igreja é falsa. O teólogo e padre católico Francis
Sullivan escreveu:
Deve-se notar, contudo, que Tertuliano permaneceu ortodoxo em relação aos dogmas cristãos
fundamentais, e enquanto rejeitou algumas reinvindicações feitas por bispos
católicos, não há evidência de que tenha
deixado a Igreja Católica para se juntar ou formar um grupo cismático. (From Apostles to Bishops: the development of
the episcopacy in the early church. Newman Press, Mahwah
(NJ), 2001, pp. 155-156)
Isso
é tão verdade que ele escreveu sua famosa fórmula trinitária depois de se
tornar montanista. O erudito ortodoxo John McGuckin escreve:
Por volta de 205 seus
[de Tertuliano] escritos mostram um respeito cada vez maior às ideias
Montanistas, mas o estilo de Montanismo que era então influente no Norte da
África era uma forma muito moderada do movimento original da Ásia Menor, e não há nenhuma indicação clara de que ele
saiu da comunidade católica. (The
Westminster Handbook To Patristic Theology [Louisville, Kentucky: Westminster
John Knox Press, 2004], p. 325)
(5)
Embora alguns pais da igreja posteriores (Jerônimo) tivesse uma
opinião negativa sobre Tertuliano, outros pensavam o contrário. O próprio
Jerônimo escreve sobre a elevada opinião de Cipriano sobre Tertuliano:
Eu mesmo vi um certo
Paulo, um velho de Concordia - uma cidade da Itália, que quando era um homem
muito jovem, tinha sido secretário do beato Cipriano que já estava em idade
avançada. Ele disse que tinha visto como
Cipriano estava acostumado a nunca passar um dia sem ler Tertuliano, e que
frequentemente lhe dizia: "Dá-me o mestre," significando com isso
Tertuliano.
(Vidas dos homens ilustres 53)
O renomado erudito patrístico Hans von Campenhausen escreve:
No Ocidente antes de Hilário - isto é, até meados do século IV - não há nenhuma testemunha para a "sempre virgem" [virgindade perpétua], o que dificilmente pode ser um mero acaso (...) Hipólito também se refere aos "irmãos de Jesus" como os filhos de José e Maria (...) [citando Hipólito:] "Ele [Jesus] não reconheceu como irmãos aqueles que eram considerados como seus irmãos de acordo com a carne. O redentor não os reconheceu, porque na verdade aqueles não [eram] os seus irmãos que nasceram de José através da semente, mas da Virgem e do Espírito Santo; e eles os consideravam como seus irmãos, mas ele não os reconhecia." (The Virgin Birth In The Theology Of The Ancient Church [Eugene, Oregon: Wipf & Stock, 2011], n. 4 on 48-9)
Hans aponta essa citação de Hipólito a partir de uma obra ainda não traduzida para o inglês (até onde eu sei). Hipólito afirma que as pessoas olhavam para aqueles como irmãos de Cristo, mas ele não os reconhecia como irmãos porque não eram nascidos da virgem e do Espírito Santo. Veja que o argumento é que os irmãos de Jesus não tiveram uma concepção virginal, e não que eles não eram filhos de Maria. Campenhausen afirma que Hipólito negou a virgindade perpétua. No entanto, Hipólito é apresentado por alguns sites católicos como testemunha da virgindade perpétua no século III:
Mas a confissão piedosa do crente é que, tendo em vista a nossa salvação, e a fim de conectar o universo com o imutável, o Criador de todas as coisas incorporou a si próprio uma alma racional e um corpo sensível da toda santa Maria, sempre virgem, por uma concepção imaculada, sem conversão, e se fez homem na natureza, mas separado da maldade: o mesmo era Deus perfeito e homem perfeito; o mesmo era na natureza perfeitamente Deus e homem. (Fragmento 8)
Esse é o fragmento 8 de uma da obra cujo título é “Contra Beron e Helix”. Ela foi escrita para refutar mestres valentinianos. O tema central do livro é a natureza humana e divina de Cristo. Não consideramos que esta seja uma evidência confiável da virgindade perpétua porque Hipólito está se referindo ao momento da encarnação de Cristo. Nesse momento, ele recebeu um “corpo sensível” da "sempre virgem" Maria. Obviamente até esse ponto, Maria poderia ser chamada de "sempre virgem", o que não implica que ela permaneceu virgem por toda a vida. Seria como alguém dizer: “até ingressar na faculdade, eu sempre fui um bom aluno”. Estudiosos patrísticos de renome pensam o mesmo, como o já citado Campenhausen que afirma que Hipólito negou a ideia. Ainda podemos citar o estudioso católico Carol:
É lamentável que nós não tenhamos nenhum testemunho claro de seus contemporâneos, como Santo Hipólito. No Ocidente, Cipriano, Novaciano, Arnóbio e Lactâncio, como já mencionado, não contribuem em nada positivo; o mesmo acontece com Gregório o taumaturgo e Denis de Alexandria no Oriente. Embora um defensor das práticas ascéticas da virgindade, Metódio é tão vago quanto Hipólito sobre a virgindade de Maria. (Ibid)
Carol é um especialista e com certeza conhecia essa citação de Hipólito. Ele escreve na nota de rodapé n. 152:
Os textos mais pertinentes que conhecemos de Hipólito relativos à virgindade de Maria são extratos da "A Arca da Aliança" (conservado por Teodoreto); cf. a edição em Griechische christliche Schriftsteller, publicado pela Kirchenvater Kommission da Academia Prussiana, Vol. 1, Parte 2 (Leipzig), p. 146 f.; Também PG, 1, 83, 85-88. Há também uma passagem da Benedictiones Moysis, se alguém pode invocar a versão georgiana que temos em Texte und Untersuchungen, Vol. 26, Parte 1, p. 75. Os dois textos não são definitivos a favor ou contra a virgindade de Maria. Cf. Também G. Jouassard, art. cit. (Supra, nota 129), Vol. 12, 1932, pp. 509-532 e Vol. 13, 1933, pp. 25-37. (Ibid)
Carol ainda cita outro especialista católico – G. Jouassard. Ou seja, mesmo estudiosos católicos não colocam Hipólito como testemunha da doutrina romana. Importa observar que Carol sequer coloca a citação em questão entre aquelas que favoreceriam o dogma mariano. Ele não afirma em seu livro, mas é possível que considerasse a expressão sempre virgem (ἀειπαρθένου) uma adição espúria nas obras de Hipólito. Entre as obras espúrias ou duvidosas, encontramos a mesma interpolação. Pode ser visto aqui no capítulo XXII. Na nota de rodapé n. 150 está escrito:
Num códice B lê-se “Imaculada sempre virgem Maria”.
Leve-se em conta que a expressão “sempre virgem” não foi utilizada por nenhum pai da igreja anterior (séc. II), contemporâneo (séc. III) ou nos 100 anos seguintes a morte de Hipólito. O primeiro a utilizar esse termo seria Epifânio (séc. IV). Dessa forma, é muito provável que se trate de uma interpolação de algum tradutor.
Carol ainda cita vários outros pais da igreja e expressa que a virgindade perpétua não encontra nenhum testemunho a favor. Essa ausência é relevante pelos motivos já tratados e pela natureza da alegação católica romana. Se de fato a virgindade perpétua é uma daquelas doutrinas legadas pelos apóstolos através da tradição oral e mantida como artigo de fé pela igreja, tais omissões são inexplicáveis. Isso nos permite concluir que para os três primeiros séculos do cristianismo não dispomos de nenhum testemunho confiável a favor da virgindade perpétua de Maria, muito menos como um artigo de fé obrigatório para os cristãos.
Hipólito de Roma (170-235)
O renomado erudito patrístico Hans von Campenhausen escreve:
No Ocidente antes de Hilário - isto é, até meados do século IV - não há nenhuma testemunha para a "sempre virgem" [virgindade perpétua], o que dificilmente pode ser um mero acaso (...) Hipólito também se refere aos "irmãos de Jesus" como os filhos de José e Maria (...) [citando Hipólito:] "Ele [Jesus] não reconheceu como irmãos aqueles que eram considerados como seus irmãos de acordo com a carne. O redentor não os reconheceu, porque na verdade aqueles não [eram] os seus irmãos que nasceram de José através da semente, mas da Virgem e do Espírito Santo; e eles os consideravam como seus irmãos, mas ele não os reconhecia." (The Virgin Birth In The Theology Of The Ancient Church [Eugene, Oregon: Wipf & Stock, 2011], n. 4 on 48-9)
Hans aponta essa citação de Hipólito a partir de uma obra ainda não traduzida para o inglês (até onde eu sei). Hipólito afirma que as pessoas olhavam para aqueles como irmãos de Cristo, mas ele não os reconhecia como irmãos porque não eram nascidos da virgem e do Espírito Santo. Veja que o argumento é que os irmãos de Jesus não tiveram uma concepção virginal, e não que eles não eram filhos de Maria. Campenhausen afirma que Hipólito negou a virgindade perpétua. No entanto, Hipólito é apresentado por alguns sites católicos como testemunha da virgindade perpétua no século III:
Mas a confissão piedosa do crente é que, tendo em vista a nossa salvação, e a fim de conectar o universo com o imutável, o Criador de todas as coisas incorporou a si próprio uma alma racional e um corpo sensível da toda santa Maria, sempre virgem, por uma concepção imaculada, sem conversão, e se fez homem na natureza, mas separado da maldade: o mesmo era Deus perfeito e homem perfeito; o mesmo era na natureza perfeitamente Deus e homem. (Fragmento 8)
Esse é o fragmento 8 de uma da obra cujo título é “Contra Beron e Helix”. Ela foi escrita para refutar mestres valentinianos. O tema central do livro é a natureza humana e divina de Cristo. Não consideramos que esta seja uma evidência confiável da virgindade perpétua porque Hipólito está se referindo ao momento da encarnação de Cristo. Nesse momento, ele recebeu um “corpo sensível” da "sempre virgem" Maria. Obviamente até esse ponto, Maria poderia ser chamada de "sempre virgem", o que não implica que ela permaneceu virgem por toda a vida. Seria como alguém dizer: “até ingressar na faculdade, eu sempre fui um bom aluno”. Estudiosos patrísticos de renome pensam o mesmo, como o já citado Campenhausen que afirma que Hipólito negou a ideia. Ainda podemos citar o estudioso católico Carol:
É lamentável que nós não tenhamos nenhum testemunho claro de seus contemporâneos, como Santo Hipólito. No Ocidente, Cipriano, Novaciano, Arnóbio e Lactâncio, como já mencionado, não contribuem em nada positivo; o mesmo acontece com Gregório o taumaturgo e Denis de Alexandria no Oriente. Embora um defensor das práticas ascéticas da virgindade, Metódio é tão vago quanto Hipólito sobre a virgindade de Maria. (Ibid)
Carol é um especialista e com certeza conhecia essa citação de Hipólito. Ele escreve na nota de rodapé n. 152:
Os textos mais pertinentes que conhecemos de Hipólito relativos à virgindade de Maria são extratos da "A Arca da Aliança" (conservado por Teodoreto); cf. a edição em Griechische christliche Schriftsteller, publicado pela Kirchenvater Kommission da Academia Prussiana, Vol. 1, Parte 2 (Leipzig), p. 146 f.; Também PG, 1, 83, 85-88. Há também uma passagem da Benedictiones Moysis, se alguém pode invocar a versão georgiana que temos em Texte und Untersuchungen, Vol. 26, Parte 1, p. 75. Os dois textos não são definitivos a favor ou contra a virgindade de Maria. Cf. Também G. Jouassard, art. cit. (Supra, nota 129), Vol. 12, 1932, pp. 509-532 e Vol. 13, 1933, pp. 25-37. (Ibid)
Carol ainda cita outro especialista católico – G. Jouassard. Ou seja, mesmo estudiosos católicos não colocam Hipólito como testemunha da doutrina romana. Importa observar que Carol sequer coloca a citação em questão entre aquelas que favoreceriam o dogma mariano. Ele não afirma em seu livro, mas é possível que considerasse a expressão sempre virgem (ἀειπαρθένου) uma adição espúria nas obras de Hipólito. Entre as obras espúrias ou duvidosas, encontramos a mesma interpolação. Pode ser visto aqui no capítulo XXII. Na nota de rodapé n. 150 está escrito:
Num códice B lê-se “Imaculada sempre virgem Maria”.
Leve-se em conta que a expressão “sempre virgem” não foi utilizada por nenhum pai da igreja anterior (séc. II), contemporâneo (séc. III) ou nos 100 anos seguintes a morte de Hipólito. O primeiro a utilizar esse termo seria Epifânio (séc. IV). Dessa forma, é muito provável que se trate de uma interpolação de algum tradutor.
Carol ainda cita vários outros pais da igreja e expressa que a virgindade perpétua não encontra nenhum testemunho a favor. Essa ausência é relevante pelos motivos já tratados e pela natureza da alegação católica romana. Se de fato a virgindade perpétua é uma daquelas doutrinas legadas pelos apóstolos através da tradição oral e mantida como artigo de fé pela igreja, tais omissões são inexplicáveis. Isso nos permite concluir que para os três primeiros séculos do cristianismo não dispomos de nenhum testemunho confiável a favor da virgindade perpétua de Maria, muito menos como um artigo de fé obrigatório para os cristãos.
Resumo do segundo século
Católicos alegam que a virgindade perpétua de
Maria é uma tradição de origem apostólica sempre crida pela igreja. Após
varrermos a evidência do segundo século, percebemos que essa não é a realidade.
Nenhum pai da igreja desse período defendeu a virgindade perpétua. O máximo que
se pode encontrar é o testemunho da virgindade no parto em Clemente de
Alexandria que derivava de uma fonte nenhum pouco confiável. E mesmo em
Clemente, é evidente que essa opinião não era um artigo de fé. Muitos cristãos
ortodoxos da época não criam no mesmo.
Por outro lado, temos afirmação explícita de
Tertuliano contra a virgindade no parto e pós-parto. Apesar de todas as
tentativas de desqualificar seu testemunho, trata-se da evidência antiga e
confiável sobre a questão. Além de Tertuliano, temos as prováveis posições de
Irineu e Hegésipo. Os papistas geralmente subestimam a falta de evidência para
sua doutrina, porém essa ausência é relevante. Isso se dá porque a concepção
virginal de Cristo já era considerada um artigo de fé. Pense bem, se eles já
consideravam o primeiro elemento da doutrina romana um artigo de fé (a
virgindade antes do parto), e supostamente receberam dos apóstolos a doutrina
da virgindade no parto e pós-parto, a menção seria inevitável. Trata-se de
ideias diretamente correlacionadas. No entanto, vemos o oposto. O renomado
mariólogo Juniper Carol escreve:
Mesmo no início deste período [Século II], a crença na concepção virginal de Cristo foi proposta como um artigo
de fé por Santo Irineu, e muito
provavelmente antes dele por São Justino e Aristides (...) Será que a
maravilhosa profundidade de Santo Irineu na concepção virginal de Cristo o
levou para mais esclarecimentos relacionados à virgindade de Nossa Senhora?
Infelizmente não, pelo menos de acordo com os escritos autênticos que chegaram
até nós em sua maior parte apenas em traduções. Não há nada nessas passagens traduzidas mostrando que Irineu sustentava
a continuidade da virgindade de Maria, isto é, depois da Anunciação, no
nascimento de Cristo, e, posteriormente, ao final de sua vida na terra. Certos críticos têm acreditado estarem
justificados em considerar que Irineu negou a virgindade perpétua de Maria,
mas sem qualquer prova decisiva. Por outro lado, devemos confessar que não há textos decisivos para mostrar o contrário
(...) Seja qual for a sua origem, não
temos motivos para concluir que os apócrifos continham e transmitiram uma
autêntica tradição apostólica relativa ao dogma da virgindade perpétua de Maria.
Em cada caso, tal tradição teria que ser estabelecida – uma tarefa impossível
com as nossas fontes documentais atuais. Além disso, as próprias narrativas apócrifas dificilmente oferecem a qualidade da
objetividade sóbria que é uma característica da transmissão de uma doutrina
autenticamente apostólica na origem. Em vez disso, eles parecem carregar o
testemunho de certas tendências ingênuas e mais ou menos espontâneas cuja origem exata dificilmente pode ser
avaliada criticamente hoje. (Mariologia –Juniper B. Carol)
Nós situamos Tertuliano como uma testemunha do
segundo século, pois ele começa a escrever no final desse período. Porém, é
provável que as citações que trouxemos provêm de obras do início de do terceiro
século. Carol comenta:
Tertuliano é inequivocamente claro e radical. Ele aceita a concepção virginal de Cristo como uma verdade dogmática.
Mas, uma vez que entrou em sua polêmica com os docetistas, marcionitas e
valentinianos, ele é implacável na
defesa do nascimento de Cristo como inteiramente normal e na descrição de Maria
como a mãe de vários filhos depois de Cristo. Tertuliano em sua franqueza
não pretende ser tradicional e nunca agrada a qualquer autoridade dogmática.
Por outro lado, ele não manifesta a
menor consciência de que suas negações da virgindade perpétua de Nossa Senhora
contradizem qualquer tradição eclesiástica, pelo menos, conhecidas por ele.
Por isso não podemos deixar de indagar se existia qualquer tradição na África
no tempo de Tertuliano sobre o nascimento virginal e a virgindade subsequente
de Maria. Ao mesmo tempo, São Cipriano, Arnóbio, e Lactâncio surgem testemunhas
como prováveis, mas os seus testemunhos
são totalmente negativos. São Cipriano, por exemplo, não diz absolutamente nada para afirmar ou negar os pontos de vista de
Tertuliano. O mesmo é verdadeiro sobre os escritores anônimos do período,
cujas obras têm sido às vezes atribuída a Cipriano e ao próprio Tertuliano
(...) Não encontramos absolutamente
nenhuma evidência de que as suas declarações durante este período causaram
qualquer ofensa. (Ibid)
Esse estudioso católico romano faz um poderoso
caso a respeito da validade do testemunho de Tertuliano. Uma das formas mais
confiáveis de se saber a opinião majoritária da igreja num determinado período
é verificar a reação dos cristãos ortodoxos quando um artigo de fé é atacado.
Isso foi especialmente evidente quando os gnósticos negaram doutrinas da fé
crista. Se Tertuliano estivesse negando aquilo que seria um artigo de fé,
esperar-se-ia poderosas reações dos círculos ortodoxos, principalmente de contemporâneos
ou autores do século III. No entanto, esta reação não aconteceu, o que torna
muito provável a conclusão de que a igreja desse período não mantinha a
virgindade perpétua como parte da fé revelada.
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