Introdução aos
argumentos
Atualmente
é amplamente reconhecido mesmo por historiadores e teólogos católicos a
dificuldade da igreja romana provar a apostolicidade de sua doutrina. O exemplo
por excelência seria o papado. Hoje, a maioria dos historiadores católicos
reconhece que o papado foi fruto de um desenvolvimento histórico e que ele não existia nos primeiros séculos da igreja. O historiador
católico Klaus Schatz resume bem a questão:
No entanto, as
reivindicações concretas de uma primazia sobre toda a Igreja não podem ser
inferidas a partir desta convicção. Se alguém tivesse perguntado a um cristão
no ano de 100, 200 ou mesmo 300, se o bispo de Roma era a cabeça de todos os
cristãos, ou se houve um bispo supremo sobre todos os outros bispos e que teria
a última palavra em questões que afetam toda a Igreja, ele ou ela certamente teria dito não. (Klaus Schatz, Papal Primacy: From Its Origins to the Present. Collegeville,
Minnesota: Liturgical Press, 1996, p. 3)
Por
esse motivo, quando os apologistas católicos encontram apoio em algum pai da
igreja, eles tiram duas conclusões sem apresentar qualquer evidência:
(1)
Essa doutrina representa a crença de toda a igreja;
(2)
Essa doutrina sempre foi crida pela igreja.
É
comum apresentarem uma testemunha que viveu séculos após os apóstolos e assim
vaticinar que a igreja romana guardou aquilo que sempre foi a fé da igreja em
todos os tempos. Porém, esse argumento é totalmente abandonado quando um outro
pai da igreja contraria o ensino atual da igreja romana. Quando trazemos o
testemunho dos vários pais da igreja que afirmam que Maria pecou, alegam que
essa era apenas uma opinião privada daquele teólogo e não representava o que a
igreja ensinava. O problema é que isso não é admitido pelo pai da igreja e os
apologistas católicos não trazem nenhuma evidência de que existia uma doutrina
oficial da igreja contrária àquele pai.
Neste
artigo, vamos analisar esse tipo de argumento. A doutrina em questão é o
purgatório e o pai da igreja é Agostinho. Nós escrevemos uma série de artigos
sobre Agostinho e o catolicismo romano e tratamos brevemente da opinião dele
sobre o purgatório.
Um católico comentou em nosso artigo afirmando que Agostinho sempre defendeu a
doutrina do purgatório e que esta sempre foi o ensino da igreja. Há tempos
atrás postamos uma série de artigos sobre os pais da igreja e o purgatório. Nele, rebatemos as
várias citações distorcidas que os católicos apresentam em favor do purgatório
e demonstramos como vários pais da igreja (especialmente os mais antigos)
desconheciam essa doutrina, mesmo o destino da alma no pós-morte sendo um tema
bastante explorado. Nesta série, fizemos amplo uso daquela que é considerada
uma obra de referência no assunto - O Nascimento do Purgatório de Jacques Le
Goff. Esse famoso medievalista traça o histórico do surgimento do purgatório e
nos fornece valiosas análises sobre o pensamento patrístico a respeito. Le Goff
não é um teólogo, mas é um exímio historiador e faz amplo uso de teólogos e
historiadores em sua obra. A tese que nós defendemos resume-se nos seguintes
pontos abaixo:
(1)
Apesar de Agostinho ter defendido algo muito parecido com o purgatório, essa
posição surgiu ao longo de sua vida. Ele nem sempre a defendeu;
(2)
Além disso, Agostinho expressava incerteza sobre o tema. Em vários momentos ele
demonstrou que estava especulando a respeito;
(3)
Agostinho nunca afirmou que o purgatório era uma doutrina sempre acreditada
pela igreja. Isso é tão verdade que ele nunca citou outro pai da igreja como
defensor da doutrina do purgatório.
Se
esses três pontos são verdadeiros, a seguinte conclusão é válida:
-
A doutrina do purgatório ensinada igreja romana não foi sempre acreditada pela
igreja. Trata-se de uma inovação doutrinária. O testemunho de Agostinho, longe
de contrariar isso, na verdade o reforça. Se existisse uma tradição sólida a
respeito do purgatório, Agostinha a teria citado e não teria uma opinião
vacilante a respeito.
O
site apologistas católicos postou uma resposta
ao nosso artigo. Na conclusão do artigo, ele escreve:
Analisamos aqui
citações do ano 388 até o ano 427 d.C próximo a morte de Santo Agostinho, e ficou claro em toda a sua vida o nítido
ensinamento sobre o purgatório derivado da tradição apostólica da Igreja, que
ele recebeu e explorou como São Gregório de Nissa em sua Obra De Anima Et
Ressurrectione. Ainda assim, existem elementos exóticos que vagueiam
internet a fora afim de tentar negar o óbvio. A desonestidade intelectual chega
a níveis alarmantes, o ódio anticatólico e a cegueira espiritual fazem pessoas
com que essas pessoas cheguem às raias da irracionalidade ao contra argumentar
contra exposições teológicas tão claras quanto as de Agostinho, quanto a isso,
só temos que lamentar, ninguém é convencido da verdade se deseja enganar aos
outros e a si próprio.
Ele
cita Jacques Le Goff como apoiante dessa posição e também nos acusa de
desonestidade intelectual. Ao longo desse artigo, o leitor poderá dizer quem de
fato foi honesto e distorceu ou não as fontes. Como lemos todo o livro e não
apenas um trecho dele, faremos amplo uso de citações de Le Goff. Usaremos a
tradução em português da 2ª edição da Editora Estampa – Ano 1995.
Essa
doutrina só foi dogmaticamente definida em concílios do séc. XII em diante.
Levaram doze séculos para definir dogmaticamente aquilo que “sempre foi crido
pela igreja”. As outras igrejas que se separaram de Roma, em especial a
ortodoxa grega, não tem o purgatório como artigo de fé. É no mínimo estranho
que uma parcela tão grande daquilo que era a igreja católica antiga que “sempre
acreditou no purgatório” não tenha essa doutrina como artigo de fé. Ou os
ortodoxos abandonaram essa doutrina (tese que nenhum teólogo ortodoxo defende)
ou eles de fato nunca a defenderam.
Gregório de Nissa ou
algum pai da igreja ensinou o purgatório antes de Agostinho?
É
importante definir o purgatório em detalhes. Alguns pais da igreja como
Orígenes e Gregório de Nissa (que foi erroneamente citado como testemunha dessa
doutrina) acreditavam numa purificação temporária no
pós-morte, mas ainda assim eles não estavam falando do purgatório romanista.
Isso porque a igreja romana afirma que apenas as pessoas que morreram na graça
de Deus, ou seja, apenas aquelas que morreram com pecados veniais (menos
graves) ou não fizeram a penitência pelos pecados mortais passam pelo
purgatório e então vão para o paraíso. Os que morrem em pecado mortal vão para
o inferno. O purgatório tem um aspecto purificador, mas também punitivo, pois
lá serão pagas as penas temporais devidas por pecados veniais ou mortais.
Gregório de Nissa e Orígenes não acreditavam nisso. Eles eram universalistas e
defendiam a “Apocatastasis”. Essa é ideia de que no fim tudo será restaurado e
todos os homens, por mais pecadores que tenham sido, serão purificados e
salvos. Gregório de Nissa expressa claramente abaixo:
O fim é um, e apenas
um; é este: quando todos de nossa raça
tiverem sido aperfeiçoados, do primeiro até o último homem (...) para oferecer a cada um de nós a
participação nas bênçãos que estão Nele [Deus]. (Sobre a Alma e a
Ressurreição 465)
Até
satanás seria salvo:
Um certo engano foi
realmente praticado sobre o mal [o Diabo], mediante a ocultação da natureza
divina dentro do ser humano, mas, por último, como ele próprio é um enganador,
era apenas uma justa recompensa que ele próprio fosse enganado: o grande
adversário deve ele próprio finalmente encontrar aquilo que tem sido feito que
é justo e salutar, quando ele também deve experimentar o benefício da
encarnação. Ele, assim como a
humanidade, será purificado. (O Grande Catecismo 26)
A
própria Enciclopédia Católica confirma isso:
[Apocatastasis] Um
nome dado na história da teologia à doutrina que ensina que um tempo virá em que todas as criaturas livres vão
compartilhar a graça da salvação. De modo especial, os demônios e as almas
perdidas. Esta doutrina foi
explicitamente ensinada por São Gregório de Nissa, e em mais de uma passagem.
Ela ocorre pela primeira vez em seu "De anima et resurrectione" (PG,
XLVI, cols. 100, 101), onde, ao falar da punição pelo fogo atribuído a alma
após a morte, ele compara com o processo pelo qual o ouro é refinado numa
fornalha, sendo separado da escória com o qual está ligado. A punição pelo fogo não é, portanto, um fim
em si mesmo, mas é benéfico; a razão da sua imposição é separar o bem do mal na
alma (...) a chama dura tanto tempo quanto houver qualquer mal para
destruir (...) Não somente o homem deve ser liberto do mal, mas o diabo também, por quem o mal entrou
no mundo (ton te anthropon tes kakias eleutheron kai Auton tes ton kakias
eyreten iomenos). O mesmo ensinamento pode ser encontrado em "De
mortuis" (ibid., Col. 536).
No
mesmo artigo, Orígenes e Clemente de Alexandria são citados:
A doutrina da
apocatastasis não é, na verdade,
peculiar a São Gregório de Nissa, mas é retirada de Orígenes, que parece às
vezes relutante em decidir quanto à questão da eternidade da punição. Tixeront
bem disse que, em seu "De Principiis" (I.6.3) Orígenes não se
aventura a afirmar que todos os anjos maus irão mais cedo ou mais tarde voltar
para Deus (P. G., XI, col 168, 169.); enquanto que em seu "Comentário em
Romanos", VIII, 9 (P. G., XIV, col. 1185), afirma que Lúcifer, ao
contrário dos judeus, não serão convertidos, mesmo no final do tempo. Em outros lugares, por outro lado, e como
regra, Orígenes ensina a apocatastasis, a restauração final de todas as
criaturas inteligentes à amizade com Deus (...) A doutrina foi ensinada
pela primeira vez por Orígenes e por
Clemente de Alexandria, e foi uma influência em seu cristianismo devido ao
platonismo, como Petavius tem mostrado claramente (Theol. Dogmat. De Angelis,
106) (...) Foi através de Orígenes que a
doutrina platônica da apocatastasis passou para São Gregório de Nissa, e
simultaneamente a São Jerônimo, pelo menos durante o tempo em que São Jerônimo
era um origenista. É certo, porém, que São Jerônimo a aplica apenas aos
batizados (...) Em qualquer outro lugar St. Jerônimo ensina que o castigo dos
demônios e dos ímpios, que são aqueles que não vieram à fé, deve ser eterno
(veja Petavius, Theol dogmat De Angelis, 111, 112.). "Ambrosiastro"
por outro lado, parece ter estendido os
benefícios da redenção para os demônios (em Ef, iii, 10;. PL, XVII, col .
382), no entanto, a interpretação de "Ambrosiastro" a este respeito
não é isenta de dificuldades. [Ver Petavius, p. 111; Também, Turmel, Histoire
de la théologie positivo, depuis l'origine, etc. (Paris, 1904) 187.] (Fonte)
Clemente
de Alexandria, Orígenes, Gregório de Nissa, Jerônimo e Ambrosiastro – todos
eles defenderam uma purificação pós-morte, mas estavam falando de algo
substancialmente diferente do purgatório romanista. Eles defendiam uma doutrina
considerada herética pela igreja romana. Advinhe o que os apologistas católicos
fizeram? Os apresentam em seus artigos como testemunhas da doutrina romana. O
próprio site que estamos
respondendo fez isso. Eles apresentam uma heresia como sendo uma doutrina
ortodoxa (apenas do ponto de vista romanista obviamente). Isso mostra a baixa
qualidade desses artigos que pelo bem da própria apologética católica deveriam
ser revistos.
Por
esse motivo, Agostinho é chamado de o “pai do purgatório” por Le Goff. Ele foi
o primeiro a afirmar que haveria uma purificação pós-morte apenas para os que
morrem com faltas mais leves (muito embora não tenha definido a natureza desses
pecados). Alguns chamam genericamente de purgatório todo tipo de purificação
pós-morte, mas aqui estamos tratando especificamente da concepção romanista do
termo.
Agostinho estava
ensinando algo sempre crido pela igreja?
Mostrar
que Agostinho cria no purgatório é insuficiente para o pleito católico. Eles
precisam provar e não apenas pressupor que o ensino de Agostinho sempre foi
crido na igreja. Além dos pais já citados, outros pais da igreja (uma posição
majoritária) defenderam outros tipos de destino no pós-morte que não
comportavam nenhum tipo de purificação. Eles acreditavam que os crentes iam
para um lugar de descanso onde aguardavam a ressurreição do corpo – mais
detalhes aqui.
A
tese do autor católico tem dois problemas:
(1)
Agostinho não afirmou em qualquer de seus escritos que o purgatório sempre foi
crido pela igreja. Ele não cita nenhum pai da igreja em favor da sua doutrina
purgatorial. Em todo o artigo do autor católico, ele não traz qualquer citação
que implique nisso;
(2)
Em todo o livro, Jacques Le Goff afirma que o purgatório foi inventado. É por
isso que o título é o “Nascimento do Purgatório” que ele obviamente não situa
no período apostólico. Logo no início da obra, ele diz:
Proponho-me seguir a
formação desse terceiro lugar desde a antiga fé judaico-cristã, dar a conhecer o seu aparecimento no
momento da explosão do Ocidente medieval na segunda metade do século XII e
o seu rápido sucesso no decurso do século seguinte. Tentarei por fim explicar
por que razão ele está intimamente ligado a esse grande momento da história da
cristandade e como contribuiu de maneira decisiva para ser aceite - ou, entre
os hereges, recusado - no seio da nova
sociedade saída do desenvolvimento prodigioso dos dois séculos e meio que se
seguiram ao ano mil. (p. 15)
Le
Goff situa o nascimento do purgatório apenas no séc. XII. Se ele acreditasse
que a igreja sempre ensinou isso, como poderia sustentar tal opinião? Nas págs.
18-19 ele escreve:
Quando o Purgatório se instala na crença da cristandade
ocidental, entre 1150 e 1250, mais ou menos, de que se trata? É um além
intermédio onde certos mortos passam por uma provação que pode ser abreviada
pelos sufrágios - a ajuda espiritual - dos vivos. Para se ter chegado aqui foi preciso um longo passado de ideias
e de imagens, de crenças e de atos, de debates teológicos e, provavelmente, de
movimentos no interior da sociedade, que dificilmente apreendemos.
O
purgatório só nasceu depois de muitas ideias anteriores e também de movimentos
da própria sociedade. Boa parte do livro é dedicado a mostrar como as mudanças sociais
na idade média levaram à aceitação do purgatório. Se tivesse sido legado pelos
apóstolos e sempre crido pela igreja, todas essas ideias e imagens anteriores
seriam desnecessárias para fazer surgir o que supostamente já existia. Na pag.
20:
O Purgatório é também
um intervalo propriamente espacial que se insinua e se amplia entre o Paraíso e
o Inferno. Mas a atração dos dois pólos atuou longamente também sobre ele. Para existir, o Purgatório deverá
substituir os pré-paraísos do refrigerium, lugar de refrigério imaginado nos
primeiros tempos do cristianismo, e do seio de Abraão, representado pela
história de Lázaro e do mau rico no Novo Testamento (Lucas, XVI, 19-26).
Deverá sobretudo destacar-se do Inferno do qual será por muito tempo um
departamento pouco diferenciado, o martírio máximo.
Antes
do purgatório surgir como estágio intermediário entre a morte e a ressureição,
havia outros tipos de estágios intermediários como o lugar de refrigério e o
seio de Abraão (posição defendida por Tertuliano e Hipólito de Roma). A
implicação é que nos primeiros tempos do cristianismo não se acreditava em purgatório.
Por incrível que pareça, há quem diga que os judeus acreditavam no purgatório
romanista (isso não foi afirmado no artigo aqui respondido). Sobre isso, Le
Goff escreve:
Ao contrário do sheol judaico - inquietante, triste, mas desprovido de castigos - o Purgatório é um lugar onde os mortos
sofrem uma (ou algumas) provação(ões). Estas
provações, como se verá, podem ser múltiplas e assemelhar-se às sofridas pelos
condenados, no Inferno. (p. 21)
Ainda
sobre a concepção judaica do pós-morte, ele escreve na p. 58:
Manifesta-se primeiro
por uma maior precisão da geografia do além. Quanto ao fundo - na maioria dos
textos - não há grandes modificações. Depois da morte, as almas vão sempre ou para um lugar intermédio, o sheol, ou
diretamente para o lugar do castigo eterno, a geena, ou de recompensas, também
eternas, o Eden.
Não
havia lugar para a concepção romanista na tradição judaica. Ele também afirma a
influência de concepções pagãs na gênese do purgatório:
O Purgatório é uma
ideia nova do cristianismo que tirou das
religiões anteriores uma parte dos seus acessórios principais. (p. 25)
Na
p. 27, ele volta a falar do nascimento do purgatório:
O grande século
criador, o século XII, é também o do
aparecimento do Purgatório que só se explica no seio do sistema feudal
então já aperfeiçoado.
Ele
escreve sobre a concepção de Tertuliano que não incluía purgatório:
A inovação de
Tertuliano, se é que alguma existe, no que respeita à pré-história do
Purgatório, é o fato de os justos passarem por um refrigério intermédio antes
de conhecerem o refrigério eterno. Mas esse lugar de refrigério não é
verdadeiramente novo, é o seio de Abraão. Entre
o refrigerium interim de Tertuliano e o Purgatório existe uma diferença não só
de natureza – aqui uma espera repousante, ali uma provação purificadora porque
punitiva e expiatória - mas também de duração: o refrigerium acolhe as almas
até à ressurreição, o Purgatório apenas até ao fim da expiação. (p. 66)
Por
incrível que pareça, os romanistas ainda citam Tertuliano como testemunha do
purgatório. O mais interessante é que Tertuliano defendia a eficácia de orar
pelos mortos. Dessa forma, o argumento romanista de que a oração pelos mortos
implica necessariamente numa crença no purgatório é falsa. Trataremos desse
falacioso argumento mais a frente. Os católicos costumam citar a história de
Perpétua como evidência do purgatório, mas Le Goff escreve:
Não se deve exagerar
nem minimizar a importância da Paixão de Perpetua e de Felicidade para a
pré-história do Purgatório. Não se trata
aqui propriamente de Purgatório, e nenhuma das imagens dos mortos destas
duas visões estarão presentes no Purgatório medieval. (p. 69)
Como
demonstramos em nossa série sobre o purgatório, A paixão de Perpétua evidencia
a crença da salvação pós-morte no cristianismo primitivo. Dinócrates (seu
irmão) não estava no purgatório, mas no inferno. Em nenhum momento é afirmado
que Dinócrates era um cristão, o que por si só põe em dúvida qualquer
interpretação purgatorial do texto. Ou seja, mais um caso de alguém que
acreditava em oração pelos mortos, mas não defendia o purgatório. Somente a
partir de Agostinho, é que esse texto de Perpétua seria usado para aludir ao
purgatório:
A partir de Santo Agostinho, este texto será, no entanto, utilizado e comentado na perspectiva
do pensamento que conduzirá ao Purgatório. (p. 69)
Os
católicos costumam distorcidamente citar Cipriano como testemunha do
purgatório. Já Le Goff escreve:
Considero pertinente
a opinião de P. Jay que refutou a
pseudodoutrina do Purgatório de S. Cipriano. Do que se trata na carta a
Antoniano é de uma comparação entre os cristãos que renegaram durante as
perseguições (os lapsi e os apóstatas) e os mártires. Não se trata de “purgatório” no além mas de penitência cá em baixo.
A prisão mencionada não é a de um purgatório, aliás ainda inexistente, mas a disciplina penitencial eclesiástica.
(p.
81)
Ele
não somente diz que Cipriano não estava defendendo purgatório, como diz que
esse ainda não existia nessa época (sec. III). Le Goff aponta que mesmo na
idade média, teremos teólogos medievais que não ensinam o purgatório. Essa é
uma doutrina tão “firmemente” crida pela igreja que teólogos católicos séculos
depois dos apóstolos não ensinaram tal doutrina. Na p. 182, Le Goff escreve ao
comentar o texto de um teólogo medieval do séc. XII:
Vê-se, neste texto, a
evolução que rapidamente vai conduzir à
invenção do Purgatório. (p. 182)
Esses
são apenas alguns trechos da obra. Acho que ficou suficientemente claro que Le
Goff passa bem longe da tese católica de que o purgatório foi crido e ensinado
desde os primórdios da igreja.
O falso argumento da
oração pelos mortos
Quando
os apologistas católicos não conseguem encontrar as inovações de Roma nos
escritos de um pai da igreja, eles recorrem a falsas implicações. Isso consiste
não em mostrar a doutrina em si no pai da igreja, mas em mostrar que ele
defendia uma ideia que necessariamente implicava nessa doutrina. Isso é feito
com a oração pelos mortos. Em qualquer artigo tentando demonstrar a presença do
purgatório na patrística, várias citações que mostram trazem oração pelos
mortos são apresentados como prova. Esse argumento é uma falsa implicação. Os
pais da igreja poderiam ter diferentes visões do pós-morte e todas elas
poderiam comportar a ideia de orar pelo morto. Os pais universalistas como
Orígenes e Gregório de Nissa acreditavam em oração pelos mortos, mas não em
purgatório. Tertuliano a mesma coisa. Portanto, o argumento em si é falho. Le
Goff trata com exatidão desse argumento:
O Purgatório é pois
um além intermédio ou a provação que se sofre, talvez encurtada pelos
sufrágios, as intervenções dos vivos. Foi, parece, pela crença dos primeiros cristãos na eficácia das suas preces pelos
mortos - como testemunham as inscrições funerárias, as fórmulas litúrgicas,
e depois, no começo do século, a Paixão de Perpétua, primeira das
representações espacializadas do futuro Purgatório - que começou um movimento piedoso que deveria conduzir à criação do
Purgatório (...) E para a Igreja,
que instrumento de poder! Ela afirma o seu direito (parcial) sobre as almas
do Purgatório como membros da Igreja militante, pondo à frente o foro
eclesiástico em detrimento do foro de Deus, o detentor da justiça no além. Poder espiritual mas também muito
simplesmente, como se verá, lucro financeiro de que beneficiarão, mais do
que os outros, os irmãos das ordens mendicantes, propagandistas ardentes da
nova crença. O “infernal” sistema das
indulgências encontrará nelas finalmente um alimento revigorante. (p. 25-26)
Em
outras palavras, a oração pelos mortos foi a causa e não o efeito do
purgatório. Antes de essa doutrina existir, as pessoas já oravam pelos mortos.
Obviamente, a igreja romana lucrou muito com isso. Ela passou a ter legislação
até no pós-morte e poder influenciar no destino de um ente querido. Que boa
alma católica não sucumbiria a possibilidade de encurtar o sofrimento de um
ente querido no purgatório? A ideia do purgatório vai gerar outra doutrina
herética – as indulgências. Essa doutrina que não foi defendida por nenhum pai
da igreja foi usada para explorar financeiramente o homem medieval. Le Goff
também escreve:
O enorme processo
epigráfico e litúrgico sobre as orações pelos mortos foi muitas vezes explorado para provar a antiguidade da crença cristã
no Purgatório. Estas interpretações
parecem-me abusivas. As graças que se suplica a Deus sejam concedidas aos
mortos invocam essencialmente a
bem-aventurança paradisíaca, em todo o caso um estado definido pela paz (pax) e
pela luz (lux). É preciso esperar pelo
fim do século V (ou princípio do VI) para encontrar uma inscrição que fale da
redenção da alma de um defunto. Trata-se de uma inscrição galo-romana de
Briord, cujo epitáfio contém a fórmula pro “redemptionem animae suae". Por
outro lado, nestas inscrições e nestas preces, não se trata de um lugar de redenção ou de espera que não o tradicional
segundo o Evangelho, o “seio de Abraão”. Mas é essencial para a constituição
do terreno onde se desenvolverá mais
tarde a crença no Purgatório que os vivos se preocupem com a sorte dos
mortos, que para além da sepultura mantenham com eles laços que não sejam os da
invocação da proteção dos defuntos, mas da utilidade das preces feitas em sua
intenção. (p.
64-65)
Le
Goff simplesmente desmonta o argumento romanista e o considera abusivo. As
orações pelos mortos irão tardiamente influenciar no surgimento da ideia do
purgatório. Trata-se de uma relação de causa e efeito em que a oração pelos
mortos é causa e não o efeito. O argumento é bem simples – nas orações pelos
mortos – as almas dos falecidos desfrutam de descanso. Não há qualquer espaço
para expiação pós-morte nessas orações antigas.
As incertezas de
Agostinho a respeito do purgatório
Agora,
vamos entrar propriamente em Agostinho. O site apologistas católicos afirmou:
As afirmações de
Santo Agostinho são tão claras e óbvias que alguns protestantes, não tendo o
que falar ou retirar de suas obras para
fazer livre exame, resolveram apelar
para a desonestidade intelectual. Resolveram recortar e montar trechos da
obra de Jacques LeGoff, que aqui utilizamos, para defenderem que Santo
Agostinho “mudou de opinião”, ou que
deixou o purgatório de lado após 413, como que o purgatório para ele era
apenas uma “especulação”.
Aqui
eu preciso fazer alguns esclarecimentos:
(1)
Que negócio é esse de fazer livre exame das obras de Agostinho? Me parece que o
autor católico não sabe o que isso significa. Livre exame significa que o homem
utilizando os métodos corretos de interpretação pode chegar ao correto
entendimento de um texto. Não existe nenhuma interpretação infalível dos textos
de Agostinho, portanto, qualquer pessoa que deseje saber o que ele ensinou,
precisa utilizar do livre exame. As opiniões do autor católico são resultado do
seu livre exame ou de outros sobre o texto de Agostinho. A igreja romana não
produziu sequer a interpretação infalível de uma epístola bíblica, que dirá
então das obras de Agostinho;
(2)
Toda citação é um recorte da obra de alguém, caso contrário não seria uma
citação. Montar citações é algo extremamente comum em trabalho acadêmicos,
desde que se preserve o sentido original. Por isso, colocamos o símbolo (...)
para demonstrar que houve uma interrupção no texto citado. Basta olhar os
artigos do site dele para perceber que isso é feito com frequência. Ele também
está recortando e montando citações. E como o próprio artigo dele mostrou, as
citações são verdadeiras;
(3)
Quanto à acusação de desonestidade intelectual, vou deixar que esse artigo fale
por si sobre quem está sendo desonesto;
(4)
O mais impressionante é que ele diz que nós afirmamos “que deixou o purgatório
de lado após 413”. Nós nunca afirmamos
isso em qualquer dos nossos artigos. O autor católico está convidado a
mostrar em qual parte dos textos nós dissemos o que ele alega. A afirmação é
justamente contrária – A posição de Agostinho sobre o purgatório evoluiu e
passou a ser defendida explicitamente a partir de 413. Nós afirmamos o oposto
do que ele diz. Ele ainda diz:
Essa citação que é
montada a partir de duas frases em contextos e páginas diferentes da obra de Le
Goff surgiu de um site em inglês, alguns protestantes brasileiros traduziram e
agora usam como “trunfo” para dizer que Santo Agostinho mudou de opinião
supostamente ancorados na afirmativa de Jacques LeGoff. Já não fosse hilário usarem um livro que nunca leram, ainda usam uma
citação que não fazem a mínima ideia se está correta.
Ocorre
que nós lemos o livro. O autor católico está convidado a ler nossos artigos
sobre o purgatório que contém várias citações de Le Goff espalhadas por várias
páginas do livro. O fato de eu ter traduzido de um site em inglês não implica
que não li o livro. Aliás que mal há em copiar a citação de um site? Ele faz
isso a todo o momento. A maioria dos seus artigos são traduções de artigos em
inglês. O meu artigo sobre o purgatório sequer é uma tradução integral do site
que ele alega. Eu trouxe várias informações adicionais que não está lá e foram
tiradas em sua maioria do livro do Le Goff. Se o autor católico tivesse lido o
livro de fato, ele nunca teria usado Le Goff em apoio de sua tese, pois todo o
livro contraria frontalmente a narrativa católica a respeito do purgatório. Ele
diz que Agostinho expressou incerteza em vários momentos. Ele diz que isso se
dava porque o estado intermediário não era uma área de muito interesse para o
bispo de Hipona:
Desejo, já de início,
sublinhar um paradoxo. Insistiu-se a justo título na importância considerável
de Santo Agostinho para a formação da doutrina do Purgatório. Isto é verdadeiro
não só do ponto de vista dos historiadores e dos teólogos modernos que reconstituem
a história do Purgatório, mas também do clero da Idade Média que criou o
Purgatório. E, no entanto, parece-me
evidente que esta questão não apaixonou Agostinho e que, se ele tantas vezes
alude a ela, é porque ela interessava, em compensação, muitos dos seus contemporâneos
e porque tocava – ia dizer envenenava aos seus olhos - em problemas que, esses
sim, eram para ele fundamentais: a fé e as obras, o lugar do homem no plano divino,
as relações entre os vivos e os mortos, a preocupação com a ordem numa série
escalonada desde a ordem social terrena até à ordem sobrenatural, a distinção
entre o essencial e o acessório, o esforço necessário ao homem para atingir o
progresso espiritual e a salvação eterna. Parece-me
que as indecisões de Agostinho vêm,
em parte, deste relativo desinteresse pela sorte dos homens entre a morte e o
Julgamento Final; mas explicam-se também por razões mais profundas. As mais
importantes são as inerentes à época. (p. 85)
Também
escreve:
Foi porque no século XII a sociedade mudou de tal
maneira que esse luxo se tomou necessidade, que o Purgatório pôde aparecer. Mas outras razões pessoais parece terem também incitado Agostinho a
manifestar a sua incerteza a respeito de certos aspectos deste problema então
marginal. Vê-las-emos nos textos que vou citar. Primeiro, a verificação das imprecisões, até das
contradições dos textos das Escrituras neste domínio. Agostinho é um
exegeta admirável mas não oculta a falta
de clareza, as dificuldades do Livro. Não tem sido suficientemente
sublinhado o fato de no século XII Abelardo, no Sic et Non: ao empregar um
método julgado revolucionário, mais não ter feito do que regressar a Agostinho.
Na sua qualidade de padre, bispo e intelectual cristão, Agostinho está convencido de que o fundamento (palavra que tanto lhe
agrada e que irá reencontrar em Coríntios Hl, 10-15) da religião, dos
ensinamentos que deve ministrar, é a Escritura. Quando se tenta esclarecer
o mais possível os pontos onde ela não é clara (o que é também uma das suas
tendências profundas), é preciso
reconhecer que nada de preciso se pode afirmar. Tanto mais que - é a sua
segunda motivação - em questões de
salvação, se deve respeitar o segredo, o mistério que envolve certos
aspectos ou, ainda melhor, deixar a Deus o cuidado de tomar decisões dentro de
um contexto, cujas grandes linhas Ele indicou através da Bíblia e dos
ensinamentos de Jesus, mas onde reservou
para si mesmo fora do milagre - um espaço de livre decisão. (p. 86)
Vamos
por partes:
(1) Le
Goff mais uma vez afirma que o purgatório nasceu no séc. XII;
(2) Agostinho
afirmou incerteza sobre certos aspectos do problema (purgatório);
(3) O
fundamento da religião é a Escritura e não o magistério da igreja como defendem
os romanistas. Se a Escritura é o fundamento, ela está num nível de autoridade
acima da igreja e da tradição (Sola Scriptura) – mais detalhes aqui;
(4) Onde
a Escritura não é clara, nada de preciso se pode afirmar. Ora, o purgatório é uma
questão onde a Escritura não é clara, portanto, nada de preciso poderia ser
afirmado sobre ele. A questão é – onde está a tradição que esclarece os pontos
difíceis da Escritura? Onde está o magistério que esclarece os pontos obscuros?
Porque Agostinho não lançou mão dessas ferramentas? Parece que ele não concebia
nada disso;
(5) A
questão do purgatório era para Agostinho algo impreciso e um espaço de livre
decisão – essa é a implicação da opinião de Le Goff. Portanto, como essa
questão poderia ser uma doutrina sempre crida pela igreja e crida por Agostinho
sem titubear? Se fosse de fato, ele não poderia dar liberdade para decisão
nisso, ele simplesmente diria que era algo que todo cristão deveria
necessariamente acreditar sob pena de ser considerado um herege. Ou seja, Le
Goff está afirmando justamente o que dissemos – Agostinho não expressou certeza
sobre a questão e reconhecia se tratar de algo aberto a especulação, pois a
Escritura não era clara a respeito.
Outra citação de Le
Goff que o autor católico deve ter lido, mas achou por bem não colocar no
artigo é essa:
Nos seus comentários
aos Salmos, escritos talvez entre 400 e 414, insiste sobretudo nas dificuldades levantadas pela existência de um
fogo expurgatório depois da morte: é
uma “questão obscura” (obscura quaestio), declara ele. No entanto, no seu
Comentário ao Salmo XXXVII, avança com uma afirmação que conhecerá grande
repercussão na Idade Média, a propósito do Purgatório: “Se bem que alguns sejam
salvos pelo fogo, esse fogo será mais terrível do que tudo o que um homem pode suportar
nesta vida!”. (p.
90)
Se
essa não é uma expressão de incerteza, o que seria então? Ele não está falando
apenas de um elemento do purgatório, mas da própria existência do processo.
Todas as imagens que Agostinho construiu a respeito do purgatório e da mesma
forma os autores medievais envolvem a purificação pelo fogo. Se a existência da
purificação pelo fogo é posta em dúvida, o purgatório em si é posto em dúvida.
A questão é porque Agostinho expressava incerteza sobre algo que supostamente
sempre foi ensinado pela igreja? A resposta é que se tratava de uma inovação.
Percebam que essa incerteza foi expressa antes de 413. Foi nesse contexto que
trouxemos a seguinte citação no outro artigo:
No seu excelente
estudo sobre a Evolução da doutrina do Purgatório em Santo Agostinho (Évoiution
de Ia doetrine du Purga to ire ehez saint Augustin), de 1966, Joseph Ntedika
recenseou o conjunto dos numerosos textos agostinianos que constituem o
processo do problema. Destacou, a maioria das vezes com acerto, o lugar de
Agostinho na pré-história do Purgatório, e mostrou o fato fundamental: a posição de Agostinho não só evoluiu, o
que é normal, mas também se modificou consideravelmente a partir de determinado
momento que Ntedika situa em 413 e a que ele atribui a causa da luta contra os
laxistas do além, os “misericordiosos” (miserieordes), luta a que Agostinho
se entrega apaixonadamente a partir dessa data. (p. 85)
A
ideia de que Agostinho sempre ensinou o purgatório e como algo certo não foi
provado pelo autor católico e não foi afirmada por Le Goff. O fato de a posição
de Agostinho evoluir e se “modificar consideravelmente” é incompatível com a
ideia de que ele recebeu da igreja a tradição a respeito do purgatório. Como
poderia acontecer uma modificação considerável naquilo que a igreja
supostamente ensinava há séculos? O autor católico escreve:
O que Le Goff quis
dizer com “a posição de Agostinho não só evoluiu, o que é normal, mas também se
modificou”, nem de longe foi que ele
“deixou de crer no purgatório”, como diz o site em inglês, e paroleiam
protestantes brasileiros, e sim que ele passou a ser mais rígido em relação
às penas dos maus e dos meio bons, contra os laxistas ou “misericordiosos” que pregavam que até mesmo os homicidas
poderiam ser purificados no purgatório, e contra isso Santo Agostinho
rebate que só poderão ser purificados aqueles que em vida tiveram fé, fizeram o
bem e acumularam boas obras que foram úteis para, após sua morte, se ainda restar
alguma mancha, serem purificados.
(1)
Não foi Le Goff que afirmou que a posição de Agostinho evoluiu, foi Joseph
Netdika, a quem cita;
(2)
Nem nós nem o site em inglês que ele também parece não ter lido afirmou isso.
Foi justamente o contrário, é partir de 413 que a crença de Agostinho no
purgatório fica mais explícita;
(3)
Os “misericordiosos” não acreditavam em purgatório. Essa doutrina foi a
resposta de Agostinho a eles e não a correção de um suposta visão errônea do
purgatório. Isso mostra como o purgatório não era um artigo de fé da igreja.
Quando Agostinho critica a posição dos misericordiosos, ele não os critica por
não crerem no purgatório, mas por terem uma posição muito benevolente com os
pecadores. Le Goff esclarece na p. 91 o que pensavam os misericordiosos:
O que diziam esses
tais “misericordiosos” de quem nada sabemos a não ser o que Agostinho lhes
reprovou? Agostinho vê-os como descendentes de Orígenes, que pensava que no fim do processo de paracatástase todos seriam
salvos, incluindo Satanás e os anjos maus. Faz notar, todavia, que os
misericordiosos apenas se ocupam dos homens. Mas se bem que existam neles
certos cambiantes, todos mais ou menos
acreditam que os pecadores inveterados serão salvos na totalidade ou em parte.
Segundo Agostinho, professam seis opiniões diversas, mas próximas. De acordo
com a primeira, todos os homens serão
salvos, mas depois de uma estada mais ou menos longa no Inferno. De acordo
com a segunda, as preces dos santos obterão para todos, no Julgamento Final, a
salvação sem nenhuma passagem pelo Inferno. A terceira consiste em conceder a
salvação a todos os cristãos, mesmo os cismáticos ou os heréticos, que tenham
recebido a eucaristia. A quarta restringe esta benesse somente aos católicos,
com exceção dos cismáticos e dos heréticos. Uma quinta opinião salva aqueles que conservam a fé até ao fim, mesmo
que tenham vivido em pecado. A sexta e última variedade de misericordiosos
é a que crê na salvação daqueles que deram esmolas, ainda que pudessem fazer
mais. Sem entrar em pormenores, contentemo-nos com notar que, se a sua
inspiração era mais ou menos origeniana, estas seitas ou estes cristãos
isolados se apoiavam fundamentalmente num texto das Escrituras separado do seu
contexto e interpretado à letra.
Nenhum
deles acreditava em purgatório. Os primeiros acreditavam num inferno
temporário. Os misericordiosos eram basicamente universalistas. Outros textos
mostram a posição vacilante de Agostinho mesmo depois de 413:
Reagindo, Agostinho
vai afirmar que existem mesmo dois fogos, um fogo eterno destinado aos
condenados para os quais qualquer sufrágio é inútil, e no qual insiste com
veemência; e um fogo purgatório em
reação ao qual tem mais hesitações. O que interessa pois a Agostinho, se
assim se pode dizer, não é o futuro Purgatório mas sim o Inferno. (p. 91)
Vejamos
o comentário do autor católico sobre esse trecho:
Esta parte refuta qualquer alegação protestante. Fica claro que quem faz uso da citação montada, nunca
leu a obra de Jacques Le Goff. Será que sujeitos que fazem uso de tais
artifícios têm alguma credibilidade para falar sobre o pensamento de Santo
Agostinho em um tema tão complexo?
Longe
de refutar nossa alegação, esse trecho nos apoia. Le Goff diz que “e um fogo
purgatório em reação ao qual tem mais hesitações”. Ou seja, quanto ao fogo
eterno Agostinho expressa certeza, quanto ao fogo purgatório, ele expressa hesitação.
Agostinho não estava discutindo a natureza desse fogo como o apologista
católico disse. No pensamento dele, o purgatório necessariamente envolvia a
presença do fogo no pós morte. Portanto, quando ele hesitava a respeito do fogo
purgatório, estava hesitando a respeito do processo do purgatório. Le Goff
escreve:
São estas, com
efeito, as duas principais contribuições de Agostinho. Por um lado, uma definição muito rigorosa do fogo
purgatório num ponto de vista triplo. Aplicar-se-á a um pequeno número de
pecadores, será muito penoso, será uma
espécie de inferno temporário (Agostinho é um dos grandes responsáveis pela
“infernização” do Purgatório); provocará
sofrimentos superiores a qualquer dor terrena. (p. 105)
Para
Agostinho, não havia dúvida a respeito da natureza do fogo. Era um fogo real e
não espiritual. A hesitação era em relação à existência do purgatório em si. O
ponto alto da hesitação de Agostinho está na sua carta a Dardanus:
Na Carta a Dardanus, em 417, esboçava uma geografia do
além na qual não havia lugar para o Purgatório. Voltando à história do pobre Lázaro e do rico mau
distinguia, com efeito, uma região de
tormentos e uma região de repouso mas não as situava às duas nos Infernos,
como alguns, porque a Escritura diz que Jesus desceu aos Infernos mas não que
visitou o seio de Abraão. (p. 93)
Essa
foi a outra citação que usamos. O apologista católico responde:
Não há qualquer
registro aqui que desabone o purgatório no pensamento de Agostinho. Jacques Le
Goff explica apenas que ao descrever o além, Santo Agostinho esboçava uma geografia do além no qual não havia um
purgatório como “lugar”, e isso é simples. Muitos autores e teólogos da
antiguidade e até mesmo da atualidade, não veem o purgatório como um “lugar” ou
têm incertezas sobre isso.
Outro ponto é que
Agostinho na carta a Dardano estava
apenas falando de céu e inferno, ou seja, condenação e salvação, a
purificação final dos eleitos não era o objetivo da sua explanação neste
momento, a purificação foi objeto de explicação nas obras posteriores que
veremos a seguir.
Esses
dois argumentos tem os seguintes problemas:
(1)
É
um argumento anacrônico. Hoje, é popular no meio católico a ideia de que o
purgatório não é um lugar, mas esse não era o caso na idade média, cujos
teólogos em larga escala seguiram Agostinho. Até mesmo papas se referiram ao
purgatório como lugar. Bento XV elogiou o trabalho de Dante Alighieri (A Divina
Comédia) desta maneira:
É assim que, de acordo com a Revelação Divina, neste poema
resplandece a majestade de Deus Uno e Trino, a redenção da raça humana operada
pela Palavra de Deus feito homem, o supremo amor bondoso e caridadoso de Maria,
Virgem e Mãe, Rainha do Céu, e por fim a glória no alto dos anjos, santos e
homens; em seguida, em terrível contraste com isso, as dores dos ímpios no
inferno; então o mundo do meio, por
assim dizer, entre o Céu e o Inferno, o Purgatório, a Escada das almas
destinadas depois da expiação à bem-aventurança suprema. Na verdade, é
maravilhoso como ele foi capaz de tecer em todos os três poemas estes três
dogmas com verdadeiramente trabalhado desenho. (Benedict XV, In
Praeclara Summorum, Section 4, 30 April 1921)
Le Goff comenta sobre
isso:
Não ignoro que, para
a teologia católica moderna, o Purgatório não é um lugar, mas um estado. Os Padres do concílio de Trento, ansiosos neste ponto
como nos restantes, por evitar a contaminação da religião pelas “superstições”,
deixaram de fora do dogma o conteúdo da
ideia de Purgatório. Assim, nem a
localização do Purgatório nem a natureza das penas que lá se sofrem foram
definidas pelo dogma e antes foram deixadas à liberdade das opiniões. Mas espero
mostrar neste livro que a concepção do
Purgatório como lugar e as imagens que lhe estão ligadas desempenharam um
papel capital no êxito desta crença". Isto não se aplica somente à massa
dos fiéis mas também aos teólogos e às
autoridades eclesiásticas dos séculos XII e XIII. (p. 27)
A imagem do
purgatório como algo que ocupa espaço e tempo foi a posição padrão. Esses
autores em larga medida estavam seguindo Agostinho. Desta forma, se o
purgatório não era um lugar na concepção de Agostinho, cabe ao apologista
católico provar. É interessante notar que uma igreja que alega ser guiada pelo
Espírito Santo, que é responsável por evitar que o rebanho caia em erro, não
tenha conseguido ao longo de dois milênios definir uma questão tão básica.
Eficiência é algo que passa longe do magistério romanista.
(2) O apologista não
apresenta nenhuma evidência de que Agostinho não concebia o purgatório como um
lugar. Ele apenas pressupõe isso para tentar rebater o fato notório de que
Agostinho foi hesitante em sua defesa do purgatório;
(3) Le Goff não
afirma que Agostinho somente não mencionou o purgatório como um lugar. Ele
afirma que ao falar do além, do destino pós-morte, Agostinho não menciona o
purgatório. A omissão não se refere a uma característica do purgatório
(espacialidade), mas ao próprio conceito;
(4) Ainda que para Agostinho
o purgatório não fosse um lugar, ele não estava falando apenas de céu e inferno
ou salvação e condenação. Essa epístola (n. 187) pode ser vista aqui.
O tema principal era a onipresença de Deus e o lugar para onde Cristo foi
quando morreu, uma vez que Dardanus perguntou sobre aquela famosa passagem do
ladrão na cruz. Agostinho discorre sobre o destino da alma no pós-morte. Que
católico romano ao responder uma questão que envolve o destino da alma no
pós-morte esqueceria de mencionar o purgatório? Se alguém consultar um padre e
fazer uma pergunta que envolva o pós-morte, ele simplesmente esqueceria de
mencionar o purgatório? Ou Agostinho era um professor omisso (hipótese bem
improvável) ou ele simplesmente não tinha o purgatório como algo certo, ou
seja, como um artigo de fé obrigatório para a igreja;
(5) Por último, há
evidências de que ele concebeu o purgatório como um lugar. Ele de fato não
deixou esse ponto muito claro, mas vamos analisar algumas evidências. Le Goff
escreve:
Mas Agostinho deixou na sombra dois elementos essenciais
do sistema do Purgatório. Primeiro, a
definição não só dos pecadores (nem inteiramente bons nem inteiramente maus)
mas também dos pecados que conduzem ao Purgatório. Em Agostinho não existe
doutrina dos pecados “veniais”. Depois a caracterização do Purgatório como lugar. Vemos aqui uma das razões
essenciais da recusa de Agostinho de ir tão longe. Ele define o tempo em
oposição aos milenaristas e aos misericordiosos. Não define o lugar e conteúdo concreto porque para isso lhe seria
necessário adotar algumas das crenças “populares” - trazidas precisamente pela
tradição apocalíptica e apócrifa que ele recusa (...) Agostinho, apesar das suas incertezas e das suas
reticências, admitira o fogo purgatório: o que é também uma das suas
contribuições importantes para a pré-história do Purgatório, pois esse fogo purgatório constitui, sob a
autoridade de Santo Agostinho, a realidade pré-purgatório até ao fim do século
XII, e continuará a ser um elemento essencial do novo lugar. Foi porque a desconfiança em relação às crenças e às
imagens populares regrediu em certa medida entre 1150 e 1250 que o Purgatório pôde nascer como lugar.
Negativa como positivamente, a posição de Agostinho é muito esclarecedora para
toda esta história ". (p. 105)
Quando Le Goff fala
sobre a caracterização do purgatório como um lugar, ele não está dizendo que
Agostinho não definiu se o purgatório era ou não um lugar, mas que ele não
definiu onde de fato ficaria esse lugar. Isso é esclarecido quando ele diz “Não
define o lugar e conteúdo concreto”. O fato de ele não dizer o conteúdo
concreto obviamente não quer dizer que o purgatório não tem um conteúdo. Da
mesma forma, o fato de ele não ter definido onde ficava o purgatório não
implica que ele não compreendeu o purgatório como um lugar.
Seria uma enorme
inconsistência de Agostinho se ele não o compreendesse como um lugar, afinal
ele afirmou a realidade do fogo purgatório (que causa dor) e também definiu o tempo
que devia durar. Se a alma está sofrendo punição física durante um determinado
tempo, ela precisaria estar igualmente num lugar físico. Vejamos os trechos
abaixo:
No intervalo entre a morte do homem e a ressurreição
suprema, as almas são retidas em
depósitos secretos onde conhecem ou o repouso ou a pena de que são dignas, segundo a sorte que talharam para si
enquanto viviam na carne. (Enchiridion cap. 109)
Entre essas penas
estavam as purgatoriais. As almas estariam sofrendo essas penas num lugar.
Após a morte deste corpo, até que chegue o dia que se
seguirá à ressurreição dos corpos e que será o dia supremo da condenação e da
remuneração, se se afirma que, neste intervalo
de tempo, as almas dos defuntos suportam esta espécie de fogo, não o sentem
aqueles que nos seus corpos não tiveram durante a vida costumes e amores tais
que o seu feno, a sua madeira e a sua palha sejam consumidos; mas os outros sentem-no, aqueles que
trouxeram consigo construções de materiais semelhantes; encontram o fogo de
uma atribulação passageira que queimará completamente essas construções que vêm
do século, seja apenas aqui, seja aqui e
lá em baixo, ou mesmo lá em baixo e não aqui e que não são, aliás, passíveis de
condenação aos Infernos; pois bem, não
repilo esta opinião, pois talvez
seja verdadeira.
(Cidade de Deus - XXI, 26)
É impressionante que
o apologista católico tenha usado esse texto para nos refutar. Esse texto
escrito no fim da vida de Agostinho expressa justamente as suas incertezas
sobre o purgatório. Perceba que ele começa colocando o purgatório como uma
hipótese ao dizer: “se se afirma
que, neste intervalo de tempo, as almas dos defuntos suportam esta espécie de
fogo”. Ou seja, ele trata de uma hipótese. Ele então discorre sobre diferentes
concepções sobre o fogo purificador ao elencar as seguintes hipóteses: (a) pode
ser apenas aqui na terra (uma ideia que nega todo o conceito romanista); (b)
pode ser aqui e lá em baixo (além de afirmar que a pena purgatorial começa
aqui, ele afirma que o purgatório pós-morte ocorre num lugar “lá embaixo”; (c)
e por último pode ser apenas lá em baixo (mais uma vez se refere a um lugar).
Apenas a hipótese C é
de fato o conceito romanista – o purgatório é somente no pós-morte. Mas o que
Agostinho responde? Ele simplesmente diz que a hipótese C é a correta e que
todas as outras são heresias condenadas historicamente pela igreja? Que a
hipótese C é o ensino da igreja desde sempre? NÃO. Ele diz que não repele esta
opinião que TALVEZ (uma expressão claramente especulativa) seja verdadeira. A
opinião a que se refere é a existência ou não dessas penas purgatoriais que
ainda poderiam ser de forma substancialmente distinta do ensino romanista. É inexplicável
diante disso que alguém ainda diga que Agostinho expressou certeza e que estava
transmitindo a tradição histórica da igreja.
Agostinho, a oração
pelos mortos e o purgatório
Como
já havíamos dito, o argumento que os católicos mais utilizam em favor do
purgatório é aponta-lo como uma implicação da oração pelos mortos. Já vimos que
esse argumento é falacioso, algo que o próprio Le Goff chamou de abusivo, mas e
no caso de Agostinho? Será que ele entendia o purgatório como uma implicação
necessária da oração pelos mortos? A resposta é não. No outro artigo citamos o
seguinte trecho da obra Enchiridium (421) que também expressa a incerteza de
Agostinho:
Que algo semelhante aconteça igualmente depois desta
vida, não é impossível. Será de fato assim? É lícito investigá-lo, seja ou não
para descobri-lo. Alguns fiéis (neste
caso) poderiam, mais cedo ou mais tarde,
ser salvos por um fogo purgatório, conforme tenham amado mais ou menos os bens transitórios. Porém, nunca o serão
aqueles de que se diz que “não possuirão o reino de Deus” (I Corintios, VI, li)
se, por uma penitência adequada, não obtiverem a remissão dos seus pecados
(crimina), Adequada, disse eu, que não sejam avaros em esmolas, visto que a
Santa Escritura atribui a estas um valor tal, que o Senhor anuncia (Mateus,
XXV, 34-35) dever contentar-se unicamente com esta colheita para colocar (os
homens) à sua direita ou unicamente com a ausência dela para os pôr à esquerda,
e dirá a uns: “Vinde, os abençoados por meu Pai, recebei o reinos e aos outros:
«Ide para o fogo eterno.” (Enchiridium 69-70)
Esta
é claramente uma expressão de dúvida. Nosso oponente tenta negar o óbvio
afirmando que a dúvida de Agostinho era a respeito da natureza do fogo e não do
purgatório em si. Esse argumento foi utilizado por ele mais de uma vez no
artigo, e como respondemos, é falho. Agostinho nunca discutiu a natureza do
fogo no pós-morte, pois ele entendia o purgatório necessariamente como um fogo
real no pós-morte. Não há como separar o elemento fogo do purgatório em
Agostinho. O próprio Le Goff afirmou que “o fogo purgatório” é em si o
purgatório que iria nascer no séc. XII. A própria citação esclarece sobre o que
Agostinho expressava dúvida. Logo depois ele afirma:
Alguns fiéis (neste
caso) poderiam, mais cedo ou mais tarde, ser
salvos por um fogo purgatório, conforme tenham amado mais ou menos os bens
transitórios.
O
que ele pôs em dúvida foi o processo em si e não a suposta natureza do fogo. O
que era duvidoso era a salvação dos fiéis por um fogo purgatório, ou seja, a
dúvida recaia sobre a própria existência do purgatório. Para não deixar
dúvidas, vamos ver o que antecede essa citação. A que Agostinho se refere
quando ele diz “que algo semelhante”. O que seria?
Com efeito, o fogo de
que falava o Apóstolo nesta passagem deve ser entendido de tal maneira que os
dois devem atravessá-lo: “aquele que sobre este alicerce constrói com ouro, com
prata ou com pedras preciosas, e aquele que constrói com madeira, com erva ou
com palha”. Dito isto, Paulo acrescenta com efeito: “O que é a obra de cada um,
o fogo pô-lo-á à prova. Se a obra de um resiste bem, esse receberá a sua
recompensa. Mas se ela, pelo contrário, é consumida, então sossobra; quanto a
ele, será salvo, mas como através do fogo” (I Corintios, III,13-15). Não é pois só um deles, mas um e outro, que
verão a sua obra posta à prova pelo fogo.
Agostinho
estava discutindo a natureza do fogo (se era real ou espiritual) ou estava
discutindo o processo em si? Definitivamente ele estava discutindo o processo
pelo qual a obra de cada um seria posta à prova. É ai que o apologista católico
traz o comentário de Le Goff que em nenhum momento referenda a interpretação
dele, pelo contrário, ele aponta a dúvida de Agostinho a respeito. Depois, ele
traz citações da mesma obra que supostamente demonstrariam a certeza de
Agostinho sobre o purgatório:
Não se pode, porém, negar que as almas dos defuntos sejam
aliviadas pelas preces dos seus próximos ainda vivos, quando por elas é
oferecido o sacrifício do Mediador ou na Igreja são distribuídas esmolas. Mas
estas obras servem apenas para aqueles que, enquanto viviam, mereceram que elas
pudessem servir-lhes mais tarde.
Os sacrifícios do altar ou da esmola que são oferecidos
em intenção de todos os defuntos batizados, para
aqueles que foram inteiramente bons, são ações de graças; para aqueles que não
foram inteiramente maus, são meios de propiciação (...)
Ele
também traz citações das “Confissões” (397) que contem um oração dirigida a sua
mãe que tinha morrido, de “Do cuidado devido aos mortos” (422), e “Das 8
questões de Dulcídio” (422), onde Agostinho afirma:
Lemos nos livros dos
Macabeus que foi oferecido um sacrifício pelos falecidos. E apesar de não
podermos ler isto em nenhum outro lugar do Antigo Testamento, não é pequena a autoridade da Igreja
universal que reflete este costume, quando nas orações que o sacerdote oferece
ao Senhor, nosso Deus, sobre o altar encontra seu momento especial na
comemoração dos falecidos. (Do Cuidado devido aos Mortos 1,3)
Agostinho
afirma que é inegável e também afirma que se trata do ensino da igreja. A
questão é – onde ele está falando de purgatório? Em absolutamente lugar nenhum.
Nenhuma dessas citações mencionam o purgatório. Elas falam de orações pelos mortos.
De fato a oração pelos mortos já era algo firmemente estabelecido na igreja no
século V e Agostinho acreditava que elas eram eficazes em favor dos mortos. Ela
também acreditava que elas não deveriam ser oferecidas aos que levaram uma vida
muito ruim, afinal tais pessoas estariam no inferno. Mas, ele estava
implicitamente dizendo que o purgatório era uma tradição autoritária da igreja
e que tinha certeza de sua existência? Vou deixar que Le Goff responda ao
apologista católico:
Agostinho foi o primeiro a afirmar a eficácia dos
sufrágios pelos mortos. Fê-lo pela primeira
vez num momento de emoção, na oração que escreveu em 397-398 nas Confissões, IX,
XIII, 34-37, depois da morte de sua mãe Mónica. (p. 86-87)
A decisão de colocar
ou não Mónica no Paraíso, na Jerusalém eterna, só pertence a Deus. Apesar de
tudo, Agostinho está convencido de que as suas preces podem comover Deus e
influenciar a sua decisão. Mas o julgamento de Deus não será arbitrário, e a
sua prece não será absurda nem absolutamente temerária. É porque Mónica, apesar
dos seus pecados - pois todo o ser humano é pecador - mereceu em vida a
salvação, que a misericórdia de Deus poderá exercer-se e a prece do seu filho
ser eficaz. Sem que seja dito, o que se pressente é que a misericórdia de Deus
e os sufrágios dos vivos podem apressar a entrada dos mortos no Paraíso e não
fazê-los transpor as suas portas, se foram grandes pecadores cá em baixo. (p. 88)
Esse
trecho foi integralmente copiado pelo apologista católico, mas por algum motivo
ele omitiu o trecho que vem imediatamente subsequente:
O que também não é
dito, mas é verosímiI é que, como não
existe Purgatório (nem existe em
qualquer texto de Agostinho uma única frase que estabeleça ligação entre os
sufrágios e o fogo purgatório), este empurrão no sentido da salvação dos
mortos pecadores mas merecedores terá lugar logo a seguir à morte ou, em todo o
caso, sem que tenha decorrido tempo suficiente para ser necessário definir um
prazo e ainda menos um lugar onde passar essa espera.
Agora
sabemos porque ele omitiu esse trecho, afinal Le Goff está negando a tese que
ele utiliza. Em toda a oração de Agostinho por sua mãe, em nenhum momento ela a
situa no purgatório. Não diz que ela está sendo purificada ou está pagando. Num
contexto, em que uma menção ao purgatório seria inevitável, Agostinho não diz
nada sobre. Como disse Le Goff, não encontramos em Agostinho o argumento
romanista de que oração pelos mortos implica em purgatório. Le Goff também
escreve:
É significativo o
fato de Agostinho, nas Confissões, esboçar
pela primeira vez uma reflexão que o levará ao caminho do Purgatório,
quando experimentou determinados sentimentos após a morte de sua mãe Mónica.
Esta confiança dos cristãos na eficácia dos sufrágios só tardiamente se uniu à
crença na existência de uma purificação depois da morte. Joseph Ntedika mostrou claramente que, em Agostinho por
exemplo, as duas crenças se formaram em separado, sem praticamente se
encontrarem.
(p. 25-26)
Esse
trecho referenda duas de nossas teses:
(1)
A ideia do purgatório surgiu durante a vida de Agostinho. Ele passou a
acreditar nisso. Como Le Goff disse: “que levará ao caminho do purgatório” e “a
crença se formou em Agostinho”. Ou seja, trata-se não de algo que ele recebeu,
mas que ele passou a acreditar;
(2)
As crenças em oração pelos mortos e purgatório tiveram caminhos separados. Por
isso, o argumento católico não funciona em Agostinho.
Quando
afirmamos que Agostinho inovou nesta questão do purgatório, alguns católicos
parecem achar absurdo ou algo muito improvável de acontecer. Isso deriva em
parte da visão ingênua que muitos católicos têm da história da igreja. Eles
acham que todas as doutrinas católicas sempre foram cridas desde o início (tese
que nem os historiadores católicos defendem). Até mesmo Peter Stravinskas, um
padre conservador e apologista católico, disse numa revista católica:
Apesar da tremenda
influência de Agostinho, várias de suas
opiniões nunca ganharam aceitação na Igreja. Entre elas, podemos destacar
as seguintes teorias: que Deus
condenaria crianças não batizadas ao inferno, simplesmente por causa da
herança do pecado original; que Deus justamente condena adultos que nunca
tiveram a oportunidade de serem apresentados ao Evangelho, mais uma vez, devido
unicamente ao pecado original contraído por eles; que algumas pessoas sofreriam condenação eterna por nenhuma outra razão
do que a falta de interesse de Deus em salvá-las. Ao refletirmos sobre
essas posições agostinianas, devemos lembrar do fato de que só porque alguém é
um santo ou mesmo um doutor da Igreja não torna todo seu corpo de ensinar
aceitável, somente o Magistério da
Igreja pode decidir o que é ou não é conforme sua compreensão da verdade de
Cristo.
(Envoy, Setembro/Outubro de 1998)
A
ideia de que Deus condenaria crianças não batizadas ao inferno é uma inovação
de Agostinho, pois não fazia parte do ensino da igreja a respeito. A defesa da
eleição incondicional aludida acima também não fazia parte do ensino da igreja.
Se Agostinho trouxe teses novas em questões tão fundamentais como a salvação,
porque ele não poderia fazer o mesmo em relação ao purgatório?
Diferenças entre o
conceito agostiniano e o conceito romanista
Embora
Agostinho tenha influenciado decisivamente na adoção do purgatório como artigo
de fé séculos mais tarde, o seu conceito de purgatório tinha diferenças em
relação ao que a igreja romana atualmente ensina. Le Goff escreve a respeito:
Foi para instituir o
Inferno que ele definiu certas categorias de pecadores e de pecados. Joseph
Ntedika distinguiu três espécies de homens, três espécies de pecados e três
espécies de destinos. Parece-me que o pensamento de Agostinho é mais complexo (a trindade será obra dos clérigos dos
séculos XII e XIII). Existem quatro
espécies de homens: os ímpios
(infiéis ou autores de pecados criminais) que, sem recurso nem escapatória
possíveis, vão diretamente para o Inferno; no
outro extremo, os mártires, os santos e os justos que, mesmo que tenham
cometido pecados “ligeiros”, irão para o Paraíso diretamente ou muito em breve.
Entre os dois extremos há aqueles que não são
inteiramente bons nem inteiramente
maus. Estes últimos são, de fato, destinados ao Inferno; quando muito poderão ter esperança, e será
talvez possível obter para eles, por meio de sufrágios como adiante se verá, um
Inferno “mais tolerável”. Resta a categoria daqueles que não foram
inteiramente bons. Esses podem (talvez)
salvar-se por meio de um fogo purgatório. Não é, em definitivo, uma categoria muito numerosa. Mas se este fogo e esta categoria existem,
Agostinho tem ideias mais precisas sobre determinadas condições da sua
existência. Além de ser muito doloroso, este fogo não é eterno, contrariamente
ao fogo da geena, e não atuará no momento do Julgamento Final mas entre a morte
e a ressurreição. Por outro lado, é possível obter uma mitigação das penas
graças aos sufrágios dos vivos habilitados a intervir junto de Deus e na
condição de, finalmente e apesar dos pecados, se ter merecido a salvação. Estes
méritos adquirem-se com uma vida geralmente boa e um esforço constante por a
melhorar, com a realização de obras de misericórdia e com a prática da
penitência. Este relacionamento da
penitência com o “purgatório”, que será tão importante nos séculos XII e XIII,
aparece pela primeira vez nitidamente em Agostinho. Em definitivo, se
Agostinho situou explicitamente o tempo da purgação do Julgamento Final no
período intermédio entre a morte e a ressurreição, a sua tendência é para colocar ainda mais atrás, quer dizer aqui em
baixo, essa purgação. No fundo desta
existência existe a ideia de que as “atribuições” terrenas são a principal
forma de “purgatório”. Daí as suas hesitações sobre a natureza do fogo
purgatório. Se ele atua depois da morte,
não há objecção a que seja “real”; mas se existe nesta terra, então deve
ser essencialmente “moral”. (p. 92)
E
também:
Em Agostinho não existe doutrina dos pecados “veniais”. (p. 105)
(1)
No
sistema católico romano, quem não morreu em pecado mortal, mas tem pecados
veniais vai para o purgatório. Por isso, a definição de pecados veniais é vital
para a doutrina do purgatório, muito embora a igreja romana nunca tenha
produzido uma lista exaustiva do que são pecados veniais e mortais. Para
Agostinho, os santos, os mártires e os justos mesmo que morram em pecados
menores podem não ir para o purgatório. Já na teologia romanista, eles
necessariamente iriam para o purgatório;
(2)
Agostinho
também acreditava que era possível orar para que alguém passasse por um inferno
mais moderado. A igreja romana não ensina isso. Perceba como alguém poderia
orar para um morto sem que ele necessariamente estivesse no purgatório;
(3)
Os
que iriam para o purgatório seriam os não inteiramente bons. É uma categoria pouco numerosa, enquanto no
conceito romanista, os que vão passar pela purificação formam a categoria mais
numerosa. Agostinho não definiu concretamente quem de fato eram esses não
inteiramente bons. Diferente da igreja romana, ele não tinha um catálogo
específico de pecados que necessariamente levariam um cristão para o purgatório;
(4)
Agostinho
acredita que o purgatório começa aqui em baixo (uma posição que ele também
expressou dúvida). Já nesta vida, os cristãos sofrem penas purgatoriais. No
conceito romanista, o purgatório é situado somente no pós-morte;
(5)
Quando
se trata do purgatório pós-morte, Agostinho não tinha dúvida de que o fogo era
real (em oposição ao argumento católico de que a incerteza dele era sobre a
natureza do fogo). Só quando se referia ao período anterior à morte é que o
fogo poderia ser moral.
Além do mais, Le Goff
continua a expressar as dúvidas de Agostinho. Ele diz que “talvez” as pessoas
se salvem pelo purgatório. O bispo de Hipona foi o primeiro a relacionar o
purgatório à penitência (sua crença sobre a penitência é distinta da igreja romana).
Essa é uma prova contundente da inovação. Na teologia romana, a penitência e o
purgatório são coisas intimamente ligadas. Muitos terão que passar pelo
purgatório por não terem feito penitência. O simples de fato de Agostinho ser o
primeiro a fazer essa conexão é revelador sobre a inovação da ideia.
Conclusão
Depois desse longo artigo, creio que
foi suficientemente mostrado que:
(1) Ao ensinar o
purgatório, Agostinho não estava passando algo crido por toda a igreja e desde
sempre;
(2) Nenhum pai da
igreja ensinou o purgatório de acordo com o conceito da igreja romana antes de
Agostinho;
(3) Agostinho não
tinha certeza sobre a questão. Em vários momentos expressou dúvida sobre a
hipótese teológica do purgatório;
(4) Jacques Le Goff
referenda os pontos acima;
(5) Crer em oração
pelos mortos não necessariamente implica numa crença no purgatório romanista.
O "Apologistas" na camufla respondeu um pouco do seu texto kkkkkkk
ResponderExcluirhttp://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/874-santo-agostinho-e-o-purgatorio#comment-2671340141
Respondido aqui:
Excluirhttp://respostascristas.blogspot.com.br/2016/05/agostinho-e-o-purgatorio-novamente.html