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sexta-feira, 26 de julho de 2019

Gênesis 3:15, os Pais da Igreja e Quem Esmagaria a Cabeça da Serpente




O texto de Gênesis 3:15 é frequentemente citado por apologistas católicas como uma referência mariana. Segundo eles, quem esmagaria a cabeça da serpente seria Maria. O argumento exegético é frágil e já há diversos artigos expondo a correta exegese do texto (aqui). Diante disso, os católicos costumam apelar à “tradição”. No fim das contas, tradição é tudo que Roma diz que é. Ainda que haja diferentes conceitos de tradição circulando na teologia romana, é comum apelar aos Pais da Igreja como evidência. O problema é que geralmente este apelo é seletivo ou enganoso. A grande questão é quem iria ferir a cabeça da serpente. Vejamos então a interpretação patrística do texto bíblico em ordem cronológica:

Justino Mártir (?-165) é as vezes citado como exemplo da interpretação mariana com base no texto abaixo:

Porque Eva, que era virgem e pura, tendo concebido a palavra da serpente, produziu desobediência e morte. Mas a Virgem Maria recebeu fé e alegria quando o anjo Gabriel anunciou as boas novas de que o Espírito do Senhor viria sobre ela, e o poder do Altíssimo a ofuscou: por isso o que é gerado por ela é o Filho de Deus; e ela respondeu: 'Seja para mim segundo a tua palavra'. Através dela Ele nasceu, a quem temos provado que tantas Escrituras se referem, e por quem Deus destrói a serpente e os anjos e homens que são como ela; mas opera a libertação da morte para aqueles que se arrependem de sua iniquidade e acreditam Nele. (Diálogo com Trifo 100:5-6)

Justino estabelece um paralelo entre Eva e Maria que muitas vezes é utilizado para referendar doutrinas marianas sem qualquer respaldo nos escritos do autor. Ele não é claro sobre a identidade da “semente da mulher”. Não há como afirmar certamente que era Maria ou Jesus, mas Jesus parece ser o melhor candidato. Ele menciona que Jesus “destrói a serpente”. Embora não seja uma referência direta a quem esmaga a cabeça da serpente, é no mínimo uma indicação de Jesus como aquele que vence a serpente. Ele alude a esta passagem outras vezes na mesma obra (91:4, 94:1, 100:5-6, 102:3, 103:5 e 112:12). Em nenhuma delas há alusão direta sobre quem esmaga a serpente.

Irineu de Lyon (?-220) faz várias alusões ao texto em questão:

Aquele que deveria nascer de uma mulher, [ou seja] da Virgem, à semelhança de Adão, foi proclamado como vigiando a cabeça da serpente. Esta é a semente da qual o apóstolo diz na Epístola aos Gálatas: “que a lei das obras foi estabelecida até que a semente viesse a quem a promessa foi feita.” Este fato é exibido mais claramente na mesma Epístola, onde ele fala assim: “Mas quando a plenitude do tempo chegou, Deus enviou Seu Filho, feito de uma mulher.” Pois, de fato, o inimigo não teria sido derrotado, a menos que um homem [nascido] de uma mulher o dominasse. (Contra as Heresias 5:21:1)

Ele claramente aduz ao texto de Gênesis 3:15 “proclamado como vigiando a cabeça da serpente” e o conecta à Epístola de Gálatas na qual Cristo é chamado de semente (Gal. 3:19). Logo, a “semente” da mulher que esmagou a cabeça da serpente é Cristo. Interessa notar que Irineu também fez uma analogia entre Maria e Eva na mesma obra (3:22:4 e 5:19:1), mas não identifica Maria como a mulher de Gênesis 3:15. Ele novamente identifica Jesus como aquele que pisou na cabeça da serpente em outro lugar:

Como também a Escritura nos diz que Deus disse à serpente: “E eu colocarei inimizade entre você e a mulher, e entre sua semente e sua semente dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”. E o Senhor recapitulou em Si mesmo essa inimizade, quando foi feito homem por uma mulher, e pisou em sua cabeça [da serpente], como eu indiquei no livro anterior. (Contra as Heresias 4:20:3)

Clemente de Alexandria (150-215) alude ao texto bíblico sem identificar aquele que esmagaria a serpente:

Um e o mesmo é também nosso auxiliador e defensor, o Senhor, que desde o princípio predisse a salvação na profecia. (Cohortatioad Gentes 1)

Orígenes (184-253) identifica a semente da mulher com a Igreja:

Vamos então orar para que nossos pés sejam tão formosos, tão fortes, para que possam esmagar a cabeça da serpente a fim de que ela não possa morder o nosso calcanhar (Gn 3:15) (...) Então você vê que quem luta debaixo de Jesus [Josué], deve retornar a salvo da batalha. (Homilias em Josué 12:2)

Em outro lugar, ele relaciona a inimizade predita no texto bíblico com o sofrimento de Jeremias:

É necessário que a amizade de Cristo gere inimizade contra a Serpente, e a amizade da Serpente traga inimizade contra Cristo. (Homilias em Jeremias 19:7)

Jeremias seria então um exemplo de semente da mulher. Isto é consistente com a ideia de que a Igreja é a semente da mulher, que, com a força de Cristo, esmaga a cabeça da serpente. Sendo a Igreja a semente, é improvável que ele interpretasse a mulher como sendo Maria, haja vista que Maria não é quem gera a Igreja.

Cipriano de Cartago (?-258), citando Isaías 7:10-15, interpreta a semente como sendo Jesus:

(...) o próprio Deus lhe dará um sinal. Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e tu chamarás o seu nome Emanuel. Manteiga e mel ele comerá, e antes que Ele saiba o que é preferir o mal, Ele deverá se voltar para o bem. Essa semente que Deus predisse que viria da mulher e que iria pisar na cabeça do diabo. Em Gênesis: "Então Deus disse à serpente: Feito isto, amaldiçoado és tu de todo tipo dos animais da terra. Sobre o teu peito e o teu ventre arrastarás e a terra será a tua comida todos os dias da tua vida. E colocarei inimizade entre ti e a mulher e sua semente. Ele considerará a tua cabeça, e tu olharás o seu calcanhar". (Três Livros de Testemunhos contra os Judeus 2:9)

Em outras partes, Cipriano identifica os membros da Igreja como aqueles que esmagam a cabeça da serpente, ou seja, uma interpretação coletiva:

Que nossos pés sejam calçados com o ensino do Evangelho e armados para que, quando a serpente começar a ser pisada e esmagado por nós, ela não possa ser capaz de nos morder e derrubar. (Carta 55:9)

Ele também aplica o mesmo a um cristão que não negou a fé sob tortura:

E embora seus pés estivessem amarrados com cordas, a cabeça da serpente [estava] esmagada e dominada. (Carta 39:2)

Dessa forma, vemos que, nestes testemunhos referentes aos primeiros três séculos da Igreja, não há nenhum pai da Igreja indicando Maria como aquela que esmagaria a cabeça da serpente. Isto está de acordo com o fato de que a devoção Mariana e a elevação da mãe de Jesus ao status que atualmente ocupa nas Igrejas de Roma ou Igrejas Orientais levaria ainda séculos para ocorrer, e não fazia parte do período mais primitivo da Igreja.

Serapião de Thumis (?-359), escrevendo no séc. IV, disse que a semente era Cristo:

Mas uma mulher não tem semente, só o homem tem. Como então foi dito da mulher? Está claro que foi dito a respeito de Cristo a quem a virgem pura gerou sem semente? Certamente, Ele é uma semente singular, não sementes no plural. (Tiburtius Gallus, S. J., Interpretatio Mariologica Protoevangelii [Gen. 3:15], Tempore postpatristico usque ad Concilium Tridentium [Rome: n.p., 1949], 24)

Cirilo de Jerusalém parece interpretar como sendo a Igreja (?-386):

Pois há também uma inimizade que é certa, como está escrito, eu porei inimizade entre ti e a sua semente, pois a amizade com a serpente opera a inimizade contra Deus e a morte. (Leituras Catequéticas 16:10)

Optato de Mileve (?-400) deu uma interpretação coletiva:

No começo do mundo, a inimizade começou com o Diabo. Foi quando a sentença de Deus colocou as duas sementes uma contra a outra em rivalidade hostil. Ele disse: "Vou colocar inimizade entre tua semente e a semente da mulher; ela (ipsa) ferirá a tua cabeça, e tu ferirá o seu calcanhar ” (Gn 3:15). Essa inimizade (...) derrama sangue santo desde o princípio. Logo depois, o justo Abel é assassinado por seu irmão (Gn 4). (In Natale Infantium qui pro Domino occisi sunt, 5; FG, 173-74; Unger cites source for text as A. Wilmart, RevScRel 2 (1922), 271-302; 283)

A semente da serpente seria representada pelo ímpio, e a da mulher pelo justo. O primeiro caso de inimizade entre as duas sementes seria Caim e Abel. Dessa forma, a mulher dificilmente seria Maria aqui, pois não faria sentido relacioná-la a Caim e Abel.

João Crisóstomo (?-400) indica os membros da Igreja como a semente da mulher. Num sermão sobre Gênesis 3, ele fala da inimizade entre as serpentes (no sentido natural) e a humanidade. É então que ele diz sobre Gênesis 3:15:

Deve ser levado muito mais em conta a serpente intelectual [o diabo], Pois também Deus o humilhou e o sujeitou debaixo de nossos pés e nos deu o poder para pisar em sua cabeça. (Homilias em Gênesis 17:7)

Jerônimo (?-420), o tradutor da vulgata. Esta tradução é em grande parte responsável pela confusão que se seguiu na interpretação da passagem, pois Jerônimo usou o pronome feminino (ipsa), em contraste a forma como havia traduzido numa obra exegética anterior (Quaestiones hebraicae), na qual ele traduziu: "Ele esmagará a sua cabeça e você esmagará o calcanhar". Em todo o caso, não há registros de que o próprio Jerônimo tenha identificado a mulher ou a semente da mulher como sendo Maria. Ele aplicou uma interpretação coletiva quando abordou a passagem.  Em seu comentário sobre Ezequiel, ele fala das águas que “alcançam os tornozelos que estão perto das solas e do calcanhar, e estão expostos às picadas da serpente (Comentário sobre Ezequiel 14.47:3). Ele comenta sobre a serpente mencionada em Eclesiastes 10:8 e diz que ela é a mesma “que enganou Eva no paraíso, a qual por ter destruído o preceito de Deus, expôs-se as suas mordidas e ouviu do Senhor: ‘Tu lhe ferirás a cabeça e ele (ille-coluber) ferirá o teu calcanhar" (Comentário em Isaías 16, 58:12). Nesta interpretação, a mulher seria Eva. Em suma, ele aponta Eva como a mulher e, ao se referir aos que são feridos pela serpente, adota uma interpretação coletiva, não indicando Maria individualmente. É razoável supor que ele interpretasse que os membros da Igreja esmagariam a cabeça da serpente.

Agostinho (354-430) identificou a semente como as boas obras:

Foi colocada inimizade entre a semente do diabo e a semente da mulher. A semente do diabo significa a sugestão perversa e da mulher significa o fruto da boa obra pela qual se resiste à sugestão perversa. Assim, ele vigia o pé da mulher para que, caso a mulher escorregue em algum prazer proibido, ele possa se aproveitar dela. Já ela vigia sua cabeça a fim de que possa evitá-lo já no início de qualquer tentação maligna. (Sobre o Gênesis contra os Maniqueus, cap. 18)

Em outro lugar, ele identifica Eva como a mulher e a Igreja como a semente:

Essa cabeça é a parte que recebeu a maldição, a saber que a semente de Eva deveria marcar a cabeça da serpente. Pois a Igreja foi admoestada a evitar o começo do pecado. Qual é o começo do pecado, como a cabeça da serpente? O começo de todo pecado é o orgulho. (Comentário sobre o Salmo 74, v. 14)

Aqui, fica claro que Igreja (a semente de Eva) deveria vigiar e evitar o pecado, ou seja, esmagar a cabeça da serpente. Em suma, Agostinho não aponta nem a semente da mulher nem a própria mulher como Maria. Ele faz alusões a Gênesis 3:15 em outros lugares (Comentários sobre os Salmos 36:12-13 e 49:6 – aqui), sem estabelecer qualquer relação da passagem com Maria.  João Cassiano ofereceu uma interpretação similar ao identificar a cabeça da serpente como o início do pecado e o calcanhar como o fim de nossas vidas (Institutas 4:37).

Um antigo manuscrito traz a interpretação de Pais da Igreja Sírios (ex. Teodoro de Mopsuestia e Efrém) sobre o Gênesis. Eles disseram sobre a cabeça e o calcanhar:

 (...) esta é uma figura do julgamento sobre Satanás, pois Deus o colocou muito abaixo de nós. Quanto a nós, se desejamos o bem, somos capazes de feri-lo através de ações poderosas. Contudo, ele também é capaz de nos ferir, uma vez que ele vigia nossos calcanhares, ou seja, nosso caminho, que são nossos atos. (Abraham Levene, The Early Syrian Fathers on Genesis: From a Syrian MS [London: Taylor’s Foreign Press, 1951], 24, 77-78.

Trata-se de uma interpretação coletiva na qual a semente da mulher é entendida como sendo os cristãos. Uma implicação dessa interpretação coletiva é que a mulher não poderia ser Maria. Eva seria uma candidata mais forte, uma vez que ela deu origem a raça humana. Em conclusão, vimos que a interpretação de que Maria esmagou a cabeça da serpente não encontra eco no pensamento patrístico. Mesmo a interpretação de que Maria seria a mulher que geraria a semente também não parece ter tido muitos apoiadores. Eu procurei em blogs católicos a fim de encontrar alguma citação patrística que afirmasse ser Maria aquela que esmagaria a serpente e não encontrei nada. Eles geralmente citam o paralelo entre Eva e maria feito por Irineu e Justino, mas já vimos que extrair daí a exegese de Gênesis 3:15 não faz jus aos escritos desses autores. O estudo mais detalhado sobre Gênesis 3:15 pode ser visto aqui.


terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Maria, a Arca da Aliança e os Pais da Igreja


Os católicos argumentam que a Arca da Aliança era um tipo de Maria. Neste artigo, veremos os exemplos de pais da igreja que contradizem esta visão. No século II, Irineu de Lyon escreveu:

Assim é que a arca apontava um tipo do corpo de Cristo, que é puro e imaculado. Pois, como essa arca era dourada com ouro puro tanto dentro como fora, também o corpo de Cristo é puro e resplandecente, sendo adornado dentro pela Palavra e fora protegido pelo Espírito para que, em ambos os materiais, o esplendor das naturezas possa ser exibido juntos. (Fragmentos 48)

Hipólito, no século III, também viu Jesus ao invés de Maria na arca. Ele menciona Maria ao descrever Jesus como a arca, por isso não se pode argumentar que ele não estava pensando em Maria neste contexto:

Naquele tempo o Salvador apareceu e mostrou seu próprio corpo ao mundo, nascido da virgem, que era a "arca coberta de ouro puro ", com a palavra dentro e sem o Espírito Santo. Deste modo, a verdade é demonstrada e a "arca" se manifestou (...) o Salvador apareceu ao mundo, trazendo a arca imperecível - seu próprio corpo. (Sobre Daniel 2:6)

Vitorino, também no século III, vê a arca como representando as bênçãos que Jesus trouxe à humanidade. Ele nos diz que o templo é Jesus, o que significa que a arca está dentro de Jesus. Os católicos romanos fazem o argumento oposto, alegando que a arca, sendo Maria, carrega Jesus:

"E abriu o templo de Deus, que está no céu". O templo aberto é uma manifestação de nosso Senhor. Pois, o templo de Deus é o Filho, como Ele mesmo diz: "Destrua este templo, e em três dias o levantarei". E quando os judeus disseram: "Em quarenta e seis anos foi este templo construído". O evangelista diz: "Ele falou do templo de Seu corpo". "E foi visto em seu templo a arca do testamento do Senhor". A pregação do evangelho e o perdão dos pecados, e todos os presentes, tudo o que veio com ele, ele diz, apareceu nela. (Comentário sobre o Apocalipse do abençoado João 11:19)

Agostinho, no século V, também escreveu:

"Levanta-te, ó Senhor, toma teu lugar de descanso" (v. 8). Ele disse ao Senhor adormecido, "Levanta-te". Sabemos que dormia e que ressuscitou (...) "Tu e a arca de vossa santificação": Quer dizer levanta-te a arca da tua santificação, que Tu santificaste, e pode levantar também. Ele é o nosso chefe, sua arca é a Sua Igreja: Ele levantou primeiro, a Igreja irá levantar também. O corpo não se atreveria a prometer sua própria ressurreição, salvo se a cabeça levantasse antes. O corpo de Cristo, que nasceu de Maria, tem sido entendido por alguns como a arca de santificação, de modo que as palavras significam: Levanta-te com o teu corpo, para aqueles que não acreditam possam tocar. (Comentários dos Salmos 132:8)

Percebam como, num mesmo texto em que Maria é mencionada, Agostinho relaciona a arca à Igreja. Ele ainda cita que outros relacionam o corpo de Cristo a Arca, mas não há relação entre a arca e Maria. 

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A Oração aos Santos no Período Pós-Niceno - Parte 2


Em continuidade ao primeiro artigo (aqui). Proponho-me a analisar algumas citações indevidamente usadas pelos apologistas católicos em favor da invocação dos santos nos séculos IV e V. Diferente do que é argumentado, embora a invocação tenha se tornado popular a partir do século IV, passou longe de ser um consenso nesse período, no qual vemos testemunhas patrísticas e outros se opondo a prática.

Atanásio de Alexandria (293-373)

Este foi o conselho que ele deu aos que vieram até ele. E com aqueles que sofriam ele se compadeceu e orou. E muitas vezes o Senhor o ouviu em nome de muitos: no entanto, ele não se gabava porque era ouvido, nem murmurava se não fosse. Mas sempre agradeceu ao Senhor e pediu ao que sofria para ser paciente e saber que a cura não pertencia a ele nem ao homem, mas apenas ao Senhor, que faz o bem quando e a quem Ele quer. Os sofredores, portanto, costumavam receber as palavras do ancião como se fosse uma cura, aprendendo a não desanimar, mas sim a ser paciente. E aqueles que foram curados foram ensinados a não agradecer a Antônio, mas a Deus somente. (NPNF2-04. Athanasius: Select Works and Letters, Life of Anthony, Section 56)

Antônio foi um monge que viveu no início do séc. IV. Ele, inclusive, é um santo da Igreja Romana. A postura desse homem que foi biografado por Atanásio contrasta com a prática do romanismo. Os curados pela intercessão de Antônio (quando este vivia obviamente) eram desestimulados a agradecer a ele, sendo ensinados a agradecerem a Deus. Compare isso com a prática popular em nosso país de não só agradecer a suposta ajuda de homens falecidos, como ainda “pagar promessas” a esses homens. Antônio certamente não via necessidade de utilizar outros intercessores além de Cristo. Mais detalhes (aqui). Atanásio ainda oferece poderoso testemunho contra a invocação de criaturas:

Por essa causa então, de forma consistente e apropriada, tais afeições não são atribuídas a outro, mas ao Senhor para que a graça seja dele, e para que possamos nos tornar, não adoradores de nenhum outro, mas verdadeiramente devotos de Deus, porque não invocamos nada criado, nenhum homem, mas o natural e verdadeiro filho de Deus, que se tornou homem, não menos Senhor, Deus e Salvador. (Contra os arianos, discurso 3:32)

Concílio de Laodiceia (363-364)

Os cristãos não devem abandonar a Igreja de Deus, e se afastarem, e invocar (οὐνομάζω) anjos e fazer reuniões, que são coisas proibidas. Se alguém for encontrado se entregando a essa idolatria privada, que seja amaldiçoado, porque abandonou nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, e se tornou idólatra. (Synodus Laodiciae (Synod of Laodicea) Canon XXXV) (For translation, see James Ussher, An Answer to a Challenge Made by a Jesuit (Cambridge: J. & J. J. Deighton, 1835), p. 406)

Invocar anjos foi condenado como uma prática pagã e idólatra. É improvável que o mesmo raciocínio não fosse aplicado a invocar falecidos. 

Cirilo de Jerusalém (313-386)

É de Cirilo uma das mais famosas citações em apoio a invocação dos santos:

Então, celebramos também aqueles que adormeceram antes de nós, primeiro os patriarcas, profetas, apóstolos e mártires, para que em suas orações e intercessões, Deus receba nossa petição. Então, em favor também dos Santos Pais e Bispos que adormeceram antes de nós, e uma palavra para todos os que nos últimos anos dormiram dentre nós, acreditando que será um grande benefício para as almas, para quem a súplica é levada, enquanto esse sacrifício sagrado e terrível é estabelecido. (Leituras Catequéticas 23:9)

Existe dois problemas com o uso dessa citação:

(1) Ele faz parte das Catequeses Mistagógicas sobre o qual há dúvidas de autoria. Há uma corrente de estudiosos que defende o sucessor de Cirilo na Igreja de Jerusalém (João II) como o verdadeiro autor. O estudioso patrístico Claudio Moreschini diz:

No passado atribuía-se também essas cinco Catequeses mistagógicas a Cirilo de Jerusalém, mas estudiosos mais recentes consideram, também com base em algumas diferenças de estilo, que as Catequeses mistagógicas são do sucessor de Cirilo na cátedra de Jerusalém, João (387-417). (FONTE)

(2) A citação sugere orar pelos mortos e não orar aos mortos. Há uma diferença substancial entre colocar o morto como o favorecido pela oração e o destinatário da oração. Após falar sobre os “patriarcas, profetas, apóstolos e mártires”, ele conecta com a segunda ação “em favor também dos Santos Pais e Bispos” e conclui com “será um grande benefício para as almas”. Ou seja, a alma dos que já partiram eram beneficiários da oração. A objeção mais óbvia utilizaria o trecho “para que em suas orações e intercessões”. A implicação é que na medida em que eles eram lembrados na oração eucarística, poderiam ser estimulados a orar pela Igreja. Obviamente, Cirilo acreditava que os crentes no céu oram pela Igreja, mas a ideia de orar a Deus em favor dos falecidos é também compatível com a citação acima. Dado que a continuação da citação menciona o favorecimento das almas falecidas, a oração pelo falecido é a interpretação mais provável. Não por acaso, é comum os apologistas católicos utilizarem indevidamente essa citação em favor do purgatório (aqui). Ou seja, até os católicos tomam essa referência como indicando oração pelos mortos e não oração aos mortos. 

Gregório de Nissa (335-394)

A seguinte citação costuma ser apontada:

Efrém, que estais de pé no altar Divino, e ministrando com os anjos à Santíssima e vivificante Santíssima Trindade, recordai-nos todos, pedindo-nos a remissão dos pecados e a fruição de um eterno Reino. (De vita Ephraemi, em fin., PG 46, 850)

Sem dúvidas, refere-se à invocação de um santo que há havia morrido. O problema é que a atribuição de autoria dessa obra a Gregório é objeto de disputa. A enciclopédia católica afirma:

Entre as obras de St. Gregório de Nissa (P.G., XLVI, 819) há um sermão (embora não reconhecido por alguns) que é um verdadeiro panegírico de St. Efrém. (FONTE)

João Crisóstomo (349-407)

Portanto, o diabo introduziu os dos Anjos [pedidos em nome dos anjos], invejando-nos a honra. Tais encantamentos são para os demônios. Mesmo que seja um anjo, mesmo que seja um arcanjo, mesmo que sejam querubins, não permitam; pois tampouco esses poderes aceitarão tais endereçamentos, mas os lançarão longe deles, quando tiverem visto seu Mestre sendo desonrado. (NPNF1: Vol. XIII, Homilies on the Epistle of St. Paul to the Colossians, Homily 9)

Crisóstomo diz que invocação de anjos é obra de demônios. Ele ainda complementa afirmando nem mesmo os anjos aceitam tal endereçamento, pois seria desonroso para seu mestre (Deus) que os anjos recebessem tais orações.

Novamente, Ele [Jesus] nada mais prova por estas palavras, mas que Ele é de Deus. "Pois, então virá o tempo em que todas as coisas serão conhecidas." Mas o que é "Você não deve me perguntar?" "Não precisarás de intercessor, mas basta que invocais o meu Nome, e assim ganhará todas as coisas”. (NPNF1: Vol. XIV, Gospel of St John, Homily 79, §1)

Crisóstomo está comentando João 19:22-23. Ele afirma a desnecessidade de outros intercessores. Isso contradiz a ideia de que apelar somente à intercessão de Jesus é uma atitude egoísta, como alguns apologistas afirmam. 

Isso deve ser em todos os lugares nossa preocupação, não apenas orar, mas orar de modo a ser ouvido. Não é suficiente que a oração peça o que é desejado, a menos que nós a direcionemos como um apelo a Deus. (Robert Charles Hill, St. John Chrysostom Commentary on the Psalms, Volume 1, Psalm 7 (Brookline: Holy Cross Orthodox Press, 1998), p. 117)

A implicação é que a oração deve ser direcionada a Deus. Todavia, há duas citações de Crisóstomo que sugere a invocação dos santos:

Mas por que? Porque é dever de um mestre punir seu criado. E esta não é a única razão. Se o escravo teve que fugir, ele não deveria ter ido aos inimigos que odiavam o mestre, mas deveria ter ido aos verdadeiros amigos de seu mestre. Você deve fazer o mesmo. Quando você vê que Deus lhe castiga, não fique com seus inimigos, os judeus, para que não desperte sua ira contra ti ainda mais. Ao invés disso, corra para os mártires, os santos, para aqueles com quem Ele está satisfeito e que podem falar com Ele com grande confiança e liberdade. (Contra os Judeus, Homilia 8:6)

A citação de fato sugere pedir ajuda a falecidos. Embora, o contexto não fale de oração, a citação sugere a invocação dos santos. Outra citação é a seguinte:

Aquele que usa o roxo […] está pedindo aos santos para serem seus patronos com Deus, e aquele que usa um diadema implora ao fabricante de tendas [Paulo] e o pescador [Pedro] como patronos, mesmo ainda estejam mortos. (Homilias sobre II Coríntios, 26)

O mesmo aqui. É sugerido a invocação dos santos. A luz do que já vimos, Crisóstomo pode ter sido inconsistente em relação tema. É possível também que ele tenha cedido a uma prática que estava ficando cada vez mais popular. Em todo o caso, sua postura inconsistente e vacilante em relação a invocação de criaturas é um indicativo que esta não era uma prática firmemente presente há mais de três séculos na Igreja. A postura de Crisóstomo sugere o contrário. Ela é demonstrativa de um tempo de transição. Todavia, isso passa longe de ter sido um consenso da Igreja (mesmo no séc. IV) e nada sugere se tratar de um artigo de fé.

Ambrósio de Milão (339-397)

Meu coração está despedaçado, porque um homem foi arrebatado, a quem dificilmente poderemos encontrar novamente; contudo, somente você Ó Senhor, deve ser invocado, você deve ser suplicado, para que possa fornecer seu lugar aos filhos. (De obitu Theodosii oratio (Funeral Oration for Theodosius, §36, PL 16:1397A-1397B)

O texto refere-se a uma oração de Ambrósio em homenagem ao imperador Teodósio por conta de seu falecimento. De um ponto de vista romanista, Teodósio estaria no purgatório, e orar aos santos pedindo ajuda ao imperador seria apropriado. No entanto, Ambrósio diz que somente Deus deveria ser invocado. A ele somente deveria ser dirigida a súplica. Sites católicos costumam trazer a seguinte citação de Ambrósio:

Que Pedro, que chorou tão eficazmente por si mesmo, chore por nós e traga para nós o semblante benigno de Cristo.  (Santo Ambrósio de Milão, Hexamerão, V, XXV, 90, PL 14, 242)

A frase é trazida assim, sem nenhum contexto. A ideia é que Ambrósio estivesse orando a Pedro. Todavia, quando trazemos o contexto (veja o contexto aqui), percebemos que esse trecho é parte de uma oração feita a Jesus:

Tenha em conta, Senhor Jesus, nós também, para que possamos reconhecer nossos erros, apaguemos nossas faltas com lágrimas de devoção e mérito indulgente por nossos pecados. E nós temos propositalmente prolongado nossa discussão para que o galo possa vir também para nós enquanto falamos. Portanto, se algum erro se manifestou em nosso discurso, oramos para que Cristo perdoe nosso pecado. Conceda-nos as lágrimas de Pedro. Entregue-nos a partir da exultação do pecador. Os hebreus choraram e foram libertados quando as águas do mar dividiram. Faraó ficou feliz porque ele cercou os hebreus, mas ele foi engolido pelo mar junto com o seu povo. Judas também se alegrou com o preço da traição, mas por causa do mesmo preço se enforcou. Pedro chorou por seus pecados e foi capaz de perdoar os pecados dos outros. Mas agora é tempo apropriado para que este discurso acabe num tempo de silêncio ou de lágrimas, uma vez que é celebrado o perdão dos pecados. Que para nós também em nossos ritos sagrados o galo sagrado cante, como o galo de Pedro fez em nosso discurso. Possa Pedro, que chorou tanto por ele mesmo, chorar também por nós e possa o semblante benigno de Cristo se voltar para nós. Que venha sobre nós a paixão do Senhor Jesus que nos perdoa todos os nossos pecados e realiza o ofício da remissão. (Hexamerão, V, XXV, 88-90)

O argumento católico se desfaz na medida em que toda a oração é dirigida a Cristo. Ambrósio se refere ao momento de pedir perdão pelos pecados. Ele habilmente toma Pedro como um exemplo, pois o apóstolo negou a Cristo, no entanto se tornou exemplo de arrependimento e perdão. Sendo uma oração de confissão e arrependimento, jamais poderia ser dirigida a Pedro como sugerem os apologistas católicos. Quando ele diz “possa Pedro”, há duas possibilidades aqui: (1) um recurso retórico, afinal Pedro era exemplo do que se estava pedindo - ou mais provavelmente - (2) Ambrósio acreditava que Pedro orava no céu pela Igreja na terra. Dado que ele viveu na segunda metade do século quarto, não seria estranho tal pensamento. Todavia, isso é radicalmente distinto da prática romana de orar ao santo. Todavia, há outra citação de Ambrósio no qual ele claramente defende a invocação dos santos e anjos:

Os anjos devem ser invocados por nós, pois foram para nós como guardas. Os mártires devem ser invocados, cuja proteção nós reivindicamos para nós mesmos, sob a garantia de seus restos corporais. Eles podem pedir pelos nossos pecados. Eles, que se tiveram algum pecado, os lavaram em seu próprio sangue, pois eles são os mártires de Deus, nossos líderes, os espectadores de nossa vida e de nossas ações. Não nos envergonhamos de tomá-los como intercessores para a nossa fraqueza, pois eles mesmos conheceram as fraquezas do corpo quando a superaram. (Sobre as viúvas, cap. 9)

Os mesmos comentários sobre Crisóstomo são cabíveis aqui. Em todo o caso, parece-me razoável concluir que a postura desse e outros pais da igreja do período pós-niceno é vacilante. Isso se deu porque a invocação dos santos não era uma tradição antiga ou exposta nas Escrituras, mas uma prática cujas origens eram mais recentes e não poderia ser rastreada até os apóstolos ou cristãos mais antigos.

E a invocação de Maria?

O leitor mais atento deve ter percebido que apesar de Pais da Igreja dos séculos IV terem defendido a invocação dos mártires, vemos quase nada sobre a invocação de Maria. O erudito patrístico J. N. D. Kelly escreveu:

Desse modo, provas confiáveis de orações dirigidas a ela ou da busca de sua proteção e ajuda são quase inexistentes (embora não totalmente) nos primeiros quatros séculos da Igreja. (Kelly, p. 375)

George Salmon, citando o eminente estudioso católico Cardeal Newman, escreveu:

O próprio Dr. Newman, renunciando à doutrina de que a Invocação da virgem é necessária para a salvação, diz (Carta a Pusey, p. III): "Se assim fosse, haveria motivos sérios para duvidar da salvação de São Crisóstomo ou São Atanásio, ou dos primitivos mártires. Mais do que isso, eu gostaria de saber se Santo Agostinho, em todos os seus escritos volumosos, a invoca uma vez. (FONTE)

Uma inovação estranha ao período pré-niceno

O renomado historiador protestante Philip Schaff nos traz um bom resumo:

Nos três primeiros séculos, a veneração dos mártires, em geral, se restringiu à lembrança grata das virtudes e à celebração do dia da sua morte como o dia do seu nascimento celestial. Esta celebração geralmente ocorreu em seus túmulos. Assim, a igreja de Esmirna comemorou anualmente o seu bispo Policarpo e valorizou seus ossos mais do que ouro e gemas, embora com a distinção expressa: " Somente a Cristo adoramos como o Filho de Deus. Os mártires que amamos e honramos como discípulos e sucessores do Senhor, por causa de seu amor insuperável ao seu rei e mestre, como também desejamos ser seus companheiros e discípulos seguidores". Aqui encontramos essa veneração ainda em sua simplicidade inocente. Mas, na era nicena, avançou para uma invocação formal dos santos como nossos patronos e intercessores (mediadores) diante do trono da graça, e degenerou em uma forma de politeísmo refinado e idólatra. Os santos assumiram o lugar dos semideuses (...) Uma vez que havia templos e altares para os heróis, agora as igrejas e as capelas passaram a ser construídas sobre os túmulos dos mártires e foram consagradas a seus nomes (ou mais precisamente a Deus através deles). As pessoas colocavam nelas, como costumavam fazer no templo de Esculápio, os doentes para serem curados, e pendurados neles, como nos templos dos deuses, presentes sagrados de prata e ouro. Seus túmulos estavam, como diz Crisóstomo, ficando esplendidamente adornados e mais frequentemente visitados do que os palácios dos reis. Os banquetes eram realizados ali em sua homenagem, o que recorda as festas pagas do sacrifício. Suas relíquias foram preservadas com cuidados escrupulosos e acreditavam possuir virtudes milagrosas. Anteriormente, era costume orar pelos mártires (como se ainda não fossem perfeitos) e agradecer a Deus por sua comunhão e seu exemplo piedoso. Agora, tais intercessões para eles foram consideradas impróprias, e sua intercessão foi invocada para os vivos. (FONTE)

Schaff assevera o que já demonstramos em outros artigos – a invocação dos santos não remonta ao período pré-niceno. E qual teria sido o fator determinante para essa ruptura na história da Igreja:

Mas, apesar de todas essas distinções e precauções, o que seria esperado de um homem como Agostinho, e reconhecido como uma restrição saudável contra os excessos, não podemos deixar de ver no culto ao mártir, como realmente foi praticado, uma nova forma de culto-heroico dos pagãos. Nem poderíamos imaginar menos, pois a grande massa do povo cristão veio de fato fresca do politeísmo, sem uma conversão completa, e não poderia se despojar de suas antigas noções e costumes num único golpe. A forma despótica do governo, a sujeição servil do povo, a homenagem idólatra que foi rendida aos imperadores bizantinos e suas estátuas, os predicados divino e sacro, que foram aplicados aos enunciados de sua vontade, favoreceram o culto aos santos (...) o presbítero espanhol Vigilâncio, no século V, chamou os cultuadores de mártires e relíquias de cultuadores de cinzas e idólatras, e ensinou que, de acordo com as Escrituras, os vivos só devem orar com e para o outro. Mesmo alguns professores ortodoxos da igreja admitiram a afinidade da adoração dos santos com o paganismo, embora com a visão de mostrar que tudo o que é bom no culto pagão reaparece muito melhor no cristão (...) Agostinho lamenta que, na igreja africana, banquetear e divertir-se fosse praticado diariamente em homenagem aos mártires, mas pensa que essa fraqueza deve ser por um tempo tolerada por ser relacionar aos antigos costumes dos pagãos. (FONTE)

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Tomás de Aquino e a Tentativa de Salvar o Dogma da Imaculada Conceição


Introdução

Os que acompanham nosso blog sabem que nos envolvemos num debate com o site apologistas católicos sobre Tomás de Aquino e a imaculada Conceição. Recentemente foi publicada uma resposta ao nosso último artigo. Os mesmos argumentos foram utilizados e como anteriormente, alguns de nossos argumentos não foram respondidos. Num debate, o ônus da prova recai sobre quem afirma. A afirmação positiva é do apologista católico. O ponto central do debate é se Tomás mudou ou não de ideia. A falsidade ou autenticidade da citação é um ponto secundário que serve como elemento de prova, mas a evidência em si não é tão importante quanto a alegação que se pretende provar. Meus comentários do artigo anterior estarão em azul e os do apologista em vermelho. Na seção “introdução” do seu artigo anterior, apologista católico afirmou:

No seu texto inicial o protestante afirmou que era “falsificação romanista”, agora o discurso muda e passa para “há sérias duvidas”, temos aqui uma mudança de discurso bastante significativa.

Não mudei de discurso. Eu afirmei que era uma falsificação romanista, mas eu não disse que havia certeza de que se tratava de uma falsificação. Eu não qualifiquei minha afirmação como certa ou infalível, por isso, o fato de eu afirmar que há sérias dúvidas é compatível com minha afirmação anterior. Quando alguém diz “o sol vai nascer amanhã”, isso quer dizer necessariamente que é uma afirmação infalível? Obviamente não. Por mais provável que seja o nascer do sol, é possível que um dia isso não aconteça, portanto, qualquer afirmação a respeito é meramente provável. Eu continuo acreditando que se trata de uma falsificação porque as evidências disponíveis apontam para isso.

Quando estamos lidando com a autenticidade de uma obra, citação ou mesmo a interpretação de um texto, o máximo que podemos ter é a posição mais provável ou plausível. Não há nenhum intérprete ou crítico textual infalível que pudesse produzir uma interpretação infalível de Tomás de Aquino. Apesar de a igreja romana supostamente ter um magistério infalível, é sabido que nenhuma declaração “infalível” sobre as obras de Tomás foi produzida até hoje.  Dessa forma, num debate como esse, vence quem apresenta a posição mais plausível que melhor se encaixa as evidências disponíveis. Todavia, o apologista católico tenta se esvair de sua responsabilidade imputando a mim algo que ele fez. Quem afirmou certeza foi ele:

Porém é certo que ele morreu crendo na Imaculada conceição da virgem Maria.

Por isso, meu artigo anterior atacou as bases dessa “certeza”. Ele afirma que a citação é autêntica com base na edição crítica de Rossi, no entanto, outras edições críticas produzidas por católicos não contém “nec origiale”. Ele citou tomistas que apoiavam sua posição, no entanto, a maioria dos tomistas discordaria, conforme opinião da obra de Juniper Carol. Nenhum dos argumentos que ele trouxe sustenta a tese inicialmente defendida. Agora, quem der uma lida nos últimos artigos, verá que não afirma mais tal certeza. Pelo contrário, ele afirmou:

Assim, a tal “falsificação romanista” não tem qualquer fundamento e é muito improvável.

Se a mudança de opinião com base no referido texto era certa, porque agora ele apela às probabilidades? Onde está a certeza?

Aqui é famosa falácia ad populum, está argumentando que algo é verdade ou não simplesmente porque uma suposta maioria aceita determinado ponto, e é nesse argumento junto o argumento ad ignoratiam que ele tenta se basear em todo o seu texto.

Além do frequente cometimento de falácias, o apologista católico demonstra pouco preparo para detectar falácias. Onde eu disse que minha posição é necessariamente verdadeira porque a maioria dos tomistas a adotam? O apologista tentou em seu artigo formular um argumento da autoridade quando afirmou em suas conclusões:

Que sabem mais do que os tomistas a respeito de São Tomás.

A implicação desse argumento é que minha tese só poderia estar certa se fosse apoiada pelos tomistas. Isso sim é uma falácia do apelo à autoridade, porque pressupõe que os tomistas necessariamente estão certos. Ainda que tal argumento não fosse falacioso, ele estaria adotando uma premissa falsa, pois não existe a “posição dos tomistas”, afinal a posição católica não é defendida por todos os tomistas ou sequer pela maioria. O apologista também disse:

Ele ainda diz que eu estava afirmando que estava apoiado em uma maioria de autores tomistas. Ora, onde tem isso no meu texto? Não afirmei em nenhum lugar, até porque “maioria” serve de que?

Ele simplesmente retrocedeu de sua posição original, pois o argumento de que eu deveria provar saber mais do que os tomistas pressupõe necessariamente que a maioria dos tomistas apoiava a posição dele. Ele também disse:

Poderíamos citar aqui a exaustão autores tomistas que confirmam que na realidade as palavras “nec originale” que foram retiradas e que São Tomás mudou e reafirmou a imaculada conceição de Maria (...)

Até agora estamos esperando as “citações a exaustão”. Ele também cometeu a falácia do apelo à autoridade em outro trecho:

Porém, o interessante disto tudo é que o interlocutor parece querer ensinar são Tomás para católicos, e achar que durante séculos os tomistas nunca explicaram a questão e ficaram calados até os protestantes descobrirem que essa é uma “falsificação romanista”.

Primeiro, eu não afirmei nada disso. Segundo, ele sugere que é inadequado um não católico ensinar “são Tomás para os católicos”. Essa afirmação pressupõe que para alguém estar certo sobre Tomás, não pode estar em oposição aos estudiosos católicos. Na verdade, é uma mistura de apelo à autoridade com ad hominem. Ele repetiu a mesma falácia aqui:

Na realidade, a resposta que ele dá se baseia em uma tentativa do Apologista protestante americano Francis Turrentin em desqualificar esta citação que é mencionada na obra de Réginald  Garrigou-Lagrange, um dos maiores teólogos do século XX e o maior Tomista de seu tempo. É interessante notar que o americano, além de querer ensinar o pensamento de São Tomás ao Garrigou (...)

Ele sugere que é inadequado um apologista americano desqualificar a citação do suposto “maior tomista de seu tempo”. Além disso, ele confunde a falácia do apelo à autoridade e a falácia ad populum. O apelo à autoridade necessariamente se refere a especialistas ou pessoas de notório saber no assunto em questão, já ad populum se refere ao apelo à maioria não qualificada. Se eu afirmasse: “a maioria das pessoas não acredita que Tomás mudou de posição, logo ele não mudou de posição”, seria uma falácia ad populum, mas eu não teci esse tipo de argumento. Ademais, em nenhum momento eu apelei à ignorância como ele diz. Eu não afirmei que os autores tomistas não conheciam a suposta mudança, logo ela não existiu. Pelo contrário, eu disse que a maioria dos tomistas afirmam que Tomás negou a imaculada conceição sem fazer qualquer menção a uma suposta mudança de posição. Isso é um argumento do silêncio e não o apelo à ignorância, até porque eu acredito que os tomistas estão cientes da existência da “tese da mudança”. Argumentos do silêncio podem ou não ser falaciosos. Isso vai depender das circunstâncias em que o silêncio é invocado.

Supunha que alguém afirme que sua casa foi arrombada. Todavia, depois de uma perícia se verifica que não há qualquer sinal de arrombamento. Todas as portas e janelas estão intactas. Isso aponta que não houve nenhum arrombamento. Da mesma forma, historiadores usam argumentos do silêncio para determinar se um evento aconteceu ou não. Isso se dá quando o acontecimento do evento sob determinadas circunstâncias era esperado. Apologistas católicos também fazem amplo uso do argumento do silêncio. Quando apontamos a controvérsia de Cipriano com Estevão, é comum ouvir que Cipriano não faz uma negação explícita da autoridade de Estevão. O mesmo argumento é também trazido na controvérsia pascal que envolveu Vítor e os bispos de Ásia. Obviamente, são argumentos falaciosos porque nos dois casos a autoridade do bispo romano foi negada, mas há circunstâncias em que o silêncio tem muita força probatória.

Agora, imagine um autor católico romano que simplesmente afirma que Tomás negou a imaculada conceição sem mencionar qualquer possível mudança de posição, e levemos em conta que o contexto dessa citação se deu numa passagem em que são mencionados outros autores que defendem que Aquino apoiou o dogma católico. Há algumas alternativas: (1) acreditar que esse autor não conhecia a “tese da mudança”; (2) Acreditar que ele cria nessa tese, mas a ignorou ou (3) Acreditar que ele de fato não aceita essa tese. A opção (1) é pouquíssimo plausível tendo em vista que se trata de especialistas e segundo nosso oponente a “tese da mudança” é antiga e bem disseminada. A opção (2) é também improvável, pois se trataria de um especialista católico que crê no dogma católico se esquecendo de mencionar o fato de um dos maiores doutores da igreja romana não ter morrido negando o dogma.  A opção (3) é mais provável, tendo em vista que se trata de autores que deveriam conhecer a tese e teriam todo o interesse em aceitar que Tomás morreu como um bom católico romano crente na imaculada conceição.

Além do fato do apologista nos acusar de cometer a falácia que ele cometeu, no meu artigo eu fiz questão de enfatizar:

O argumento da autoridade é probabilístico. Apenas torna uma posição mais provável, mas não é suficiente para fechar a questão.

Imagine que há uma pessoa doente. Você a leva a vários médicos diferentes e todos afirmam que se trata de meningite. Não contente você a leva a um curandeiro que afirma se tratar de câncer. Obviamente, a posição dos médicos é mais confiável ou provável que a do curandeiro. Porém, ainda há uma chance (por menor que seja) que o curandeiro esteja certo e os médicos errados. Dessa forma, quando citamos a apoio de um especialista, estamos tornando nossa posição mais provável do que sem esse apoio, o que não implica que a posição do especialista está imune ao erro. Por último, ele ainda me acusa de comete um ad hominem no seguinte comentário:

O apologista católico se agarra com unhas e dentes a opinião minoritária de Garrigou. Esse é o resultado prático da Sola Eclésia. Os católicos, infelizmente, não podem buscar a verdade por si próprios.

Nesse trecho eu apenas constatei um fato, sequer estava formulando um argumento. Não disse que ele estava errado causa disso. Isso sim seria um ad hominem. Eu simplesmente constatei a realidade de que os “bons católicos” não são livres para pensarem por si mesmos e precisam aceitar os dogmas da igreja romana, por mais que as evidências sejam contrárias. Os qualifico como “bons” porque é isso que um católico deve fazer, a despeito do fato de a maioria dos católicos agirem como protestantes quando se trata de acatar ou não os ensinamentos do magistério da igreja.

Com essa frase fica evidenciado que o protestante não tem conhecimento sobre essa questão, até porque essa mesma opinião é encontrada em Giovani Felice Rossi famoso por sua edição crítica dos escritos de São Tomás, e também dada anos depois pelo tomista Pe. Jacques-Marie Vosté (dominicano como São Tomás), ambos anteriores a Lagrange, logo, além de não saber do que fala a respeito da questão, acha que isso é opinião formulada por Lagrange e que estamos nos apoiando nele, como que não vimos outros autores falando da questão.

Eu afirmei que a opinião de Garrigou era minoritária com base na citação da obra de Juniper Carol. Dizer que alguém tem uma opinião minoritária não é o mesmo que dizer que ele é o único a defender tal posição. Uma minoria não é necessariamente composta por um homem, mas pode ser composta por vários. No meu próprio artigo, eu inclusive citei a posição de Rossi. Mais um detalhe – não foi trazida qualquer evidência de que Rossi apoiasse a “tese da mudança”. Até onde se trouxe, ele argumenta em favor da autenticidade do trecho, mas isso não implica que Tomás morreu acreditando na imaculada conceição. Quanto ao Voste, eu disse que o artigo do site católico trouxe uma evidência anedótica:

Poderíamos citar aqui a exaustão autores tomistas que confirmam que na realidade as palavras “nec originale” que foram retiradas e que São Tomás mudou e reafirmou a imaculada conceição de Maria como a obra de J.M Voste “Comentarius Iliam p. Summae Theolo. S. Thomae”, porém consideramos o que aqui está suficiente como prova.

Vejam que ele sequer citou a página da obra em questão. Só agora no artigo mais recente ele traz a citação de Garrigou que aponta a citação de Voste. Dessa forma, nenhuma falácia foi refutada porque não foi cometida. Ele também ataca alguns de meus outros artigos sobre a questão dos apócrifos. Esse tema será tratado em artigos a parte que serão publicados nas próximas semanas.

Trata-se aqui do argumento ad hominem a minha pessoa, o que ignorarei. Mas agora ele deve demonstrar em qual site em inglês tem a questão da autenticidade do texto, como fez dizendo que eu supostamente copiei a menção ao Padre Vosté do site do Thaylor Marshall.

Esse comentário foi direcionado ao seguinte trecho do meu artigo:

Acredito que o autor do artigo leu algum site em inglês e replicou a tese. É possível que sequer soubesse das dúvidas que pairam sobre a citação.

Mais uma vez – onde está o ad hominem? Onde eu afirmei que ele está errado porque copiou uma citação de um artigo em inglês? O apologista católico parece equiparar ao ad hominem qualquer comentário sobre suas crenças ou fontes. O artigo do Taylor Marshal que eu apontei tem o mesmo tipo de argumentação e cita o Voste igualmente sem citar a página. Como o site apologistas católicos se utiliza bastante de sites católicos em inglês, era natural supor que a citação saiu daí.

Quanto ao Mariano Spada, não há problema se o mesmo argumento está no Wikipédia. Diferente do que ele diz, eu não traduzi o trecho do Wikipedia. Basta observar as minhas palavras para perceber que foram escritas de próprio punho e não traduzidas palavra por palavra.

Em 1839, um professor de teologia do Colégio São Tomás de Aquino chamado Mariano Spada publicou a obra “Esame Critico sulla dottrina dell’ Angelico Dottore S. Tommaso di Aquino circa il Peccato originale, relativamente alla Beatissima Vergine Maria”.  O título traduzido seria “Um exame crítico da doutrina de Santo Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, sobre o pecado original em relação à Santíssima Virgem Maria”. Ela pode ser acessada aqui. O mais importante é o objetivo da obra. Spada intentava trazer uma interpretação de Tomás que aliviasse o constrangimento de Pio IX ao declarar um dogma negado pelo teólogo (veja aqui). Contudo, se Tomás tivesse morrido acreditando nessa doutrina, não haveria constrangimento algum. Mas, o mais importante é que em nenhum momento Spada lança mão do argumento de que Tomás morreu acreditando na doutrina. Se havia um momento onde a suposta mudança deveria ficar evidente, seria aqui.
  
A página em questão tem o mérito de trazer links com a obra do autor. Por que eu não poderia usar esses links que estão num site confiável como o Google Books? Se um artigo de internet cita uma fonte, eu necessariamente preciso citar a fonte de onde a fonte saiu? Se esse é o caso, o site apologistas católicos terá que ser fechado, pois o que mais há em seus artigos são citações tiradas de artigos de apologistas americanos como o Dave Armstrong. É lógico que eu não preciso citar o site de onde uma citação saiu, basta que se aponte a fonte da própria citação. O mais interessante é que o apologista sequer atacou o argumento. Até mesmo Spada que escreveu uma obra antes da definição do dogma para compatibilizá-lo com Tomás não fez uso do argumento católico. Se a “tese da mudança” era tão aceita pelos tomistas como ele originalmente defendeu, porque essa obra não usou tal tese. Seria um argumento e tanto para quem deseja salvar o dogma católico.

Sobre a negação da imaculada conceição na Exposição da Saudação Angélica

O principal argumento que eu trouxe é que na mesma obra Tomás nega a doutrina romanista. Se eu me proponho a refutar alguém, é esperado que eu interaja com o principal argumento do meu oponente. Todavia, o artigo anterior não interagiu com o meu principal argumento. Somente no artigo mais recente, ele ensaiou uma tentativa de resposta.

Ao contrário do que ele afirma tratamos disso sim no texto anterior, ou ele não quis ler ou pode ser que eu não tenha deixado claro.

Eu estou especialmente interessado que ele mostre onde no texto anterior esse argumento foi tratado. Essa foi a “refutação” que simplesmente ignorou o principal argumento do “refutado”.

Por que necessariamente as palavras “nec originale” não fazem parte da obra original a partir dessa suposta contradição? Poderíamos argumentar também que o discurso anterior onde há a suposta contradição é que não está na obra, ou seja, esse argumento de “explicação plausível” pode servir também pra quem quiser dizer que o trecho anterior é falso, baseado na veracidade das palavras “nec originale”. Ele está escolhendo o que quer aceitar como verdadeiro ou não baseado em uma suposta contradição. Por que ele não diz que o trecho anterior é o que não faz parte do discurso? Claro, porque não convém a ele, só convém achar que “nec originale” é que é “falsificação romanista”.

A grande questão é que sobre o trecho que nega a imaculada conceição não pairam dúvidas sobre autenticidade, enquanto o trecho invocado pelo católico está envolto em controvérsias e dúvidas. Meu argumento pode ser atacado de três maneiras:

(1) Afirmar que o trecho invocado por mim é de origem duvidosa. O apologista católico bem gostaria de fazer isso, mas não há dúvidas sobre a autenticidade desse trecho. Até mesmo autores que defendem a “tese da mudança” não negam a autenticidade desse trecho;

(2) Afirmar que Tomás se contradisse. Porém, trata-se de uma hipótese pouco provável tendo em vista se tratar de uma contradição explícita e de fácil percepção. Uma solução seria afirmar que se tratam de trechos escritos em períodos diferentes da vida de Tomás. O problema é que não há evidência para isso. Ademais, a obra é bem curta e provavelmente foi escrita num curto período de tempo.

(3) Atribuir um significado ao texto harmônico com a imaculada conceição.

Nenhuma das três hipóteses é defensável, portanto, nosso argumento é a melhor explicação. Ele se amolda melhor ao sentido claro do texto e ao pensamento geral de Tomás contra a imaculada conceição. Isso implica que a passagem duvidosa é de fato é uma interpolação. Vejamos a interpretação católica:

Primeiramente, como conciliar os dois textos então? Estariam em contradição? A solução é simples, no trecho anterior a “nec originale” São Tomás está falando que ela foi “in originali concepta” isto obviamente deve ser entendido no sentido que ela foi concebida pelos pais que tinham a mancha do pecado original, logo temos que entender ai “concebida” no sentido da cópula dos pais, não da transmissão do pecado pelos pais a ela. Assim na primeira frase ela foi concebida com os pais com a mancha do pecado original e na segunda frase fica claro que esse pecado não foi transmitido a ela, por isso mesmo ele fala que não lhe ocorreu pecado original.

O argumento católico é que Maria teria nascido a partir de relações sexuais de pessoas manchadas pelo pecado original, por isso teria sido concebida em pecado. Admiro a criatividade dessa explicação, mas definitivamente não é plausível. Ele está empurrando para o texto informações que não estão lá. Em toda a obra não há qualquer menção a forma como os pais de Maria a geraram. Na verdade, eles sequer são citados. Nem no contexto imediato nem no contexto geral há qualquer informação que dê apoio a essa interpretação. Verifiquemos a citação em contexto estendido:

Da Santíssima Virgem é dito ser cheia de graça de três maneiras. Em primeiro lugar, porque a sua alma estava cheia de graça. A graça de Deus é dada para duas finalidades principais, ou seja, fazer o bem e evitar o mal. A Santíssima Virgem, então, recebeu a graça no grau mais perfeito, porque ela tinha evitado todo o pecado mais do que qualquer outro Santo depois de Cristo. POIS O PECADO É TANTO ORIGINAL, E DESSE ELA FOI LIMPA NO ÚTERO, como mortal ou venial, e destes, ela estava livre. Assim, é dito: "Você é justa minha amada e não há mancha em você" [Sg 4:7]. Santo Agostinho diz: "Se pudéssemos reunir todos os santos e perguntar-lhes se eles eram totalmente sem pecado, todos eles, com exceção da Virgem diriam a uma só voz: "Se dissermos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós" [1 Jo 1:8]. Eu, no entanto, excetuo esta Virgem santa de quem, por causa da honra de Deus, gostaria de omitir qualquer menção do pecado" [Da natureza e da graça 36]. Porque sabemos que a ela foi concedida a graça de superar todo tipo de pecado por Ele a quem ela mereceu conceber e dar à luz, e ele certamente era totalmente sem pecado. CRISTO EXCEDEU A VIRGEM SANTÍSSIMA NO FATO DE QUE ELE FOI CONCEBIDO E NASCIDO SEM PECADO ORIGINAL. MAS A SANTÍSSIMA VIRGEM FOI CONCEBIDA EM PECADO ORIGINAL, MAS NÃO NASCEU NELE.

O contexto imediato se refere à concepção no pecado original e não ao fato dos pais de Maria ter pecados. Mas, não para por aí. O pior de tudo é que Tomás diz explicitamente: “e desse ela foi limpa no útero”. Se ela não foi concebida em pecado, como poderia ter sido limpa no útero? Como alguém que não está sujo pode ser limpo? É interessante observar que Aquino se referia à Maria como pura, sem mancha, sem qualquer pecado, cheia de graça, mas ainda assim negava a imaculada conceição. A razão é muito simples. Maria teria sido santificada ainda no útero. A partir de então ela estava cheia de graça e livre de qualquer mancha. Todavia, não foi desde a concepção. Os apologistas católicos costumam trazer qualquer afirmação sobre a pureza de Maria como suporte à imaculada conceição, mas isso não é suficiente. É preciso demonstrar que ela foi totalmente pura desde a concepção. Esse é um elemento central do dogma, por isso se chama “imaculada concepção”. Qualquer tipo de santificação após a concepção não é o dogma católico, mas uma negação explícita do dogma. O texto em latim pode ser verificado no site da fundação Tomás de Aquino aqui.

Peccatum enim aut est originale, et de isto fuit mundata in utero; aut mortale aut veniale, et de istis libera fuit.

Não por acaso, as traduções para o inglês trazem o termo “pecado original” e inclusive apontam que essa foi a mesma posição expressa na Suma Teológica. A interpretação alternativa é um “duplo twist carpado” para tentar negar o significado óbvio. Mas eis que surge um interessante argumento:

Argumento parecido é dado por protestantes que negam a existência do pecado original quando apresentamos os Salmos 38 (...) Logo, Cristo neste texto foi “concebido” sem pecado, porque sua mãe não tinha pecado nem teve contato sexual, e Maria foi “concebida” em pecado, porque seus pais tinham pecado, que não foi transmitido a ela, então “concebida” deve se entender ai como o estados dos pais no ato sexual que como diz ele próprio, “não se pode realizar sem libidinagem” (Compêndio Teológico – CCXXIV), logo essa é uma das explicações que harmoniza o texto.  Se isso não satisfizer o protestante, podemos então adotar a opção presentada de achar que São Tomás era esquizofrênico. Claro que aqui vai argumentar que “isso é malabarismo” ou “está deturpando”, então que prove que todos os manuscritos são falsos.

Seria interessante saber quem são esses protestantes. Os maiores exegetas protestantes das Escrituras consideram o texto de Salmos 38 como referente ao pecado original, pois a fé reformada afirma claramente a crença no pecado original. Agora, quando um apologista católico precisa utilizar um suposto argumento protestante para demonstrar como um teólogo escolástico do século XII não negou a imaculada conceição, mostra que algo está errado. É uma comparação totalmente anacrônica e sem sentido que o próprio parece reconhecer. O mais interessante é a “lógica” do apologista. Existe muita controvérsia sobre o “nec originale”. Se o texto precisa ser harmonizado, a citação autêntica deveria prevalecer sobre a duvidosa. No entanto, ele inverte o processo. O padrão é a citação duvidosa estabelecer a interpretação da citação autêntica. Estudiosos patrísticos e críticos textuais não trabalham dessa forma – uma obra sobre a qual não há dúvidas de autenticidade possui valor probatório superior a uma de origem duvidosa.

No mais, porque eu tenho que provar que todos os manuscritos são falsos? Isso implicaria que um texto autêntico necessariamente deveria estar em todos os manuscritos – uma tese absurda. Além disso, ele traz uma citação sem nenhum contexto numa obra diferente e de contexto diferente da citação discutida. Se ele quisesse trazer alguma substância a essa interpretação (o que seria inútil devido ao contexto imediato), deveria demonstrar outros textos de Tomás em que ser concebido no original possuía o significado de ser gerado através de relações sexuais naturais. Em todos os textos que li tal significado não está presente.

Ele também afirma que Garrigou Lagrange não lida com este fato, sendo que eu coloquei nos comentários a obra “A Sintese Tomista”, onde o Garrigou fala desta questão:

Vejamos o que eu disse:

O que chamou mais atenção "na refutação" foi nem ele nem o Garrigou (até onde ele trouxe no texto) terem lidado com o fato de que na mesma obra Tomas negou explicitamente a imaculada conceição.

Eu fiz questão de frisar “até onde ele trouxe no texto”. E sim, ele não tratou essa objeção no texto anterior nem trouxe no artigo qualquer posição desse autor tratando da divergência.

Percebam aqui que Garrigou Lagrange faz menção a mais 2 Tomistas o Padre Frietoff e também outra sessão de outra edição do Boletim Tomista escrita em 1933 por Mondonnet. São mais dois tomistas apoiando a ideia, até aqui já mostramos cinco.

Essa definitivamente não é a conclusão lógica da citação trazida. Vejamos:

(...) e se quer evitar neste escrito uma contradição inaceitável em algumas linhas de distância, deve se ver nas palavras “in originali concepta” o “debitum contrahendi” em razão do corpo formado por geração ordinária, e não o pecado original em si, o que só pode estar na alma (cf. Fríetoff C., loc. cit., p. 329, e P. Mandonnet em "Thomiste Bulletin", de Janeiro a março 1933 Notas et Communications, pp. 164- 167).

Garrigou não está necessariamente afirmando que esses dois autores adotam essa hipótese, tanto é que começa a afirmação com um “se”. Eles poderiam apenas afirmar que essa é a única opção viável para harmonizar o texto, sem necessariamente adotá-la. Além do mais, não há nada nessa citação que implique que esses autores adotava a versão crítica de Rossi e defendessem a “tese da mudança”.

O apologista traz a explicação de Garrigou, segundo o qual Tomás acreditava que a concepção do corpo e a animação eram estágios distintos. Essa questão é irrelevante para a harmonização do texto, pois ele afirmou explicitamente que Maria foi limpa do pecado original no útero. Os católicos tentam “salvar” o dogma romanista apelando a essa distinção. Todavia, é irrelevante uma vez que ele acreditava na santificação de Maria após a animação. Ainda que o momento da concepção envolvesse a geração do corpo e a infusão da alma, a santificação seria após a infusão. Portanto, Maria não teria uma concepção imaculada.

E, ainda, que Aquino discordasse da imaculada conceição apenas por uma questão filosófica, o problema persistiria. Se algum pai da igreja negasse a trindade por questões filosóficas, ele estaria escusado do cometimento de heresia? Obviamente não. É comum os apologistas tentarem suavizar a contradição afirmando que Aquino concordava com os elementos centrais da doutrina. Todavia, Aquino negou o elemento central do dogma. Maria teria sido cheio de graça desde a concepção. Isso é central e não secundário. Se os católicos fossem consistentes com a frequente alegação de que o magistério da igreja apenas preserva a fé sempre crida pela igreja, deveria considerar Tomás um herege. Ademais, é interessante trazer a nota de rodapé 41 do livro de Garrigou:

(41) A objeção foi levantada Boletim Tomista de Júlio-Dezembro 1932, p. (579) no qual nós lemos o mesmo opúsculo um pouco antes: "Ipsa (Virgo) omne peccatum vitavit magis quam alius sanctus, praeter Christum. Peccatum autem aut est originate et de isto fuit mundata in utero; aut mortale aut veniale et de istis libera fuit. Sed Christus excellit B. Virginem in hoc quod sine originali conceptus et natus fuit. Beata autem Virgo in originali concepta, sed non nata." Existe contradição entre esse texto e ao que parece bem autêntico e as linhas mais abaixo. É inverossímil que a poucas linhas de distância se encontre o sim e o não. A dificuldade se desaparece quando se tem em conta que para São Tomás a concepção do corpo, no início da evolução do embrião, precede em pelo menos um mês a animação, que é a concepção passiva consumada, antes do qual não existe a pessoa, pois ainda não existe a alma racional.

Garrigou reconhece a autenticidade do texto e propõe uma explicação que não responde à questão. Se Maria foi limpa do pecado original, ela necessariamente não foi preservada do desse pecado.

Outras citações que comprovaria a “tese da mudança”

Nesta seção do artigo, o apologista católico sequer interagiu com os nossos argumentos. Ele basicamente repetiu as mesmas coisas e trouxe citações que não trazem nenhuma afirmação da imaculada conceição. Tratemos primeiro do comentário aos Gálatas. A versão trazida pela fundação Tomás de Aquino é bem diferente da que o apologista trouxe:

Pois Ele somente e exclusivamente é aquele que não está sob a maldição da culpa, apesar do fato de que fez a si mesmo maldição por nós. Por isso, é dito, "Eu estou sozinho até que passe" (Sl. 140:10); e, novamente "Não há ninguém que faça o bem, nem um sequer" (Sl. 13:3); "Um homem entre mil que eu encontrei" (ou seja, Cristo, que foi sem qualquer pecado), "uma mulher entre todos elas eu não encontrei", que fosse totalmente imune de todo pecado, pelo menos original ou venial ( Ecl. 7:29).

Nessa versão não há qualquer referência à Maria. Se alguma conclusão pode ser tirada, seria no sentido de negar a imaculada conceição, pois se afirma que nenhuma mulher imune ao pecado original ou venial foi encontrada. Porque deveríamos adotar a versão apresentada por ele e não essa que ao menos é adotada pela Fundação Tomás de Aquino? Ele não traz nenhum argumento a seu favor, se limitando a postar uma versão presente no google books sem apresentar sequer as qualificações da fonte. Quem escreveu essa versão? Quem atesta que o trecho sobre Maria está nos manuscritos mais antigos? Antes de tudo, é necessário estabelecer a versão correta.

Eu coloquei o Volume XXIII do Sancti Thomas Opera Ominia de 1862 onde são demonstradas as várias versões dos comentários aos Gálatas e os antiquíssimos manuscritos que a contém, como demonstrei no caso de “nec originale”, porém esse trecho aos Gálatas é trabalho para outro texto que vai resultar no mesmo trabalho deste. O protestante simplesmente ignorou isso e todas as explicações que tem no link e nas palavras de Pedro Espinosa e simplesmente foi na internet procurar os textos baseado nas versões posteriores nas quais as palavras foram retiradas.

Pedro Espinosa não argumentou nada. Ele apenas se limitou a afirmar sua versão preferida e apontar outra fonte que supostamente provaria a autenticidade. De fato, o interlocutor católico terá muito trabalho em provar mais essa citação duvidosa. É no mínimo suspeito que as citações a favor da “tese de mudança” sempre estejam envoltas em controvérsia. Porque será? No entanto, vou poupar o trabalho do apologista católico. Mesmo a versão que ele apresentou não implica na imaculada conceição:

Por isso, é dito, ‘Eu estou sozinho até que passe’; e, novamente ‘Não há ninguém que faça o bem, nem um sequer’; ‘Um homem entre mil que eu encontrei’ (ou seja, Cristo, que foi sem qualquer pecado), "uma mulher entre todos elas eu não encontrei", que fosse totalmente imune de todo pecado, pelo menos original ou venial. Exceto a puríssima e louvável Virgem.

Percebam a sutileza. Tomás diz que não foi encontrada mulher que não tenha contraído pecado original OU venial. A exceção não precisaria necessariamente ser livre do pecado original, bastaria não ter cometido pecado venial. Nesse aspecto, Maria seria uma exceção, pois não teria cometido qualquer pecado venial. Se a citação dissesse pecado original E venial, a exceção necessariamente deveria ter sido livre dos dois. Todavia, Maria poderia ser uma exceção por simplesmente não ter incorrido em pecado venial.

Sobre os salmos, eu tratei em mais detalhes no meu artigo anterior. Nenhuma das citações afirma:

(1) Que Maria não incorreu em pecado original; ou

(2) Que Maria foi livre de qualquer pecado desde a concepção.

Eles basicamente se limitam a afirmar que Maria não tinha nenhuma mancha ou pecado. O apologista pressupõe que o pecado original está incluso. O problema é que Tomás diferencia claramente os pecados nos trechos em que trata da questão. Como vimos em citações anteriores, ele diferencia entre pecado mortal, venial, atual ou original. No mais, é preciso demonstrar que Maria foi livre de qualquer pecado desde a concepção, o que não é afirmado nos comentários aos salmos. Nós inclusive vimos que na citação da saudação angélica, o escolástico afirmou a pureza de Maria ao mesmo tempo em que afirma seu nascimento no domínio do pecado original.

Datação das obras

Esse foi um ponto ignorado pela resposta. Como argumentei no meu artigo anterior, o católico precisa necessariamente estabelecer uma data confiável para as referidas citações, provando que Tomás passou a acreditar no dogma católico no fim da vida:

Porém, existe outro problema com a tese católica – a datação das obras. É preciso demonstrar confiavelmente que as obras onde supostamente ele afirma a doutrina mariana são posteriores a todas as citações onde nega a mesma doutrina. De acordo com três listas cronológicas que podem ser vistas aqui, aqui e aqui, a Suma Teológica foi escrita entre 1266 e 1273. A saudação angélica teria sido escrita entre 1268 e 1273. Os comentários das epístolas de Paulo estariam entre 1265 e 1273. O mais tardio seriam os comentários sobre os salmos no intervalo 1272-1273.

Percebe-se que os períodos se sobrepõem. Ainda que o apologista estivesse certo sobre a saudação angélica, não seria suficiente, pois o período tradicionalmente atribuído à obra está entre 1268 e 1273, enquanto a Suma Teológica está entre 1266 e 1273. As citações contrárias à imaculada conceição estão na terceira parte da Súmula, que foi escrita mais para o final. Qual teria sido a última posição de Aquino então?

Sobre a autenticidade do termo “nec originale”

Essa é a seção mais decepcionante do texto. O apologista católico traz a posição de Rossi. Ora, disso já sabíamos. A questão é se há evidências confiáveis que apontem que os textos que contém a expressão justificam atribuir-lhe autenticidade a despeito de outros manuscritos não conterem e de outras versões críticas não concordarem. Ele afirmou anteriormente:

Que os 16 dos 19 manuscritos analisados por Rossi que contém a expressão “NEC ORIGINALE”, são “falsificações romanistas” e os 3 restantes que são os verdadeiros.

Minha resposta foi:

Antes de tudo é preciso estabelecer que de fato existe 16 de 19 manuscritos contendo “nec originale” e que esses são os mais confiáveis e justificam confiar que trazem o texto original. Eu obviamente não analisei nenhum desses manuscritos e não foi baseado nesse argumento que afirmei se tratar de uma falsificação romanista.

Tudo o que ele fez foi replicar a tese de Rossi. Vejamos as premissas adotadas pelo católico:

Dos 16 dos 19 antigos manuscritos analisados por Rossi contém a expressão “nec originali”.

Um detalhe aqui pode passar despercebido. Dado a força probatória que o apologista atribui a isso, é passada a impressão de que existem apenas 19 manuscritos. Mas, observe-se que não é isso que Rossi ou Garrigou afirmam. Eles afirmam que Rossi analisou 19 manuscritos. Esses 19 são todos os manuscritos existentes? Caso não sejam, quantos outros existem e qual o conteúdo deles? É possível fazer um caso probatório forte quando se seleciona de antemão quais as evidências serão utilizadas e se deixa de lado as outras não favoráveis. Não estou afirmando que esse é o caso, mas se o apologista católico não traz essas informações, a afirmação de que 16 de 19 favorecem sua posição perde bastante relevância.

Além disso, eu não questionei a veracidade da citação de Garrigou, mas se de fato as provas que eles alegam ter são verdadeiras. Isso sequer implica dizer que eles estão mentindo, afinal eles podem estar sinceramente errados sobre a datação, o número de manuscritos e etc. Agora vejamos o comentário “maroto” do apologista:

Para não precisar apresentar todos os 16 manuscritos, porque além de ser obviamente um grande trabalho para apenas um texto e demorar muito tempo para conseguir todos, selecionei apenas os 3 mais antigos e melhores que contém a palavra “Nec Originale” e solicitei a Biblioteca do Seminário de Torino, e que já servem como prova, por serem justamente os mais antigos que se tem conhecimento. Também solicitei 1 dos 4 outros que a palavra foi raspada ou suprimida.

Ele diz que iria provar que todos os 16 manuscritos teriam o termo “nec originale”, agora ele nos diz que “selecionou 3” apenas. A questão é como isso prova que os 16 manuscritos contêm o termo “nec originale”, se o máximo que ele fez foi apresentar três favoráveis? Ainda mais, dos quatro manuscritos que não contém o termo, ele traz apenas um com uma suposta raspagem.

As mais antigas versões contém a expressão “nec originali”.

Essa premissa também não foi provada pelos seguintes problemas:

(1) A única razão apresentada para acreditarmos na datação desses manuscritos é a autoridade de Rossi. Não é apresentada evidência favorável às datas ali colocadas. Isso é contraditório, pois ele afirmou que as edições críticas que apresentamos não provavam nada. Todavia, ele apenas oferece um argumento de autoridade. Porque deveríamos aceitar a datação de Rossi como suficiente para afirmar autenticidade e rejeitar outras edições? Para quem diz trazer evidências, isso é muito pouco;

(2) Se esses dezesseis manuscritos são os mais antigos, quais as datas dos demais que não contém a expressão? Percebam que em nenhum momento os manuscritos contrários são datados. Se ele deseja determinar quais os manuscritos mais antigos, necessariamente deve apontar as possíveis datas de todos os analisados. Lembremos que sequer sabemos se esses são todos os manuscritos.

(3) Mesmo na datação do Rossi, a maioria dos manuscritos é do final do século XIV ou século XV. Há ai um período de mais de 100 anos entre a morte de Tomás e a data desses manuscritos.

Nas versões que não contém a expressão “nec originali” estas palavras foram suprimidas.

Posteriormente as palavras “nec originali” foram substituídas por “ipsa virgo”.

Ele só trouxe um manuscrito demonstrando que a expressão “nec originali” foi suprimida, portanto, não provou sua alegação. Além do mais ele não trouxe um manuscrito sequer para provar que após a supressão, foi adicionado “ipsa virgo” ao lugar. Porque essa expressão teria sido suprimida? E possível inclusive que tenha por um copista que acreditou se tratar de uma interpolação, afinal linhas antes Tomás tinha negado o que supostamente acabara de afirmar.

Quanto aos meus comentários sobre Pedro Espinosa mantenho que se trata de um ilustre desconhecido. Em nenhum momento eu afirmei que a tese católica estava errada por esse motivo. A questão é que o apologista quis formular um argumento de autoridade usando um autor que sequer é uma autoridade na questão. Espinosa também não trouxe nenhum argumento favorável à sua tese, limitando-se a citar outra fonte. Por outro lado, Richard Gibbings trouxe sim argumentos. Ele assim como nós citou a contradição grotesca que resultaria ao se considerar a passagem duvidosa como autêntica.

Sobre os autores tomistas supostamente favoráveis à tese da mudança

Eu trouxe no artigo anterior uma citação atribuída por mim a Juniper Carol extraída de sua obra sobre Mariologia. Eu não retirei a citação diretamente do livro, mas da transcrição do capítulo sobre a imaculada conceição hospedada num site católico. Como o próprio site atribui o texto a Carol, fui induzido a acreditar que esse capítulo era de autoria dele. Isso não muda a relevância da fonte, pois saiu de uma obra de referência no assunto. E como Carol foi o editor do livro, provavelmente também endossa a opinião de que a maioria dos tomistas admite que Tomás negou a imaculada conceição.

Eu aleguei com base nessa citação que a posição majoritária dos tomistas não era favorável ao apologista católico, e ele não provou o contrário. Eu não afirmei que Garrigou é o único defensor, mas que é o mais citado. Uma minoria não é necessariamente uma pessoa. É uma questão de lógica rudimentar. Também não disse que não havia qualquer apoio a essa tese antes da proclamação do dogma em 1854.

Quanto a Enciclopédia Católica, trata-se apenas de mais uma fonte relevante que mostra que a principal disputa sobre Tomás não é sequer uma suposta mudança (que sequer é mencionada), mas o momento que a purificação ocorreu. O fato de uma edição posterior apontar um autor que manifesta uma posição diferente da maioria é irrelevante. A própria citação que eu trouxe já apontava isso. Por último o autor católico apresenta a opinião do suposto “maior tomista brasileiro”.

Não estamos falando aqui de qualquer pessoa, de qualquer autor que possamos encontrar na internet, mas de Dom Odilão Moura, um célebre tomista brasileiro que dedicou toda sua vida intelectual a estudar o tomismo. Como é que o protestante pode afirmar que essa era opinião minoritária de Lagrange baseado na omissão de outros autores, se vários vultos do tomismo falam sobre a questão? É por isso que não há qualquer condição de debater com alguém que tem a menor noção do assunto, mas que acha que pode chegar na internet e falar do negócio com uma simples pesquisa no google.

O fato de o suposto “maior tomista brasileiro” abraçar uma posição não implica que esta não seja minoritária. Acho que não é sequer preciso trazer o significado que o dicionário atribuiu ao termo “minoria” né. Eu de fato não conhecia Dom Odilão Moura, mas sei que se um indivíduo X foi limpo do pecado original no útero de sua mãe, isso implica que ele nasceu no domínio do pecado original. E me parece que nenhum dos tomistas trazidos deu qualquer explicação razoável para isso até agora.

No mais, é muita hipocrisia um site como esse condenar alguém por fazer pesquisas no google. De onde será que saiu a maioria das pesquisas dele? De onde sai os links que ele passa. Como um site que copia quase todos os seus argumentos de blogs americanos pode criticar o fato de alguém usar o google. Ele provavelmente deve usar o yahoo. Quem acompanha meus artigos, já deve ter percebido que eu vou muito além de apenas trazer argumentos de outros sites (o que eu obviamente faço sempre que considerar um bom argumento).

Há séries de artigos no meu blog baseadas em livros inteiros que li (é o caso da série sobre sucessão apostólica fundamentada na obra do Francis Sullivan). Há capítulos inteiros retirados de livros que li (como os artigos do papado retirados da obra de Klaus Schatz ou Hans Kung). Para alguém que defende teses absurdas como a de que Gregório de Nissa acreditava no purgatório, sendo que se tratava de um universalista, recomendo fortemente que use mais o google, mas não apenas para pesquisar em blogs católicos de baixa qualidade. Sem contar as citações totalmente descontextualizados de autores protestantes como J.N.D Kelly. Kelly afirmou explicitamente em sua obra que não havia evidência para acreditar que Agostinho via o bispo de Roma como supremo e infalível. Todavia o apologista católico copiou uma citação descontextualizada de Kelly para afirmar que Agostinho defendia a infalibilidade papal (veja aqui).

Diante disso tudo, qual a relevância do protestante em trazer autores que não mencionaram a tese?

Demonstrar que a tentativa católica de apresentar um consenso ou posição majoritária em favor de sua tese fracassou. Nesse último artigo, ele adotou um tom mais cuidadoso, mas no anterior, quis implicar que a maioria dos tomistas apoiava sua posição, o que não é verdade. E apesar de ter apresentado alguns nomes a mais, sua posição continua não sendo a majoritária.

São aqui mais 14 tomistas a favor de que São Tomás não era contrário ao dogma ou mudou de opinião, todas as obras estão referenciadas para quem quiser procurar, claro que não vamos citar todos aqui, pois seria um trabalho longo.

Errado mais uma vez: (1) Garrigou não afirma que todos esses são tomistas; (2) Ele apenas diz que para tais teólogos, Tomás foi favorável ao privilégio; (3) Garrigou não afirma que esses teólogos defenderam qualquer tipo de mudança (isso ficou por conta do apologista). Além do mais, a afirmação “são favoráveis ao privilégio” é no mínimo ambígua e não implica necessariamente na ideia de que Tomás afirmou explicitamente o dogma. Eles poderiam, assim como outros, estar expressando a ideia de que Aquino defendeu a pureza excelsa de Maria, o deixando muito próximo à definição dogmática (o que é um argumento falacioso).  

Sobre a “retificação” do site Corpus Thomisticus

Quem ler essa seção do artigo católico perceberá que não houve retificação alguma. Retificar é corrigir algo que estava errado e isso não aconteceu. O site apenas acrescentou um comentário afirmando que há outra versão com “nec originale”. Como isso pode ser uma retificação? Eles continuam hospedando uma versão que não contém o termo. Caso o apologista quisesse fazer um forte argumento de autoridade deveria convencer o autor do texto crítico a se retificar, o que obviamente não aconteceu e nem sabemos se seria possível. Além disso, nós apresentamos pelo menos duas versões desse texto desfavoráveis ao pleito católico. No mais, há muitos outros textos a serem “retificados” no corpus thomisticus. Como já vimos, eles têm o hábito de hospedar textos não muito simpáticos à causa católica.

Só resta agora ver onde o protestante vai dizer que está apoiado.

Além dos outros argumentos trazidos, vou continuar apoiado nas versões críticas do texto que não contém “nec originale”. Uma delas inclusive continua hospedada ..... adivinha onde? No site Corpus Thomisticus. No dia que eles se manifestarem oficialmente afirmando que a versão de Rossi está correta e as outras erradas e deixarem de hospedar a versão “errada”, ai sim o apologista tem fundamentos para afirmar que houve uma “retificação”. Quanto à manifestação do diretor do site, ele próprio afirma que questão é controversa. Parece-me algo bem diferente de afirmar que é certo. E o fato de pairar dúvidas importantes sobre a autenticidade do termo é um ponto central do nosso argumento.

Tomás acreditou na imaculada conceição no início da vida?

A tese de Garrigou é que Tomás acreditava na imaculada conceição no início de sua vida. Como evidência, é apresentada a seguinte citação da obra “Comentários das Sentenças de Pedro Lombardo”:

Ao terceiro, respondo dizendo que se consegue a pureza pelo afastamento do contrário: por isso, pode haver alguma criatura que, entre as realidades criadas, nenhum seja mais pura do que ela, se não houver nela nenhum contágio do pecado; e tal foi a pureza da Virgem Santa, que foi imune do pecado original e do atual. (I Sent., d. 44, q. 1, a. 3)

Essa é a citação apresentada pelo primeiro artigo do apologista católico. A expressão “imune do pecado original” parece apresentar um significado claro. Todavia, eu cometi o erro básico de não verificar essa citação para ver o contexto. O blog Conhecereis a Verdade trouxe na caixa de comentários a continuação:

Foi todavia sob Deus, visto que havia nela o poder de pecar.

Essa é uma tradução possível. Outra tradução seria potência do pecado. O apologista afirma que Maria não poderia ter sido imune ao pecado original se o tivesse contraído. Como não seria possível contrair o pecado original mais de uma vez, não há sentido em se falar de imunização. Maria necessariamente foi imune ao pecado original porque foi preservada de contraí-lo. Se a citação parasse ai, de fato seria a melhor explicação. No entanto, o que vem depois não se coaduna. Como é improvável que Tomás mantivesse uma contradição tão patente, alguma explicação que harmonize todos os dados precisa ser dada. Sobre a afirmação de que havia em Maria a potência do pecado, o apologista explica:

O autor protestante traduz o termo “potentiam ad peccatum” inexatamente, este significa “potência ao pecado”, e não “poder de pecar”, muito embora possa em algum contexto ser traduzido assim, mas no caso isso deve ser entendido como os Escolásticos entendiam. Fora isso o protestante tem que urgentemente estudar o que é “ato” e “potência” para os escolásticos, explicar isso aqui é demasiado extenso.

O problema do argumento protestante seria “não entender os escolásticos”. Mas como os escolásticos entendiam? “No momento não posso dizer, é demasiado extenso”. O motivo pelo qual não explica é bem simples, a definição de potência que os escolásticos adotavam (de acordo com a filosofia aristotélica) favorece a intepretação protestante. Diga-se de passagem, não é sequer “demasiado extenso” explicar. Ato é o que algo é num dado momento. Potência é a capacidade de algo se tornar outra coisa. Por exemplo, uma semente tem a potência de se tornar uma árvore. Isso quer dizer que Maria tinha a capacidade de pecar. Havia nela o potencial de se tornar uma pecadora, o que não a levou a cometer pecados pessoais porque teria sido purificada ainda no útero. Como o blog Conhecereis a Verdade bem disse, se Maria tinha a capacidade do pecado, ela necessariamente não foi livre do pecado original desde a concepção.

Parece que o apologista católico previu essa objeção. Como ele resolve o problema? Apelando a teoria da redenção preventiva de Duns Scoto. Maria teria sido redimida preventivamente. Esse argumento tem um grande problema. Tomás de Aquino nunca adotou a teoria da redençaõ preventiva. Um dos motivos pelos quais Tomás rejeitou a imaculada conceição é que para ele toda a raça humana deveria ser redimida. Se Maria não contraiu o pecado original, ela seria uma exceção e tornaria mentiroso o ensino bíblico de que toda a humanidade necessita de redenção. Isso foi claramente apontado pela Enciclopédia Católica:

No entanto, é difícil dizer que St. Tomás não exigia um instante, pelo menos, após a animação de Maria, antes de sua santificação. Sua grande dificuldade parece ter surgido a partir da dúvida de como ela poderia ter sido redimida se ela não tivesse pecado. Esta dificuldade levantou nada menos do que dez passagens em seus escritos (veja, por exemplo, Suma III: 27: 2, ad 2). Mas, enquanto St. Tomás, assim negou o ponto essencial da doutrina, ele próprio estabeleceu os princípios que, depois de terem sido reunidos e trabalhados permitiram a outras mentes fornecer a verdadeira solução desta dificuldade de suas próprias premissas. (Fonte)

A implicação lógica é que redenção preventiva não fazia parte do pensamento de Aquino. Percebam que ele expressou esse pensamento repetidas vezes numa obra posterior a que estamos discutido. E não há absolutamente nenhuma evidência de que acreditou na redenção preventiva e mudou de opinião. O erro crasso da explicação católica é ao invés de procurar justificar a tese em outros escritos de Tomás, preferiram importá-la de um teólogo que tinha um pensamento oposto na questão. Não por acaso, Scoto afirmou enquanto Aquino negou a imaculada conceição.

Mas e a questão da imunidade ao pecado original? Tendo em vista que: (1) Maria tinha o poder de pecar; (2) A redenção preventiva não é uma explicação cabível, a expressão “imune ao pecado original” não poderia significar “não ter contraído o pecado original”. A explicação mais plausível que coaduna com a própria citação e com todo o pensamento de Tomás é que Maria teria sido imune dos efeitos e não da contração do pecado original. O pecado original inclina o homem a cometer outros pecados. Segundo Tomás, quando Maria foi purificada ainda no útero, ela teria perdido a capacidade de cometer pecados (algo que todos os outros santos tinham). O apologista católico ainda respondeu:

Há potencia ao pecado pela própria natureza intrínseca de qualquer humano de poder pecar, mas a graça infundida em Maria não permitia ela pecar. Adão não tinha pecado original, mas ele tinha a potência ao pecado mesmo sendo feito limpo de qualquer pecado, e não pecou até determinado momento, porém Maria, mesmo tendo potência ao pecado, nasceu sem ele como Adão, e não pecou durante sua vida por consequência da Graça de Deus que necessitou mais do que qualquer um de nós, mas continuou com a potência.

Há uma contradição na explicação. Maria recebeu uma graça tão grande que não lhe permitia pecar, no entanto ela continuou com potência, ou seja, com a capacidade de pecar? É preciso escolher qual das duas manter. Ademais, o paralelo entre Maria e Adão é inadequado. Adão de fato não tinha o pecado original, portanto, não tinha uma inclinação inata ao pecado. No entanto, diferente de Maria, ele não recebeu nenhuma graça especial que lhe impedia de pecar. No pensamento de Tomás, Maria não continuou com a potência do pecado, mas deixou de tê-la quando foi purificada. Além do mais, Maria foi concebida como todos os outros seres humanos, e, portanto, diferente de Adão já estava sob o domínio do pecado original.

Conclusão

O meu argumento continua de pé. A tentativa de harmonizar um texto que claramente rejeita a imaculada conceição falhou totalmente. O apologista também não lidou com a questão da datação das obras – um ponto central do argumento dele. Ele simplesmente parte do pressuposto de que a interpolação é autêntica e deve guiar a interpretação do resto do texto. Porém, este é o jeito errado de fazer as coisas. O texto sobre o qual não há dúvidas tem precedência sobre o de origem duvidosa.

Ele também falhou em provar a existência de outros textos que apoiem a tese da mudança da opinião. Também falhou em trazer evidências suficientes favoráveis à autenticidade de “nec originale”. Ele se limitou a peneirar a evidência e trazer apenas a amostra conveniente como se isso fechasse a questão. Todo argumento em favor da autenticidade se baseia na autoridade de Rossi. A datação, antiguidade e até mesmo a amostra dos manuscritos depende da autoridade dele. Essa não é uma prova decisiva, uma vez que há outras edições críticas que seguem o caminho oposto.

Se o site católico deseja substanciar sua tese, tem as seguintes alternativas:

(1) Provar que a interpretação verdadeira não nega a imaculada conceição na saudação angélica (duvido que isso seja possível sem fazer outro “duplo twist carpado”);

(2) Provar que existe uma contradição explícita – algo que até mesmo os defensores da “tese da mudança” consideram inaceitável;

(3) Provar a falsidade do trecho que nega o dogma. Improvável que o faça uma vez que até mesmo Rossi e Garrigou afirmam a autenticidade.

Tomás é apenas um exemplo entre os muitos teólogos, papas e pais da igreja que negaram a imaculada conceição. A tentativa católica é um exemplo prático da Sola Eclesia que Inácio de Loyola sintetizou em tão poucas palavras:

Acredito que o branco que eu vejo é negro, se a hierarquia da igreja assim o tiver determinado.