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quarta-feira, 22 de novembro de 2017

O Batismo Infantil e os Pais da Igreja


Neste artigo vamos analisar o desenvolvimento histórico do batismo infantil. A pergunta chave a ser respondida se tal prática remonta ao tempo dos apóstolos. Os defensores do batismo de bebês costumam apelar à história da igreja. O artigo do site católico veritatis afirma (aqui): “Nos primeiros quatro séculos da era cristã, é completa a unanimidade a respeito (Tertuliano sendo praticamente a única exceção)” . Esse tipo de afirmação é comum em artigos católicos que visam demonstrar que as práticas do romanismo foram o consenso dos tempos antigos. Obviamente afirmações dessa natureza nunca vem acompanhadas de citações de historiadores ou eruditos patrísticos. Isso se dá porque a prática em questão passa longe de ter sido um consenso. O próprio artigo se contradiz pois afirma que foi uma “completa unanimidade”, mas logo depois cita a oposição de Tertuliano. As conclusões que trarei são referendadas pelas modernas pesquisas sobre o assunto. Por isso, farei amplo uso de citações de historiadores da Igreja. Para todos os que desejam se aprofundar no tema, recomendo a obra mais completa sobre o assunto: Baptism in the Early Church do Dr. Everett (aqui). São “apenas” 900 páginas. É uma obra magistral escrita por um dos maiores historiadores da Igreja de nosso tempo.

Didaque (Início do séc. II)

A Didaque é provavelmente o documento cristão mais antigo fora do Novo Testamento. É de interesse para o nosso estudo pois contém instruções específicas em relação ao batismo:

Antes de batizar, tanto aquele que batiza como o batizando, bem como aqueles que puderem, devem observar o jejum. Você deve ordenar ao batizando um jejum de um ou dois dias. (cap. 7)

Não faria sentido exigir de um recém-nascido tal jejum. As instruções da Didaque se encaixam melhor com a tradição credobatista. Alguém pode argumentar que essa orientação tem em vista somente catecúmenos adultos sem descartar o batismo de crianças. É uma leitura possível, mas não é a mais provável. No cap. 7, há diversas orientações que tratam até mesmo da temperatura da água ou sobre o uso de água corrente, mas não há nenhuma orientação sobre o batismo de recém-nascidos. Uma vez que a Didaque foi concebida como um manual litúrgico a ser usado na igreja, essa ausência é relevante. Se a Igreja desse período batizasse recém-nascidos, seria esperado encontrar instruções específicas.

Aristides de Atenas (séc. II)

Aristides escreveu uma apologia em favor do cristianismo provavelmente dirigida ao imperador Adriano (117-138):

Mas quanto aos seus servos ou servas, ou seus filhos, se algum deles tem algum, eles [os cristãos] os persuadem para se tornarem cristãos pelo amor que têm para com eles; e quando eles se tornam cristãos, eles os chamam sem distinção de irmãos (...) (Apologia, cap. 15)

A versão traduzida dessa obra hospedada em sites católicos é mais curta e me parece ter usado o texto grego. Por isso, o trecho acima não é encontrado nelas. Eu traduzi da versão completa (a siríaca) que pode ser encontrada no site tertullian.org (referência em textos patrísticos). O trecho em questão é importante pois sugere que os filhos dos cristãos não eram automaticamente incluídos como membros da Igreja. Eles precisavam ser persuadidos e se tornarem cristãos, o que pressupõe uma decisão consciente.

Justino Mártir (100-165)

Em sua famosa I Apologia (150 d.C):

Todos os que se convencem e acreditam que são verdadeiras essas coisas que nós ensinamos e dizemos, e prometem que poderão viver de acordo com elas, são instruídos em primeiro lugar para que com jejum orem e peçam perdão a Deus por seus pecados anteriormente cometidos, e nós oramos e jejuamos juntamente com eles. Depois os conduzimos a um lugar onde haja água e pelo mesmo banho de regeneração com que também nós fomos regenerados eles são regenerados, pois então tomam na água o banho em nome de Deus, Pai soberano do universo, e de nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo. (cap. 61)

Justino trata especificamente do batismo aqui. Aquele que iria se batizar deveria atender exigências que um recém-nascido jamais poderia. Observem como confissão e arrependimento eram pré-requisitos. Duas objeções podem ser levantadas: (1) o texto não exclui de forma explícita o batismo de recém-nascidos e (2) a igreja desse período era predominantemente missionária – a maioria dos cristãos seriam pessoas que se converteram na fase adulta, por isso, quando se fala de batismo, o foco sempre está sobre o batismo de adultos. Sobre a primeira objeção, a continuação da citação é relevante:

A explicação que aprendemos dos apóstolos sobre isso é a seguinte: Uma vez que não tivemos consciência de nosso primeiro nascimento, pois fomos gerados por necessidade de um germe úmido, através da união mútua de nossos pais, e nos criamos em costumes maus e em conduta perversa, agora, para que não continuemos sendo filhos da necessidade e da ignorância, mas da liberdade e do conhecimento e, ao mesmo tempo, alcancemos o perdão de nossos pecados anteriores, pronuncia-se na água, sobre aquele que decidiu regenerar-se e se arrepender de seus pecados, o nome de Deus, Pai e soberano do universo. Aquele que conduz ao banho pronuncia este único nome sobre aquele que vai ser lavado. (cap. 61)

Ele contrasta o primeiro nascimento (marcado pela nossa falta de conhecimento) com o segundo nascimento que requer conhecimento. Ele contrasta o fato de que não pudemos escolher em nosso primeiro nascimento, por isso o batismo foi instituído, pois agora é possível a escolha. É muito improvável que alguém que concebesse o batismo de bebês argumentasse dessa forma. Os bebês continuariam sendo ignorantes a respeito do primeiro e segundo nascimentos e também não podem exercer qualquer tipo de escolha. O batismo foi discutido por Justino em vários lugares de suas apologias e outras obras, sem qualquer menção ao batismo de infantes. O argumento de que a Igreja era formada por conversos também me parece não prosperar. No período em que Justino escreveu (150), já havia muitas famílias cristãs com filhos pequenos. A obra Diálogo com Trifão é relevante também. Nela, Justino discute com um judeu e diz bastante coisa sobre a circuncisão. Os pedobatistas afirmam que o batismo substituiu a circuncisão. Justino aplica a circuncisão aos cristãos de diversas formas, sem recorrer a qualquer analogia que implique no batismo de infantes:

Jesus Cristo circuncida todos os que desejarem - como foi declarado acima - com facas de pedra, para que eles sejam uma nação justa, um povo que mantem a fé, a verdade e a paz. (Diálogo com Trifo, 24)

Ainda que um homem seja um scitiano ou persa, se ele tiver o conhecimento de Deus e de Seu Cristo, e guardar os decretos justos e eternos, ele é circuncidado com a boa e proveitosa circuncisão. Ele é amigo de Deus e regozija-se com seus presentes e ofertas. (Diálogo com Trifo, 28)

Aqueles também da circuncisão que se aproximam dele, isto é, acreditando nele e buscando suas bênçãos, Ele tanto o receberá como o abençoará. (Diálogo com Trifo, 33)

A sua primeira circuncisão [de Trifo o judeu] foi e é realizada por instrumentos de ferro, pois você permanece com coração duro. Mas a nossa circuncisão, que é a segunda, tendo sido instituída após a sua, nos circuncidou da idolatria e de absolutamente toda espécie de perversidade pelas pedras afiadas, ou seja, pelas palavras pregadas pelos apóstolos. E nossos corações são assim circuncidados do mal, de modo que estamos felizes em morrer pelo nome da boa Rocha, que faz com que a água viva inunde os corações (...) (Diálogo com Trifo, 33)

Observem que, sempre que Justino aplica a circuncisão ao contexto cristão, ele se refere a pessoas que creram no evangelho e foram circuncidadas em seu coração. No último trecho, ele é explícito ao dizer que fomos circuncidados pelas palavras dos apóstolos, ou seja, pelo evangelho. Justino não é tão explícito quanto Tertuliano. Mas, quando alguém discute muito o batismo, a circuncisão e outras questões relacionadas, nunca mencionando o batismo infantil e associando repetidamente o batismo a conceitos que excluem bebês, por que devemos pensar que é provável que ele acreditasse no batismo infantil?

Irineu de Lyon (130-202)

Irineu é a testemunha mais antiga citada em favor do batismo infantil. Ainda que esse pai da igreja apoiasse a prática, há dois problemas: (1) os pedobatistas pressupõe que a posição de Irineu era adotada pela Igreja desde o princípio e (2) a posição de Irineu era generalizada. O problema é que (1) e (2) não podem ser sustentadas com base nos escritos de Irineu. Como abordado acima, documentos mais antigos sugerem que o credobatismo é a tradição mais antiga. E como veremos mais adiante, a Igreja antiga comportava opiniões diversas em relação ao batismo. No entanto, vejamos a citação:

Porque veio salvar a todos. E digo ‘todos’, isto é, àqueles tantos que por Ele renascem para Deus, sejam recém-nascidos, crianças, adolescentes, jovens ou adultos. Por isso, quis passar por todas as idades, para tornar-se recém-nascido com os recém-nascidos, a fim de santificar os recém-nascidos; criança com as crianças, a fim de santificar aos de sua idade, oferecendo-lhes exemplo de piedade e sendo para eles modelo de justiça e obediência. Fez-se jovem com os jovens, para dar exemplo aos jovens e santificá-los para o Senhor. (Contra as Heresias 2:22:4)

O argumento é que como Jesus regenerou os recém-nascidos, segue que eles também deveriam ser batizados. A premissa aqui é santificar/regenerar = batizar. A questão é se Irineu tratava as duas coisas como implicação uma da outra. Irineu respondia a afirmação de que o ministério de Jesus durou apenas um ano. Ele usou o argumento de que como Jesus veio para regenerar pessoas de todas as idades, ele deveria ter passado por todas as idades. Nesse mesmo livro, Irineu afirma que Jesus viveu mais de 40 anos. Obviamente, o bispo de Lyon estava errado. Em todo o caso, nem a citação nem o seu contexto imediato falam sobre batismo. Os pedobatistas complementam o argumento com uma citação de outra obra do bispo:

Nós somos limpos de nossas antigas transgressões por meio da água sagrada e da invocação do Senhor. Nós, portanto, somos regenerados espiritualmente como recém-nascidos, assim como o Senhor declarou: "Se alguém não nascer de novo pela água e pelo Espírito, ele não entrará no reino dos céus". (Fragmento 34)

O argumento então é que Irineu defendia a regeneração batismal, logo, se os recém-nascidos foram regenerados, eles eram batizados. Primeiro, essa combinação de citações diferentes em contextos diferentes é problemática. Hendrick Stander e Johannes Louw explicam:

É bastante pretensioso insistir em substituir a noção de batismo cada vez que um escritor usa o termo "regeneração", a menos que o contexto se relacione claramente com o batismo (...) [esta passagem em Irineu] apenas nos diz que a obra redentora de Cristo se estende a qualquer pessoa (...) A passagem não fala sobre a idade em que as pessoas eram batizadas. (Baptism In The Early Church [Webster, Nova Iorque: Carey Publications, 2004], pp. 53, 55)

Além disso, mesmo supondo que Irineu sustentasse a regeneração batismal, não segue que todo o indivíduo regenerado foi necessariamente batizado. Mesmo os defensores dessa doutrina admitem exceções à regra (ex. o ladro da cruz). Além do mais, Irineu está entre os defensores da salvação infantil – mesmo crianças não batizadas seriam salvas (uma crença popular no séc. II):

E, novamente, quem são os que foram salvos e receberam a herança? São os que sem dúvida acreditam em Deus e continuaram em seu amor, assim como Caleb, filho de Jefoné e Josué o filho de Nun, e os filhos inocentes que não tiveram consciência do mal. (Contra Heresias, 4:28:3)

E também sobra a matança dos recém-nascidos de Belém:

Por essa causa também, ele removeu de repente aqueles filhos pertencentes à casa de Davi, cujo destino feliz era ter nascido naquele tempo, para que Ele pudesse enviá-los antes para o seu reino. Desde que ele mesmo era uma criança, planejou que os bebês humanos fossem mártires assassinados de acordo com as Escrituras, por causa de Cristo, que nasceu em Belém de Judá, na cidade de Davi. (Contra Heresias, 3:16:4)

Nestas passagens, Irineu sugere que as crianças foram salvas apenas por serem inocentes. Dessa forma, como na teologia de Irineu a regeneração é condição necessária para a salvação, segue que regenerado não necessariamente implica em ser batizado. O trecho do fragmento 34 “somos regenerados espiritualmente como recém-nascidos” também não sugere o batismo de infantes. A analogia é que quando nascemos de novo espiritualmente na regeneração, tornamo-nos como bebês em sentido espiritual. Assim, podemos concluir que Irineu não pode ser contado como uma testemunha provável a favor do pedobatismo. Encerramos o segundo século com nenhum pai da Igreja ensinando explicitamente o batismo de recém-nascidos. Isso é problemático para a afirmação de que esta é a prática da igreja desde o princípio.

Tertuliano de Cartago (160-220)

Tertuliano foi a primeira testemunha a tratar de forma explícita sobre o batismo infantil. Em seu tratado sobre o batismo, ele escreveu:

E assim, de acordo com as circunstâncias e o caráter, e até mesmo a idade de cada indivíduo, o atraso do batismo é preferível; especialmente no caso de crianças pequenas (...) O Senhor realmente diz: Não os proibais de virem até mim. Deixe-os vir, então, enquanto estão crescendo. Deixe-os vir enquanto estão aprendendo, enquanto estão aprendendo para onde vir; que se tornem cristãos quando conseguirem conhecer Cristo. Por que o período de vida inocente se apressa para a remissão de pecados? (...) Deixe-os saber como pedir a salvação, que você possa ao menos fazer-lhes essas perguntas (...) Se alguém entender a importância de peso do batismo, temerá a sua recepção mais do que a sua demora: a fé sólida é segura da salvação. (Tratado sobre o Batismo, cap. 18)

O argumento de Tertuliano é claro no sentido de que o batismo é um passo de grande importância. Portanto, deve ser uma decisão consciente e convicta. Agostinho iria desprezar a posição de Tertuliano por entender que ele estava negando a existência do pecado original. Acredito que esse não foi o caso. Ao que parece, como outros pais da Igreja do séc. II, Tertuliano cria na salvação universal das crianças inocentes. Como ele não via risco na salvação de crianças não batizadas, não havia razão para adiantar algo que seria mais adequadamente administrado em idade mais tardia. Os pedobatistas costumam argumentar que Tertuliano pressupõe que a prática do batismo infantil já existia em seu tempo, por isso ele a critica.

No entanto, não está explícito que ele responde alguém em específico. Não há menção a qualquer grupo de dentro da Igreja. Tertuliano poderia muito bem tratar de uma mera possibilidade. É possível que o batismo infantil já fosse praticado? Sim, mas não é o mais provável. De qualquer forma, o mesmo argumento pode ser feito em sentido contrário. Ao condenar o batismo infantil, Tertuliano não parece ter consciência de estar indo contra a uma doutrina da Igreja. Além disso, o tratado sobre o batismo é da fase pré-montanista de Tertuliano, o que invalida a objeção que apologistas católicos constumam levantar contra ele (apenas quando Tertuliano contradiz o romanismo obviamente).

Supondo que o batismo já fosse praticado. É necessário pontuar que a simples existência da prática não a tornaria normativa. Ademais, não sabemos quão generalizada tal prática seria, pois poderia ser característico de um grupo minoritário ou de uma região geográfica específica. Não sabemos se os que a adotavam representavam a ala ortodoxa da Igreja. Toda a evidência anterior a Tertuliano sugere que o pedobatismo seria uma inovação. O fato é que o primeiro pai da Igreja a oferecer uma declaração explícita sobre o pedobatismo está negando-o.

Hipólito de Roma (170-235)

Hipólito, escrevendo no início do séc. III, afirmou:

Os batizandos se despirão e serão batizadas, primeiro, as crianças. Todos os que puderem falar por si próprios, falem; contudo, os pais ou alguém da família falem por aqueles que não puderem falar por si mesmos. Depois batizem-se os homens e, por último, as mulheres. (Tradição Apostólica 3:5)

Há alguns problemas no uso dessa citação em favor do batismo infantil:

1 – Há sérias dúvidas quanto a autenticidade desse trecho. O erudito patrístico David Wright afirmou:

Quase tudo concernente a esse texto continua sendo objeto de vigorosas discussões acadêmicas. (What Has Infant Baptism Done To Baptism? [England: Paternoster Press, 2005], p. 38)

Hendrick Stander and Johannes Louw também afirmam:

Esta citação da Tradição Apostólica é encontrada em uma tradução latina que data do século IV. Alguns estudiosos sugeriram até mesmo que não é improvável que este verso tenha sido inserido na tradução latina, pois foi no século IV que o batismo infantil se tornou popular (...) deve-se lembrar que os antigos tradutores não tinham objeções em inserir e omitir frases no texto a qual eles traduziam. Eles geralmente adaptavam os textos para sua situação atual. Isso pode ser claramente visto quando se compara, por exemplo, as seções existentes das traduções grega, saídica, árabe, etíope e boharica da tradição apostólica (...) O argumento mais importante, no entanto, para a adição posterior desta frase é que não se encaixa bem com o restante da obra. Como Aland (1963:43) apontou, as seções que precedem esta regulação batismal lidam exclusivamente com os catecúmenos adultos(...) Ele também se refere à tradução copta que contém uma declaração de que três anos de instrução na fé cristã são necessários para que uma pessoa receba o batismo. (Baptism In The Early Church [Webster, New York: Carey Publications, 2004], pp. 77-78)

2 – O texto não necessariamente implica em batismo de recém-nascidos. Stander e Louw explicam:

Aqueles que não podiam falar por si mesmos podiam ser crianças muito novas que precisavam de assistência para responder ao pronunciar as fórmulas necessárias. Elas não estavam isentas das preliminares de ensino e jejum etc. (Baptism In The Early Church [Webster, New York: Carey Publications, 2004], p. 77)

A obra em questão comina que os batizandos deveriam passar por um longo processo de instrução catequética e deveriam jejuar antes do batismo. Tais requisitos não poderiam ser atendidos por recém-nascidos, mas poderiam ser cumpridos por crianças pequenas. Dessa forma, a luz do contexto, parece improvável que Hipólito se referisse a recém-nascidos. Um destaque é importante aqui – os credobatistas não afirmam taxativamente que crianças não podem ser batizadas. Uma criança de 6, 7 anos pode estar em condições de entender e responder positivamente ao evangelho. David Wright assevera que a ideia de que um adulto falasse por uma criança, ainda que esta tivesse capacidade de falar não eram sem precedentes:

O que está em vista é a capacidade física e mental da criança ou a habilidade jurídica, implicando o reconhecimento romano de que com a idade de sete anos as crianças adquiriam certos direitos para falar por si mesmas? Agostinho e Jerônimo mais tarde considerariam sete como a nova idade de responsabilidade cristã. Agostinho [afirmou a idade de sete], em relação ao batismo de um menino falando por si mesmo. Em que termos um pai ou outro parente respondia por uma criança, ainda não sabemos e nenhuma fonte nos diz até cerca de 400. (What Has Infant Baptism Done To Baptism? [England: Paternoster Press, 2005], p. 40)

Ou seja, nos tempos de Agostinho, uma criança de 7 anos já poderia responder por si mesma. Isso implica que uma criança de 5, 6 anos não poderia. Todavia, crianças com tais idades não eram incapazes de falar. Elas apenas não tinham o direito jurídico de falar por si mesmas. Obviamente, Agostinho não pertence ao mesmo contexto que Hipólito. Mas isso no mínimo nos leva a concluir que a interpretação pedobatista da citação não é definitiva e necessitaria de mais dados para ser sustentada. Além disso, um concílio em Cartago permitia que alguém falasse pelas pessoas doentes nas cerimônias de batismo (veja o cânon 45 aqui). Isto vem a reforçar que o simples falar por alguém não implica que o catecúmeno fosse totalmente incapaz de se expressar.

Orígenes de Alexandria (185-254)

Orígenes foi o primeiro pai da Igreja a defender claramente o batismo infantil:

Um recém-nascido era capaz de pecar? Ainda assim ele tem um pecado pelo qual é ordenado que sacrifícios sejam oferecidos, e a partir do qual é negado que alguém seja puro, mesmo que sua vida dure apenas um dia (...) É também por isso que a Igreja recebeu dos apóstolos a prática de dar o batismo até aos filhos pequenos. (Comentário sobre Romanos, Livro 5, cap. 9)

A afirmação de Orígenes obviamente não tem raízes históricas confiáveis. Vimos que pele menos um pai da igreja anterior a ele ensinou explicitamente o contrário. Tertuliano não se oporia ao batismo infantil se o considerasse uma prática herdada dos apóstolos. O apoio de Orígenes ao pedobatismo se baseia na pecaminosidade dos bebês. Ele derivou este ensino da pré-existência das almas. Segundo o alexandrino, as almas foram criadas e teriam pecado antes da criação do mundo. Todas essas almas (exceto de Jesus) foram exiladas em corpos humanos. Obviamente, essa visão de queda e redenção não é apostólica. Por isso rejeitamos a doutrina de Orígenes, pois se baseia numa doutrina contrária ao que os apóstolos ensinaram.

Cipriano de Cartago (200-258)

Enquanto Orígenes foi o primeiro a defender o batismo de infantes na igreja oriental, Cipriano foi o primeiro na igreja ocidental.

“É no batismo que nós (...) recebemos a remissão dos pecados" (Carta 58 a Fido). Em resposta ao bispo Fido, que sugeriu que o batismo deveria ser no oitavo dia, Cipriano e o Sínodo de Cartago (cerca de 252) disseram que o 2º ou 3º dia eram melhores e que a espera "negaria a misericórdia e a graça de Deus" e "devemos fazer tudo o que possamos para evitar a destruição de qualquer alma".

É inegável que Cipriano ensinou o pedobatismo e que se tratava de uma prática já estabelecida na igreja norte africana em meados do séc. III. Cipriano cria na indispensabilidade do batismo para a salvação. Dessa forma, crianças não batizadas estaria correndo risco de irem para o inferno. Esta é uma visão contrária ao que os pais do segundo século ensinaram, nos quais a salvação infantil independente do batismo foi a visão majoritária.

Basílio Magno (330-379)

Sites católicos como o já mencionado Veritatis trazem uma citação de Basílio acerca da necessidade do batismo. Todavia, nada é falado sobre o batismo de crianças. De fato, nem poderia, pois Basílio via a fé como condição necessária:

A fé e o batismo são dois modos de salvação iguais e inseparáveis: a fé é aperfeiçoada através do batismo, o batismo é estabelecido através da fé, e ambos são completados pelos mesmos nomes. Pois, como acreditamos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, também somos batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; primeiro vem a confissão, apresentando-nos a salvação, e o batismo segue, estabelecendo o selo sobre o nosso consentimento. (O Espírito Santo, Cap. 12:28)

Na mesma obra, ele continua a ensinar a fé que precede o batismo:

Como, então, conseguimos a descida para o inferno? Ao imitar, através do batismo, o enterro de Cristo. Pois os corpos dos batizados estão, por assim dizer, enterrados na água. O batismo simboliza expulsar as obras da carne. (O Espírito Santo, Cap. 15:35)

No que diz respeito ao batismo (...) é impossível que alguém seja imerso três vezes, sem emergir três vezes. (O Espírito Santo, Cap. 15:35)

São descrições incompatíveis com o batismo de infantes.

Gregório Nazianzeno (329-389)

Gregório expressa uma opinião peculiar. É possível dizer que ele ficou no meio termo entre o credo e pedobatismo:

Tudo isto é dito para aqueles que pedem o batismo por si mesmos; mas o que podemos dizer das crianças, ainda de pouca idade, que são incapazes de perceber o perigo em que se encontram e a graça do sacramento? Certamente, no caso de perigo imediato, é melhor batizá-las sem o seu consentimento do que deixá-las morrer sem ter recebido o selo da iniciação. Somos obrigados a dizer o mesmo acerca da prática da circuncisão, que era realizada no oitavo dia prefigurando o batismo, também realizada nos meninos desprovidos de razão. Da mesma forma, realizava-se a unção dos umbrais da porta que, embora se tratasse de coisas inanimadas, protegia os primogênitos. E quanto às demais crianças? Eis aqui a minha opinião: esperai que alcancem a idade de três anos, de modo que sejam capazes de compreender e expressar superficialmente os mistérios; apesar da imperfeição da sua inteligência, recebem o sinal, e o seu corpo e a sua alma se encontram santificados pelo grande sacramento da iniciação. Elas renderão conta dos seus atos no momento preciso em que, com plena posse da razão, chegarem ao pleno conhecimento do Mistério, já que não serão responsáveis das faltas que, pela ignorância da idade, tiverem cometido. Ademais, de todos os modos, lhes resulta vantajoso possuir a muralha do batismo para se proteger dos perigosos ataques que caem sobre nós e ultrapassam as nossas forças (…) Porém, alguém dirá: ‘Cristo, que é Deus, se fez batizar aos trinta anos e tu nos empurras desde logo o batismo’. Afirmar assim a sua divindade é o que responde a essa objeção. Ele – a própria pureza – não precisava de purificação, mas se fez purificar por vós, assim como por vós se fez carne, uma vez que Deus não tem corpo. Além disso, Ele não corria nenhum perigo por retardar o seu batismo, pois podia livremente regular o seu sofrimento assim como regulou o seu nascimento. Para vós, ao contrário, não seria pequeno o perigo no caso de deixardes este mundo sem terdes recebido, no vosso nascimento, nada além que uma vida perecível, sem estardes revestidos da incorruptibilidade. (Sermão 40,26-27)

Gregório expressa a liberdade existente ainda no séc. IV sobre o batismo de crianças. Se a criança corria risco de morte, deveria ser batizada. Em caso contrário, dever-se-ia esperar até os três anos. Mas porque essa idade? Ele acreditava que nessa idade já seria possível expressar de forma superficial o consentimento ao evangelho. Percebam como a regra era que a criança deveria expressar algum consentimento, ainda que com razão imperfeita. Trata-se de uma posição incompatível com o pedobatismo, mas não necessariamente incompatível com o credobatismo. A maioria dos credobatistas discordaria de Gregório quando a idade do batizando, mas concordaria com o requisito do consentimento. Além disso, o bispo cristão atesta que em seus dias havia indivíduos provavelmente cristãos contrários ao batismo de infantes. Estes argumentavam que Cristo foi batizado apenas aos 30 anos, portanto, não faria sentido batizar crianças. Gregório rebate tal argumento. De todo modo, seu testemunho é importante para atestar a liberdade que havia a respeito dessa questão. Se a Igreja desde cedo creu que a prática era apostólica e obrigatória, a existência de opiniões como a de Gregório é inexplicável. Everett Ferguson escreve:

Gregório claramente não rejeita, mas incentiva o batismo de bebes. No entanto, não o reconhece como a prática regular, como também conhece questionamentos a respeito - fatores que não estimulam a ideia de que era uma prática rotineira de longa data. (Baptism in the Early Church, Grand Rapids, 2009, p. 595)

Pais da Igreja que nasceram em famílias cristãs

A evidência de que havia ampla liberdade sobre o batismo de crianças está no fato de que boa parte dos pais da igreja do séc. IV, que nasceram em famílias cristãs, somente foram batizados na idade adulta. S. L Greenslade escreveu:

Ambrósio nasceu no ano de 339 (...) era filho de cristãos e foi criado como cristão, mas, à maneira de seu tempo, teve seu batismo adiado. (Early Latin Theology, S. L. Greenslade, The Westminster Press, Louisville, 1956, p. 175)

O historiador Stefan Rebenich escreveu:

Jerônimo nasceu em 347 (...) [perto] da Dalmácia (...) Os pais de Jerônimo eram cristãos, que cuidaram para que ele tivesse sido como bebê "alimentado com o leite católico". Ele não foi batizado quando era criança (...) mas como jovem (...) Naquele tempo, o batismo foi adiado até a maturidade (...) Os amigos de Agostinho e Jerônimo, Rufino e Heliodoro, são casos paralelos. (Jerome, Stefan Rebenich, Routledge, London 2002, p. 2)
O erudito patrístico J. N. D. Kelly escreveu sobre João Crisóstomo:

Sua família (...) era cristã (...) Apesar disso, ele não foi batizado na infância. Seguindo a prática amplamente aceita naqueles dias (...) foi apenas como um jovem aproximando-se dos vinte que ele se ofereceu para o batismo. (Golden Mouth: The Story of John Chrysostom, Ascetic, Preacher, Bishop, J.N.D.Kelly, Cornell University Press, 1995, p. 5)

Agostinho também testemunha que ele próprio não foi batizado quando criança:

Eu pergunto-lhe, meu Deus, pois, se é sua vontade, eu desejo saber - para que propósito meu batizado foi adiado neste momento? Foi para o meu bem que as rédeas que me privaram do pecado fossem diminuídas? Ou não é verdadeiro que elas estavam relaxadas? (Confessions. Trans. R.S. Pine-Coffin. London: Penguin Books, 1961. Book 1.11, p. 31-32)

Na infância, Agostinho foi acometido por uma doença. Sua mãe Mônica – uma cristã piedosa – considerou a possibilidade de batizá-lo uma vez que o filho corria risco de vida. O bispo de Hipona foi curado e. como era o costume de seus dias, teve seu batismo adiado para a idade adulta. Todos esses exemplos demonstram que adiar o batismo não apenas era aceitável, como foi a posição padrão. Esse é um dado problemático para aqueles que defendem o batismo infantil como uma prática apostólica. O fato de tantos pais cristãos piedosos adiarem o batismo de seus filhos até a idade adulta demonstra que a igreja não havia dogmatizado sobre o tema. Comparemos com o que diz o catecismo:

A Igreja e os pais negariam a uma criança a graça inestimável de se tornar filho de Deus se não conferissem a ele o batismo pouco depois do nascimento (...) Mais urgente é o apelo da Igreja para não impedir que as crianças pequenas venham a Cristo através do presente do santo batismo (...) Com respeito a crianças que morreram sem o batismo, a liturgia da Igreja nos convida a confiar na piedade de Deus e a rezar pela salvação. (Catecismo da Igreja Católica, 1250, 1261, 1283)

Percebam que a prática do batismo infantil não é uma opção, mas uma obrigação dos pais. Negar o batismo às crianças poria em risco a salvação. Isso contrasta com a liberdade que houve na igreja antiga. O ponto de inflexão da história foi Agostinho. Apesar de ele mesmo não ter sido batizado na infância, tornou-se o voraz defensor dessa prática. Foi ele quem ofereceu a justificativa teológica para dogmatização do batismo infantil. Ele viu no pedobatismo um poderoso argumento em sua controvérsia contra os pelagianos. Para o bispo de Hipona, negar o batismo equivalia a negar o pecado original. 

O que a erudição moderna diz a respeito das raízes históricas do batismo infantil?

A erudição moderna realiza a opinião de que o batismo não foi uma prática dos apóstolos. Esta opinião tem sido seguida por muitos teólogos pedobatistas. O batismo de infantes teria sua origem nos filhos de cristãos que corriam risco de vida.  O estudioso luterano pedobatista H.A.W. Meyer diz:

O batismo dos filhos dos cristãos, do qual nenhum vestígio é encontrado no N.T, não deve ser considerado uma ordenança apostólica, pois, de fato, encontrou longa e precoce resistência; mas é uma instituição da igreja, que surgiu gradualmente nos tempos pós-apostólicos em conexão ao desenvolvimento da vida eclesiástica e do ensino doutrinário. Certamente não foi observado antes de Tertuliano, e por ele ainda foi decididamente combatido. Embora defendido por Cipriano, só se tornou uma prática generaliza após o tempo de Agostinho (...). (Commentary on Acts [16:15], New York: Funk & Wagnalls, 1883, p. 312)

O erudito patrístico pedobatista David Wright é um exemplo dessa tendência da erudição moderna:

Nós rastreamos, em grande parte nesta palestra, atendendo aos textos do desenvolvimento batismal ocidental, uma mudança verdadeiramente maciça na história da igreja de Cristo. De uma instituição que recrutava por resposta intencional ao evangelho pelo imperativo do discipulado e batismo, tornou-se uma sociedade inscrita desde o nascimento. Foi indiscutivelmente uma das maiores mudanças na história do cristianismo. Ela levou, como vimos, à formação da cristandade, compreendendo um império cristão, nações ou povos cristãos. O cristianismo tornou-se uma questão de hereditariedade e não de decisão. As famosas palavras de Tertuliano "feunt, non nascuntur, Christiani" - "pessoas são feitas, não nascidas cristãs", foram viradas de cabeça para baixo. (What Has Infant Baptism Done To Baptism? (England: Paternoster Press, 2005), p. 74)

Wright ainda diz sobre os credos ecumênicos:

O único credo ecumênico a mencionar o batismo é o niceno (nenhum menciona a eucaristia) na frase "um batismo para a remissão dos pecados". Tenho argumentado em outro lugar que isso não pode ter compreendido originalmente bebês, porque nos círculos em que este credo surgiu, para ser aprovado no Concílio de Constantinopla em 381 (se aceitarmos o testemunho dos Padres no Concílio de Calcedônia setenta anos depois, como a maioria dos eruditos faz), acreditava-se que os recém-nascidos não tinham pecados. (Ibid., p. 93)

E continua:

Peter Leithart afirmou recentemente que "a igreja foi salva da teologia e prática batista por Agostinho de Hipona". Se “batista” aqui implique a rejeição ao batismo infantil, essa afirmação corajosa é um exagero, mas dentro de limites perdoáveis (...) Para Leithart "o fato notável sobre o batismo na igreja primitiva é que o batismo infantil se tornou (...) a prática dominante da Igreja". Esta não é a maneira como a história geralmente é contada! Na verdade, é bastante enganador ver a era dos pais simplesmente como uma era de batismo infantil. Na verdade, dentre os indivíduos mais conhecidos daqueles séculos que eram cristãos e foram batizados em datas conhecidas, a grande maioria foi batizada pela profissão de fé (...) Como Leithart resume de forma útil: "as primeiras liturgias batismais (...) foram construídas sobre pressupostos batistas, mesmo quando as crianças era incluídas" (...) Leithart não consegue tirar a conclusão óbvia dessa evidência - o batismo infantil nunca pode ter sido a norma neste período inicial (...) O prazo do reinado do batismo de bebês se prolonga desde o início do período medieval, a partir do século VI, isto é, depois de Agostinho de Hipona, que morreu em 430. Foi ele quem forneceu a teologia que levou o batismo infantil a se tornar uma prática geral pela primeira vez na história da igreja. (Ibid., pp. 4-6, 8, n. 7 na p. 8, 12, 17)

O estudioso Anthony Lane expressa uma opinião peculiar:

A situação nos primeiros séculos foi de que as duas formas de batismo existiram lado a lado, tanto por causa do grande afluxo de conversos quanto porque de modo algum todos os cristãos trouxeram seus bebês ao batismo. A "dupla prática" de permitir aos cristãos a escolha de que os seus filhos fossem batizados ou não, e, em caso afirmativo, em que idade, pode parecer hoje confuso e sem princípio. O fato claro é que tal variedade de prática existiu no terceiro e quarto séculos e ninguém criou nenhum princípio opositor contra ela. Na verdade, pode-se argumentar com este fato que é muito provável que tal aceitação de variedades remonta aos tempos apostólicos. (Ibid., p. 7-8)

Everett Ferguson – autor do estudo mais detalhado sobre o tema – escreve:

Há concordância geral de que não há evidências firmes para o batismo infantil antes da última parte do segundo século (...) A explicação mais plausível para a origem do batismo infantil é encontrada no batismo de emergência de crianças doentes que se esperava que morressem em breve, de modo a garantir a entrada no reino dos céus. (Baptism in the Early Church, Grand Rapids, 2009, p. 856)

A respeito do período em que o batismo infantil se tornou dominante:

[Batismo infantil] foi geralmente aceito, mas questionamentos continuaram a ser levantados sobre a sua propriedade no século V. Tornou-se a prática habitual nos séculos V e VI. (p. 857)

Mesmo os eruditos pedobatistas tendem a afirmar que o batismo infantil não é uma prática que remonta aos apóstolos. Nós situamos a primeira evidência patrística favorável em meados do séc. III (Orígenes e Cipriano) e argumentamos contra aqueles que citam Irineu como a primeira evidência. Em todo o caso, o consenso sugere que o batismo infantil começou a ser praticado em virtude de crianças no leito de morte. Até o séc. V, não havia qualquer posição dogmática a respeito. Por isso, era usual que mesmo os filhos de pais cristãos tivessem o batismo adiado. Os defensores do batismo infantil costumam apontar para a história como o argumento decisivo em favor de sua posição. No entanto, concluímos que a história oferece mais problemas do que apoio a posição pedobatista.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Agostinho e o Catolicismo Romano - Parte 7 (Eucaristia, Batismo, Confissão e Penitência, Purgatório, Sucessão Apostólica e Salvação)


Transubstanciação e sacrifício propiciatório da Missa

Já temos nesse blog um artigo sobre Agostinho e a Eucaristia. Por isso, serei breve nesse ponto e redireciono o leitor ao artigo aqui. Longe de defender uma presença física de Cristo, ele sustentou a posição que mais tarde as igrejas reformadas adotariam – Cristo estaria presente espiritualmente, sendo a eucaristia um meio de graça, mas sem qualquer transformação física dos elementos. Adiciono aqui a opinião de Gary Wills, um estudioso católico romano, especialista em história da Igreja e que também escreveu uma obra sobre Agostinho:

Na verdade, a Eucaristia no seu sentido mais tardio, de repartir o pão e o vinho como o corpo e o sangue de Cristo, nunca é usado no Novo Testamento, nem mesmo na carta aos Hebreus, a única que chama Jesus de sacerdote. Mesmo quando o termo "Eucaristia" surgiu, como acontece nas cartas de Inácio de Antioquia, ainda era, como em Paulo, simplesmente uma celebração de unidade do povo num "único altar". Que esse significado para o "corpo de Cristo" persistiria tão tarde quanto os séculos IV e V, [é visto] na negação de Agostinho da presença real de Jesus nos elementos da ceia.

Veja, isso é recebido, isso é comido, isso é consumido. É o corpo de Cristo consumido, é a Igreja de Cristo consumida, são os membros de Cristo consumidos? Nem pensar! (Sermão 227)

Se você quer saber o que é o corpo de Cristo, ouça o que o apóstolo [Paulo] diz aos crentes: "Você são o corpo de Cristo, e seus membros" [1Co 12.27]. Se, então, vocês são o corpo de Cristo e seus membros, esse é o seu símbolo que se encontra no altar do Senhor - o que você recebe é um símbolo de vocês mesmos. Quando você diz "Amém", você deve ser o corpo de Cristo para fazer com que esse "Amém" tenha efeito. E por que você é o pão? Ouça novamente o apóstolo falando desse próprio símbolo: "Nós somos um só pão, um só corpo, mesmo sendo muitos" [1Co 10.17]. (Sermão 272)

Os crentes reconhecem o corpo de Cristo quando eles tomam cuidado por serem [os crentes] o corpo de Cristo. Eles devem ser o corpo de Cristo se eles querem viver a partir do espírito de Cristo. Nenhuma vida vem para o corpo de Cristo, mas do espírito de Cristo. (In Joannem Tractatus 26.13) (Why Priests?: A Failed Tradition. Ed. Penguin, 2013, p. 16)

Wills dedica todo o capítulo 5 da obra a Agostinho e a transubstanciação. Ele escreve:

Eu mencionei antes que Agostinho não acreditava no que é chamado de "presença real" de Jesus na Eucaristia e citei vários lugares onde ele disse isso. Aqui está sua afirmação mais explícita de que o que é alterado na Missa não é o pão, mas os crentes que o recebem:

Esse pão deixa claro como você deve amar sua união com o outro. Poderia o pão ser feito de apenas um grão, ou seriam muitos grãos de trigo necessários? No entanto, antes de serem juntados como um pão, cada grão era isolado. Eles foram misturados em água, depois de serem triturados juntos. A menos que o trigo seja batido, e depois umedecido com água, dificilmente poderia assumir a nova identidade que chamamos de pão. Da mesma forma, você tinha que ser moído e batido pela provação de jejum e o mistério do exorcismo na preparação para o batismo da água. Dessa forma vocês foram regados, a fim de assumir a nova identidade do pão, depois que a água do batismo umedeceu você na massa. Mas a poção da massa não se transforma em pães até que seja cozido em fogo. E o que o fogo representa para você? É a [pós-batismal] unção com óleo. Óleo que alimenta o fogo, que é o mistério do Espírito Santo. . . O Espírito Santo vem a você, fogo depois da água, e você está cozido no pão que é o corpo de Cristo. É assim que a sua unidade é simbolizada. (Sermão 227)

Essa visão agostiniana da Eucaristia é o verdadeiro significado que não morreu com ele, embora a igreja fez  longos esforços para descartá-lo. Em 1944, o jesuíta francês Henri de Lubac publicou um livro, Corpus Mysticum, que traçou uma linha de teólogos no primeiro milênio cristão que se baseou em Agostinho para fornecer uma teoria da Eucaristia oposta à transubstanciação. (Ibid., p. 55-56)

Wills continua (p. 57) explicando que o Vaticano se opôs ao livro de Lubac e o puniu, juntamente com outros "líderes dos pensadores liberais" como: Jean Daniélou, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu, Karl Rahner, Teilhard de Chardin, e John Courtney Murray. No entanto, depois do Vaticano II, esses homens foram restaurados a tal ponto que em 1981, João Paulo II fez de Lubac um cardeal. Da mesma forma, Jean Daniélou e Yves Congar se tornaram cardeais após a reintegração. Em nosso artigo, trouxemos uma citação do Schaffer afirmando que muitos teólogos medievais citaram Agostinho como uma testemunha contra a transubstanciação. Ninguém menos do que o próprio discípulo do bispo de Hipona seria um deles.

Necessidade do batismo para salvação

Agostinho de fato defendia essa ideia como demonstrou o católico. Em conexão a isso, também defendia o batismo o infantil (o que não o coloca necessariamente em desacordo com muitas das igrejas reformadas). Porém, a doutrina de Agostinho a esse respeito era diferente da atual doutrina católica romana. Peter Stravinskas, um padre conservador e apologista católico, escreveu para uma revista católica:

Apesar da tremenda influência de Agostinho, várias de suas opiniões nunca ganharam aceitação na Igreja. Entre elas, podemos destacar as seguintes teorias: que Deus condenaria crianças não batizadas ao inferno, simplesmente por causa da herança do pecado original; que Deus justamente condena adultos que nunca tiveram a oportunidade de serem apresentados ao Evangelho, mais uma vez, devido unicamente ao pecado original contraído por eles; que algumas pessoas sofreriam condenação eterna por nenhuma outra razão do que a falta de interesse de Deus em salvá-las. Ao refletirmos sobre essas posições agostinianas, devemos lembrar do fato de que só porque alguém é um santo ou mesmo um doutor da Igreja não torna todo seu corpo de ensinar aceitável, somente o Magistério da Igreja pode decidir o que é ou não é conforme sua compreensão da verdade de Cristo. (Envoy, Setembro/Outubro de 1998)

Agostinho ensinou que o batismo é necessário para a salvação, mesmo de crianças (Sobre a alma e sua origem, 2:17). Em contraste, o catolicismo encoraja as pessoas a "confiá-las [as crianças não batizadas] à misericórdia de Deus, como ela faz em seus ritos funerários para eles" e "esperar que haja um caminho de salvação para as crianças que morreram sem batismo" (Catecismo da Igreja Católica, 1261). O apologista católico foi um pouco genérico na questão. A Igreja romana atualmente ensina que pessoas podem ser salvas sem o batismo, desde que elas desejassem explicitamente ou implicitamente o batismo – o chamado “batismo de desejo”, algo que Agostinho rejeitaria.

Cumpre mencionar que Agostinho está entre os advogados da regeneração batismal. Porém, essa doutrina foi contrariada por vários pais da igreja, em sua maioria mais antigos do que Agostinho. Tratamos da evidência pré-nicena aqui.

Confissão Auricular

O apologista católico traz o seguinte testemunho de Agostinho a respeito da confissão e penitência:

Quando você for batizado, mantenha uma vida boa nos mandamentos de Deus para que você possa preservar o seu batismo até o fim. Que eu não digo que você vai viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais que esta vida nunca está sem. O Batismo foi instituído para todos os pecados. Para pecados leves, sem os quais não podemos viver, a oração foi instituída... Mas não cometa esses pecados por conta de que você teria que ser separado do corpo de Cristo. Pereça o pensamento! para aqueles que você vê fazendo penitência cometeram crimes, seja adultério ou algumas outras enormidades. é por isso que eles estão fazendo penitência. Se seus pecados eram leves, a oração diária bastaria para apagá-los... Na Igreja, portanto, existem três maneiras em que os pecados são perdoados: nos batismos, na oração, e na maior humildade de penitência. (Sermão aos Catecúmenos sobre o Credo 7:15; 8:16)

Tratamos do desenvolvimento histórico da confissão e penitência aqui. O problema ignorado pelo católico é que Agostinho não ensinou a doutrina da confissão auricular defendida pela igreja romana. Pelo contrário, a contrariou explicitamente. Para ele, a confissão e a penitência era um processo de natureza pública e não privada (por isso não poderia ser considerada confissão auricular), e seria aplicável apenas aos pecados considerados grave e acessível apenas uma vez na vida. A igreja romana aplica a confissão e penitência mesmo para os pecados leves ou veniais e permite que pessoas sejam perdoadas através desse sacramento várias vezes ao longo da vida, mesmo em casos de pecados graves. Vejamos a citação acima em contexto:

Quando foste batizado, mantenha uma vida correta nos mandamentos de Deus para que você possa preservar o seu batismo até o fim. Eu não digo que você irá viver aqui sem pecado, mas eles são pecados veniais, que nesta vida nunca se está sem. O Batismo foi instituído para todos os pecados. Para pecados leves, sem os quais não podemos viver, a oração foi instituída. Que direito tem a oração? "Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores." Uma única vez todos fomos lavados no batismo, mas todos os dias temos de nos limpar por meio da oração. Somente não cometa estas coisas para as quais é necessário ser separado do corpo de Cristo: que estejam longe de você! Àqueles a quem tendes visto fazendo penitência, foi porque cometeram atos abomináveis, como adultério ou alguns crimes graves: por isso, eles fazem penitência. Porque, se os seus pecados fossem leves, apagar estas manchas pela oração diária seria suficiente. Os pecados são perdoados de três formas na Igreja: pelo batismo, pela oração e pela maior submissão da penitência. (Sobre o Credo 15, 16).

Mas aqueles que pensam que todos os outros pecados são facilmente expiados por esmolas, já não tem dúvida de que estes três são mortais, e tal como, se exige que sejam punidos por excomunhões, até que eles tenham sido curados pela grande submissão da penitência. São estes pecados: a falta de castidade, a idolatria e o assassinato. (Sobre Fé e Obras 34)

O vício, entretanto, por vezes, faz tais usurpações entre os homens que, mesmo depois de terem feito penitência e serem readmitidos ao sacramento do altar, eles cometem os mesmos ou mais graves pecados, mas Deus faz nascer seu sol mesmo sobre tais homens e dá seus dons de vida e saúde como ricamente como Ele fazia antes de suas falhas. E, embora a mesma oportunidade de penitência não lhes é novamente concedida na Igreja, Deus não se esquece de exercer sua paciência para com eles. (The Fathers of the Church (Washington D.C.: Catholic University, 1953), Saint Augustine, Letters, Volume III, Letter 153, p. 284-285)

Vejam quão longe Agostinho está do catolicismo romano. Os pecados considerados graves eram “a falta de castidade, a idolatria e o assassinato”. Faltar por preguiça à missa aos domingos não estava entre eles – o que é considerado pela igreja romana pecado mortal. O recurso da penitência estava disponível apenas uma vez, enquanto um católico romano pode recorrer tantas vezes quanto quiser ao longo da vida. Além disso, ele defende que mesmo não podendo recorrer à penitência, o perdão de Deus ainda é possível. Já a igreja romana ensina a condenação ao inferno para aqueles que cometeram pecado mortal e não fez uso do sacramento.

O erudito patrístico J.N.D. Kelly, a quem o católico muito citou de forma distorcida, observa que “Agostinho também estava entre aqueles que acreditavam que poderia haver apenas uma penitência na vida para alguns pecados” (Kelly, Op. Cit, p. 438). Kelly nos dá uma visão de como era o processo:

Com o alvorecer do terceiro século, as linhas gerais de uma disciplina penitencial reconhecida estavam começando a tomar forma. Apesar dos argumentos engenhosos de certos estudiosos, ainda não há sinais de um sacramento da penitência privada (ou seja, a confissão a um padre, seguido pela absolvição e a imposição de uma penitência), tais como a cristandade católica conhece hoje. O sistema que parece ter existido na Igreja, neste momento, e durante séculos posteriores, era inteiramente público, envolvendo confissão, um período de penitência e exclusão da comunhão, a absolvição formal e a restauração - todo esse processo era chamado de exomologesis ... De fato, para os pecados menores, que mesmo os bons cristãos cometem diariamente e dificilmente podem evitar, nenhuma censura eclesiástica parece ter sido considerada necessária; esperava-se que os indivíduos lidassem com eles pela oração, atos de bondade e perdão mútuo. Penitência pública era para pecados graves; era, tanto quanto sabemos universal, sendo um caso extremamente solene, capaz de ser submetido somente uma vez na vida. (Ibid., pp. 216-217).

Purgatório

Agostinho é largamente considerado o pai do Purgatório. Os católicos romanos o citam muitas vezes referindo-se a algo semelhante à moderna doutrina católica. Mas o que não explicam é que Agostinho reconheceu que estava especulando. Em outras palavras, não estava transmitindo alguma tradição proferida de geração em geração em sucessão ininterrupta desde os apóstolos. Ao contrário, ele estava especulando sobre o que pode acontecer na vida após a morte. O famoso medievalista Jacques Le Goff explica:

[Joseph Ntedika] pôs o dedo num ponto chave, mostrando não apenas que a posição de Agostinho evoluiu ao longo dos anos, o que era de se esperar, mas que passou por uma mudança acentuada num ponto específico no tempo, que Ntedika situa no ano 413 (...) Na Carta a Dardinus (417), ele [Agostinho] esboçou uma geografia do além, onde não há lugar para o Purgatório. (The Birth of Purgatory [Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1986], pp 62, 70).

O historiador protestante George Salmon explica o significado desses fatos:

Da mesma forma, quando Agostinho ouve a ideia sugerida de que, como os pecados dos homens bons lhes causam sofrimento neste mundo, então também podem causar até certo ponto no próximo, diz que não vai arriscar dizer que nada do tipo não possa ocorrer, porque talvez possa. Bem, se a ideia de purgatório não tinha conseguido ir além de um "talvez" no início do século V, podemos dizer com segurança que não foi pela tradição que a Igreja mais tarde chegou à certeza sobre o assunto; pois, se a Igreja tivesse alguma tradição no tempo de Agostinho, esse grande Padre não podia ter deixado de conhecê-la. (The Infallibility of the Church [London, England: John Murray, 1914], pp. 133-134).

Aqui está um exemplo de Agostinho expressando a sua incerteza:

E não é impossível que algo do mesmo tipo possa ocorrer mesmo depois desta vida. É uma matéria que pode ser investigada, e apurada ou deixada na dúvida, se alguns crentes devem passar por uma espécie de fogo purificador, e na proporção em que amaram com mais ou menos devoção os bens que perecem, ser mais ou menos rapidamente livres dele. (O Enchiridion, 69).

Longe de ser uma boa testemunha da doutrina romana, Agostinho demonstra que o purgatório era uma inovação fruto de especulação, não havia em seu tempo nenhuma sólida tradição que suportasse essa doutrina, muito menos uma tradição de origem apostólica. Mais tarde, já no final do século sexto, o Papa Gregório Magno dará grande impulso à doutrina do purgatório. Aquilo que Agostinho especulou, Gregório tomou como certo.

Sucessão Apostólica

Trataremos esse ponto de forma resumida, pois já abordamos em artigos anteriores. O conceito de sucessão de Agostinho é radicalmente distinto do católico romano. Ele não acreditava em papado – o elemento básico do ensino romanista a respeito. As premissas do papado como o primado jurídico de Pedro, a transmissão da autoridade do apóstolo de forma exclusiva e integral ao bispo de Roma, a infalibilidade papal e a chefia de toda a igreja pelo bispo romano não eram cridos pelo africano. Além do mais, ele não acreditava que o critério final para definir a verdadeira igreja era a sucessão apostólica, mas a conformação da igreja à autoridade suprema das Escrituras, como demonstramos na parte 3 de nossa série.

O apologista católico traz a lista de Agostinho dos bispos de Roma. Essa não era uma lista de papas, mas apenas uma lista de bispos como já argumentado. Outro problema é que a lista de Agostinho é diferente da lista de papas. Ele coloca a seguinte sequência: Pedro – Lino – Clemente – Anacleto. Na lista romana, Anacleto vem antes de Clemente e não depois. Agostinho também coloca Aniceto depois de Pio, enquanto a lista oficial coloca antes:

O sucessor de Pedro foi Lino, e seus sucessores em continuidade ininterrupta foram estes: Clemente, Anacleto, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telesforo, Igino, Aniceto, Pio, Sotero, Eleutério, Victor.... (Carta 53:2)

Foi abordado na parte 1 a mudança da eclesiologia de Agostinho. Ele passou a compreender a igreja como a reunião dos eleitos que poderiam ser pessoas fora da igreja institucional num dado momento. O bispo africano também adotou o conceito de igreja invisível:

A segunda regra é sobre a dupla divisão do corpo do Senhor, mas esse na verdade não é um termo adequado, por que nenhuma parte do corpo de Cristo deixará de estar com Ele na eternidade. Devemos dizer que a regra é sobre o verdadeiro e o corpo misto do Senhor, ou o verdadeiro e o falso, ou algum outro nome, porque para não se falando da eternidade, pode ser dito que os hipócritas não estão Nele, embora eles pareçam estar na Sua Igreja. (A doutrina cristã 3:32)

Eleição Incondicional e Perseverança dos Santos

Agostinho defendeu a eleição incondicional:

Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). (...) Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo? (Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Consequentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou aos que predestinou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim. Portanto, Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram. (GRAÇA II, 1999, p.194, 195).

Sobre a perseverança dos santos:

É Ele, portanto, que os faz perseverar no bem, que os torna bons. Mas os que caem e perecem nunca foram do número dos predestinados. (A graça e o livre arbítrio, cap. 36)

Essa é apenas uma pequena amostra de muitas outras que mostram como a soteriologia agostiniana foi negada por Roma. Apesar de a igreja romana ter seguido Agostinho ao condenar o pelagianismo, nunca aderiu completamente às doutrinas agostinianas da salvação. Norman Geisler, um oponente da doutrina da eleição incondicional, escreve:

Nos seus escritos antipelagianos anteriores, por sua vez, Agostinho nunca adotara a posição radical sobre o livre-arbítrio e a expiação limitada que ele acabou manifestando em seus escritos posteriores, particularmente depois de 417. O endurecimento das artérias teológicas de Agostinho é manifesto em diversas áreas. Em sua visão anterior, igual à que foi sustentada por todos os pais ao longo de toda a história da Igreja até Lutero, ele abraçou a expiação ilimitada; posteriormente, afirmou a expiação limitada. No período anterior, ele sustentava que Deus nunca coage um ato livre; isso foi descartado em favor da graça irresistível sobre o que não quer, nos últimos anos de sua vida. Isso, naturalmente, resultou no endurecimento de sua visão da predestinação, em que Deus foi ativo tanto no destino do eleito quanto no do não-eleito, e na negação de que há condições para se receber o dom da salvação incondicional de Deus. De fato, para o Agostinho mais velho, em contraste com o Agostinho mais jovem, a raça humana está tão depravada que não tem livre-escolha em relação às coisas espirituais. (GEISLER, 2005, p. 190)

Roger Olson, um conhecido oponente dessas doutrinas, também escreve:

Toda a soteriologia de Agostinho decorre de duas crenças principais: a absoluta e total depravação dos seres humanos depois da queda e o poder e a soberania absoluta e total de Deus. (OLSON, 2001, p. 275)

Paul Tillich escreve sobre o testemunho de Agostinho:

Os predestinados não podem recair. Recebem o dom da perseverança que lhes impede de perder a graça uma vez recebida. Nada disso depende de mérito. (TILLICH, 2007, p. 141).

Salvação fora da Igreja

O apologista católico traz uma citação em que Agostinho afirma a necessidade da participação na Eucaristia para salvação:

[De acordo com] Tradição Apostólica... as Igrejas de Cristo mantém inerentemente que sem o batismo e a participação na mesa do Senhor é impossível para qualquer homem alcançar tanto o reino de Deus quanto a salvação e a vida eterna. Este é o testemunho da Escritura também. (Sobre o mérito e perdão dos pecados e o batismo de crianças 1:24:34)

O interessante desse item é que ao querer refutar o protestantismo, o apologista acaba demonstrando que Agostinho contrariava o romanismo. A igreja romana ensina atualmente que até mesmo homens não cristãos podem ser salvos. Em oposição à tradição histórica romanista, em que estar submetido ao papa não é mais uma necessidade para que qualquer homem seja salvo. Então mostrar que o bispo africano defendia a participação na Eucaristia como necessária para a salvação mostra apenas o que defendemos – Agostinho não era um católico romano. O catecismo afirma:

Significa que toda a salvação vem de Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é o seu corpo. Portanto não poderiam ser salvos os que, conhecendo a Igreja como fundada por Cristo e necessária à salvação, nela não entrassem e nela não perseverassem. Ao mesmo tempo, graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita. (846-848)

Já o Concílio de Florença disse:

A Igreja crê firmemente, professa e prega que todos aqueles que estão fora da Igreja Católica, não só pagãos, mas também judeus ou hereges e cismáticos, não podem compartilhar a vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos, a menos que eles estejam ligados à Igreja Católica antes do final de suas vidas, pois a unidade do corpo eclesiástico é de tal importância que somente aqueles que recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo jejuns, obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica. (Concílio de Florença, 1431-1445)

Esse é só um dos inúmeros exemplos de como o magistério romano se contradiz ao longo da história. O Concílio de Florença, supostamente infalível, foi claro – ninguém pode ser salvo se não estiver ligado a hierarquia romana e participando dos sacramentos. O pensamento agostiniano é claro:

Nenhum homem pode encontrar a salvação exceto na Igreja Católica. Fora da Igreja Católica se pode ter tudo, exceto a salvação. Uma pessoa pode ter honra, pode ter os sacramentos, pode cantar aleluia, pode responder amém, pode ter fé no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e pregá-lo também, mas nunca pode encontrar a salvação exceto na Igreja Católica. (Sermo ad Caesariensis Ecclesia plebem)

Nessa altura de nossos estudos, resta claro que a igreja católica a que se refere Agostinho não era católica romana. Os reformadores estão mais próximos desse ponto. Eles ensinavam que não havia salvação fora da igreja e rejeitariam a possibilidade de não cristãos serem salvos, pois apenas os regenerados e crentes em Cristo podem fazer parte da igreja. 

Os católicos costumam alegar que os não cristãos podem ser salvos através da igreja, mesmo não aderindo a ela. Obviamente, essa ideia não era compartilhada pelos pais da igreja ou mesmo pelos papas mais antigos. Além do mais é uma contradição. Alguém que nunca manifestou a fé em Cristo não pode fazer parte de sua igreja.

Conclusão da Série

Concluo aqui está série de sete artigos sobre Agostinho e o catolicismo romano. Espero que esse estudo seja útil aos leitores e tenha demonstrado de forma suficiente o quão longe o bispo de Hipona estava da atual igreja romana. O maior teólogo da igreja latina não era um católico romano, isso nos dá uma boa evidência de como as peculiares doutrinas do romanismo não encontram fundamento histórico.