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terça-feira, 5 de junho de 2018

Os Concílios de Hipona e Cartago, de Trento e Esdras



Apologistas católicos costumam citar os concílios norte-africanos de Hipona (393) e Cartago (397) como aqueles que estabeleceram definitivamente o cânon bíblico. Essa afirmação é falsa porque tais concílios eram regionais e não poderiam vincular toda a igreja. Não por acaso, diversos teólogos e comentários bíblicos continuaram a rejeitar a canonicidade dos livros apócrifos mesmo após estes concílios (aqui). A Enciclopédia Católica afirma que o cânon só foi infalivelmente decidido pela Igreja Romana no Concílio de Trento. Diante do impasse, os católicos afirmam que o cânon de Trento é o mesmo de Hipona e Cartago.

Todavia, há um grande debate a respeito de um livro – Esdras I ou Esdras A. Havia na Septuaginta 3 livros de Esdras: 1 Esdras (ou Esdras A), 2 Esdras (Esdras e Neemias de nossas Bíblias) e 3 Esdras (também chamado de Apocalipse de Esdras). Os Concílios norte-africanos mencionam que dois livros de Esdras eram canônicos. Além disso, a bíblia que eles usavam era a antiga latina (uma tradução para o latim da septuaginta grega). Ocorre que a Bíblia usada pela Concílio de Trento era a vulgata traduzida por Jerônimo. Nesta, 2 Esdras foi desmembrado em 1 Esdras (Esdras atual) e 2 Esdras (Neemias). Sendo assim, a hipótese mais provável é que os concílios africanos não se referiam aos mesmos livros que Trento quando canonizaram dois livros de Esdras. Hipona e Cartago tinham 1 Esdras como canônico enquanto Trento o considerou apócrifo. A Enciclopédia Católica afirma:

III Esdras (Vulgata, I Esdras na Septuaginta) foi certamente compilado antes de 90 D.C, pois o historiador judeu Josefo o cita (Ant. 11); mas sua preocupação exclusiva com os interesses judaicos coloca sua composição antes da era cristã, mais próxima de 100 A.C. Até o século 5, os cristãos frequentemente classificavam 3 Esdras entres os livros canônicos. Ele é encontrado em muitos MSS LXX (manuscritos da Septuaginta) e na Vulgata Latina (Vulg) de São Jerônimo. Os protestantes, portanto, incluem 3 Esdras com outros livros apócrifos (deuterocanônicos), como Tobit ou Judith. O Concílio de Trento definitivamente o removeu do cânon. (Nova Enciclopédia Católica (Nova Iorque: McGraw Hill, 1967), Volume II, Bíblia, III, pp. 396-397)

O quadro abaixo nos ajuda a entender a confusão:

Vulgata (Cânon Católico)
Septuaginta
Texto Hebraico
Protestante e Judeu
1 Esdras (Esdras) *
Esdras *
Esdras *
2 Esdras (Neemias) *
2 Esdras (Esdras/Neemias) *
Neemias *
Neemias *
3 Esdras
1 Esdras
Não encontrado
1 Esdras
4 Esdras
3 Esdras
Não encontrado
2 Esdras
 * Livros canônicos





Herbert Edward Ryle escreve sobre a diferença entre a Septuaginta e a Vulgata:

Nas listas do Velho Testamento que incluem os livros apócrifos, um elemento de confusão é causado pelo 'Esdras' apócrifo, nosso Primeiro Livro de Esdras. Na versão LXX, a Velha Latina e o Siríaco, este livro apócrifo grego foi colocado, com respeito provavelmente à cronologia, antes do Esdras hebraico, e foi chamado de Primeiro de Esdras (...) enquanto que nosso Esdras e Neemias apareciam como um livro, com o título de Segundo de Esdras. Em sua tradução da Vulgata, Jerônimo não reconheceu a canonicidade dos livros Apócrifos. Ele traduziu o Esdras hebraico (nosso Esdras e Neemias) como um livro com o título de Esdras; mas ele se submeteu à divisão do canônico Esdras em dois livros, pois ele fala dos livros apócrifos como terceiro e quarto de Esdras (...) Na Vulgata, consequentemente, Esdras e Neemias foram chamados de Primeiro e Segundo de Esdras; o apócrifo grego Esdras foi chamado de Terceiro de Esdras; a obra apocalíptica, o Quarto de Esdras (...) A influência da Vulgata fez os nomes aplicados aos livros naquela versão serem geralmente adotados no Oeste. No concílio de Trento, Esdras e Neemias foram chamados 'o primeiro livro de Esdras e o segundo de Esdras que é chamado de Neemias. (Herbert Edward Ryle, Ezra and Nehemiah [Cambridge: Cambridge University, 1907], págs. xiii-xiv)

Neste artigo, vou depender em grande parte do trabalho de William Webster. A resposta mais robusta ao apologista protestante foi dada por John Betts. O site apologistas católicos traduziu a resposta (aqui). Portanto, vou me concentrar em responder esse artigo. Para fins de clareza, vou me referir ao livro em disputa como 1 Esdras ou Esdras apócrifo. Os apologistas católicos costumam afirmar que esta tese (da contradição entre Trento e os sínodos africanos) é uma invenção de William Webster. No entanto, vejamos o que o padre francês Francis Gigot escreveu no final do séc. XIX:

A segunda escrita apócrifa agora colocada no final das edições autorizadas da versão latina é o terceiro livro de Esdras, assim chamado na Vulgata porque os nossos livros canônicos de Esdras e Neemias são conhecidos respectivamente como o primeiro e o segundo livro de Esdras. Nas antigas versões latinas, siríaca e Septuaginta, foi nomeado como o primeiro livro de Esdras, com sua posição imediatamente antes de nossos livros canônicos de Esdras e Neemias. Este último nome tem grande importância histórica, pois quando os primeiros Concílios e escritores da Igreja falam do primeiro livro de Esdras, eles têm em vista nosso terceiro livro desse nome e quando em suas listas de livros sagrados mencionam apenas dois livros de Esdras, o primeiro a que aludem é o nosso terceiro livro, enquanto o segundo corresponde aos nossos livros canônicos de Esdras e Neemias contados juntos como uma obra.

A nomenclatura que acabamos de referir é encontrada nos Concílios africanos de Hipona e Cartago, nos escritos de Santo Agostinho, Papa Inocêncio I e Cassiodoro, e prova sem sombra de dúvida que em um dado momento a canonicidade do terceiro livro de Esdras foi oficialmente reconhecida, pelo menos nas igrejas ocidentais. Por volta do mesmo período, o caráter sagrado deste livro foi dado como certo pelos principais escritores do Oriente, como Clemente de Alexandria, Orígenes, Eusébio, Santo Atanásio, São Basílio, São Crisóstomo, que concordam com São Cristóvão. Cipriano, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, e outros no Ocidente, citam como Sagrada Escritura passagens que não são encontradas em nenhuma parte exceto no terceiro livro de Esdras.

Não é, portanto, surpreendente descobrir que, em presença de tal unanimidade do Oriente e do Ocidente, até o quinto século de nossa era, alguns escritores deveriam ter afirmado que esta obra é verdadeiramente canônica e inspirada. Observam que a Igreja Católica, longe de rejeitá-la positivamente como apócrifa, permitiu seu uso e inseriu-a em sua edição oficial da Vulgata e da Septuaginta; Que de longe a maior parte de seu conteúdo é simplesmente uma duplicata de passagens canônicas no segundo livro de Crônicas e no primeiro e segundo de Esdras; E que, finalmente, é difícil ver como o fato de que a escrita em questão deixou de estar em uso desde o século quinto de nossa era, pode invalidar o testemunho positivo anterior a seu favor. (Introdução Geral ao Estudo das Sagradas Escrituras [New York: Benzinger Brothers, 1900], na p. 121 e 122)

A tese já vem sendo aludida há muito tempo por fontes católicas. Outros estudiosos católicos também seguiram a mesma posição. O exegeta francês Agostinho Calmet escreveu em uma "História do Antigo e Novo Testamento e dos judeus":

Quando os Padres e os Concílios dos séculos anteriores declararam que os dois livros de Esdras eram canônicos, eles queriam dizer, seguindo as Bíblias atuais que Primeiro Esdras e Neemias formaram apenas um Livro, enquanto eles denominaram Primeiro Esdras o trabalho que é chamado terceiro em nossas Bíblias. (Calmet Comm. iii 250 'Dissert, sur le III livre d'Esdras')

O também católico Alfred Loisy escreveu:

Os dois livros de Esdras contidos neles (ou seja, em exemplares iniciais da Bíblia Latina) não são Esdras e Neemias. Mas como na Bíblia grega, o primeiro livro de Esdras é o que agora chamamos o terceiro, que foi expulso do cânon; o segundo é composto por Esdras e Neemias. (Histoire du Canon 92 citado em Journal of Theological Studies, Volume 7 p. 352)

Uma opinião peculiar pode ser encontrada em Gary Michuta. Ele é um apologista católico conhecido por seu trabalho em defesa da canonicidade dos apócrifos. Inclusive, Michuta é bastante citado e traduzido pelo site católico que estamos respondendo. Vejamos sua posição:

Muitas coisas são questionáveis sobre Esdras. O Concílio de Cartago pode ter incluído Esdras em sua lista. Nós não sabemos ao certo. Esdras pode ser um livro individual ou pode ser uma recensão. Ninguém sabe. Alguns Pais da Igreja podem ter usado Esdras como um livro canônico (...) Na época de Trento, a natureza exata de Esdras, tanto sua forma quanto seu status canônico, estavam abertas a dúvidas. O melhor movimento para Trento foi não se mexer. Aqueles que afirmam então que Trento "rejeitou Esdras" estão equivocados. Não o fez. De fato, qualquer rejeição ou afirmação foi intencionalmente retida. Se não houve decisão, não se pode dizer que Trento tenha contradito Cartago. A questão do status canônico de Esdras foi deixada teoricamente em aberto. [Gary Michuta, Why Catholic Bibles Are Bigger (Michigan: Grotto Press, 2007), p. 240-241]

Michuta contradiz os apologistas católicos ao afirmar que é possível que Cartago tenha considerado Esdras canônico. Ele também admite a possibilidade de alguns pais terem considerado Esdras canônico. A solução proposta é que Trento não decidiu de fato a canonicidade do livro. Trento se omitiu. O problema dessa “solução” é que levanta uma série de outros problemas. A implicação é que os católicos romanos não poderiam afirmar que possuem o cânon completo infalivelmente determinado pela Igreja. É possível que livros canônicos não constem no cânon católico romano. Agora, pense nas milhares de vezes que um apologista católico usou o argumento do cânon para defender a necessidade da infalível igreja romana ou aquele batido argumento de que os católicos podem ter certeza sobre o cânon, já os protestantes não. Ademais, Michuta contradiz o Catecismo Católico:

Foi pela Tradição apostólica que a Igreja discerniu quais escritos devem ser incluídos na lista dos livros sagrados. Esta lista completa é chamada de cânon das Escrituras. Inclui 46 livros para o Antigo Testamento (45 se contarmos Jeremias e Lamentações como um) e 27 para o Novo. (CCC 120)

Esta é a posição adotada por todos apologistas católicos romanos. Michuta tentou uma saída de emergência que traz implicações inaceitáveis para a Igreja Romana. Não por acaso, a edição da Vulgata de 1590 omite o livro de Esdras e a edição de 1593 o coloca num apêndice. A Enciclopédia Católica também diz:

A palavra cânon, como aplicado às Escrituras, há muito tem um significado especial e consagrado. Em sua mais completa compreensão, significa a lista oficial ou número fechado dos escritos compostos sob inspiração Divina e destinados ao bem-estar da Igreja, usando a última palavra no sentido amplo da sociedade teocrática que começou com a revelação de Deus de si mesmo para o povo de Israel, e que encontra seu desenvolvimento maduro e conclusão no organismo católico. Todo o cânon bíblico, portanto, consiste nos cânones do Antigo e do Novo Testamento. (Enciclopédia Católica, Canon do Antigo Testamento)

A Nova Enciclopédia Católica afirma:

Segundo a doutrina católica, o critério para o cânon bíblico é a decisão infalível da Igreja. Esta decisão não foi dada até muito tarde na história da Igreja no Concílio de Trento (...) O Concílio de Trento resolveu definitivamente a questão do cânon do Antigo Testamento. Que isso não havia sido feito anteriormente é evidente a partir da incerteza que persistiu até a época de Trento. (New Catholic Encyclopedia, Vol. II, Bible, III (Canon), p. 390; Canon, Biblical, p. 29; Bible, III (Canon), p.390)

Vejam como uma citação tão pequena contradiz toda a narrativa apologética católica sobre o cânon. A decisão definitiva não ocorreu em Hipona e Cartago, mas somente em Trento. Se a decisão é definitiva, ela não poderia se omitir em relação a Esdras. O erudito católico Yves Congar vai na mesma direção:

(...) Uma lista oficial e definitiva de escritos inspirados não existia na Igreja Católica até o Concílio de Trento. (Yves Congar, Tradition and Traditions (New York: Macmillan, 1966), p. 38)

O tradutor inglês do Concílio de Trento, H.J. Schroeder, O.P., escreveu:
   
A lista ou decreto tridentino foi a primeira declaração infalível e efetivamente promulgada sobre o Cânon das Sagradas Escrituras. (The Canons and Decrees of the Council of Trent (Rockford: Tan, 1978), Fourth Session, Footnote #4, p. 17)

1 Esdras (3 Esdras na Vulgata) e Agostinho

Um bom indicativo do que os concílios africanos queriam dizer com “dois livros de Esdras” é avaliar a posição dos pais da igreja sobre esse livro. Destacamos especialmente a posição de Agostinho que era um bispo norte-africano e teve grande influência sobre esses concílios. A obra mais relevante sobre 1 Esdras é a Série de Comentários sobre a Septuaginta. O erudito Michael F. Bird documenta que o livro foi usado por pais da igreja como Escritura Canônica:

Do lado cristão, 1 Esdras foi citado esporadicamente nos Pais da Igreja, principalmente com referência para a história dos três vigias (Myers 1974:17-18) (...) Orígenes incluiu 1 Esdras em sua Hexapla (...)1 Esdras era comum em listas canônicas das igrejas ocidentais e orientais (...) Na Igreja Ocidental, 1 Esdras foi incluído em uma lista canônica por Hilário de Poitiers que  se referiu a 1 Esdras em um prólogo no Livro de Salmos (15) entre 350 e 365 na França. O livro foi omitido de uma lista canônica dada por Jerônimo em uma carta (53.8), mas depois foi incluído em seu prefácio aos livros de Samuel e Reis. Tanto a carta como o prefácio foram escritos aproximadamente em 394 em Belém. Agostinho menciona 1 Esdras como canônico em seu volume sobre a Doutrina cristã (Chr. Doct. 2.13) escrita em 395 e no norte da África "dois livros de Esdras" são nomeados como Escrituras canônicas no cânon bíblico do Sínodo de Cartago em 397. Dentro da Igreja Oriental, 1 Esdras foi mantido em listas por Melito de Sardes (Eusebio, Hist. Eccl. 4.26.14), Orígenes (Eusébio, Hist. Eccl. 6.25.2) e Cirilo de Jerusalém (Leituras Catequéticas 4.35). O Concílio de Laodicéia inclui 1 Esdras em seu cânone bíblico. Atanásio escreveu em famosa 39ª carta festiva de 367: "E da mesma forma, o primeiro e segundo das Crônicas estão num único livro; e o primeiro e o segundo de Esdras são contados um" (Ep. Fest. 39.4). (Brill's Septuaginta Commentary, p. 25-26)

Bird escreve especificamente sobre a posição de Agostinho:

Embora existam dezenas de citações e alusões a 1 Esdras nos Pais da Igreja, a leitura cristã mais eminente de 1 Esdras é fornecida por Agostinho:

Depois destes três profetas, Ageu, Zacarias e Malaquias, durante o mesmo período da libertação do povo da servidão babilônica, Esdras também escreveu [um livro], que é mais histórico do que profético, como também é o livro chamado Esther, no qual são encontrados e relatados, para o louvor de Deus, eventos não muito distantes daqueles tempos. Talvez Esdras deva ser entendido como profetizando Cristo naquela passagem onde, por uma questão surgida entre alguns jovens sobre qual é o mais forte, quando um tinha dito os reis, outro o vinho, e o terceiro as mulheres que muitas vezes mandam sobre os reis; mas o terceiro demonstrou que a Verdade estava acima de todos como vencedora. Ora, se consultarmos o Evangelho aprendemos que Cristo é a verdade. (A Cidade de Deus 18:36)

O Evangelho a que Agostinho refere-se é claramente o quarto evangelho, em particular, parece que ele tem em mente João 14:6 com o ditado de Jesus: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim." Agostinho sabe muito bem que 1 Esdras é um trabalho histórico e não um livro profético e não há dúvida sobre se este não era o ponto pretendido no discurso de Zorobabel no texto de1 Esdras - claramente não era - mas Agostinho não está envolvido em alegoria grosseira ou “eisegese”. Em vez disso, Agostinho está se aproximando do texto com uma imaginação de forma canônica. A premissa subjacente é que a Escritura cristã, finalmente, tem um autor divino (Deus) e tem um objeto final de seu testemunho (Jesus Cristo). Dado essas suposições pode-se tentar relacionar a história de Esdras e a história do evangelho se alguém está convencido de que o mesmo Deus está envolvido em ambos e se conteúdo de toda a Escritura é a revelação de Jesus Cristo. Sem dúvida alguns estudiosos com uma inclinação histórica crítica consideram essa empreitada como cheia de ironia hermenêutica. Seja como for, os cristãos leram e continuaram lendo 1 Esdras, não apenas para escavar dados históricos sobre o período do pós-exílio, mas também por sua tipologia e significância espiritual e devocional. (Ibid. p. 29-30)

O ponto é que Agostinho se aproximou de Esdras não apenas como uma fonte histórica, mas como fonte de uma profecia messiânica. O evento narrado encontra-se apenas no livro de Esdras que estamos discutindo. Haja vista que Agostinho foi influência marcante nos concílios de Hipona e Cartago, a conclusão mais provável é que tais sínodos também consideravam Esdras canônico. A tese de John Betts é que Agostinho considerava o Esdras apócrifo como uma outra versão do Esdras canônico – que na septuaginta era formado por Esdras e Neemias de nossas bíblias. Vejamos as fragilidades desse argumento:

(1) É totalmente gratuito. Não é apresentada sequer uma citação que apoie tal tese, e de fato não há. Betts não cita também qualquer acadêmico que apoie sua tese;

(2) Agostinho cita uma profecia messiânica que não é encontrada no texto do Esdras canônico. Dessa forma, como poderia ser apenas outra versão do Esdras canônico, se apresenta material adicional?

(3) Ainda que não apresentasse material exclusivo, não implicaria que 1 Esdras não seria um livro canônico individual. Por exemplo, os quatro evangelhos são relatos da mesma história contada a partir de pontos de vista diferentes. Isso implicaria que os Evangelhos de Lucas e Marcos não são unidades canônicas independentes? Obviamente não, eles são livros canônicos individuais.

(3) Agostinho, conforme admitido pelo próprio Betts, considerava a septuaginta inspirada:
Benoit afirma que, para Santo Agostinho, tanto o texto hebraico quanto o grego são inspirados e verdadeiros. Eles são aceitos como dois estágios pretendidos por Deus em sua revelação contínua. Orígenes queria como canônico apenas o texto grego, deixando o hebraico para os judeus. Jerônimo queria apenas o hebraico, reduzindo o grego a uma tradição menos precisa. Agostinho manteve os dois como versões diferentes, complementares e desejadas do mesmo Espírito. É uma visão de profundidade e verdade singular. (P. Benoit cited in Bright, p. 47)

Ou seja, o texto grego da septuaginta seria inspirado. A septuaginta continha o Esdras apócrifo, logo ele também era considerado inspirado por Agostinho. Se era inspirado, era canônico. Impressiona o fato do apologista católico não seguir um raciocínio tão simples. Pelo mesmo raciocínio, os concílios de Hipona e Cartago tinham como base a Septuaginta que era considerada inspirada por seu membro mais influente. A conclusão mais provável é então que os dois livros de Esdras aprovados nestes concílios eram os dois livros conforme listados na septuaginta.

Para fugir disso, Betts tenta fazer um argumento do silêncio. Ele diz que Agostinho criticou a tradução de Jerônimo (a Vulgata) em vários pontos, mas não há uma crítica específica para o fato de Jerônimo ter retirado o primeiro livro de Esdras do seu cânon. Este argumento não prospera devido ao fato de haver várias outras divergências entre a vulgata de Jerônimo e a Antiga Latina (tradução da septuaginta) de Agostinho, sendo que não há registro de queixas a respeito de várias destas divergências. Nós não dispomos de toda a correspondência mantida entre eles, portanto, neste caso, apelar ao silêncio é um argumento frágil. Dado todo o contexto, porque Agostinho dividiria o Esdras canônico em 1 e 2 Esdras se esta não era a estrutura adotada pela septuaginta considerada inspirada? A Enciclopédia Católica afirma:

St. Agostinho parece teoricamente reconhecer graus de inspiração; na prática ele usa protos e deuterocanônicos sem qualquer discriminação. (The Catholic Encyclopedia, Canon of the Old Testament)

Ou seja, ele usou o livro apócrifo de Esdras da mesma forma que outros livros canônicos.

1 Esdras (3 Esdras na Vulgata) e demais pais da igreja

O testemunho de Agostinho é definitivo nesta questão devido sua proximidade ao evento (sínodos de Hipona e Cartago), mas convém analisar outros Pais da Igreja. O argumento mais robusto de Betts é apelar ao fato de que Pais da Igreja anteriores sínodos já dividam o Esdras canônico em dois. Ele documenta o testemunho de Orígenes (o primeiro a adotar esta divisão), Jerônimo, Rufino, Cirilo de Jerusalém, o Sínodo de Laodicéia e Cirilo de Jerusalém.

O que Betts não menciona é que tais Pais da Igreja estavam seguindo o cânon hebraico. Rufino, Cirilo, Jerônimo e Atanásio não seguiam a septuaginta com os livros apócrifos, mas o cânon hebraico mais curto (aqui). Orígenes é um caso peculiar. Ele pessoalmente seguiu o cânon mais extenso com os apócrifos da septuaginta, mas quando separa Esdras em dois, estava descrevendo o cânon hebraico. Contudo, sabemos que os sínodos do norte da África estavam seguindo a tradução latina da septuaginta e não o cânon hebraico. Além disso, de forma semelhante a outros pais da igreja que aceitavam os apócrifos, Orígenes considerava todos os apócrifos como canônicos:

Orígenes usa todos os deuterocanônicos como Escrituras Divinas e, em sua carta a Júlio Africano, defende a sacralidade de Tobias, Judite e os fragmentos de Daniel, ao mesmo tempo em que afirma implicitamente a autonomia da Igreja na fixação do cânon. Em sua edição Hexapla do Antigo Testamento todos os deuteros encontram um lugar. (A Enciclopédia Católica, Canon do Antigo Testamento).

Betts traz a mesma resposta dada ao testemunho de Agostinho. Estes pais da igreja supostamente veriam 1 Esdras como outra versão do Esdras canônicos. Os mesmos argumentos que fizemos em Agostinho se aplicam aqui. Rufino que detinha a mesma opinião de Jerônimo e Atanásio demonstra nosso argumento:

 (...) e dois livros de Esdras (Esdras e Neemias), que os hebreus reconhecem como um (...) (NPNF2, Vol. 3, Rufino, Comentário ao Credo dos Apóstolos 36)

Observem que Rufino remete ao cânon dos hebreus e divide Esdras em Esdras e Neemias. Já Agostinho não faz esta divisão. Ele não diz “Esdras e Neemias”, mas 1 e 2 Esdras. Isto se dá porque eles seguem padrões diferentes. É improvável que Agostinho adotasse uma prática que estava relacionada àqueles que adotavam o cânon hebraico, quando ele próprio rejeitava este cânon mais curto. 

Betts também cita o sínodo de Laodicéia cujos decretos sobre o cânon são contestados pelos estudiosos. Mas, tomando como legítimos para o bem do argumento, vejamos o que diz a Enciclopédia Católica:

O cânone 59º (ou 60º) do Concílio Provincial de Laodicéia (cuja autenticidade é contestada) dá um catálogo das Escrituras inteiramente de acordo com as ideias de São Cirilo de Jerusalém.

Como já visto, Cirilo seguiu o cânon hebraico. Observamos que todos aqueles que separavam o Esdras canônico em dois estavam seguindo o cânon hebraico. Por outro lado, não vemos nenhum pai da Igreja que seguia o cânon mais longo com os apócrifos da septuaginta realizando a mesma separação (com exceção de Orígenes que na verdade enumerava o cânon hebraico, apesar de ele preferir o cânon mais longo). Se esta prática esteve intimamente relacionada ao cânon mais curto, não faz sentido supor que os sínodos africanos a seguiram, afinal eles seguiam o cânon mais longo.

Adicionalmente, os pais que seguiram o cânon mais longo consideravam 1 Esdras canônico. Ou seja, se os sínodos africanos tivessem excluído este livro do canôn, estariam contradizendo uma tradição de longa data vigente entre os pais da igreja que usavam a mesma bíblia que o sínodo – a septuaginta:

Até o século V, os cristãos classificavam com frequência 3 Esdras entre os livros canônicos; encontra-se em muitos LXX MSS (manuscritos da Septuaginta). (New Catholic Encyclopedia (Nova York: McGraw Hill, 1967), Volume II, Bible, III, pp. 396-397)

Qual foi então o grande ponto de inflexão no século V? A resposta é a tradução latina de Jerônimo que seguia o cânon hebraico. Ele era o único pai da Igreja a quem poderíamos classificar como erudito em hebraico e foi o primeiro a não apenas dividir o Esdras canônico em 1 e 2 Esdras mas também relegar o 1 Esdras da Septuaginta à condição de não-canônico. 1 Esdras da Septuaginta passou a figurar como 3 Esdras no apêndice da vulgata. O erudito católico Raymond Brown afirma:

Parece que I Esdras gozou de mais popularidade do que Esdras B [Esdras-Neemias] entre aqueles que citaram a Bíblia Gk. Josefo usou isto, e os primeiros Padres da Igreja parecem ter pensado nele como Escritura. Foi realmente Jerônimo com seu amor pela bíblia hebraica que estabeleceu o precedente para rejeitar I Esdras porque não estava de acordo com Esdras/Neemias hebraico. Ele contém pouca coisa que não está no Esdras/Neemias canônico, exceto a história em 3:1-5:6, que fala de uma disputa entre três judeus na corte persa de Dario (520 AC). Zerubabel ganhou: Seu prêmio foi a permissão para levar os judeus de volta a Jerusalém. A história em sua forma atual (a partir de 100 AC?) pode ter sido adaptada de uma narrativa pagã. (The Jerome Biblical Commentary, vol. 2, p. 542)

Ou seja, ao rejeitar a canonicidade de I Esdras, Jerônimo estava contradizendo outros pais da igreja, inclusive, Agostinho. Lembremos que a vulgata de Jerônimo é posterior aos sínodos africanos. Logo, ele rompeu com o precedente que vigorava nestes sínodos – considerar I Esdras canônico. O Argumento de Betts perde força uma vez que a esmagadora maioria das citações patrísticas de I Esdras se referem a material que não está no Esdras canônico. James King West escreve:

Com a exceção de uma seção [o relato dos três homens], este livro parece ser nada mais do que uma versão paralela da história que começa com a páscoa de Josias (622 A.C) descrita em II Crônicas 35:1 e continua através de Esdras (exceto 4:6), incluindo Neemias 7:73-8: 12, e terminando abruptamente com a história da leitura da Lei de Esdras (c. 400 AC). No entanto, diferenças em detalhes, assim como na ordem, mostram que não é uma versão reeditada deste material na LXX, mas uma tradução de um texto hebraico, cuja relação com esses livros no cânon hebraico não podemos ter certeza. Em alguns aspectos, tanto a ordem quanto os estilos são superiores à história paralela contida na versão LXX dos livros canônicos. (Introduction to the Old Testament, p. 469)

Henry H. Howorth também escreve:

Ao compararmos a lista de livros autorizados como canônicos pelos sínodos africanos com os dos Concílios de Florença e Trento, há uma equação superficial e equivocada em relação aos livros de Esdras que estamos discutindo, que demonstra que houve um erro dos últimos concílios (...) Quando os pais em Florença discutiram e decidiram sobre sua lista de livros autorizados e canônicos, achando, sem dúvida, que os sínodos africanos haviam reconhecido apenas dois livros de Esdras, chegaram à conclusão de que esses dois livros deveriam ser chamados de Esdras I e Esdras II em suas Bíblias, a saber, Esdras e Neemias. Mas na verdade eles não eram. Daí o erro deles, um erro grande, mas natural, que é perpetuado no cânon romano. Os dois livros de Esdras reconhecidos pelos sínodos africanos e por todos os pais que escaparam da influência de Jerônimo foram os livros rotulados como Ἔσδρας Α e Ἔσδρας Β nas Bíblias gregas, isto é, o primeiro livro de Esdras, que foi remetido aos apócrifos pelos reformadores e a obra conjunta Esdras-Neemias. Esta evidência não será posta em dúvida por qualquer um que examine as primeiras Bíblias Gregas e as listas canônicas dos pais que não foram influenciadas por Jerônimo. Isto é completamente reconhecido pelos teólogos católicos romanos de primeira linha. (The Journal of Theological Studies, Volume VII, pp. 343-54 [Oxford: 1906])

Papas que contradisseram o Concílio de Trento

Um ponto destacado por Webster e respondido por Betts foi o apoio de papas como Inocêncio. Ele seguiu o cânon dos sínodos norte-africanos, conforme carta a Exupério:

Os específicos livros listados por Inocêncio em sua carta a Exupério são os seguintes: Uma breve adição mostra quais livros são realmente recebidos no cânon. Estes são os desideratos dos quais você desejava ser informado verbalmente: de Moisés cinco livros, que são, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômios, e Josué, de Juízes um livro, dos Reis quatro livros, e também Rute, dos Profetas dezesseis livros, de Salomão cinco livros, os Salmos. Da mesma forma das histórias, Jó um livro, de Tobias um livro, Ester um, Judite um, dos Macabeus dois, de Esdras dois, Paralipomenon dois livros. (Da epístolas Consulenti tibi para Exupério, Bispo de Toulouse, 405. Henry Denzinger, The Sources of Catholic Dogma (London: Herder, 1954), pág. 42

A resposta de Betts foi mais uma vez usa um argumento do silêncio. Segundo ele, não há registro de nenhuma correção de Inocêncio feita a Jerônimo. Lembrem-se que, segundo nossa tese, Jerônimo teria contrariado os sínodos norte-africanos ao relegar 1 Esdras da septuaginta à condição de apócrifo. O problema é que Jerônimo não contrariou os sínodos africanos apenas neste livro. Ele adotou um cânon mais curto (o cânon hebraico), enquanto Inocêncio adotou o cânon mais longo. E de igual forma não temos relatos de reprimendas do papa a respeito de cada livro colocado como não canônico na vulgata de Jerônimo. Jerônimo negou a canonicidade de 1 e 2 Macabeus, Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico. No entanto, não temos documentação de Inocêncio corrigindo Jerônimo sobre cada um deles. Por isso, a ausência de documentação sobre Esdras constitui um argumento do silêncio bastante frágil. Os mesmos livros dos sínodos africanos foram incluídos nos decretos de outros dois papas – Gelásio e Hormisdas. O erudito B.F Westcott escreveu:

O cânon amplo de Agostinho, que estava, como veremos, completamente sem suporte de qualquer autoridade grega, foi adotado no Concílio de Cartago (397? d.C.), apesar de com uma reserva (Cânone 47, De confirmando ist Canone transmarine ecclesia consulatur), e depois publicado nos decretos que sustentam o nome de Inocêncio, Dâmaso e Gelásio... e ele recorre em muitos escritores posteriores. (e Canon of Scripture. Encontrado no Dictionary of the Bible de Dr. William Smith (Grand Rapids: Baker, 1981), Volume I, Cânon, pág. 363)

Betts sustenta que, nos tempos desses papas, o uso da Vulgata já estava solidificado no ocidente. Portanto, seria de se estranhar tais papas adotarem o 1 Esdras como canônico, uma vez que a vulgata não referendava tal posição. Todavia, como já visto, tais papas não seguiram o cânon da vulgata de Jerônimo. Durante a idade média até o concílio de trento, a opinião dos homens da igreja sobre os apócrifos orbitaria em torno de duas autoridades (Jerônimo e Agostinho). Os papas supracitados seguiram a posição de Agostinho. Este, por sua vez, como já foi fartamente documentado, considerava 1 Esdras um livro canônico. Veja aqui a documentação das opiniões dos teólogos medievais sobre os apócrifos. Embora a vulgata tenha sido a Bíblia padrão durante a idade média, nem todos os teólogos seguiram o cânon de Jerônimo. Isto posto, o argumento de Betts demonstra-se frágil.

Conclusão

Em resumo, os seguintes fatos podem ser afirmados:

(1)   1 Esdras foi rejeitado pelo Concílio de Trento;
(2)   Agostinho e outros pais da igreja consideravam 1 Esdras um livro canônico;
(3)   A septuaginta continha 1 e 2 Esdras;
(4)   Agostinho considerava a septuaginta inspirada;
(5)   Os sínodos norte-africanos foram grandemente influenciados por Agostinho.

A conclusão mais provável desses fatos básicos é que os sínodos norte-africanos consideraram 1 Esdras da septuaginta como canônico quando se referem a “dois livros de Esdras”. Portanto, o cânon de Trento era diferente daquele enunciado por Hipona e Cartago.

segunda-feira, 20 de março de 2017

O Cânon do Antigo Testamento: De Jerônimo até a Reforma - Parte 3


Traduções Bíblicas

No início do século XVI, pouco antes da Reforma, o Cardeal Ximenes, o Arcebispo de Toledo, em colaboração com os principais teólogos de seu tempo, produziu uma edição da Bíblia chamada Bíblia Complutensia. Há uma admoestação no Prefácio sobre os Apócrifos, em que os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Macabeus, as adições a Ester e Daniel, não são escrituras canônicas e, portanto, não foram usados pela Igreja para confirmar a autoridade de quaisquer pontos fundamentais da doutrina, embora a Igreja permitisse que fossem lidos para fins de edificação. B.F. Westcott comenta:

No início da Reforma, os grandes estudiosos romanistas permaneceram fiéis ao julgamento do Cânon que Jerônimo havia seguido em sua tradução. E o cardeal Ximenes, no prefácio de sua magnífica poliglota Bíblia Complutensia – o monumento duradouro da Universidade que ele fundou em Complutum ou Alcala, e a grande glória da imprensa espanhola – separa os apócrifos dos livros canônicos. Os livros, ele escreve, que estão fora do cânon, que a Igreja recebe mais para a edificação do povo do que para o estabelecimento da doutrina, são dados apenas em grego, mas com uma dupla tradução. (A General Survey of the History of the Canon of the New Testament (Cambridge: MacMillan, 1889), pp. 470-471)

Esta Bíblia, bem como seu Prefácio, foi publicada com a autoridade e consentimento do Papa Leão X, a quem toda a obra foi dedicada. A Nova Enciclopédia Católica fornece-nos as seguintes informações:

A primeira Bíblia que pode ser considerada poliglota é a editada em Alcala (em latin Complutum, daí o nome de Bíblia Complutense), Espanha, em 1517, sob a supervisão e a expensas do Cardeal Ximenes, por estudiosos da universidade fundada nessa Cidade pelo mesmo grande Cardeal. Foi publicada em 1520, com a sanção de Leão X. (New Catholic Encyclopedia (New York: McGraw Hill, 1967), The Polyglot Bibles)

O erudito Bruce Metzger fornece informações adicionais sobre a visão da Igreja Ocidental durante o século XVI:

A versão latina mais antiga da Bíblia nos tempos modernos, feita a partir das línguas originais pelo estudioso dominicano, Sanctes Pagnini, e publicada em Lyon em 1528, com cartas comendatórias do Papa Adriano VI e Papa Clemente VII, separa agudamente o texto dos livros canônicos do texto dos livros apócrifos. Ainda outra Bíblia latina, esta uma adição da Vulgata de Jerônimo publicada em Nuermberg por Johannes Petreius em 1527, apresenta a ordem dos livros como na Vulgata, mas especifica no início de cada livro apócrifo que não é canônico. (Bruce Metzger, An Introduction to the Apocrypha (New York: Oxford, 1957), p. 180)

Metzger ainda afirma:

A versão de Petrius da Vulgata de Jerônimo também incluiu todos os prólogos de Jerônimo para os livros do Velho e Novo Testamento e os Apócrifos. Ele manteve o cânone hebraico, excluindo os livros apócrifos do status canônico. (Ibid)

Metzger descreve brevemente a situação histórica da Igreja Ocidental pouco antes da Reforma:

Após o tempo de Jerônimo e até o período da reforma, uma sucessão contínua dos Padres e teólogos mais instruídos no Ocidente manteve a autoridade distintiva e única dos livros do cânon hebraico. Tal julgamento, por exemplo, foi reiterado na véspera da Reforma pelo Cardeal Ximenes no prefácio da magnífica edição poliglota Complutense da Bíblia que ele editou (1514-17) (...) Mesmo Cardeal Caetano, adversário de Lutero em Augsburgo em 1518, deu aprovação ao cânon hebreu em seu comentário sobre todos os livros históricos autênticos do velho testamento, que dedicou ao papa Clemente VII em 1532. Ele expressamente chamou a atenção para a separação de Jerônimo dos livros canônicos dos não canônicos, e sustentou que estes últimos não devem ser invocados para estabelecer pontos de fé, mas usados apenas para a edificação dos fiéis. (Ibid., p. 180)

A Bíblia Poliglota do Cardeal Ximenes foi sancionada pelo Papa Leão X. Ela separou os Apócrifos do cânon do Antigo Testamento e recebeu sanção papal. Os apologistas católicos romanos falam bastante da aprovação papal dada por Inocêncio I para o Concílio de Cartago em sua carta a Exuperius. A sanção de Leão X é tão autoritária quanto à de Inocêncio, mas são fundamentalmente contraditórias, demonstrando novamente que a afirmação de Roma de que ela determinou o cânone para a Igreja universal no final do século IV e início do século V não é apoiada pelos fatos históricos.

O peso da evidência histórica apoia a exclusão dos Apócrifos da categoria de Escritura canônica. Assim, devemos concluir que os decretos do Concílio de Trento, relativos ao verdadeiro cânon das Escrituras, foram feitos com descarada indiferença pelas evidências históricas judaicas e patrísticas, bem como pelo consenso histórico geral da Igreja anterior a esse Concílio. O estudioso renomado, B.F. Westcott, faz estes comentários a respeito do decreto de Trento:

Este decreto fatal, no qual o Concílio [...] deu um novo aspecto a toda a questão do Cânon, foi ratificado por cinquenta e três prelados, entre os quais não havia um alemão, nem um estudioso distinguido pelo saber histórico, nem por um estudo especial para o exame de um assunto em que a verdade só poderia ser determinada pela voz da antiguidade. A decisão completamente se opôs ao espírito e à letra dos julgamentos originais das Igrejas Grega e Latina. Absolutamente sem precedentes foi a conversão de um uso eclesial em um artigo de crença. (B.F. Westcott, A General Survey of the History of the Canon of the New Testament (London: Macmillan, 1889), p. 478)

Além dessas razões históricas para rejeitar os Apócrifos como sendo inspirados e, portanto, não verdadeiramente canônicos, também há heresias, inconsistências e imprecisões históricas nos próprios escritos que os desqualificam para receber o status de Escritura. Bruce Metzger escreveu sobre o Livro de Judite:

Uma das primeiras perguntas que se levanta naturalmente a respeito deste livro é se é histórico. O consenso, pelo menos entre os estudiosos protestantes e judeus, é que a história é pura ficção (...) O livro é repleto de improbabilidades cronológicas, históricas e geográficas e erros francos (...) Por exemplo, Holofernes move um imenso exército em cerca de trezentas milhas em três dias (2:21). As primeiras palavras do livro, quando tomadas com 2:1 e 4:21, envolvem o absurdo histórico mais espantoso, pois o autor coloca o reinado de Nabucodonosor sobre os assírios (na realidade ele era rei de Babilônia) em Nínive (que caiu sete anos antes de sua ascensão). Em um momento em que os judeus tinham apenas recentemente voltado do cativeiro (na verdade, neste momento eles estavam sofrendo novas deportações). Nabucodonosor não fez guerra em Media (1:7), nem capturou Ecbatana (1:14) (...) A reconstrução do Templo (4:13) é datada, por um anacronismo flagrante, cerca de um século mais cedo. Além disso, o Estado judeu é representado como sendo sob o governo de um sumo sacerdote e uma espécie de Sinédrio (6: 6-14; 15: 8), que é compatível apenas com uma data pós-exílica várias centenas de anos após o presumido cenário histórico do livro. (Bruce Metzger, An Introduction to the Apocrypha (New York: Oxford University, 1957), pp. 50-51)

Os livros apócrifos estão cheios de erros históricos, factuais e ainda ensinam heresias. Vamos dedicar uma série de artigos a demonstrar os erros desses livros, o que por si só já seria suficiente para rejeitá-los como Escritura canônica. Metzger ainda escreve:

Não foi fácil para todos os estudiosos católicos romanos concordar com o pronunciamento inequívoco da completa canonicidade que o Concílio de Trento fez a respeito de livros que, por tanto tempo e por tão altas autoridades, mesmo na Igreja Romana, tinham sido considerados inferiores. No entanto, apesar de mais de uma tentativa de estudiosos católicos para reabrir a questão, esta forma expandida da Bíblia tem permanecido a Escritura autoritária da Igreja Romana. (Ibid, 190)

Teólogos Latinos que aceitavam os apócrifos

Há um número de proponentes importantes do status canônico dos livros apócrifos como expressado por Agostinho. O Papa Inocêncio I, no início do século V, sancionou o cânon ratificado por Agostinho e os Concílios do Norte de África em sua carta a Exuperio. Ao fazer isso, ele confirmou os livros de I e II Esdras de acordo com seu uso na Septuaginta, dando status canônico para um livro (I Esdras) posteriormente considerado não canônico pelo Concílio de Trento. Seu julgamento foi seguido no final do século quinto e início do sexto pelos papas Gelásio e Hormisda, cada um dos quais fornecendo uma lista autorizada de livros canônicos do Antigo e Novo Testamentos, que incluiu os apócrifos. Como já foi dito anteriormente, estes decretos papais também condenaram os cânones apostólicos, que mais tarde foram aprovados pelo conselho de Trullo, cujos decretos foram ratificados por Nicéia II (o sétimo Concílio Ecumênico). Isidoro de Sevilha, em meados do século VII, reflete a visão de Agostinho:

Os judeus recebem o Velho Testamento em 22 livros, de acordo com o número de suas cartas, dividindo-os em três seções: Lei, Profetas e Hagiografia (...) Há uma quarta seção do Velho Testamento entre nós, cujos livros não estão no cânon judeu. O primeiro é o livro da Sabedoria; segundo Eclesiástico; terceiro Tobias; quarto Judite; quinto e sexto os livros de Macabeus. Embora os judeus os coloquem entre os apócrifos, a Igreja de Cristo os honra e os prega como livros divinos. (Sancti Isidori Hispalensis Episcopi Etymologiarum Libri XX, Liber Sextus, De Libris Et Officiis Ecclesiasticus, Caput Primum, De Veteri et Novo Testamento. PL 82:229)

Outro teólogo de renome a seguir a mesma posição foi Rábano Mauro assim como Pedro Blessensi. De especial interesse é a posição de Tomás de Aquino:

Jerônimo designa uma quarta divisão de livros, a saber, os apócrifos. Apócrifo é nomeado de 'apo', que significa 'muito', e 'crifo', que significa obscuro, porque seus ensinamentos e autores estão sob dúvida. No entanto, a igreja católica recebeu esses livros na categoria das escrituras sagradas, cujos ensinamentos não estão em dúvida, embora seus autores estejam não porque os autores destes livros são desconhecidos, mas porque esses homens não eram de autoridade conhecida. Daí que os livros têm seu poder não da autoridade dos autores, mas sim da recepção da igreja. (Thomas Aquinas, Principium Biblicum, Opera Omnia (Index Thomisticus), vol. 3, p. 647)
Apesar de reconhecer os apócrifos como Escritura, Tomás expressou uma opinião vacilante. Sobre isso, a Enciclopédia Católica afirma:

Na Igreja latina, durante toda a Idade Média encontramos evidências de hesitação sobre o caráter dos deuterocanônicos. Há uma corrente amigável a eles, outra distintamente desfavorável à sua autoridade e sacralidade, enquanto oscilando entre os duas estão vários escritores cuja veneração por esses livros é temperada por alguma perplexidade quanto à sua posição exata, e entre estes notamos St. Tomás de Aquino. Encontramos poucos que reconhecem inequivocamente sua canonicidade. A atitude prevalecente dos autores ocidentais medievais é substancialmente a dos Padres Gregos. A principal causa desse fenômeno no ocidente deve-se à influência, direta e indireta, do prólogo depreciador de São Jerônimo. A compilação "Glossa Ordinária" foi amplamente lida e altamente estimada como um tesouro de aprendizado sagrado durante a Idade Média. Ela incorporava os prefácios em que o doutor de Belém escreveu em termos derrogatórios aos deuteros, e assim perpetuou e difundiu sua opinião hostil. (Fonte)

Tomás estava entre aqueles que manifestavam opinião vacilante sobre o assunto. Percebam como a Enciclopédia Católica ratifica o que temos dito neste artigo – por influência de Jerônimo, vários autores medievais manifestaram opiniões contra a canonicidade dos apócrifos. Isso mostra quão absurda é a tese defendida por alguns apologistas de que Jerônimo teria mudado de ideia a respeito dos apócrifos. Gerações e gerações de teólogos medievais não teriam tomado conhecimento dessa importante e estrondosa mudança – e ainda – para manifestar uma posição em desacordo com o suposto ensino da igreja em favor dos apócrifos.

Além disso, houve Concílios que concederam aos livros deuterocanônicos o status canônico. No século XV, o Concílio de Florença citou Eclesiástico, Sabedoria, Tobias e Susana como autoritários. Florença também emitiu um decreto sobre o cânon em 1442, precisamente o mesmo que Trento, na Bula papal de Eugênio IV, intitulado “Bula de União com os Coptas”, mas isso não foi considerado infalível de uma perspectiva católica romana. A Nova Enciclopédia Católica afirma:

Em 1442, durante a vida e com a aprovação deste Concílio [Florença], Eugênio IV emitiu várias Bulas ou decretos, com vistas a restaurar os corpos cismáticos orientais à comunhão com Roma, e de acordo com o ensino comum de teólogos esses documentos são afirmações Infalíveis de doutrina. O Decretum pro Jacobitis contém uma lista completa dos livros recebidos pela Igreja como inspirados, mas omite talvez aconselhadamente os termos cânon e canônico. O Concílio de Florença, portanto, ensinou a inspiração de todas as Escrituras, mas não transmitiu formalmente a sua canonicidade. (Fonte)

A Igreja Oriental

A Igreja Oriental geralmente seguiu os pontos de vista de Atanásio, Cirilo de Jerusalém e Epifânio. Por exemplo, o bispo do século VI, Anastácio de Antioquia, ensinou que o cânon do Antigo Testamento consistia em vinte e dois livros:

Esta é a vigésima segunda obra de Deus. Os exegetas judeus e cristãos dizem que Deus realizou vinte e duas obras, das quais nós contamos um pouco mais cedo vinte e uma obras em seis dias. A vigésima segunda é o reino preparado da idade futura e da contemplação espiritual. Por isso, enumeram todo o Antigo Testamento em vinte e dois livros. (Anastasius of Antioch, In Hexameron, VII. PG 89.940)

A divisão do Antigo Testamento em 22 ou 24 livros (ambas foram aceitas por Jerônimo) não poderia contemplar os apócrifos.

João Damasceno (676-749)

Ele expressou no oitavo século a mesma visão de Atanásio:

Observe que há vinte e dois livros do Antigo Testamento, um para cada letra da língua hebraica (...) Dessa forma, os livros são reunidos em quatro Pentateucos e dois outros permanecem para formar os livros canônicos. Cinco deles são da Lei: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio. Este que é o código da Lei e constitui o primeiro Pentateuco. Então vem outro Pentateuco, a chamado Grapheia, ou como são chamados por alguns, a hagiografia, que são os seguintes: Jesus o Filho de Nave [Josué], Juízes juntamente com Rute, primeiro e segundo Reis [Primeiro e Segunda Samuel], que são um livro, terceiro e quarto Reis, que são um livro, e os dois livros de Crônicas que são um livro. Este é o segundo Pentateuco. O terceiro Pentateuco são os livros em verso: Jó, Salmos, Provérbios de Salomão, Eclesiastes de Salomão e o Cântico dos Cânticos de Salomão. O quarto Pentateuco são os livros proféticos, ou seja, os doze profetas que constituem um livro: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel. Então vêm os dois livros de Esdras [Esdras e Neemias] feitos em um e Ester. Há também o Panareto, que é a Sabedoria de Salomão e a Sabedoria de Jesus [Eclesiástico], que foi publicada em hebraico pelo pai de Siraque, e depois traduzido para o grego por seu neto, Jesus, filho de Siraque. Estes são virtuosos e nobres, mas não são contados nem colocados na arca. (Philip Schaff and Henry Wace, Nicene and Post-NiceneFathers (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), Series Two, Volume IX, John of Damascus, Exposition of the Orthodox Faith, Chapter XVII)

Além de listar os livros do AT de acordo com o cânon hebraico, João destaca que a Sabedoria de Salomão e Eclesiástico não eram canônicos.

Nicéforo I de Constantinopla (758-828)

Nicéforo, o patriarca de Constantinopla no século IX expressou visão de João Damasceno. Ele citou o número de livros canônicos do Velho Testamento como vinte e dois e declarou que os livros apócrifos não eram recebidos como canônicos pela Igreja:

Estas são as Escrituras divinas entregues no cânon pela Igreja e o número de seus versículos: 1. Gênesis tem 4300 versos, 2. Êxodo 2800, 3. Levítico 2700, Números 3530, 5. Deuteronômio, 3100, 6. Josué 2100, 7. Juízes e Rute 2050, 8. Primeiro e segundo Reis, 4240, 9. Terceiro e quarto Reis 2203, 10. Primeira e segunda Crônicas 5500, 11. Primeiro e segundo Esdras 5500, 12. Salmos 5100, 13. Provérbios De Salomão 1700, 14. Eclesiastes 7500, 15. Cântico dos Cânticos 280, 16. Jó 1800, 17. O profeta Isaías 3800, 18. O profeta Jeremias 4000, 19. Baruque 700, 20. Ezequiel 4000, 21. Daniel 2200, 22. Os doze profetas 3000. Total dos livros do Antigo Testamento: 22. Essas escrituras do Antigo Testamento são duvidosas: 1. Três livros dos Macabeus 7300 versículos, 2. Sabedoria de Salomão 100, 3. Sabedoria do Filho de Siraque [Eclesiástico] 2800, 4. Salmos e Cânticos de Salomão 2100, 5. Ester 350, 6. Judite 1700, 7. Susanna 500, Tobias, 700. (S. Nicephori Patriarchae CP, Chronographia Brevis, Quae Scripturae Canonicae I, II, PG 1057-1058)

Observa-se que o cânon de Nicéforo é quase idêntico ao hebraico. A única diferença é que ele retirou o Livro de Ester e incluiu Baruque. Os demais apócrifos foram rejeitados.

Concílio Quintisexto ou de Trullo (692)

Este Concílio não é reconhecido pela Igreja Romana e foi considerado pela Igreja Oriental como parte do quinto e sexto concílios ecumênicos. Ocorre que o Sétimo Concílio Ecumênico reconheceu os cânones de Trullo. Sua importância para o nosso tema se dá porque Trullo sancionou os cânones dos concílios de Hipona e Cartago. Desta forma, os cânones dos concílios norte-africanos teriam status ecumênico e vinculariam toda a igreja. O primeiro problema é que a Igreja Ocidental não reconheceu o concílio de Trullo, portanto, a argumentação católica falha em seu próprio terreno. Além disso, este concílio também sancionou os cânones de Atanásio e Anfilóquio, sendo que ambos rejeitaram os livros apócrifos. Ainda, o concílio sancionou os cânones apostólicos que, no cânon oitenta e cinco, deu uma lista de livros canônicos que incluía 3 Macabeus, um livro nunca aceito como canônico no Ocidente, e também não incluía Baruque, Tobias, Eclesiástico e talvez Judite. Destaca-se também que os cânones apostólicos foram condenados e rejeitados como apócrifos nos decretos dos papas Gelásio e Hormisda. Sobre isso, o erudito católico romano Helefe escreveu:

O Papa Hormisda (...) declarou explicitamente que os Cânones Apostólicos eram apócrifos. (Charles Joseph Hefele, A History of the Councils of the Church (Edimburgo: T. & T. Clark, 1895), Vol. 1, p. 451)

Esses fatos provam que o Concílio Trullo recebeu os cânones de Cartago com o entendimento de que o termo "canônico" deveria ser interpretado em sentido geral – ou seja – como uma lista de livros que poderiam ser lidos na Igreja. Henry Percival comenta:

Temos, portanto, quatro [cinco se aceitarmos a lista de Laodicéia como genuína] cânones diferentes da Sagrada Escritura, todos com a aprovação do Concílio em Trullo e do Sétimo Ecumênico. Daí sobra apenas uma conclusão possível, a saber: que a aprovação dada não era específica, mas geral. (NPNF2, Vol. 14, (The Canon of Holy Scripture), Note, p. 612)

A alternativa seria aceitar que o Concílio ratificou listas contraditórias – o que só demonstraria a falibilidade dos concílios ecumênicos. Por isso, não há como invocar a autoridade de Trullo para confirmar o cânon norte-africano.

Teodoro Bálsamo (1140-1199) e João Zonaras (séc. XII)

Teodoro Bálsamo foi um acadêmico da Igreja Ortodoxa e o patriarca grego ortodoxo de Antioquia entre 1185 e 1199:

Quantos livros devem ser lidos na igreja, procure os cânones 40 e 85 dos santos apóstolos, o cânon 60 do sínodo de Laodicéia de São Gregório Nazianzeno e os escritos canônicos dos santos. (Commentary on the Council of Carthage, Canon XXVII. Translation by Benjamin Penciera, University of Notre Dame)

O cânon 60 de Laodicéia (há disputas sobre sua autenticidade) estabelece um cânon idêntico ao hebraico, com exceção da inclusão do livro de Baruque e epístola de Jeremias como parte do Livro de Jeremias.  João Zonaras foi um historiador, canonista e jurista bizantino do século XII. Ele escreveu:

Sobre quais livros devem ser lido nas igrejas tanto o último cânon dos apóstolos quanto o sexagésimo cânon do sínodo de Laodicéia estabeleceram. Atanásio, o Grande, enumera todos os livros que foram escritos como fazem Gregório Nazianzeno e São Anfilóquio. (Commentary on the Council of Carthage, Canon XXVII)

Ao apontarem listas canônicas diferentes, esses dois autores reforçam a ideia de que Eles assim como Trullo estavam se referindo somente a livros que poderiam ser lidos na Igreja e não aos livros canônicos no sentido estrito. No entanto, eles também apelam à autoridade de Atanásio e Gregório Nazianzeno, o que sugere que apesar de aceitar os apócrifos para leitura na igreja, não os aceitavam como livros inspirados – a posição dos pais invocados. Metzger dá um resumo preciso sobre a Igreja Oriental:

A posição das Igrejas Ortodoxas Orientais em relação ao cânon do Antigo Testamento não é de todo clara. Por um lado, uma vez que a versão Septuaginta do Antigo Testamento foi usada durante todo o período bizantino, é natural que teólogos gregos como André de Creta, Germano, Teodoro Estudita e Teofilacto da Bulgária, se referissem indiscriminadamente a livros apócrifos e canônicos de forma similar. Além disso, alguns apócrifos são citados como autoritários no Sétimo Concílio Ecumênico realizado em Nicéia em 787 e no Concílio convocado por Basílio em Constantinopla em 869. Por outro lado, os escritores que levantam a questão sobre os limites do cânone, como João Damasceno e Nicéforo, expressam opiniões que coincidem com as do grande Atanásio, que aderiu ao cânon hebraico. (Bruce Metzger, An Introduction to the Apocrypha (New York: Oxford, 1957), p. 192-193)

O cânon atual da Igreja Oriental

Apologistas católicos costumam apontar a Igreja Ortodoxa como testemunha favorável aos apócrifos. No entanto, diferente da Igreja romana, a ortodoxia oriental nunca produziu uma decisão dogmática sobre o cânon. Os únicos concílios que trataram da questão (Jassy e Jerusalém) aceitaram 3 Esdras, 3 Macabeus e a Carta de Jeremias – livros considerados apócrifos pelos católicos romanos. Ultimamente, há uma tendência entre os estudiosos ortodoxos em considerar os apócrifos como livros de autoridade inferior em relação ao cânon hebraico. O bispo ortodoxo oriental Kallistos Ware escreveu:

A versão hebraica do Antigo Testamento contém trinta e nove livros, a Septuaginta contém mais dez livros, não presentes no hebraico, que são conhecidos na Igreja Ortodoxa como os "Livros deuterocanônicos" (3 Esdras; Tobias; Judite; 1, 2 e 3 Macabeus; Sabedoria de Salomão; Eclesiástico; Baruque; Carta de Jeremias; no ocidente estes livros são muitas vezes chamados de apócrifos). Eles foram reconhecidos pelos concílios de Jassy (1642) e Jerusalém (1672) como "partes genuínas da Escritura", mas a maioria dos estudiosos ortodoxos nos dias de hoje, seguindo a opinião de Atanásio e Jerônimo, consideram que os Livros deuterocanônicos, embora sejam parte da Bíblia, estão num patamar abaixo do resto do Antigo Testamento. (Fonte)

Bruce Metzger escreveu:

A posição da Igreja Ortodoxa Russa em relação aos apócrifos parece ter mudado ao longo dos séculos. Durante a Idade Média, livros apócrifos do Antigo e do Novo Testamento exerceram uma influência generalizada nas terras eslavas. Nos séculos subsequentes, os líderes de Constantinopla deram lugar ao Santo Sínodo de São Petersburgo, cujos membros eram simpatizantes da posição dos reformadores. Através de uma influência similar emanando das grandes universidades de Kiev, Moscou, Petersburgo e Kazan, a Igreja russa uniu-se em sua rejeição aos apócrifos. Por exemplo, o Catecismo mais longo elaborado pelo Metropolita Filareto de Moscou e aprovado pelo Sínodo Sacerdotal (Moscou, 1839) expressamente omite os apócrifos da enumeração dos livros do Antigo Testamento com o fundamento de que "eles não existem no hebraico". (Bruce Metzger, An Introduction to the Apocrypha (New York: Oxford, 1957), p. 194)

Roger Beckwith escreveu:

A controvérsia entre Roma e os reformadores não escapou da observação da Igreja Ortodoxa Oriental, mas os ortodoxos foram lentos em tomar partido. Eles conheciam tanto o cânone largo como o estreito dos pais e preocupavam-se que os livros do cânone amplo, que eles usavam na sua liturgia, continuassem ser estimados. Por outro lado, a crença de que apenas os livros da Bíblia hebraica são realmente inspirados tem gradualmente ganhado terreno entre os ortodoxos, à custa da visão romana. (The Old Testament Canon Of The New Testament Church [Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1986], p. 2, n. 9 on p. 14)

F.F Bruce escreveu:

A maioria dos estudiosos ortodoxos hoje, no entanto, segue Atanásio e outros ao colocar os livros a mais da septuaginta num nível inferior de autoridade do que os escritos “proto-canônico” [cânon hebraico]. (F.F. Bruce, The Canon Of Scripture [Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1988], pp. 82, 113, n. 31 on p. 113)