Apologistas católicos costumam
citar os concílios norte-africanos de Hipona (393) e Cartago (397) como aqueles
que estabeleceram definitivamente o cânon bíblico. Essa afirmação é falsa
porque tais concílios eram regionais e não poderiam vincular toda a igreja. Não
por acaso, diversos teólogos e comentários bíblicos continuaram a rejeitar a
canonicidade dos livros apócrifos mesmo após estes concílios (aqui). A Enciclopédia
Católica afirma que o cânon só foi infalivelmente decidido pela Igreja Romana
no Concílio de Trento. Diante do impasse, os católicos afirmam que o cânon de
Trento é o mesmo de Hipona e Cartago.
Todavia, há um grande debate a
respeito de um livro – Esdras I ou Esdras A. Havia na Septuaginta 3 livros de
Esdras: 1 Esdras (ou Esdras A), 2 Esdras (Esdras e Neemias de nossas Bíblias) e
3 Esdras (também chamado de Apocalipse de Esdras). Os Concílios norte-africanos
mencionam que dois livros de Esdras eram canônicos. Além disso, a bíblia que
eles usavam era a antiga latina (uma tradução para o latim da septuaginta
grega). Ocorre que a Bíblia usada pela Concílio de Trento era a vulgata traduzida
por Jerônimo. Nesta, 2 Esdras foi desmembrado em 1 Esdras (Esdras atual) e 2
Esdras (Neemias). Sendo assim, a hipótese mais provável é que os concílios
africanos não se referiam aos mesmos livros que Trento quando canonizaram dois
livros de Esdras. Hipona e Cartago tinham 1 Esdras como canônico enquanto
Trento o considerou apócrifo. A Enciclopédia Católica afirma:
III
Esdras (Vulgata, I Esdras na Septuaginta) foi certamente compilado antes de 90
D.C, pois o historiador judeu Josefo o cita (Ant. 11); mas sua preocupação
exclusiva com os interesses judaicos coloca sua composição antes da era cristã,
mais próxima de 100 A.C. Até o século 5,
os cristãos frequentemente classificavam 3 Esdras entres os livros canônicos.
Ele é encontrado em muitos MSS LXX (manuscritos da Septuaginta) e na Vulgata
Latina (Vulg) de São Jerônimo. Os protestantes, portanto, incluem 3 Esdras com
outros livros apócrifos (deuterocanônicos), como Tobit ou Judith. O Concílio de Trento definitivamente o
removeu do cânon. (Nova Enciclopédia Católica (Nova Iorque:
McGraw Hill, 1967), Volume II, Bíblia, III, pp. 396-397)
O quadro abaixo nos ajuda a
entender a confusão:
Vulgata (Cânon Católico)
|
Septuaginta
|
Texto Hebraico
|
Protestante e Judeu
|
1 Esdras (Esdras) *
|
Esdras *
|
Esdras *
|
|
2 Esdras (Neemias) *
|
2
Esdras (Esdras/Neemias) *
|
Neemias *
|
Neemias *
|
3 Esdras
|
1 Esdras
|
Não encontrado
|
1 Esdras
|
4 Esdras
|
3 Esdras
|
Não encontrado
|
2 Esdras
|
* Livros canônicos
|
Herbert Edward Ryle escreve
sobre a diferença entre a Septuaginta e a Vulgata:
Nas
listas do Velho Testamento que incluem os livros apócrifos, um elemento de
confusão é causado pelo 'Esdras' apócrifo, nosso Primeiro Livro de Esdras. Na
versão LXX, a Velha Latina e o Siríaco, este
livro apócrifo grego foi colocado, com respeito provavelmente à cronologia,
antes do Esdras hebraico, e foi chamado de Primeiro de Esdras (...)
enquanto que nosso Esdras e Neemias apareciam como um livro, com o título de
Segundo de Esdras. Em sua tradução da Vulgata, Jerônimo não reconheceu a
canonicidade dos livros Apócrifos. Ele
traduziu o Esdras hebraico (nosso Esdras e Neemias) como um livro com o título
de Esdras; mas ele se submeteu à divisão do canônico Esdras em dois livros,
pois ele fala dos livros apócrifos como terceiro e quarto de Esdras (...)
Na Vulgata, consequentemente, Esdras e
Neemias foram chamados de Primeiro e Segundo de Esdras; o apócrifo grego Esdras
foi chamado de Terceiro de Esdras; a obra apocalíptica, o Quarto de Esdras (...)
A influência da Vulgata fez os nomes aplicados aos livros naquela versão serem
geralmente adotados no Oeste. No concílio
de Trento, Esdras e Neemias foram chamados 'o primeiro livro de Esdras e o
segundo de Esdras que é chamado de Neemias. (Herbert
Edward Ryle, Ezra and Nehemiah [Cambridge: Cambridge University, 1907], págs.
xiii-xiv)
Neste artigo, vou depender em
grande parte do trabalho de William Webster. A resposta mais robusta ao
apologista protestante foi dada por John Betts. O site apologistas católicos
traduziu a resposta (aqui).
Portanto, vou me concentrar em responder esse artigo. Para fins de clareza, vou
me referir ao livro em disputa como 1 Esdras ou Esdras apócrifo. Os apologistas católicos
costumam afirmar que esta tese (da contradição entre Trento e os sínodos
africanos) é uma invenção de William Webster. No entanto, vejamos o que o padre
francês Francis Gigot escreveu no final do séc. XIX:
A
segunda escrita apócrifa agora colocada no final das edições autorizadas da
versão latina é o terceiro livro de Esdras, assim chamado na Vulgata porque os
nossos livros canônicos de Esdras e Neemias são conhecidos respectivamente como
o primeiro e o segundo livro de Esdras. Nas antigas versões latinas, siríaca e
Septuaginta, foi nomeado como o primeiro livro de Esdras, com sua posição
imediatamente antes de nossos livros canônicos de Esdras e Neemias. Este último nome tem grande importância
histórica, pois quando os primeiros Concílios e escritores da Igreja falam do
primeiro livro de Esdras, eles têm em vista nosso terceiro livro desse nome e
quando em suas listas de livros sagrados mencionam apenas dois livros de
Esdras, o primeiro a que aludem é o nosso terceiro livro, enquanto o
segundo corresponde aos nossos livros canônicos de Esdras e Neemias contados
juntos como uma obra.
A
nomenclatura que acabamos de referir é
encontrada nos Concílios africanos de Hipona e Cartago, nos escritos de Santo
Agostinho, Papa Inocêncio I e Cassiodoro, e prova sem sombra de dúvida que em
um dado momento a canonicidade do terceiro livro de Esdras foi oficialmente
reconhecida, pelo menos nas igrejas ocidentais. Por volta do mesmo período,
o caráter sagrado deste livro foi dado como certo pelos principais escritores
do Oriente, como Clemente de Alexandria, Orígenes, Eusébio, Santo Atanásio, São
Basílio, São Crisóstomo, que concordam com São Cristóvão. Cipriano, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, e outros no Ocidente, citam
como Sagrada Escritura passagens que não são encontradas em nenhuma parte
exceto no terceiro livro de Esdras.
Não
é, portanto, surpreendente descobrir que, em presença de tal unanimidade do
Oriente e do Ocidente, até o quinto século de nossa era, alguns escritores deveriam ter afirmado que esta obra é verdadeiramente
canônica e inspirada. Observam que a Igreja Católica, longe de rejeitá-la positivamente como apócrifa, permitiu seu uso e
inseriu-a em sua edição oficial da Vulgata e da Septuaginta; Que de longe a
maior parte de seu conteúdo é simplesmente uma duplicata de passagens canônicas
no segundo livro de Crônicas e no primeiro e segundo de Esdras; E que,
finalmente, é difícil ver como o fato de que a escrita em questão deixou de
estar em uso desde o século quinto de nossa era, pode invalidar o testemunho
positivo anterior a seu favor. (Introdução Geral ao Estudo
das Sagradas Escrituras [New York: Benzinger Brothers, 1900], na p. 121 e 122)
A tese já vem sendo aludida há
muito tempo por fontes católicas. Outros estudiosos católicos também seguiram a
mesma posição. O exegeta francês Agostinho Calmet escreveu em uma "História
do Antigo e Novo Testamento e dos judeus":
Quando
os Padres e os Concílios dos séculos anteriores declararam que os dois livros
de Esdras eram canônicos, eles queriam dizer, seguindo as Bíblias atuais que
Primeiro Esdras e Neemias formaram apenas um Livro, enquanto eles denominaram Primeiro Esdras o trabalho que
é chamado terceiro em nossas Bíblias. (Calmet Comm. iii 250
'Dissert, sur le III livre d'Esdras')
O também católico Alfred Loisy
escreveu:
Os
dois livros de Esdras contidos neles (ou seja, em exemplares iniciais da Bíblia
Latina) não são Esdras e Neemias. Mas como na Bíblia grega, o primeiro livro de Esdras é o que agora
chamamos o terceiro, que foi expulso do cânon; o segundo é composto por Esdras
e Neemias. (Histoire du Canon 92 citado em Journal of
Theological Studies, Volume 7 p. 352)
Uma opinião peculiar pode ser
encontrada em Gary Michuta. Ele é um apologista católico conhecido por seu
trabalho em defesa da canonicidade dos apócrifos. Inclusive, Michuta é bastante
citado e traduzido pelo site católico que estamos respondendo. Vejamos sua
posição:
Muitas
coisas são questionáveis sobre Esdras. O
Concílio de Cartago pode ter incluído Esdras em sua lista. Nós não sabemos
ao certo. Esdras pode ser um livro individual ou pode ser uma recensão. Ninguém
sabe. Alguns Pais da Igreja podem ter
usado Esdras como um livro canônico (...) Na época de Trento, a natureza exata de Esdras, tanto sua forma quanto
seu status canônico, estavam abertas a dúvidas. O melhor movimento para Trento
foi não se mexer. Aqueles que afirmam então que Trento "rejeitou
Esdras" estão equivocados. Não o fez. De fato, qualquer rejeição ou afirmação foi intencionalmente retida. Se não houve decisão, não se pode dizer que
Trento tenha contradito Cartago. A questão do status canônico de Esdras foi
deixada teoricamente em aberto. [Gary Michuta, Why Catholic
Bibles Are Bigger (Michigan: Grotto Press, 2007), p. 240-241]
Michuta contradiz os
apologistas católicos ao afirmar que é possível que Cartago tenha considerado
Esdras canônico. Ele também admite a possibilidade de alguns pais terem
considerado Esdras canônico. A solução proposta é que Trento não decidiu de
fato a canonicidade do livro. Trento se omitiu. O problema dessa “solução” é
que levanta uma série de outros problemas. A implicação é que os católicos
romanos não poderiam afirmar que possuem o cânon completo infalivelmente
determinado pela Igreja. É possível que livros canônicos não constem no cânon
católico romano. Agora, pense nas milhares de vezes que um apologista católico
usou o argumento do cânon para defender a necessidade da infalível igreja
romana ou aquele batido argumento de que os católicos podem ter certeza sobre o
cânon, já os protestantes não. Ademais, Michuta contradiz o Catecismo Católico:
Foi
pela Tradição apostólica que a Igreja discerniu quais escritos devem ser
incluídos na lista dos livros sagrados. Esta lista completa é chamada de cânon das Escrituras. Inclui 46 livros
para o Antigo Testamento (45 se contarmos Jeremias e Lamentações como um) e 27
para o Novo. (CCC 120)
Esta é a posição adotada por
todos apologistas católicos romanos. Michuta tentou uma saída de emergência que
traz implicações inaceitáveis para a Igreja Romana. Não por acaso, a edição da
Vulgata de 1590 omite o livro de Esdras e a edição de 1593 o coloca num
apêndice. A Enciclopédia Católica também diz:
A
palavra cânon, como aplicado às Escrituras, há muito tem um significado
especial e consagrado. Em sua mais completa compreensão, significa a lista oficial ou número fechado dos escritos compostos sob
inspiração Divina e destinados ao bem-estar da Igreja, usando a última
palavra no sentido amplo da sociedade teocrática que começou com a revelação de
Deus de si mesmo para o povo de Israel, e que encontra seu desenvolvimento
maduro e conclusão no organismo católico. Todo
o cânon bíblico, portanto, consiste
nos cânones do Antigo e do Novo Testamento.
(Enciclopédia Católica, Canon do Antigo Testamento)
A Nova Enciclopédia Católica
afirma:
Segundo
a doutrina católica, o critério para o cânon bíblico é a decisão infalível da Igreja. Esta decisão não foi dada até muito
tarde na história da Igreja no Concílio de Trento (...) O Concílio de Trento resolveu definitivamente a questão do
cânon do Antigo Testamento. Que isso não havia sido feito anteriormente é evidente a partir da incerteza que
persistiu até a época de Trento. (New Catholic Encyclopedia,
Vol. II, Bible, III (Canon), p. 390; Canon, Biblical, p. 29; Bible, III
(Canon), p.390)
Vejam como uma citação tão
pequena contradiz toda a narrativa apologética católica sobre o cânon. A
decisão definitiva não ocorreu em Hipona e Cartago, mas somente em Trento. Se a
decisão é definitiva, ela não poderia se omitir em relação a Esdras. O erudito
católico Yves Congar vai na mesma direção:
(...) Uma lista oficial e definitiva
de escritos inspirados não existia na Igreja Católica até o Concílio de Trento.
(Yves Congar, Tradition and Traditions (New York: Macmillan, 1966), p. 38)
O tradutor inglês do Concílio
de Trento, H.J. Schroeder, O.P., escreveu:
A
lista ou decreto tridentino foi a primeira declaração
infalível e efetivamente promulgada sobre o Cânon das Sagradas Escrituras. (The
Canons and Decrees of the Council of Trent (Rockford: Tan, 1978), Fourth
Session, Footnote #4, p. 17)
1
Esdras (3 Esdras na Vulgata) e Agostinho
Um bom indicativo do que os
concílios africanos queriam dizer com “dois livros de Esdras” é avaliar a
posição dos pais da igreja sobre esse livro. Destacamos especialmente a posição
de Agostinho que era um bispo norte-africano e teve grande influência sobre
esses concílios. A obra mais relevante sobre 1 Esdras é a Série de Comentários
sobre a Septuaginta. O erudito Michael F. Bird documenta que o livro foi usado
por pais da igreja como Escritura Canônica:
Do
lado cristão, 1 Esdras foi citado esporadicamente nos Pais da Igreja,
principalmente com referência para a história dos três vigias (Myers
1974:17-18) (...) Orígenes incluiu 1
Esdras em sua Hexapla (...)1 Esdras
era comum em listas canônicas das igrejas ocidentais e orientais (...) Na
Igreja Ocidental, 1 Esdras foi incluído
em uma lista canônica por Hilário de Poitiers que se referiu a 1 Esdras em um prólogo no Livro
de Salmos (15) entre 350 e 365 na França. O livro foi omitido de uma lista
canônica dada por Jerônimo em uma carta (53.8), mas depois foi incluído em seu
prefácio aos livros de Samuel e Reis. Tanto a carta como o prefácio foram
escritos aproximadamente em 394 em Belém. Agostinho
menciona 1 Esdras como canônico em seu volume sobre a Doutrina cristã (Chr.
Doct. 2.13) escrita em 395 e no norte da
África "dois livros de Esdras" são nomeados como Escrituras canônicas
no cânon bíblico do Sínodo de Cartago em 397. Dentro da Igreja Oriental, 1
Esdras foi mantido em listas por Melito de Sardes (Eusebio, Hist. Eccl.
4.26.14), Orígenes (Eusébio, Hist. Eccl. 6.25.2) e Cirilo de Jerusalém
(Leituras Catequéticas 4.35). O Concílio
de Laodicéia inclui 1 Esdras em seu cânone bíblico. Atanásio escreveu em
famosa 39ª carta festiva de 367: "E da mesma forma, o primeiro e segundo
das Crônicas estão num único livro; e o
primeiro e o segundo de Esdras são contados um" (Ep. Fest. 39.4). (Brill's Septuaginta Commentary, p. 25-26)
Bird escreve especificamente
sobre a posição de Agostinho:
Embora existam dezenas de
citações e alusões a 1 Esdras nos Pais da Igreja, a leitura cristã mais eminente de 1
Esdras é fornecida por Agostinho:
Depois
destes três profetas, Ageu, Zacarias e Malaquias, durante o mesmo período da
libertação do povo da servidão babilônica, Esdras também escreveu [um livro],
que é mais histórico do que profético, como também é o livro chamado Esther, no
qual são encontrados e relatados, para o louvor de Deus, eventos não muito
distantes daqueles tempos. Talvez Esdras
deva ser entendido como profetizando Cristo naquela passagem onde, por uma
questão surgida entre alguns jovens sobre qual é o mais forte, quando um tinha dito
os reis, outro o vinho, e o terceiro as mulheres que muitas vezes mandam sobre
os reis; mas o terceiro demonstrou que a Verdade estava acima de todos como
vencedora. Ora, se consultarmos o
Evangelho aprendemos que Cristo é a verdade. (A Cidade de Deus 18:36)
O
Evangelho a que Agostinho refere-se é claramente o quarto evangelho, em
particular, parece que ele tem em mente João 14:6 com o ditado de Jesus:
"Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por
mim." Agostinho sabe muito bem que 1 Esdras é um trabalho histórico e não
um livro profético e não há dúvida sobre se este não era o ponto pretendido no
discurso de Zorobabel no texto de1 Esdras - claramente não era - mas Agostinho
não está envolvido em alegoria grosseira ou “eisegese”. Em vez disso, Agostinho está se aproximando do texto com
uma imaginação de forma canônica. A premissa subjacente é que a Escritura cristã, finalmente, tem um autor divino
(Deus) e tem um objeto final de seu testemunho (Jesus Cristo). Dado essas
suposições pode-se tentar relacionar a história de Esdras e a história do
evangelho se alguém está convencido de que o mesmo Deus está envolvido em ambos
e se conteúdo de toda a Escritura é a revelação de Jesus Cristo. Sem dúvida
alguns estudiosos com uma inclinação histórica crítica consideram essa
empreitada como cheia de ironia hermenêutica. Seja como for, os cristãos leram e continuaram lendo 1
Esdras, não apenas para escavar dados históricos sobre o período do pós-exílio,
mas também por sua tipologia e significância espiritual e devocional. (Ibid.
p. 29-30)
O ponto é que Agostinho se
aproximou de Esdras não apenas como uma fonte histórica, mas como fonte de uma
profecia messiânica. O evento narrado encontra-se apenas no livro de Esdras que
estamos discutindo. Haja vista que Agostinho foi influência marcante nos
concílios de Hipona e Cartago, a conclusão mais provável é que tais sínodos
também consideravam Esdras canônico. A tese de John Betts é que Agostinho considerava
o Esdras apócrifo como uma outra versão do Esdras canônico – que na septuaginta
era formado por Esdras e Neemias de nossas bíblias. Vejamos as fragilidades
desse argumento:
(1) É totalmente gratuito. Não
é apresentada sequer uma citação que apoie tal tese, e de fato não há. Betts
não cita também qualquer acadêmico que apoie sua tese;
(2) Agostinho cita uma
profecia messiânica que não é encontrada no texto do Esdras canônico. Dessa
forma, como poderia ser apenas outra versão do Esdras canônico, se apresenta
material adicional?
(3) Ainda que não apresentasse
material exclusivo, não implicaria que 1 Esdras não seria um livro canônico
individual. Por exemplo, os quatro evangelhos são relatos da mesma história
contada a partir de pontos de vista diferentes. Isso implicaria que os
Evangelhos de Lucas e Marcos não são unidades canônicas independentes?
Obviamente não, eles são livros canônicos individuais.
(3) Agostinho, conforme
admitido pelo próprio Betts, considerava a septuaginta inspirada:
Benoit
afirma que, para Santo Agostinho, tanto o texto hebraico quanto o grego são inspirados e verdadeiros. Eles são aceitos como
dois estágios pretendidos por Deus em sua revelação contínua. Orígenes queria
como canônico apenas o texto grego, deixando o hebraico para os judeus.
Jerônimo queria apenas o hebraico, reduzindo o grego a uma tradição menos
precisa. Agostinho manteve os dois como
versões diferentes, complementares e desejadas do mesmo Espírito. É uma
visão de profundidade e verdade singular. (P. Benoit cited in
Bright, p. 47)
Ou seja, o texto grego da
septuaginta seria inspirado. A septuaginta continha o Esdras apócrifo, logo ele
também era considerado inspirado por Agostinho. Se era inspirado, era canônico.
Impressiona o fato do apologista católico não seguir um raciocínio tão simples.
Pelo mesmo raciocínio, os concílios de Hipona e Cartago tinham como base a
Septuaginta que era considerada inspirada por seu membro mais influente. A
conclusão mais provável é então que os dois livros de Esdras aprovados nestes
concílios eram os dois livros conforme listados na septuaginta.
Para fugir disso, Betts tenta
fazer um argumento do silêncio. Ele diz que Agostinho criticou a tradução de
Jerônimo (a Vulgata) em vários pontos, mas não há uma crítica específica para o
fato de Jerônimo ter retirado o primeiro livro de Esdras do seu cânon. Este
argumento não prospera devido ao fato de haver várias outras divergências entre
a vulgata de Jerônimo e a Antiga Latina (tradução da septuaginta) de Agostinho,
sendo que não há registro de queixas a respeito de várias destas divergências.
Nós não dispomos de toda a correspondência mantida entre eles, portanto, neste
caso, apelar ao silêncio é um argumento frágil. Dado todo o contexto, porque
Agostinho dividiria o Esdras canônico em 1 e 2 Esdras se esta não era a
estrutura adotada pela septuaginta considerada inspirada? A Enciclopédia
Católica afirma:
St.
Agostinho parece teoricamente reconhecer graus de inspiração; na prática ele
usa protos e deuterocanônicos sem
qualquer discriminação. (The
Catholic Encyclopedia, Canon of the Old Testament)
Ou seja, ele usou o livro
apócrifo de Esdras da mesma forma que outros livros canônicos.
1
Esdras (3 Esdras na Vulgata) e demais pais da igreja
O testemunho de Agostinho é
definitivo nesta questão devido sua proximidade ao evento (sínodos de Hipona e
Cartago), mas convém analisar outros Pais da Igreja. O argumento mais robusto
de Betts é apelar ao fato de que Pais da Igreja anteriores sínodos já dividam o
Esdras canônico em dois. Ele documenta o testemunho de Orígenes (o primeiro a
adotar esta divisão), Jerônimo, Rufino, Cirilo de Jerusalém, o Sínodo de
Laodicéia e Cirilo de Jerusalém.
O que Betts não menciona é que
tais Pais da Igreja estavam seguindo o cânon hebraico. Rufino, Cirilo, Jerônimo
e Atanásio não seguiam a septuaginta com os livros apócrifos, mas o cânon
hebraico mais curto (aqui).
Orígenes é um caso peculiar. Ele pessoalmente seguiu o cânon mais extenso com
os apócrifos da septuaginta, mas quando separa Esdras em dois, estava
descrevendo o cânon hebraico. Contudo, sabemos que os sínodos do norte da
África estavam seguindo a tradução latina da septuaginta e não o cânon
hebraico. Além disso, de forma semelhante a outros pais da igreja que aceitavam
os apócrifos, Orígenes considerava todos os apócrifos como canônicos:
Orígenes
usa todos os deuterocanônicos como
Escrituras Divinas e, em sua carta a Júlio Africano, defende a sacralidade
de Tobias, Judite e os fragmentos de Daniel, ao mesmo tempo em que afirma
implicitamente a autonomia da Igreja na fixação do cânon. Em sua edição Hexapla
do Antigo Testamento todos os deuteros
encontram um lugar. (A Enciclopédia Católica, Canon do Antigo
Testamento).
Betts traz a mesma resposta
dada ao testemunho de Agostinho. Estes pais da igreja supostamente veriam 1
Esdras como outra versão do Esdras canônicos. Os mesmos argumentos que fizemos
em Agostinho se aplicam aqui. Rufino que detinha a mesma opinião de Jerônimo e
Atanásio demonstra nosso argumento:
(...) e
dois livros de Esdras (Esdras e Neemias),
que os hebreus reconhecem como um
(...) (NPNF2, Vol. 3, Rufino, Comentário ao Credo dos Apóstolos 36)
Observem que Rufino remete ao
cânon dos hebreus e divide Esdras em Esdras e Neemias. Já Agostinho não faz
esta divisão. Ele não diz “Esdras e Neemias”, mas 1 e 2 Esdras. Isto se dá
porque eles seguem padrões diferentes. É improvável que Agostinho adotasse uma
prática que estava relacionada àqueles que adotavam o cânon hebraico, quando
ele próprio rejeitava este cânon mais curto.
Betts também cita o sínodo de
Laodicéia cujos decretos sobre o cânon são contestados pelos estudiosos. Mas,
tomando como legítimos para o bem do argumento, vejamos o que diz a
Enciclopédia Católica:
O
cânone 59º (ou 60º) do Concílio Provincial de Laodicéia (cuja autenticidade é
contestada) dá um catálogo das Escrituras inteiramente
de acordo com as ideias de São Cirilo de Jerusalém.
Como já visto, Cirilo seguiu o
cânon hebraico. Observamos que todos aqueles que separavam o Esdras canônico em
dois estavam seguindo o cânon hebraico. Por outro lado, não vemos nenhum pai da
Igreja que seguia o cânon mais longo com os apócrifos da septuaginta realizando
a mesma separação (com exceção de Orígenes que na verdade enumerava o cânon
hebraico, apesar de ele preferir o cânon mais longo). Se esta prática esteve
intimamente relacionada ao cânon mais curto, não faz sentido supor que os
sínodos africanos a seguiram, afinal eles seguiam o cânon mais longo.
Adicionalmente, os pais que
seguiram o cânon mais longo consideravam 1 Esdras canônico. Ou seja, se os
sínodos africanos tivessem excluído este livro do canôn, estariam contradizendo
uma tradição de longa data vigente entre os pais da igreja que usavam a mesma
bíblia que o sínodo – a septuaginta:
Até
o século V, os cristãos classificavam com frequência 3 Esdras entre os livros canônicos; encontra-se em
muitos LXX MSS (manuscritos da Septuaginta). (New
Catholic Encyclopedia (Nova York: McGraw Hill, 1967), Volume II, Bible, III,
pp. 396-397)
Qual foi então o grande ponto
de inflexão no século V? A resposta é a tradução latina de Jerônimo que seguia
o cânon hebraico. Ele era o único pai da Igreja a quem poderíamos classificar
como erudito em hebraico e foi o primeiro a não apenas dividir o Esdras
canônico em 1 e 2 Esdras mas também relegar o 1 Esdras da Septuaginta à
condição de não-canônico. 1 Esdras da Septuaginta passou a figurar como 3
Esdras no apêndice da vulgata. O erudito católico Raymond Brown afirma:
Parece
que I Esdras gozou de mais popularidade do que Esdras B [Esdras-Neemias] entre
aqueles que citaram a Bíblia Gk. Josefo usou isto, e os primeiros Padres da Igreja parecem ter pensado nele como Escritura.
Foi realmente Jerônimo com seu amor pela
bíblia hebraica que estabeleceu o precedente para rejeitar I Esdras porque
não estava de acordo com Esdras/Neemias hebraico. Ele contém pouca coisa que
não está no Esdras/Neemias canônico, exceto
a história em 3:1-5:6, que fala de uma disputa entre três judeus na corte
persa de Dario (520 AC). Zerubabel ganhou: Seu prêmio foi a permissão para
levar os judeus de volta a Jerusalém. A história em sua forma atual (a partir
de 100 AC?) pode ter sido adaptada de uma narrativa pagã. (The
Jerome Biblical Commentary, vol. 2, p. 542)
Ou seja, ao rejeitar a
canonicidade de I Esdras, Jerônimo estava contradizendo outros pais da igreja,
inclusive, Agostinho. Lembremos que a vulgata de Jerônimo é posterior aos
sínodos africanos. Logo, ele rompeu com o precedente que vigorava nestes
sínodos – considerar I Esdras canônico. O Argumento de Betts perde força uma
vez que a esmagadora maioria das citações patrísticas de I Esdras se referem a
material que não está no Esdras canônico. James King West escreve:
Com a exceção de uma seção [o
relato dos três homens], este
livro parece ser nada mais do que uma versão paralela da história que começa
com a páscoa de Josias (622 A.C) descrita em II Crônicas 35:1 e continua
através de Esdras (exceto 4:6), incluindo Neemias 7:73-8: 12, e terminando
abruptamente com a história da leitura da Lei de Esdras (c. 400 AC). No entanto, diferenças em detalhes, assim
como na ordem, mostram que não é uma versão reeditada deste material na LXX,
mas uma tradução de um texto hebraico, cuja relação com esses livros no
cânon hebraico não podemos ter certeza. Em alguns aspectos, tanto a ordem
quanto os estilos são superiores à história paralela contida na versão LXX dos
livros canônicos. (Introduction to the Old Testament, p. 469)
Henry H. Howorth também
escreve:
Ao
compararmos a lista de livros autorizados como canônicos pelos sínodos
africanos com os dos Concílios de Florença e Trento, há uma equação superficial
e equivocada em relação aos livros de Esdras que estamos discutindo, que demonstra que houve um erro dos últimos
concílios (...) Quando os pais em Florença discutiram e decidiram sobre sua
lista de livros autorizados e canônicos, achando, sem dúvida, que os sínodos
africanos haviam reconhecido apenas dois livros de Esdras, chegaram à conclusão
de que esses dois livros deveriam ser chamados de Esdras I e Esdras II em suas
Bíblias, a saber, Esdras e Neemias. Mas
na verdade eles não eram. Daí o erro deles, um erro grande, mas natural, que é perpetuado no cânon romano. Os
dois livros de Esdras reconhecidos pelos sínodos africanos e por todos os pais
que escaparam da influência de Jerônimo foram os livros rotulados como Ἔσδρας Α
e Ἔσδρας Β nas Bíblias gregas, isto é, o
primeiro livro de Esdras, que foi remetido aos apócrifos pelos reformadores e a
obra conjunta Esdras-Neemias. Esta evidência não será posta em dúvida por
qualquer um que examine as primeiras Bíblias Gregas e as listas canônicas dos
pais que não foram influenciadas por Jerônimo. Isto é completamente reconhecido pelos teólogos católicos romanos de
primeira linha. (The Journal of Theological Studies, Volume
VII, pp. 343-54 [Oxford: 1906])
Papas
que contradisseram o Concílio de Trento
Um ponto destacado por Webster
e respondido por Betts foi o apoio de papas como Inocêncio. Ele seguiu o cânon
dos sínodos norte-africanos, conforme carta a Exupério:
Os
específicos livros listados por Inocêncio em sua carta a Exupério são os
seguintes: Uma breve adição mostra quais livros são realmente recebidos no
cânon. Estes são os desideratos dos quais você desejava ser informado
verbalmente: de Moisés cinco livros, que são, Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números, Deuteronômios, e Josué, de Juízes um livro, dos Reis quatro livros, e
também Rute, dos Profetas dezesseis livros, de Salomão cinco livros, os Salmos.
Da mesma forma das histórias, Jó um livro, de Tobias um livro, Ester um, Judite
um, dos Macabeus dois, de Esdras dois,
Paralipomenon dois livros. (Da epístolas Consulenti tibi para
Exupério, Bispo de Toulouse, 405. Henry Denzinger, The Sources of Catholic
Dogma (London: Herder, 1954), pág. 42
A resposta de Betts foi mais
uma vez usa um argumento do silêncio. Segundo ele, não há registro de nenhuma
correção de Inocêncio feita a Jerônimo. Lembrem-se que, segundo nossa tese,
Jerônimo teria contrariado os sínodos norte-africanos ao relegar 1 Esdras da
septuaginta à condição de apócrifo. O problema é que Jerônimo não contrariou os
sínodos africanos apenas neste livro. Ele adotou um cânon mais curto (o cânon
hebraico), enquanto Inocêncio adotou o cânon mais longo. E de igual forma não
temos relatos de reprimendas do papa a respeito de cada livro colocado como não
canônico na vulgata de Jerônimo. Jerônimo negou a canonicidade de 1 e 2
Macabeus, Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico. No entanto, não temos
documentação de Inocêncio corrigindo Jerônimo sobre cada um deles. Por isso, a
ausência de documentação sobre Esdras constitui um argumento do silêncio
bastante frágil. Os mesmos livros dos sínodos africanos foram incluídos nos
decretos de outros dois papas – Gelásio e Hormisdas. O erudito B.F Westcott
escreveu:
O
cânon amplo de Agostinho, que estava, como veremos, completamente sem suporte
de qualquer autoridade grega, foi adotado no Concílio de Cartago (397? d.C.),
apesar de com uma reserva (Cânone 47, De confirmando ist Canone transmarine
ecclesia consulatur), e depois publicado
nos decretos que sustentam o nome de Inocêncio, Dâmaso e Gelásio... e ele
recorre em muitos escritores posteriores. (e Canon of Scripture.
Encontrado no Dictionary of the Bible de Dr. William Smith (Grand Rapids:
Baker, 1981), Volume I, Cânon, pág. 363)
Betts sustenta que, nos tempos
desses papas, o uso da Vulgata já estava solidificado no ocidente. Portanto,
seria de se estranhar tais papas adotarem o 1 Esdras como canônico, uma vez que
a vulgata não referendava tal posição. Todavia, como já visto, tais papas não
seguiram o cânon da vulgata de Jerônimo. Durante a idade média até o concílio
de trento, a opinião dos homens da igreja sobre os apócrifos orbitaria em torno
de duas autoridades (Jerônimo e Agostinho). Os papas supracitados seguiram a
posição de Agostinho. Este, por sua vez, como já foi fartamente documentado,
considerava 1 Esdras um livro canônico. Veja aqui a
documentação das opiniões dos teólogos medievais sobre os apócrifos. Embora a
vulgata tenha sido a Bíblia padrão durante a idade média, nem todos os teólogos
seguiram o cânon de Jerônimo. Isto posto, o argumento de Betts demonstra-se
frágil.
Conclusão
Em
resumo, os seguintes fatos podem ser afirmados:
(1) 1
Esdras foi rejeitado pelo Concílio de Trento;
(2) Agostinho
e outros pais da igreja consideravam 1 Esdras um livro canônico;
(3) A
septuaginta continha 1 e 2 Esdras;
(4) Agostinho
considerava a septuaginta inspirada;
(5) Os sínodos
norte-africanos foram grandemente influenciados por Agostinho.
A conclusão mais provável
desses fatos básicos é que os sínodos norte-africanos consideraram 1 Esdras da
septuaginta como canônico quando se referem a “dois livros de Esdras”.
Portanto, o cânon de Trento era diferente daquele enunciado por Hipona e Cartago.
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