Por William Webster
O Vaticano I baseou seu ensino
da infalibilidade papal na interpretação de Lucas 22:32, um ensinamento ou
tradição que alegava ter sido recebida desde o início da fé cristã e apoiada
pelo consentimento unânime dos pais. O Concílio afirmou que a doutrina da
infalibilidade papal era um dogma divinamente revelado e todos os que se
recusam a aceitá-lo são anátemas. Novamente, essa é uma doutrina que deve ser
plenamente aceita se alguém tiver a fé salvífica. A doutrina não afirma que o
papa é infalível como um teólogo privado, mas apenas quando ele propõe seu
ensinamento ex cathedra, isto é, em
sua capacidade oficial como bispo de Roma para a igreja como um todo.
Um exame da interpretação dos
pais da igreja de Lucas 22:32 produz a seguinte conclusão: não há um pai da
Igreja que tenha interpretado essa passagem como afirmação da infalibilidade
papal. De fato, nenhum pai, doutor, teólogo ou canonista da Igreja durante os
primeiros quatorze séculos interpretou esta passagem de acordo com a Igreja
Católica Romana. Eles sequer sugeriram o ensino da infalibilidade papal. O
ensino universal e a crença da Igreja eram que os bispos de Roma eram falíveis
- que eles podiam e de fato erraram. Brian Tierney, o renomado estudioso
medieval católico romano, faz a seguinte análise da interpretação medieval de
Lucas 22, explicando que a doutrina da infalibilidade papal era desconhecida
nas eras patrística e medieval:
O
texto bíblico mais comumente citado a favor da infalibilidade papal é Lucas
22:32. Não faltam comentários patrísticos sobre o texto. Nenhum dos Pais interpretou como significando que os sucessores de
Pedro eram infalíveis. Nenhum
argumento convincente jamais foi apresentado, explicando por que eles não
declararam que o texto implicava na doutrina de infalibilidade papal, se de
fato era isso que eles compreendiam. Novamente, é difícil para nós saber
exatamente o que os homens dos séculos VI e VII entendiam por fórmulas como as
de Hormisda e Agatão. Mas sabemos que o Concílio geral que aceitou a fórmula de
Agatão também anatematizou seu predecessor, o Papa Honório, alegando que ele
"seguiu os pontos de vista do herege Sérgio e confirmou seus dogmas
ímpios." O sucessor de Agatão, papa Leão II, confirmando os decretos do
Concílio, acrescentou que Honório não iluminou a Sé Apostólica ensinando a
tradição apostólica, mas, por um ato de traição, tentou subverter sua fé imaculada.
” O que quer que os pais conciliares
quisessem dizer com a fórmula que aceitavam a respeito da infalível fé da sé
apostólica, seu significado pode ter pouca conexão com a moderna doutrina da
infalibilidade papal. (Brian Tierney, Origins of Papal
Infallibility [Leiden: Brill, 1972], pp. 11–13)
Luis Bermejo é um jesuíta
espanhol que ensinou teologia no Pontifício Ateneu de Puna na Índia, nos
últimos trinta anos. Em um livro recentemente publicado (1992), ele faz um
argumento convincente confirmando a pesquisa histórica de Brian Tierney:
Que
eu saiba, ninguém parece ter desafiado a
alegação de Tierney de que todo o primeiro milênio é totalmente omisso sobre a
infalibilidade papal e que, portanto, a alegação do Vaticano I sobre as raízes
iniciais da doutrina é difícil de ser mantida. Praticamente a única objeção
de alguma substância levantada contra Tierney parece ser sua interpretação dos
decretistas do século XII: o dogma futuro do Vaticano I está implicitamente
contido neles? Mesmo depois de admitir, por uma questão de argumento, algo que
Tierney não admitiria de forma alguma, o
formidável obstáculo do primeiro milênio permanece intocado. Na minha
opinião, seus críticos dispararam suas armas contra um alvo secundário (os
decretistas e teólogos medievais), deixando
de lado o silêncio perturbador do primeiro milênio. Ninguém parece ter sido capaz de acrescentar qualquer prova documental
para mostrar que esse longo silêncio era ilusório, que a doutrina era - pelo
menos implicitamente - já conhecida e mantida nos primeiros séculos. Não é
fácil ver como uma dada doutrina pode ser mantida como sendo de origem
apostólica, quando mil anos de tradição não fazem eco a ela de forma alguma.
(Luis
Bermejo, Infallibility on Trial [Westminster: Christian Classics, 1992], pp.
164–165)
Há um grande incidente
histórico que demonstra que a Igreja primitiva nunca sustentou a visão de que
os bispos de Roma eram infalíveis - a condenação do papa Honório pelo sexto
Concílio Ecumênico (III Constantinopla) por heresia. O papa Honório foi bispo
de Roma de 625 a 638. Em várias cartas escritas para Sérgio I - patriarca de
Constantinopla, e para várias outras pessoas, Honório oficialmente promoveu a
heresia do monotelismo, que ensina que Cristo tinha apenas uma vontade - a
divina. A posição ortodoxa era que Cristo, embora fosse apenas uma pessoa,
possuia duas vontades porque era divino e humano. Não há absolutamente nenhuma
dúvida de que ele manteve o ensinamento de uma vontade em Cristo. Jaroslav
Pelikan observou:
Na
controvérsia entre o oriente e o ocidente (...) o caso de Honório serviu como prova a Potius de que os papas não só não
tinham autoridade sobre os concílios da igreja, mas também eram falíveis em
questões de dogma; pois Honório havia abraçado a heresia dos monotelitas.
Os proponentes dessa heresia também citaram o caso de Honório, não em oposição
à autoridade do papa, mas em apoio à sua própria doutrina, insistindo que todos
os mestres da verdadeira fé a confessaram, incluindo Sérgio, o bispo da Nova
Roma, e Honório, o bispo da Roma Antiga. (Jaroslav Pelikan, The
Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine [Chicago:
University of Chicago, 1974], Volume Two, pp. 150–1510)
Honório foi pessoalmente
condenado como herege pelo Sexto Concílio Ecumênico. Isto foi ratificado por
dois Concílio Ecumênicos posteriores. Ele também foi condenado nominalmente
pelo Papa Leão II, e por cada papa até o século XI, que fez o juramento do
ofício papal. Em sua clássica e autoritária série sobre a história dos
Concílios, o historiador católico romano Charkles Joseph Hefele relata esse
fato irrefutável em relação a Honório e ao Sexto Concílio Ecumênico:
É
no mais alto grau surpreendente, mesmo que dificilmente crível, que um Concílio
Ecumênico deva punir com anátema um papa como herege! (...) No entanto, que o sexto Sínodo Ecumênico realmente
condenou Honório por conta de heresia, está claro além de qualquer dúvida
quando nós consideramos a (...) coleção das sentenças do Sínodo contra ele. (Charles
Joseph Hefele, A History of the Councils of the Church [Edinburgh: Clark, 1896],
Volume V, pp. 181)
O significado desses fatos não
pode ser exagerado. Um Concílio Ecumênico, considerado infalível pela Igreja
Católica Romana, e o Papa Leão II, que também é considerado infalível,
condenaram e anatematizaram um papa "infalível" por heresia. Leão
condenou Honório como alguém "que não iluminou a Sé Apostólica ensinando a
tradição apostólica, mas, por um ato de traição, tentou subverter sua fé
imaculada" (Ibid., p. 180). Esse papa condenou oficialmente seu antecessor
por subverter ativamente a fé pelo que ele ensinou e esse julgamento foi
confirmado por dois Concílios Ecumênicos posteriores e por papas individuais,
que fizeram o juramento do ofício papal durante séculos depois. Estes fatos são
confirmados por Hefele:
É claro que o papa Leão II
também anatematizou Honório (...)
em uma carta ao Imperador, confirmando os decretos do sexto Concílio Ecumênico
(...) em sua carta aos bispos espanhóis (...) e em sua carta ao rei espanhol
Ervig. Sobre o fato de o Papa Honório ter sido anatematizado pelo Sexto Sínodo
Ecumênico, a menção é feita pelo (...) Sínodo de Trullo, que foi realizado
apenas doze anos depois (...) O mesmo
testemunho também é dado repetidamente pelo sétimo Sínodo Ecumênico. Isto é
especialmente declarado em seu documento principal - o decreto da fé:
'Declaramos duas vontades e energias de acordo com as naturezas em Cristo,
assim como o sexto Sínodo em Constantinopla ensinou, condenando (...) Sérgio, Honório, Ciro, etc. 'Algo semelhante é
afirmado pelo Sínodo ou seus membros em vários outros lugares (...) No mesmo
sentido, o oitavo Sínodo Ecumênico também se expressa. No Liber Diurnus, ou
seja, o formulário da chancelaria Romana (do quinto ao décimo primeiro século),
encontra-se a velha fórmula do juramento papal (...) segundo a qual todo novo
papa, ao entrar em seu ofício, tinha que
jurar que 'ele reconheceu o sexto Concílio Ecumênico, que feriu com eterno
anátema os criadores da heresia (Monotelismo), Sérgio, Pirro etc., juntamente
com Honório. (Ibid, p. 181-187)
À luz das evidências
históricas, a teoria da infalibilidade papal, proposta pelo Vaticano I, está
falida. Isso simplesmente não é verdade. Döllinger comenta:
Este
fato - que um grande Concílio, universalmente recebido sem hesitação em toda a
Igreja, e presidido por legados papais, pronunciou a decisão dogmática de um
papa herético e o anatematizou pelo nome como herege - é uma prova, clara como a sol ao meio-dia, que a noção de qualquer
iluminação peculiar ou inerrância dos Papas era então totalmente desconhecida
para toda a Igreja. (Johann Joseph Ignaz von Döllinger, The
Pope and the Council [Boston: Roberts, 1870], p. 61)
O historiador ortodoxo, John
Meyendorff, escreve que Honorio de fato ensinou a doutrina do monotelismo em um
sentido positivo e ajudou a confirmar Sergio na heresia. Meyendorff dá este resumo:
Esse
passo para o monotelismo, que ele foi o primeiro a fazer, é a famosa
"queda de Honório", pela qual o Sexto Concílio Ecumênico o condenou
(681) - uma condenação que até o início da Idade Média seria repetida por todos
os papas que tomassem posse, já que em tais ocasiões tinham que confessar a fé
dos concílios ecumênicos. É compreensível que todos os críticos da doutrina da
infalibilidade papal em séculos posteriores - protestantes, ortodoxos e
"anti-infalibilistas" no Vaticano I em 1870 - se referissem a este
caso. Alguns apologistas católicos
romanos tentam mostrar que as expressões usadas por Honório poderiam ser
entendidas de maneira ortodoxa, e que não há evidência de que ele desejasse
proclamar algo mais do que a fé tradicional da Igreja. Eles também apontam -
bastante anacronicamente - que a carta para Sérgio não era uma declaração
formal, emitida pelo papa ex cathedra, usando seu "carisma de
infalibilidade", como se tal conceito existisse no século VII. Sem
negar as boas intenções do papa - que podem ser reivindicadas em favor de
qualquer heresiarca da história - é
bastante óbvio que sua confissão de apenas uma vontade (...) não apenas tolerou os erros dos outros, mas na verdade criou uma
fórmula herética. Seria o começo de uma tragédia, da qual a Igreja
(incluindo os sucessores ortodoxos de Honório no trono papal) sofreriam muito. (John
Meyendorff, Imperial Unity and Christian Division [Crestwood: St. Vladimir’s,
1989], p. 353)
A condenação do Papa Leão II é
significativa. Ao afirmar a condenação de Honório como herege, ele confirmou
que Honório havia minado ativamente a fé ortodoxa. W.J. Sparrow Simpson escreve
sobre o ponto de vista de Leão:
Leão
aceitou as decisões de Constantinopla. Ele examinou cuidadosamente os Atos do
Concílio e os encontrou em harmonia com as declarações de fé de seu
predecessor, Agatão, e do Sínodo de Latrão. Ele anatematizou todos os hereges, incluindo seu antecessor, Honório,
"que, longe de auxiliar a Sé Apostólica com a doutrina da Tradição
Apostólica, tentou subverter a fé por meio de uma traição profana. (W.J.
Sparrow Simpson, Roman Catholic Opposition to Papal Infallibility [London: John
Murray, 1909], p. 35)
É significativo que a carta de
Honório a Sérgio tenha sido usada no Oriente pelos proponentes da heresia
monotelita para justificar sua posição. Como observa Sparrow Simpson:
Esta
carta de Honório foi utilizada no Oriente para justificar a heresia monotelista
- a existência de uma vontade em Cristo. (Ibid, p. 38)
Claramente, nem os papas nem a
Igreja em geral durante a era patrística acreditavam na doutrina da
infalibilidade papal. Nenhuma redefinição de termos pode apagar os fatos da
história ou as implicações desses fatos para o dogma da infalibilidade papal. A
realidade histórica não apoia o que eu aprendi como católico comungante. Os
fatos revelam que os papas erraram, contradisseram a si mesmos e uns aos outros
também. Eles abraçaram a heresia e foram condenados por heresia por concílios
ecumênicos "infalíveis", assim como pelos próprios papas,
demonstrando que a igreja em sua prática, e mesmo os bispos de Roma, não
acreditavam que os papas eram infalíveis.
Notas
do Tradutor
Webster fez um ótimo trabalho
ao documentar, sobretudo em fontes católicas, o consenso acadêmico de que não
há evidência sólida da infalibilidade papal no primeiro milênio da Igreja. Eu
gostaria de acrescentar outros acadêmicos católicos que exemplificam esta
opinião. Hans Kung (famoso oponente católico da infalibilidade papal) cita o
trabalho do renomado erudito católico Yves Congar:
A
pesquisa histórica, notadamente a de Yves Congar, mostrou que, até o século
XII, fora de Roma, a importância da igreja romana não era entendida como uma
verdadeira autoridade de ensino no sentido legal (magistério) (...) Ninguém em todo o primeiro milênio
considerava as decisões do papa infalíveis. (Hans
Kung, The Catholic Church: A Short History [2001], p. 61)
Para um resumo da tese do já
citado Brian Tierney (aqui). O próprio livro de Tierney pode ser visto
parcialmente (aqui).
Outros casos de papas que caíram em heresia, com bastante fonte primária sobre
Honório (aqui).
Excelente artigo de Norman Geisler sobre a infalibilidade papal (aqui).
Vejamos também algumas interpretações
patrísticas de Lucas 22:32 que demonstram que eles não enxergavam neste texto
um ensino da infalibilidade papal. Tertuliano sugere que a passagem é
semelhante ao que é dito sobre todos os crentes em outras passagens. Ele sugere
que a passagem está se referindo à comunhão pessoal com Deus:
Assim,
ele [Satanás] também pediu no caso dos apóstolos uma oportunidade para
tentá-los, tendo-o apenas por concessão especial, visto que o Senhor no
Evangelho diz a Pedro: "Eis que Satanás pediu que pudesse peneirar você
como grão; mas orei por você para que sua fé não desfaleça”. Isto é, que o
diabo não deve ter poder suficiente para pôr em perigo sua fé (...) E
certamente, quando o Filho de Deus tem a proteção da fé absolutamente
comprometida com Ele, rogando-lhe ao Pai, de quem Ele recebe todo o poder no
céu e na terra, quão inteiramente fora
de questão é que o diabo possa tomá-la [nossa fé] pelo seu próprio poder!
Na oração que nos é prescrita, quando dizemos ao nosso Pai: 'Não nos deixe cair
em tentação' (agora que maior tentação existe do que a perseguição?),
reconhecemos que isso acontece por sua vontade a quem pedimos para nos isentar
a partir dele. Pois é isso que segue: "Mas livra-nos do iníquo", isto é, não nos leve à tentação,
entregando-nos ao iníquo, pois então somos libertos do poder do diabo, quando
não somos entregues a ele para ser tentado. (Da
Fuga da Perseguição, 2)
As Constituições Apostólicas
também aplicam a passagem a todos os crentes:
Por
causa disso, o próprio diabo está muito zangado com a santa Igreja de Deus: ele levanta contra você as adversidades,
sedições, reprovações, cismas e heresias. Antes ele dominava esse povo, por
causa do assassinato de Cristo. Mas a você que deixou as suas vaidades, ele
tenta de maneiras diferentes, como fez com o bem-aventurado Jó. Ele também se
opôs ao grande sumo sacerdote Josué, filho de Josedeque, e muitas vezes procurou peneirar-nos, para que nossa fé falhasse.
Contudo, nosso Senhor e Mestre, tendo-o levado a julgamento disse: "O
Senhor te repreenda, ó diabo, e o Senhor, que escolheu Jerusalém, te
repreenda" (...) E quem disse então àqueles que estavam ao lado do sumo
sacerdote: "Leve embora suas vestes esfarrapadas" e acrescentou:
"Eis que tirei de ti as tuas iniquidades". Ele dirá agora, como Ele disse antigamente para nós quando estávamos
reunidos: "Eu orei para que a sua fé não desapareça".
(Constituições Apostólicas 6:5)
Agostinho também aplica a
mensagem a todos os crentes:
O que é “entrar em tentação”, senão afastar-se da fé? Pois até agora a
tentação avança à medida que a fé cede. E até agora a tentação cede, à medida
que a fé avança. Para que você possa saber que o Senhor claramente disse:
'Vigiai e orai, para que não entreis em tentação', com a tocante fé, para que
não falhe e pereça. Ele disse no mesmo lugar do Evangelho: "Esta noite Satanás desejou peneirar-te como
trigo, e eu orei por ti Pedro para que a tua fé não pereça". Quem defende
ora, e como não orará quem está em perigo? (Sermão 65:1)
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