terça-feira, 19 de junho de 2018

Os Pais da Igreja Pré-Nicenos e o Culto às Imagens e Ícones


Neste primeiro artigo, vamos tratar da evidência patrística pré-nicena sobre o culto às imagens e aos ícones. Vamos demonstrar que houve um consenso patrístico contra o uso de tais elementos como objeto de culto. Apologistas católicos e ortodoxos, totalmente desamparados de qualquer pesquisa histórica, costumam fazer afirmações do tipo:  “A ideia de que a Igreja dos primeiros séculos foi de modo algum preconceituosa contra imagens, ícones, relíquias estátuas é a ficção mais descabida possível.” O artigo apologético católico afirma: “O ensino cristão das imagens e relíquias sagradas, esta presente desde os primeiros escritos cristãos que se tem conhecimento, todos eles confirmam unanimamente como a teologia católica, não inova apenas repete o que é da fé através dos séculos!”. Obviamente esse tipo de afirmação é encontrada apenas em apologistas de internet. Conforme veremos numa seção desse artigo – historiadores católicos romanos e ortodoxos afirmam que os primeiros cristãos tinham sim preconceito contra o culto às imagens. Se a tese católica acima fosse verdadeira, não seria difícil encontrar pais da igreja pré-nicenos apoiando a doutrina romanista. No entanto, quem se der ao trabalho de ler o artigo católico, perceberá que não se encontra qualquer evidência de pai da Igreja pré-niceno apoiando o culto às imagens ou ícones. Neste artigo, tratarei apenas do culto às imagens e aos ícones. Eu já tratei do culto às relíquias e sua falta de base histórica em outro artigo (aqui). Recomendo também os artigos do blog conhecereis a verdade (aqui) e heresias católicas (aqui  e aqui).

Epístola de Barnabé (131?)

A Epístola não foi escrita por Barnabé. Sua autoria é desconhecida e provavelmente a obra é do início do século II:

Moisés as tomou, e começou a descer, para levá-las ao povo. Então disse a Moisés o Senhor: "Moisés, Moisés, apressa-te a descer, pois teu povo, que fizeste sair da terra do Egito, pecou". Moisés compreendeu que eles ainda tinham feito para si imagens de metal fundido. Então ele atirou de suas mãos as tábuas e as tábuas da Aliança do Senhor se quebraram". Moisés, portanto, a recebeu, mas eles não foram dignos dela. (Ep. de Barnabé 14)

Esta não é uma condenação explícita. No entanto, a epístola demonstra a condenação aos judeus por criarem imagens. Levando-se em conta o contexto do séc. II, em que abundam escritos cristãos condenando os pagãos por cultuarem imagens, é muito provável que o autor da epístola também condenasse tal culto de forma geral, e não apenas no contexto pagão.

Aristides de Atenas (130?)

Aristides foi um apologista cristão do início do séc. II. Ele escreveu um livro ao imperador em defesa do cristianismo:

Vejamos, pois, quais destes [homens] participam da verdade e quais [participam] do erro. Os caldeus, com efeito, por não conhecerem a Deus, se extraviaram por detrás dos astros e passaram a adorar às criaturas no lugar d’Aquele que os havia criado; e fazendo daqueles [astros] certas representações, passaram a clamar às imagens do céu e da terra, do sol, da lua e dos demais astros ou luminares; e, confinando-os em templos, os adoram, dando-lhes nome de deuses, guardando-os com toda a segurança, para que não sejam roubados por ladrões, sem perceber que os que guardam são superiores aos guardados, e os que constroem são superiores às suas próprias obras. Assim, se os seus deuses são impotentes para sua própria salvação, como poderiam oferecer a salvação aos outros? Logo, se extraviaram os caldeus, prestando culto a imagens mortas e inúteis. (Apologia cap. 3)

Quando apresentamos citações como esta, os apologistas afirmam que a condenação se restringiria apenas ao contexto pagão. A questão é se Aristides, assim como os demais pais da igreja aqui citados, estariam condenando apenas um certo tipo de culto às imagens ou ícones ou tratar-se-ia de uma condenação geral. A natureza da argumentação de deixa claro que a condenação é um princípio geral. Percebam que ele critica as imagens porque estas precisariam ser guardadas por vigias, o que tornaria os guardadores superiores às imagens. Este argumento só faz sentido a luz de uma condenação geral. As imagens num contexto cristão também precisariam ser guardadas e protegidas. Seria inconcebível tal afirmação de Aristides se os cristãos também cultuassem imagens. Percebam que ele também condena o ato de confinar as imagens em templos, sem estabelecer nenhum tipo de qualificação. Se Aristides apoiasse o confinamento de imagens nos templos cristãos, ele provavelmente adicionaria qualificações a esta condenação aos pagãos, sob pena de estar sendo hipócrita.

Assim, se extraviaram gravemente os egípcios, os caldeus e os gregos, introduzindo tais deuses, fazendo imagens deles, e divinizando os ídolos surdos e insensíveis. E me admira como vendo seus deuses serrados, destruídos pelo fogo, cortados pelos artífices, envelhecidos pelo tempo, dissolvidos e fundidos, não compreendam que não existem tais deuses, pois quando nenhuma força possuem para sua própria salvação, como poderão ter providência pelos homens? (...) Fique provado então – ó Rei – que todos estes cultos para muitos deuses são obras que extraviam e levam à perdição, pois não se deve chamar deuses às coisas visíveis que não veem, mas deve-se adorar ao Deus invisível que tudo vê e criou. (Cap. 13)

Mais uma vez, ele critica o uso de imagens por estas serem destrutíveis e sujeitas ao envelhecimento. Tal argumento jamais poderia ser utilizado por um católico romano ou oriental.

Atenágoras de Atenas (133-190)

(...) nenhum dos ídolos pode escapar de ser fabricado por homens. Ora, se são deuses, como não existiam desde o princípio? Como são mais recentes que aqueles que os fabricaram? Que necessidade tinham, para nascer, dos homens e da arte? Tudo isso, porém, é apenas terra, pedras, matéria e arte supérflua. Há aqueles que dizem que isso são apenas estátuas, mas é aos deuses que elas se referem, que as procissões que a elas se fazem e os sacrifícios que se lhes oferecem terminam nos deuses e a eles se dirigem, que não existe, enfim, outro meio de aproximar-se dos deuses sem este: “os deuses são difíceis de aparecer claramente”. E que isso seja assim, apresentam como prova as atividades de alguns ídolos. (Petição em Favor dos Cristãos18)

Notem que o argumento pagão é o mesmo utilizado pelos modernos iconólatras. As imagens apenas representam aquele a quem o culto se dirige. 

Aceitemos, porém, que todos admitissem os mesmos deuses. E daí? Se o vulgo, incapaz de distinguir entre matéria e Deus, e de compreender a diferença que existe de uma para outro, recorre aos ídolos feitos de matéria, deveremos também adorar as estátuas para agradá-los? Nós, que distinguimos e separamos o incriado do criado, o ser do não-ser, o inteligível do sensível, e que damos nome conveniente a cada uma dessas coisas? Com efeito, se a matéria e Deus são a mesma coisa, e se trata apenas de dois nomes para a mesma realidade, não aceitando como deuses as pedras, a madeira, o ouro e a prata, cometemos uma impiedade; contudo, se existe imensa distância entre um e outro, como do artista para os instrumentos de sua arte, por que nos acusam? Como o oleiro e o barro, o barro é a matéria e o oleiro é o artista, assim Deus é o artífice e a matéria lhe obedece em vista da arte. Mas como o barro sem a ação do artista não pode por si mesmo converter-se em vasos, também a matéria, capaz de qualquer forma, não teria recebido em distinção nem figura nem ornato sem a ação do Deus artífice. Ora, nós não consideramos o vaso mais digno de honra do que o seu fabricante, nem as taças de ouro mais dignas de honra do que aquele que as fundiu, mas, se vemos nelas alguma habilidade artística, louvamos o artista e é este que colhe o fruto da glória dos vasos. (Petição em Favor dosCristãos 15)

Observem o “porque nos acusam”. Aristides e Atenágoras produziram tais obras para defender os cristãos de acusações pagãs. Uma das acusações pagãs era justamente o fato de cristão não usarem imagens no culto. Os defensores do cristianismo nunca corrigem os pagãos. Pelo contrário, eles explicam porque os cristãos não cultuam imagens. Observem como eles até poderiam ver mérito artístico na confecção da imagem, mas toda honra seria apenas do artista.

Justino Mártir (100-165)

Também não honramos, com muitos sacrifícios e coroas de flores, esses que os homens, depois de dar-lhes forma e colocá-los nos templos, chamam de deuses. Com efeito, sabemos que são coisas sem alma e mortas não têm forma de Deus. Nós não cremos que Deus tenha semelhante forma, que alguns dizem imitar para tributar-lhes honra. Na verdade, o nome e figura que levam são daqueles maus demônios que um dia apareceram no mundo. Por acaso, é preciso explicar-vos, se já o sabeis, a maneira como os artesãos dispõem a matéria, ora polindo e cortando, ora fundindo e cinzelando? Não só consideramos isso irracional, mas também um insulto a Deus, pois, tendo ele glória e forma inefável, dá-se o nome de Deus a coisas corruptíveis e que necessitam de cuidado. Muitos, apenas mudando a figura e dando forma conveniente através da arte, dão o nome de deus àquilo que serviu de instrumento ignominioso (...) É estupidez dizer que homens intemperantes fabricam e transformam deuses para ser adorados e que tais pessoas servem como guardas dos templos nos quais aqueles são colocados! (I Apologia 9:1-5)

Justino também cita com aprovação as seguintes palavras de Sibila:

Nos desviamos dos caminhos do Imortal, e adoramos os ídolos com uma mente estúpida e sem sentido - a obra de nossas próprias mãos e imagens e figuras de homens mortos. (Exortação aos Gregos 16)

Ele desaprova o culto às imagens porque elas representam pessoas falecidas. A questão é como um homem que também cultuava imagens poderiam utilizar tal argumento sem apresentar maiores qualificações? As imagens de santos também representam pessoas que já morreram. Um católico romano poderia usar tal argumento? Obviamente não. Nós temos acesso a uma quantidade razoável das obras de Justino. Nota-se que ele, assim como os demais autores cristãos, condenam o uso de imagens no culto pagão de forma genérica, sem qualquer qualificação restritiva. A partir do séc. V, quando o culto aos ícones toma forma crescente no seio da igreja, os autores cristãos realizam uma série de qualificações e distinções para demonstrar porque as imagens no culto cristão não incorriam nas mesmas condenações que os pagãos. O fato de os autores pré-nicenos não realizarem tais distinções para salvaguardar um suposto culto cristão das imagens é evidência de que o cristianismo primitivo não praticava tal culto.

Melito de Sardes (180)

Melito foi um importante bispo do século II. Ele escreveu:

Há pessoas que dizem - É para a honra de Deus que fazemos a imagem: para que possamos adorar o Deus que está oculto de nossa visão. Mas eles não estão cientes de que Deus está em todo país e em todo lugar, e nunca está ausente, e que não há nada feito que Ele não o saiba. Ainda tu, homem desprezível (...) comprou madeira do carpinteiro e esculpiu uma imagem insultuosa para Deus. Por isso ofereces sacrifício e não sabes que o olho que tudo vê também te vê, e que a palavra da verdade te repreende, e te diz: Como pode o Deus invisível ser esculpido? (Fragmento 1)

Irineu de Lião (130-202)

Esses homens [os hereges gnósticos] praticam magia, usam imagens, encantamentos, invocações e todos os outros tipos de arte estranha. (Contra as Heresias 1:24:5)

Denominam-se Gnósticos. Eles também possuem imagens, algumas delas pintadas, e outras formadas a partir de diferentes tipos de materiais; e afirmam que uma imagem de Cristo foi feita por Pilatos no tempo em que Jesus viveu entre eles. E coroam estas imagens e as expõem com as imagens dos filósofos do mundo, a saber, com as imagens de Pitágoras, de Platão, de Aristóteles e de outros. Eles têm também outras formas de honrar estas imagens, precisamente como os pagãos. (Contra as Heresias 1:25:6)

Esta citação demonstra cabalmente que o culto às imagens, ainda que num contexto não pagão, não era tolerado. Os gnósticos eram hereges, mas não eram pagãos. Eles tinham uma suposta imagem de Jesus. Irineu condena o uso de tal imagem e a honra prestada a ela, que remetia ao culto pagão. Os apologistas costumam apelar a conhecida distinção latria e dulia. Todavia, esta é uma construção teológica dos séculos posteriores, quando o culto aos ícones seria adotado. Os pais pré-nicenos não estabeleciam dois tipos de culto. 
   
Tertuliano (160-220)

Pois como poderia ele [Pedro no Monte da Transfiguração] ter conhecido Moisés e Elias, exceto estando no Espírito? As pessoas não poderiam ter suas imagens, estátuas ou retratos; pois a lei proibia. (Contra Marcião 4:22)

Tertuliano compreendia que a lei mosaica proibia criar imagens e estátuas, mesmo dos heróis da fé. Ele também atesta que o culto às imagens não fazia parte do judaísmo primitivo. A única forma de Pedro ver Moisés seria através do milagre da transfiguração. Ele não poderia vê-lo através de um retrato ou estátua, pois era proibido pela Lei.

Sabemos que os nomes dos mortos não são nada, assim como as imagens deles. Também sabemos que quando as imagens são formadas, sob esses nomes, realizam seu trabalho iníquo e exultam na homenagem prestada a eles, e fingem ser divinas - nada menos que espíritos amaldiçoados, do que demônios. (Do Espetáculo 10)

Ele argumenta que a imagem não é nada, pois representa um morto. Obviamente tal argumento poderia ser facilmente revertido às imagens de cristão já falecidos. Ainda afirma que são demoníacas.

Oferendas para apaziguar aos mortos eram consideradas como pertencentes à classe dos sacrifícios fúnebres, e estes são idolatria. A idolatria, na verdade, é uma espécie de homenagem aos que partiram, tanto um como o outro é um serviço aos mortos. Além disso, os demônios residem nas imagens dos mortos (...) esse tipo de exibição passou das honras aos mortos para honras aos vivos - isto é, para questores [superintendentes financeiros] e magistrados, para ofícios sacerdotais de diferentes tipos. No entanto, como a idolatria ainda se apega ao nome da dignidade, tudo o que é feito em seu nome parte de sua impureza. (Do Espetáculo 12)

Observem como esta condenação seria aplicável também ao moderno culto aos santos. Católicos cultuam aos santos na esperança de obterem deles sua intercessão. Tertuliano considera esta prática demoníaca. Observem que ele não distingue o culto aos mortos da honra que era prestada às autoridades. Ocorre que nos séculos posteriores foi justamente esse culto prestado às autoridades que inspiraria os cristãos a também cultuarem os mártires. Tanto um como outro são condenáveis. Isto deixa claro que Tertuliano não adotava a moderna distinção entre latria e dulia.

Em suma, se recusamos nossa reverência a estátuas e imagens apáticas, a própria contrapartida de seus originais mortos, com os quais falcões, ratos e aranhas estão tão bem familiarizados, não merece louvor ao invés de reprovação o fato de rejeitarmos o que vimos ser um erro? (Apologia 12)

Esta citação é retirada da apologia de Tertuliano. Ele está respondendo a crítica pagã aos cristãos por não cultuarem imagens. Ele insiste que a imagem não deve ser cultuada porque representa alguém que já faleceu, além do fato de a imagem estar sujeita a todo tipo de desgaste. Os cristãos não deveriam ser criticados, mas louvados por não cultuarem imagens.

Mesmo hoje em dia [a idolatria] pode ser praticada fora de um templo e sem um ídolo. Todavia, quando o diabo introduziu no mundo artesãos de estátuas, de imagens e de todo tipo de retrato, aquele antigo negócio rude de desastre humano ganhou dos ídolos um nome e um desenvolvimento. A partir de então, toda arte que de alguma forma produz um ídolo instantaneamente se tornou uma fonte de idolatria.  Uma vez que mesmo sem o ídolo a idolatria é cometida, quando o ídolo está lá não faz diferença de que tipo seja, de que material, ou que forma; para que ninguém pense que somente aquilo que é consagrado em forma humana deve ser chamado de ídolo. (Da Idolatria 3)

Ele critica a profissão dos artesãos a chamando de “negócio rude”. Tertuliano condenaria a feitura de imagens e ícones de formas humanas mesmo que para fins apenas artísticos – algo que eu particularmente não consideraria condenável. Obviamente ele não poderia conceber sequer o uso religioso de ícones ou imagens.  Diante dessas contundentes citações, os defensores dos ícones costumam apresentar a seguinte citação de Tertuliano:

Da mesma forma, quando proibiu fazer imagens de todas as coisas que estão no céu e na terra e nas águas, Ele também declarou as razões, como sendo proibitivo de toda a exibição material de uma idolatria latente. Ele acrescenta: “Não se prostrará a eles nem os servirá”. No entanto, a serpente de bronze que o Senhor depois mandou que Moisés fizesse não oferecia nenhum pretexto para a idolatria, mas destinava-se à cura daqueles que foram atormentados com as serpentes de fogo (...) Assim também os Querubins e Serafins de ouro eram puramente um ornamento na arca; adaptada à ornamentação por motivos totalmente distantes de toda a condição de idolatria, em virtude da qual é proibido fazer a imagem. (Contra Marcião 2:22)

Esta citação não contradiz nenhuma das anteriores. Tertuliano esclarece que a serpente não foi objeto de culto. Da mesma forma, os querubins e serafins eram meramente arte decorativa. Não havia qualquer tipo de honra religiosa envolvida. O relato da serpente de bronze nos fornece o paradigma da questão. Quando ela passou a ser objeto de culto, foi retirada. 

Clemente de Alexandria (150-215)

A própria lei apresenta a justiça e ensina a sabedoria pela abstinência de imagens. (Stromata 2:18)

Clemente faz eco ao ensinamento da lei mosaica sobre as imagens.

E mais uma vez, não use um anel, nem grave nele as imagens dos deuses, ordena Pitágoras, assim como nos tempos de Moisés em que foi expressamente decretado que nenhuma escultura esculpida, nem fundida, nem moldada, nem pintada deveria ser feita, para que não nos apeguemos a coisas de sentido, mas passemos para objetos intelectuais. Afinal, a familiaridade com a visão deprecia a reverência do que é divino; e adorar o que é imaterial pela matéria é desonrá-lo pelo sentido.  Portanto, os mais sábios dos sacerdotes egípcios decidiram que o templo de Atena deveria ser hypaethral [ao ar livre, sem teto], assim como os hebreus construíram o templo sem imagens. (Stromata 5:5)

O argumento de Clemente conduz a uma vedação geral quanto ao uso de imagens. 

Pois não é verdade que com razão não limitamos em qualquer lugar aquilo que não pode ser limitado; nem calamos nos templos feitos com as mãos aquilo que contém todas as coisas? Que trabalho de construtores, pedreiros e arte mecânica pode ser sagrado? Superior a estes não são os que pensam que o ar e o espaço em volta, ou melhor, o mundo inteiro e o universo são recebidos pela excelência de Deus? Era realmente ridículo, como os próprios filósofos dizem, que o homem, o brinquedo de Deus, faça Deus e que Deus seja o brinquedo da arte (...) Agora as imagens e os templos construídos pela mecânica são feitos de matéria inerte para que também eles sejam inertes, materiais e profanos; e se você aperfeiçoar a arte, eles participam da grosseria mecânica. Obras de arte não podem ser sagradas e divinas. (Stromata 7:5)

Está é mais uma condenação geral. Se as obras de arte não poderiam ser sagradas, segue-se que não podem ser objeto de culto.

Pois, na verdade, uma imagem é apenas matéria morta moldada pela mão do artesão. Mas não temos uma imagem sensível da matéria sensível, mas uma imagem que é percebida apenas pela mente: Deus, que é o único Deus. (Exortação aos pagãos 4)

Embora ele tome como exemplo a imagem da divindade, a crítica se aplicaria a qualquer tipo de imagem.

Mas é com um tipo diferente de feitiço que a arte te ilude (...) isso leva você a prestar honra religiosa e cultuar imagens e figuras. (Exortação aos pagãos 4)

Trata-se de uma condenação à iconolatria pagã, mas Clemente jamais poderia condená-los de tal forma, sem maiores qualificações, se ele próprio também cultuasse imagens.

Pois aquele [Deus] que proibiu a feitura de uma imagem de escultura, nunca teria feito uma imagem à semelhança das coisas santas. Nem há, de modo algum, qualquer coisa composta e criatura dotada de sensibilidade, do tipo que há no céu. (Stromata 5:6)

Esta citação atesta que as imagens não podem ser sagradas.

Orígenes (184-253)

Assim como descobrimos nesta atitude a abstenção do adultério, embora pareça a mesma, uma diversidade proveniente das doutrinas e das intenções, o mesmo ocorre com a recusa de honrar a divindade nos altares, nos templos e nas estátuas. Os citas, os nômades da Líbia, os seres, povo sem deus, e os persas fundamentam sua atitude em outras doutrinas diferentes daquelas pelas quais os cristãos e os judeus não toleram este culto que se pretende oferecido à divindade. Pois nenhum desses povos pode tolerar os altares e as estátuas porque se recusaria a exautorar e aviltar a adoração devida à divindade, dirigindo-a a matéria assim modelada. A razão também não é porque eles compreenderam que são demônios que essas imagens e locais encarnam, evocados por sortilégios, ou por eles mesmos terem de outro modo tomado posse dos lugares em que eles recebem gulosamente o tributo das vítimas e vivem à procura de prazer ilícito e de indivíduos sem lei. Mas os cristãos e os judeus têm estes mandamentos: “É ao Senhor teu Deus que temerás. Só a ele servirás” (Dt 6,13); “Não terás outros deuses diante de mim”; “Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelha ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás” (Ex 20,3-5); “Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto” (Mt 4,10); e muitos outros do mesmo teor. Por causa deles, não só se afastam dos templos, dos altares, das estátuas, mas também correm para a morte quando necessário, para evitar emporcalhar a noção do Deus do universo com uma infração deste gênero à sua lei (...) Aprendemos a não adorar “a criatura em lugar do Criador” (...) Aprendemos que não se deve honrar no lugar de Deus a quem nada falta, ou de seu Filho Primogênito de toda criatura, as coisas que foram submetidas à escravidão da corrupção e à vaidade, e estão na expectativa de uma esperança melhor (...) Devemos responder: é possível conhecer a Deus e seu Filho único, como os seres que são honrados por Deus com o título de deus e participam de sua divindade, e que são diferentes de todos os deuses das nações que por sua verdadeira natureza são demônios; mas na verdade não é possível conhecer a Deus e orar para as estátuas. (Contra Celso 7:64-65)

Os apologistas objetam que Orígenes está somente condenando as imagens da divindade. Contudo, observem que ele se refere à Deus e também Jesus seu filho. Logo, ele obviamente não cultuava imagens mesmo de Jesus. Os católicos tentam atribuir aos pais a distinção latria/dulia, mas isto não funcionaria para Orígenes, uma vez que tal distinção não é encontrada em nenhuma de suas obras.

Ainda que Celso qualifique como incultas, escravas, menos instruídas as pessoas que não compreendem seu ponto de vista e não assimilaram a ciência dos gregos, nós declaramos como os mais incultos aqueles que não se envergonham de se dirigir a objetos inanimados, de pedir a saúde à fraqueza, de procurar a vida junto à morte, de mendigar socorro à impotência. Aqueles que afirmam que tais realidades não são deuses, mas imitações dos deuses verdadeiros e seus símbolos, são igualmente pessoas sem educação, escravas, sem instrução, pois imaginam colocar as imitações nas mãos dos artífices; de tal forma, digamos, que mesmo os últimos dos nossos são libertados desta tolice e ignorância, ao passo que os mais sensatos concebem e compreendem a esperança divina. (Contra Celso 6:14)

Celso era um crítico pagão do cristianismo. Orígenes responde a acusação de incultura dos cristãos afirmando que os pagãos é que eram incultos por cultuarem imagens. Vejam que a crítica “se dirigir a objetos inanimados” expressa uma condenação geral. Ele não criticava os pagãos por se dirigirem ao objeto inanimado errado (como se houvesse o certo), mas de forma geral. Orígenes ainda atesta que tal prática não era cristã. Se Orígenes estivesse apenas condenando as imagens pagãs, não faria sentido afirmar que os cristãos não praticavam tal ignorância. Afinal, por definição, um cristão não cultuava deuses pagãos. A resposta do alexandrino, para ter sentido, só poderia se referir ao fato de que os cristãos não cultuavam objetos inanimados.

Minúcio Félix (150-220)

Minucio escreveu o relato de um debate (provavelmente fictício)  entre o cristão Otávio e o não cristão Cecílio. Uma forma de sabermos o que os cristãos de determinado período pensavam é analisando as críticas que os pagãos lhes faziam. Cecílio pergunta:

Por que eles não têm altares, nem templos, nem imagens reconhecidas? (Otávio Cap. 10)

O cristão Otávio responde:

Da mesma forma com relação aos deuses também, nossos ancestrais acreditavam descuidados, credulamente, com simplicidade não treinada. Enquanto cultuavam seus reis religiosamente, desejando olhar para eles quando mortos em formas externas, ansiosos para preservar suas memórias em estátuas. Essas coisas que se tornaram sagradas deveriam ser tomadas apenas como consolo. (Cap. 20)

Observe que Otávio (o cristão) não diz “não é bem assim, nós temos algumas imagens, só não prestamos o mesmo culto que os pagãos”. Ele confirma que os cristãos não têm altares, templos ou imagens. Ainda diz que o uso de imagens que serviram inicialmente para manter a memória dos reis passou a ser objeto de uso religioso. O cristão Otávio afirma então que apenas o uso memorial das imagens deveria ser mantido e não o uso sagrado. Isto se traduz numa negação ao culto dos ícones.   Otávio também tece uma crítica às imagens pagãs que é aplicável às imagens católicas:

Qual é o seu próprio Júpiter? Há casos em que ele é representado em uma estátua sem barba, em outros ele está com barba. (Cap. 21)

A mesma inconsistência se apresenta nas imagens católicas. Não se sabe qual a aparência de Maria por exemplo. Qual o sentido em se representar numa imagem alguém sobre a qual não temos qualquer noção a respeito de sua aparência? Além disso, as imagens são contraditórias na medida em que Maria é representada com diferentes aparências. Otávio condena também o ato de beijar imagens:

Cecílio, observando uma imagem de Serapis, levou a mão à boca e, como é costume das pessoas supersticiosas, beijou-a com os lábios. Então Otávio disse: “Não é conveniente a um homem bom, meu irmão Marcus [Minúcio Felix], abandonar um homem que habita ao seu lado nessa cegueira da ignorância vulgar. (Cap. 2)

Ele faz outra crítica às imagens aplicável ao culto católico:

Quanto mais verdadeiramente os animais mudos julgam seus deuses? Ratos, andorinhas, papagaios, sabem que eles não têm sensibilidade: eles os roem, pisam neles, sentam-se neles e, a menos que você os afaste, eles constroem seus ninhos na própria boca do seu deus. As aranhas tecem suas teias sobre o rosto e suspendem seus fios sobre sua própria cabeça. Você seca, limpa, raspa e protege (...) desejando sem consideração obedecer a seus ancestrais, preferindo acrescentar ao erro dos outros do que confiar em si mesmos. Nisso eles nada sabem do que temem. Assim a avareza foi consagrada em ouro e prata. Assim a forma das estátuas vazias foi estabelecida. Assim surgiu a superstição romana. (Cap. 24)

Agora, compare isso com a objeção católica de que os Pais da Igreja estavam apenas condenando o culto às imagens de deuses pagãos. Minúcio poderia usar tal argumento? Como poderia usá-lo se o mesmo se sucede às imagens de Maria e dos santos? Toda a natureza da argumentação pressupõe que nenhum tipo de imagem é utilizada no culto cristão. Otávio diz que os demônios são "consagrados sob estátuas e imagens" (27). Ele também diz:

Mas você acha que nós escondemos o que adoramos já que não temos templos e altares? E porque eu faria uma imagem de Deus se o próprio homem é feito à imagem dele? Que templo devo edificar a Ele se todo esse mundo formado por sua obra não pode recebê-lo? E como eu, um homem, limitarei o poder de tão grande majestade dentro de um pequeno edifício? Não seria melhor que Ele fosse dedicado em nossa mente, consagrado em nosso íntimo coração? (Cap. 32)

Observe que a pergunta inicial contém “já que não temos templos e altares”. Embora o exemplo de fundo seja Deus, ele confirma que os cristãos não tinham templos e altares. Isto obviamente coloca os cristãos primitivos muito distantes dos cristãos de eras posteriores que construíram templos com vários altares abrigando imagens.

Hipólito de Roma (170-236)

Hipólito escreve sobre profissões que os cristãos que se preparavam para o batismo deveriam abandonar:

Deve-se interrogar, também, a respeito dos trabalhos e ocupações exercidos por aqueles que se apresentam para ser instruídos. Aquele que possui prostíbulo: desista ou seja recusado. O escultor ou pintor: seja ensinado a não produzir ídolos, isto é, cesse ou seja recusado. O ator que representa no teatro: cesse ou seja recusado. (Tradição Apostólica 3:2)

Um escultor ou pinto não precisaria abandonar sua profissão caso houvesse costume entre os cristãos de fabricar esculturas ou ícones para veneração. Hipólito associava diretamente os ícones e as imagens aos ídolos.

E eles [os hereges] têm uma imagem de Simão (formada) na figura de Júpiter e (uma imagem) de Helena na forma de Minerva. Eles prestam adoração a eles. Eles o chamam de único Senhor e a outra de Senhora. E se qualquer um dentre eles, ao ver as imagens de Simão ou Helena, os chamar pelo nome, será rejeitado como sendo ignorante sobre os mistérios. (Refutação de todas as heresias)

Hipólito descreve o hábito de hereges gnósticos. Vemos que o culto às imagens era comum aos círculos heréticos e não aos cristãos ortodoxos.

Cipriano de Cartago (?-258)

E novamente: “Eles adoraram aqueles que seus dedos fizeram; e o homem mesquinho se dobrou, e o grande homem se humilhou, e eu não os perdoarei.' Por que você se humilha e se dobra a falsos deuses? Por que você inclina seu corpo em cativeiro diante de imagens tolas e criações da terra? Deus te fez justo; e enquanto outros animais estão em baixa, e estão deprimidos em postura curvada para a terra, a sua é uma atitude elevada; e o teu semblante é levantado para o céu e para Deus. (Ad Demetr cap. 16)

Você não adora a Deus nem permite que Ele seja adorado; e enquanto outros que veneram não apenas os ídolos e imagens tolas feitos pelas mãos do homem, mas até mesmo os prodígios e monstros são agradáveis a você. É somente o adorador de Deus que está desagradando a você. (Ad Demetr cap. 14)

Lactâncio

Que loucura é formar os objetos os quais eles mesmos podem temer depois ou temer as coisas que eles formaram? Mas, eles dizem, nós não tememos as imagens em si, mas aqueles seres cuja semelhança elas representam e para cujos nomes são dedicadas (...) O que são as próprias imagens senão memoriais dos mortos ou ausentes? Pois a ideia de fazer imagens foi criada pelos homens por esse motivo - para que fosse possível reter a memória daqueles que haviam sido removidos pela morte ou separados pela ausência. Em qual dessas classes devemos considerar os deuses? Se entre os mortos, quem é tão tolo a ponto de cultuá-los? Se entre os ausentes, então eles não devem ser cultuados, já que eles não veem nossas ações nem ouvem nossas orações. Mas se os deuses não podem estar ausentes - pois, uma vez que são divinos, veem e ouvem todas as coisas, em qualquer parte do universo que estejam - segue-se que as imagens são supérfluas, já que os deuses estão presentes em todos os lugares e é suficiente invocar com oração os nomes daqueles que nos ouvem. Mas se eles estão presentes, eles não podem deixar de estar à mão em suas próprias imagens. É inteiramente assim, como as pessoas imaginam, que os espíritos dos mortos perambulam pelas tumbas e relíquias de seus corpos. (Institutas Divinas 2:2)

Lactâncio constrói sua opinião sob o fato de que as imagens representam falecidos. Ele conclui que cultuar a imagem de um falecido é tolice. Há ainda uma segunda crítica. Se os falecidos invocados através de suas imagens podem ouvir orações a eles dirigidas em todo o mundo, o uso das imagens é supérflua. Ambas as críticas se aplicam ao catolicismo moderno, uma vez que é ensinado que Maria e os santos podem ouvir orações feitas aos milhões ao redor do mundo. Se Maria e os santos tivessem tal poder, a opinião de Lactâncio é que se deveria orar diretamente a eles, sem fazer o uso de imagens.

Portanto, é indubitável que não há religião onde quer que haja uma imagem. Pois se a religião consiste de coisas divinas, e não há nada divino exceto nas coisas celestiais; segue-se que as imagens são sem religião, porque não pode haver nada celestial naquilo que é feito da terra. (Institutas Divinas 2:19)

Esta condenação também se aplica ao culto às imagens. Uma vez que as imagens são objetos terrenos, elas não podem ser um canal especial de graça ou aproximar os crentes de Maria ou de santos que estariam no céu.

Sínodo de Elvira (306)

O Sínodo de Elvira foi realizado na Espanha e reverbera o consenso patrístico de até então sobre o culto aos ícones:

Ordenamos que não haja pinturas na Igreja, de modo que aquele que é objeto de nossa adoração não seja pintado nas paredes (Cânon 36)

Este sínodo é muito claro ao proibir que hajam pinturas na igreja. O objeto da adoração cristã (mesmo Jesus) não poderia ser pintado em paredes. Há toda uma tentativa de relativizar a condenação deste sínodo. Os apologistas católicos afirmam que a intenção do sínodo era apenas impedir que os itens sagrados fossem profanados pelos pagãos. Eles tentam fundamentar esta relativização em dois outros cânons do sínodo:

Qualquer um que escreve frases escandalosas em uma igreja deve ser condenado. (Canon 52)

Se alguém quebrou ídolos e foi condenado à morte por fazê-lo; uma vez que isto não está escrito no Evangelho, nem se acha que foi feito pelos apóstolos, não será incluído nas fileiras dos mártires. (Canon 60)

Como esses dois cânons conduz a conclusão de que o concílio proibiu as imagens na igreja apenas por razões de segurança é um mistério. Na verdade, se formos levar em conta o background da igreja pré-nicena, a explicação é absurda. Os cristãos desse período não utilizavam ícones no culto. Portanto, é totalmente descabido que os bispos espanhóis estavam apenas tentando proteger os próprios ícones. Ademais, o próprio cânon fornece a motivação da proibição “aquele que é objeto de nossa adoração não seja pintado nas paredes”. Ou seja, as imagens eram proibidas porque o objeto do culto cristão não deveria ser pintado em paredes. É uma justificativa teológica. Outro detalhe – o cânon fala especificamente de pinturas (o que chamamos em nosso estudo de ícones) e não inclui imagens (aqui consideradas as esculturas). Se os cristãos desse período cultuavam pinturas e esculturas e o objetivo do cânon era proteger os itens sagrados, eles também incluiriam as esculturas. Afinal, as esculturas, mais até do que as pinturas, estavam sujeitas à profanação pagã. Embora seja verdade que estudiosos católicos e ortodoxos tenham tentado relativizar o Cânon 36, a posição majoritária entre os acadêmicos tem sido seguir a leitura natural do texto. O estudioso de Cambridge Robert Grigg sumariza as posições acadêmicas:

O Cânon 36 do Sínodo de Elvira (300-306 DC) é dirigido exclusivamente a um público cristão. No entanto, como argumentarei, proíbe a introdução de imagens na igreja (...) Há hoje apenas duas interpretações geralmente preferidas. De acordo com estudiosos, notadamente Harnack e Leclercq, o Cânon 36 pretendia proibir totalmente que os cristãos cultuassem imagens (...) Um segundo grupo de estudiosos, Koch, Elliger, e Klauser, tentou explicá-lo como inspirado pela autoridade da proibição do antigo testamento contra as imagens. O Antigo Testamento proíbe fazer imagens, e por implicação, o mero ato de pintar coisas sagradas sobre paredes. Elliger e Lowrie pensaram que a presença de dois verbos “colitur” e “adoratur” foram inspirados em “non adorabis ea neque coles” de Êxodo 20:5 (...) O problema é que a proibição do Antigo Testamento pode ser e às vezes foi interpretada literalmente como categórica a respeito da produção de imagens. Como Tertuliano parece ter entendido, proibia a imagem de qualquer coisa, esteja no céu, ou debaixo na terra (Da Idolatria 4). Apologistas cristãos também citaram a própria passagem que categoricamente proíbe imagens. Eles interpretaram literalmente, então não estaria proibindo especificamente imagens que são reverenciadas e adoradas e, portanto, seriam insuficientes para explicar o medo explícito e específico do sínodo de que os objetos de culto fossem pintados nas paredes. Essa consideração faz com que seja atraente recorrer a uma explicação alternativa que foi sugerido por Edwyn Bevan:

A ênfase [do Cânon 36] está na palavra "paredes" e o explicativo ["ne quod colitur e adoratur in parietibus depingatur"] deriva seu significado da ideia de que uma imagem era algo depreciativo porque a substância sobre a qual ela foi pintada era material e o que era usado para pintá-la eram também material. Parecia essencialmente errado que um objeto de culto religioso fosse pintado em uma parede que era de madeira, tijolo ou pedra - matéria perecível.

A explicação de Bevan sobre o medo que motivou o Canon 36, além de explicar o sentido literal desta proibição específica, recebe apoio de dois apologistas latinos contemporâneos [ao Sínodo] - Arnóbio e Lactâncio. Eles mantiveram exatamente a mesma objeção ao culto às imagens. Evidentemente, essa ideia teve grande aceitação entre os cristãos na véspera da era constantiniana (...) Apologistas cristãos como Arnóbio usaram ironias para rejeitar totalmente o culto às imagens como uma forma inapropriada de culto. Arnóbio escreveu que os pagãos acusam os cristãos de serem ímpios por causa das imagens cultuais, mas os pagãos é que eram culpados de impiedade. Eles cultuavam imagens quando eles deveriam voltarem-se para os céus para irem a seus deuses, assumindo que eles de fato existissem (Contra os Pagãos 6) (...) Lactâncio usou argumentos semelhantes. As imagens eram produtos de homens com os quais se teria vergonha de associar-se, mera terra, fadadas a decair e desmoronar. Por que orar a coisas, pois a imagem de Deus é o homem sensível, não um objeto morto? A real divindade não ter a ver com coisas feitas da matéria (Institutas Divinas 2:2) (...) É exatamente por isso que os membros do Sínodo de Elvira tinham esses argumentos em mente para proibir a introdução de imagens na Igreja. O simples ato de circunscrever a divindade em pinturas nas paredes era um auto evidente sacrilégio (...) O Cânon 36 obriga a adoração anicônica da Igreja (...) Aquele que elaborou o cânon 36 deixou evidência de que os argumentos contra as imagens eram mais do que meras racionalizações usadas apenas contra os pagãos. Em vez disso, em pelo menos uma instância, eles foram usados para impor entre os cristãos a prática culto anicônico. (Grigg, R. (1976). AniconicWorship and the Apologetic Tradition: A Note on Canon 36 of the Council ofElvira. Church History, 45(4), 428-433)

Robert Grigg nos traz a disputa acadêmica a respeito do cânon 36. A hipótese de que o objetivo do cânon era apenas proteger os ícones da profanação não faz parte de nenhuma das duas correntes majoritárias. Ambos os grupos de estudiosos concordam inteiramente que o cânon visava proibir o culto às imagens na Igreja. Eles divergiam a respeito da motivação principal, mas não do conteúdo da proibição. Em apoio a isso, temos o testemunho de dois apologistas cristãos contemporâneos ao sínodo – Arnóbio e Lactâncio.

Arnóbio de Sica (? - 330)

Arnóbio foi um apologista cristão que escreveu provavelmente no final do século III ou início do século IV um livro contra os pagãos. Nesta obra, ele ataca o hábito pagão de cultuar imagens:

Aqui também os defensores das imagens costumam dizer isso - que os antigos sabiam que as imagens não têm natureza divina  e que não há sentido nelas - mas que eles as formavam proveitosa e sabiamente para o bem da multidão ignorante, a qual é maioria nas nações e nos estados, de forma que uma espécie de aparência, como se fosse de divindades, sendo apresentadas a eles, faria com que se livrassem de suas naturezas rudes por medo, e ao suporem que estavam agindo na presença dos deuses,  se afastariam de seus atos ímpios e mudariam suas maneiras, aprendendo a agir como homens.  (...) Por que você não levanta os olhos para o céu e, invocando seus nomes, oferece sacrifícios ao ar livre? Por que você olha para as paredes, madeira e pedra, e não para o lugar onde você acredita que eles estão? Qual é o significado de templos e altares? (Contra os Pagãos 6:24)

Toda argumentação de Arnóbio pressupõe que os cristãos não usavam imagens em seus cultos – que esta era uma prática tola dos pagãos. Ele também considera o uso das imagens supérfluo. Se o pagão acreditava que sua divindade estava no céu, bastaria erguer os olhos ao céu e invocá-lo. Da mesma, se Maria está no céu, bastaria invocá-la, sem fazer uso de qualquer imagem.

A arte cristã primitiva

Os apologistas romanos e orientais costumam citar os desenhos nas catacumbas e na igreja doméstica Dura Europo (meados do séc. III) como evidência do culto aos ícones no período primitivo. Estas imagens geralmente retratavam histórias bíblicas ou representavam outros símbolos cristãos como o peixe. Os desenhos mais antigos são do século III. Robin M. Jensen - especialista em arte cristã antiga e membro do departamento de teologia da Universidade Católica de Notre Dame - afirma:

Estudiosos geralmente concordam que a iconografia cristã surgiu apenas no século III. A ausência de anteriores e inequívocos artefatos cristãos levou muitos estudiosos a caracterizar os cristãos como inicialmente contrários aos ícones em grande parte em deferência às proibições bíblicas de imagens esculpidas e consideram o surgimento da arte pictórica como um desvio da reprovação original da igreja. Este ensaio afirma que os argumentos filosóficos clássicos foram ainda mais influentes na condenação cristã das imagens divinas do que os textos bíblicos e que, quando surgiu, a arte cristã serviu essencialmente para fins didáticos não idólatras e não devocionais. (Fonte)

Jensen nos fornece três importantes informações:

(1)   A iconografia cristã somente surgiu no séc. III, portanto, nada de dizer que remete ao período dos apóstolos. Isto pode parece banal, mas há quem diga que o evangelista Lucas pintou um quadro de Maria. Tratemos da origem dessa lenda em outro artigo;

(2)   Mesmo essa arte cristã inicial e rudimentar surgiu ao largo da aprovação da Igreja. Esta informação é incontestável a luz do testemunho patrístico do período. É por essa razão que as catacumbas fornecem evidência problemática para quem deseja estabelecer qual era a ortodoxia da Igreja. Não sabemos quem eram os autores dessas figuras, portanto, não podemos afirmar se pertenciam a um grupo ortodoxo ou herético. Por isso, quando desejamos estabelecer qual era a ortodoxia da igreja, apelamos aos apologistas e bispos;

(3) Não há evidência de que estes ícones eram objeto de veneração. O objetivo era basicamente instrutivo.

Ernst Kitzinger - reconhecido historiador de arte antiga e medieval- escreveu:

É um fato notável que quando a pintura e a escultura começaram a se infiltrar nas salas de reuniões cristãs e nos cemitérios, eles o fizeram praticamente de forma desapercebida, seja por oponentes ou apologistas do cristianismo - ainda que estes estivessem engajados em disputas apaixonadas sobre ídolos e idolatria. Nenhuma declaração literária anterior ao ano 300 faria alguém suspeitar da existência de quaisquer imagens cristãs além do mais lacónico e hieroglífico dos símbolos. (Kitzinger, Ernst, "The Cult of Images inthe Age before Iconoclasm", Dumbarton Oaks Papers, Vol. 8, (1954), p. 86)

Kitzinger atesta que a arte cristã primitiva surgiu a despeito da ortodoxia cristã do período. Isto explica porque os pais da igreja e os oponentes pagãos pressupunham que não havia nenhum tipo iconografia ligada aos cristãos. Era algo não oficial e não estimulado pela igreja e a julgar pela escassez arqueológica da iconografia cristã primitiva, deve ter sido  extremamente raro. Kitzinger também escreve no mesmo estudo:

Grande parte da arte das catacumbas romanas revela uma tentativa estudada de evitar qualquer suspeita ou encorajamento de práticas idólatras.

Jocelyn Toynbee concorda:

Na arte bidimensional aplicada deste tipo, nunca houve qualquer perigo de idolatria no sentido de adoração real de imagens de culto e pinturas. (Toynbee, Jocelyn (J. M. C.), Review ofFrühchristliche Sarkophage in Bild und Wort by T. Klauser, The Journal of RomanStudies, Vol. 58, Parts 1 and 2 (1968), pp. 294–296)

Ou seja, a arte cristã primitiva não pode ser tomada como evidência do culto aos ícones.

O consenso acadêmico

Muitos católicos romanos e ortodoxos podem argumentar que estamos realizando uma leitura protestante dos pais pré-nicenos. Após a abundante citação de fontes primárias, nos voltaremos às fontes secundárias e demonstraremos com o apoio de estudiosos romanos e ortodoxos que nossa leitura não está amparada apenas no consenso patrístico, mas também no consenso acadêmico:

O já citado Robert Grigg escreve:

É sabido que os porta-vozes da igreja cristã primitiva eram hostis às imagens religiosas (1). Eles consideravam a proibição do Antigo Testamento contra imagens (Êxodo 20:4 e Deuteronômio 5:8) como obrigatório para os cristãos (2). Apologistas cristãos como Clemente de Alexandria e Orígenes citaram a autoridade desta proibição. Eles defenderam o culto anicônico dos cristãos contra os ataques pagãos tomando emprestado [argumentos] de escritores pagãos. Os argumentos que eles tomaram emprestado descreviam o culto das imagens como uma forma de adoração ridiculamente inadequada que degradava os próprios deuses que buscavam honrar, comparando-os com o material de formação moldado por meros artesãos. Em contraste, a proibição do Antigo Testamento geralmente desempenhou um papel menor em suas apologias, mesmo quando sua autoridade era citada [I Apologia 9:1-5 de Justino Mártir, mas também Clemente de Alexandria em Exortação aos Pagãos 4:44-47, que anteciparia a maioria dos argumentos de Arnóbio em Contra os Pagãos 6:24].  (Grigg, R. (1976). AniconicWorship and the Apologetic Tradition: A Note on Canon 36 of the Council ofElvira. Church History, 45(4), 428-433)

Robert Grigg cita vários estudos que atestam a hostilidade dos primeiros cristãos às imagens religiosas na nota de rodapé 1:

(1) Os estudos indispensáveis dessa hostilidade são Charly Clerc, Les Theories relative au culte des smages ches les auteurs grecs du lie siecle apres J.-C. (Paris, 1915), pp. 125-168; Hugo Koch, Die altchristliche Bilderfrage nach den literarischen Quellez, Forschungen zur Religion und Literature des Alten und Neuen Testaments, no. 27 (Gottingen, 1917); Walter Elliger, Die Stellung der alten Christen su den Bildern in den ersten vier Jahrhunderten, Studien iiber christliche Denkmiler, no. 20 (Leipzig, 1930); N. H. Baynes, "Idolatry and the Early Church," Byzantine Studies and Other Essays (London,1955), pp. 116-143; Edwyn Bevan, Holy Images (London, 1940), pp. 84-112; and T. Klauser, "Die Aeusserungen der alten Kirche zur Kunst," Atti del VI congresso internazionale di archeologia cristiana, Ravenna 2-30S settembre 1962 (Rome, 1965), pp. 223-242.

São cinco estudos, dentre os quais há autores católicos romanos e ortodoxos. O especialista em história antiga David M. Gwyn escreve:

Os cristãos mantiveram essas convicções contra o uso de imagens no culto nos primeiros 300 anos. Um grande concílio da igreja, reunido em Elvira na Espanha no ano de 305, expressou sua reprovação conta algumas igrejas que apenas mantinham pinturas nas paredes. O Cânon 36 do Conselho de Elvira declara: “As imagens não devem ser colocadas nas igrejas, de modo que elas não se tornem objetos de culto e adoração.” Tenha em mente que até esta data tardia eles estavam se opondo apenas à presença da arte na Igreja; por exemplo, eles se oporiam ao nosso vitral, dizendo que ele tinha o potencial de se tornar idólatra. Não havia nenhum indício do uso imagens como “auxiliadores para adoração” ou “pontos de oração”. (David M. Gwynn, From Iconoclasm toArianism: The Construction of Christian Tradition in the Iconoclast Controversy[Greek, Roman, and Byzantine Studies 47 (2007) 225–251], p. 227)

Gwyn atesta que os primeiros cristãos não eram apenas contrários ao culto às esculturas e ícones, mas até mesmo ao uso da arte na igreja, seja para fins decorativos ou instrutivos. O renomado teólogo católico e autor do mais tradicional manual de teologia católica Ludwig Ott escreveu:

Devido à influência da proibição de imagens no Antigo Testamento, a veneração cristã de imagens só se desenvolveu após a vitória da Igreja sobre o paganismo. O Sínodo de Elvira (cerca de 306) ainda proibia representações figurativas nas casas de Deus (Can. 36). (Ludwig Ott, Fundamentals of Catholic Dogma [Rockford, Illinois: Tan Books and Publishers, Inc., 1974], p. 320)

O também católico romano Joseph Kelly atesta a oposição dos primeiros cristãos contra o culto às imagens (Fonte). A Enciclopédia Católica afirma:

Também explica o fato de que nas primeiras eras do cristianismo, quando os convertidos do paganismo eram tão numerosos, e a impressão de adoração de ídolos era tão nova, a Igreja achou aconselhável não permitir o desenvolvimento desse culto de imagens; mas mais tarde, quando esse perigo desapareceu, quando as tradições cristãs e o instinto cristão ganharam força, o culto se desenvolveu mais livremente. (Fonte)

A Enciclopédia também diz:

A origem do movimento contra a veneração das imagens tem sido muito discutida. Foi representado como um efeito da influência muçulmana (...) Por outro lado, não é provável que a principal causa do zelo dos imperadores contra as imagens fosse o exemplo de seu amargo inimigo, o chefe da religião rival. Uma origem mais provável será encontrada na oposição a imagens que existiu por algum tempo entre os cristãos. Parece ter havido uma antipatia por imagens sagradas, uma suspeita de que seu uso era ou poderia se tornar idólatra entre certos cristãos por muitos séculos antes do início da perseguição aos iconoclastas.

Embora suavize bastante a oposição às imagens e aos ícones nos círculos cristãos, a Enciclopédia Católica admite a existência desta antiga oposição:

Muito antes do surto do século VIII, havia casos isolados de pessoas que temiam o crescente culto de imagens e viam nele o risco de um retorno à antiga idolatria. Precisamos dificilmente citar neste contexto as expressões  dos padres apostólicos contra os ídolos (Atenágoras "Apelo pelos cristãos" XV-XVI; Teófilo "A Autólico" II; Minucio Félix "Otávio" XXVII; Arnobio "Contra os Gentios"; Tertuliano "Da Idolatria", I; Cipriano "De idolorum vanitate"), no qual eles denunciam não apenas o culto, mas até mesmo a fabricação e posse de tais imagens. Estes textos referem-se aos ídolos, isto é, imagens feitas para serem adoradas, mas o cânon XXXVI do Sínodo de Elvira é importante. Este foi um sínodo geral da Igreja da Espanha realizado aparentemente por volta do ano 300 em uma cidade perto de Granada (Hefele-Leclercq, "Hist. des Conc. ", I, 212-64).  Ele criou muitas leis severas contra os cristãos que recaíram na idolatria, heresia ou pecados contra o Sexto Mandamento. O cânon diz: "É ordenado (Placuit) que as pinturas não estejam nas igrejas, de modo que aquilo que é cultuado e adorado não seja pintado nas paredes" (ibid., P. 240). O significado do cânon foi muito discutido. De Rossi e Hefele pensaram que era apenas uma precaução contra possíveis profanações de pagãos que pudessem entrar em uma igreja (ibid). Dorn Leclercq ("Manuel d'archeologie", II, 140) e J. Turmel ("Rev. du clerge franc." 1906, XLV, 508) veem nele uma lei contra as imagens por princípio. Em qualquer caso, o cânon pode ter produzido um efeito ligeiro mesmo na Espanha, onde havia imagens sagradas no século IV, como em outros países. (Fonte)

O proeminente teólogo, historiador e bispo católico ortodoxo Kallistos Ware escreveu:

Foi somente em passos lentos que o uso de ícones se tornou estabelecido na Igreja. Reagindo contra o seu ambiente pagão, os primeiros cristãos estavam ansiosos por enfatizar acima de tudo o caráter exclusivamente espiritual do seu culto, e procuraram evitar qualquer coisa que pudesse ter sabor de idolatria: "Deus é Espírito, e aqueles que O adoram devem adorá-Lo em espírito e verdade" (João 4:24). A arte cristã primitiva - como encontrada, por exemplo, nas catacumbas romanas - mostra uma certa relutância em retratar Cristo diretamente, e Ele era na maioria das vezes representado de forma simbólica, como o Bom Pastor, ou como Orfeu com a sua lira, ou afins. Com a conversão de Constantino e o progressivo desaparecimento do paganismo, a Igreja tornou-se menos hesitante no uso da arte, e por volta do ano 400 dC tornou-se uma prática aceite representar nosso Senhor não somente através de símbolos, mas diretamente. (Extraído de “Christian Theology in the East,” in A History of Christian Doctrine, editado por Hubert Cunliffe-Jones [Philadelphia: Fortress Press, 1980], pp. 191-92

O também proeminente erudito patrístico católico ortodoxo John McGuckin escreveu:

O cristianismo, no período primitivo, parece ter compartilhado uma aversão comum ao judaísmo de pintar imagens em contextos religiosos (apesar de não absoluta como é demonstrado pela altamente decorada sinagoga do século II Dura Europos). O mundo helenístico era tão profundamente imerso na arte como um meio religioso que tanto a sinagoga como a igreja tornaram isto parte de sua apologia contra o falso culto, e os pensadores cristãos defenderam que apenas a imitação intelectual, espiritual e moral eram representações válidas de Deus na terra. Orígenes de Alexandria no terceiro século permanece imensamente hostil a ideia de arte figurativa, e escritores como Eusébio de Cesareia (ele mesmo um origenista) ou Epifânio de Salamina no quarto século eram também explicitamente hostis a ideia de arte retratando Cristo em qualquer maneira no culto da igreja. (Fonte)

O renomado estudioso ortodoxo oriental  - George Florovsky – identifica Orígenes como inspirador do movimento iconoclasta (Fonte). O renomado historiador protestante Philip Schaff afirma:

"A igreja primitiva", diz até mesmo um moderno historiador católico romano: "não tinha imagens, de Cristo, uma vez que a maioria dos cristãos da época ainda aderia ao mandamento de Moisés (Êxodo 4: 4). Tanto aos cristãos gentios quanto aos judeus proibia todo uso de imagens, para os quais a exibição e a veneração de imagens seriam obviamente uma abominação e para os pagãos recém-convertidos poderia ser uma tentação a recair na idolatria. Além disso, a igreja foi obrigada para sua própria honra se abster de imagens, particularmente de qualquer representação do Senhor, para que não fosse considerada pelos incrédulos meramente como um novo tipo de paganismo e adoração de criaturas” (Hefele, 1. c. p. 254). As primeiras representações de Cristo são de origem herética e pagã. A seita gnóstica dos carpocratianos adorava imagens coroadas de Cristo, junto com imagens de Pitágoras, Platão, Aristóteles e outros sábios e afirmava que Pilatos havia feito um retrato de Cristo (Contra as Heresias 1:25:6). No mesmo espírito de adoração de heróis panteístas o imperador Alexandre Severo (222-235 AD) instalou em sua capela doméstica para adoração as imagens de Abraão, Orfeu, Apolônio e Cristo. (Fonte)

Notem que Schaff cita o historiador católico romano Helefe. O artigo católico a qual respondemos citou Helefe como autoridade na questão da interpretação do cânon 36 de Elvira, mas parece não seguir seus posicionamentos quanto ao consenso de que os cristãos primitivos não cultuavam imagens. Larry Hurtado – reconhecido erudito neotestamentário e especialista em cristianismo primitivo – escreveu:

Os cristãos primitivos herdaram da tradição judaica da época a proibição do culto às imagens. Por esse motivo, entre outros, seu culto pareceu estranho a seus contemporâneos do mundo romano (...) A mais antiga arte cristã que chegou até nós data do terceiro século, ou talvez de fins do segundo século, e traz representações de Jesus. Contudo, não parece que funcionasse da mesma forma que as imagens cultuais dos deuses no contexto religioso geral. Em outras palavras, as imagens cristãs primitivas não parecem ter servido de objeto de culto. Essa ausência de imagens cultuais no judaísmo e no cristianismo, bem como sua recusa em prestar veneração às imagens de outros deuses, foi uma das principais razões pelas quais seus adeptos foram acusados de “ateísmo”. O uso generalizado de imagens cultuais na religião da era romana fez que judeus e cristãos, inclusive no templo de Jerusalém, se posicionassem, por uma questão de consciência, contra essa característica tão relevante daquele contexto religioso. (Fonte)


Enfim, há um consenso patrístico e acadêmico quanto à prática da veneração de imagens no período primitivo. Dessa forma, a alegação de que o ensino atual das igrejas católicas romana e oriental é aquilo que a igreja cristã sempre praticou é totalmente falsa.

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