sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A Veneração de Relíquias e a Evidência Histórica

O concílio de Trento assim decretou sobre as relíquias:

Devem ser venerados pelos fiéis os santos corpos dos santos mártires e dos outros que vivem com Cristo, corpos que foram membros vivos do mesmo Cristo e templo do Espírito Santo, que por ele devem ser ressuscitados para a vida eterna e glorificados e pelos quais Deus concede aos homens muitos benefícios. Por isso, os que afirmam que às relíquias dos santos não se deve veneração nem honra, ou que inutilmente os fiéis as honram como também a outros monumentos sagrados, e que em vão frequentam as memórias dos Santos para obter o seu auxílio, todos devem ser absolutamente condenados como já outrora a Igreja os condenou e também agora os condena. (DH 1822)

A questão é se tal doutrina foi crida pela Igreja desde o início ou seria uma inovação surgida séculos depois do período apostólico? O católico romano acredita que a veneração a relíquia de um santo é uma forma de obter seu favor. Logo, a veneração de relíquias está ligada a intercessão dos santos. Como a prática de orar ao santos não é encontrada nos pais pré-nicenos (aqui), é provável que a veneração de relíquias também não. Muitos acreditam que através da veneração à relíquia o favor do santo seria obtido mais rápido ou até mesmo não seria caso não fosse venerado. Isso obviamente incentivou um sem número de falsificações e um vultoso comércio. Relíquias podem ser os restos mortais do santo, seus pertences ou até mesmo objetos em contato com seu túmulo. O primeiro mártir cristão foi Estevão. Não há nenhum registro bíblico e ainda é de todo improvável que os restos ou objetos de Estevão tenham sido guardados para culto ou utilizados como meio de intercessão. Outro mártir famoso e muito antigo é Inácio de Antioquia. Seu martírio ocorreu por volta do ano 107. A carta de Inácio aos romanos sugere que ele desconhecia a prática de veneração das relíquias:

Escrevo a todas as Igrejas e anuncio a todos que, de boa vontade, morro por Deus, caso vós não me impeçais de o fazer. Eu vos suplico que não tenhais benevolência inoportuna por mim. Deixai que eu seja pasto das feras, por meio das quais me é concedido alcançar a Deus. Sou trigo de Deus, e serei moído pelos dentes das feras, para que me apresente como trigo puro de Cristo. Ao contrário, acariciai as feras, para que se tornem minha sepultura, e não deixem nada do meu corpo, para que, depois de morto, eu não pese a ninguém. Então eu serei verdadeiramente discípulo de Jesus Cristo, quando o mundo não vir mais o meu corpo. (Aos Romanos 4)

Inácio não foi o primeiro mártir e deveria ter conhecimento de vários outros cristãos devorados pelas feras. O ponto é que ele não esperava que as feras deixassem qualquer vestígio do seu corpo. Ele desejava que nada sobrasse e que as próprias feras fossem sua sepultura. Ele pressupõe que caso algo sobrasse, os seus irmãos iriam enterrá-lo numa sepultura. Todo o contexto é incompatível com a ideia de que os cristãos guardavam os restos mortais para veneração ou pedido de intercessão. Ou não restaria nada ou ele seria sepultado. O relato do martírio de Inácio diz:

Pois apenas as porções mais duras de seus santos vestígios foram deixadas, que foram transportadas para Antioquia e envoltas em linho, como um tesouro inestimável deixado para a santa Igreja pela graça que estava no mártir. (Cap. 6)

Os restos mortais de Inácio foram envoltos em linho porque esta era a prática de um sepultamento. O corpo de Cristo também foi envolto em linho (João 19:40). O testemunho patrístico vai na mesma direção – Tertuliano relata a mulher que sonhou com um “pano de linho” e morreu cinco dias depois (Spetaculis, cap. 26). Dionísio o grande relata em 260 d.c um homem cuja ocupação era "vestir e enterrar os corpos daqueles mártires aperfeiçoados e abençoados" (Epístolas e Fragmentos, Epístola 1, parágrafo 3). Os mártires eram vestidos em linho e enterrados e a roupa de Inácio era a linho no qual seus restos estavam embrulhados. Confirmando isso, Jerônimo testifica que os restos de Inácio foram transportados para Antioquia e enterrados:

Quando ele foi condenado aos animais selvagens e com zelo pelo martírio ouviu os leões rugir, ele disse: "Eu sou o trigo de Cristo. Estou morto pelos dentes das bestas selvagens para que eu possa ser o pão do mundo". Ele foi morto no décimo primeiro ano de Trajano e os restos de seu corpo estão em Antioquia, fora do portão Daphnitic no cemitério. (Vidas de homens ilustres, cap.16)

Mesmo no século IV, quando o culto às relíquias começava a despontar na Igreja, homens como Antônio pareciam não endossar a prática. Atanásio escreveu:

Os egípcios costumavam honrar com ritos funerários e envolver em linho os corpos dos homens bons e especialmente dos santos mártires. Eles não os enterravam no chão, mas os colocavam em sofás os mantinham em suas casas, pensando nisso que honravam os falecidos. Antônio muitas vezes instou os bispos a darem mandamento às pessoas sobre esse assunto. Da igual forma, ele ensinava os leigos e repreendia as mulheres dizendo: "que isso não era lícito nem santo, pois os corpos dos patriarcas e dos profetas estão até agora preservados em túmulos, e o próprio corpo do Senhor foi posto em um túmulo, e uma pedra foi colocada sobre ele e o escondeu até Ele se levantou no terceiro dia". E assim dizendo, ele mostrou que aquele que não enterrava os cadáveres dos mortos após a morte transgredia a lei, embora fossem sagrados. O que seria mais sagrado do que o corpo do Senhor? Então muitos o ouviram e depois enterraram os mortos no chão e agradeceram ao Senhor porque eles tinham sido ensinados com justiça. (Vida de Antônio, parágrafo 90)

A prática de guardar os restos mortais num relicário não contava com a aprovação de Antônio. A evidência mais antiga oferecida pelos apologistas católicos é o martírio de Policarpo que ocorreu por volta do ano 157:

Vendo a rixa suscitada pelos judeus, o centurião colocou o corpo no meio e o fez queimar, como era de costume. Desse modo, pudemos mais tarde recolher seus ossos, mais preciosos do que pedras preciosas e mais valiosos do que o ouro, para colocá-los em lugar conveniente. Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá reunir-nos, na alegria e contentamento, para celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no futuro. (Martírio de Policarpo, cap. 18)

A datação desta obra é objeto e controvérsia. Alguns estudiosos como Candida Moss situam a obra no século III:

Da mesma forma, o autor descreve práticas devocionais religiosas que não tomaram forma até o terceiro século. Na conclusão da obra, depois que o corpo de Policarpo é queimado pela segunda vez, os cristãos roubam os fragmentos de ossos e cinzas que permaneceram e os depositam em um local apropriado para a guarda (...) Além do martírio de Policarpo, a prática de colecionar e venerar os corpos de mártires é completamente sem paralelo no segundo século. Nossas próximas primeiras referências a relíquias são do século III e são muito menos desenvolvidas. Eles podem até não ser referências firmes a relíquias, mas apenas referências à distribuição de memórias. (Fonte)

Esta autora acredita que o relato é do terceiro século porque a prática de guardar os restos mortais não encontra nenhum paralelo no segundo século (vide exemplo de Inácio). E mesmo no século III, as referências às relíquias são pouco conclusivas. Além disso, é nítido que o relato do martírio foi objeto de embelezamento, estando mais no campo da ficção histórica do que relato acurado. De todo o modo, católicos costumam tirar conclusões abusivas desse relato. É comum ouvir dizer que os restos de Policarpo foram guardados num relicário e que anualmente eles seriam expostos para veneração e pedidos de intercessão.

No entanto, não há nada no texto que diga isso. O texto não diz qual o lugar apropriado em que os restos foram guardados. Mas, analisando o contexto histórico [o caso de Inácio (séc. II), o testemunho de Dionísio a respeito dos homens que enterravam os mártires (séc. III) e as exortações de Antônio (séc. IV)] é mais provável que Inácio tenha sido enterrado como era a prática dos cristãos de seu tempo. O texto diz que a Igreja se reunia anualmente para celebrar o aniversário de seu martírio de forma a encorajar os demais cristãos. Não há nada sobre exposição das relíquias de Policarpo nem sobre orações realizadas a ele. É inegável que há especial carinho e cuidado com os restos mortais do mártir, mas há diferença substancial entre isso e a prática católica romana de veneração das relíquias. Dado que neste período os cristãos não se reuniam em templos e que os aniversários dos martírios eram comemorados nas tumbas, o mais provável é que as relíquias dos cristãos ficassem enterradas e não expostas em algum relicário.

Ainda que o martírio de Policarpo fosse um exemplo fidedigno da veneração de relíquias, o apologista católico precisa oferecer evidências adicionais. Porque deveríamos acreditar tal prática remonta aos apóstolos? Porque deveríamos acreditar que tal prática era generalizada na Igreja Antiga? A luz de evidências mais antigas como o martírio de Inácio, devemos acreditar que tal prática nem seria generalizada e nem tão antiga.

No séc. IV iniciou-se o processo de desenterrar as relíquias dos mártires para que fossem transferidas a alguma Igreja. O primeiro caso conhecido de ossos de um mártir sendo desenterrados e movido para outro local para a veneração é o transporte dos ossos de São Bábilas de Antioquia por César Constantino Gaio em 354 d.C. Dois anos depois, o Imperador Constâncio II transportou os ossos de Timóteo em 356 d.C e os ossos de André e Lucas em 358 d.C. Uma das primeiras referências a um cristão que recolhe as relíquias dos mártir para a veneração pessoal é uma carta de Basílio situada em 373 d.C: "Se você enviar as relíquias dos mártires para casa, você fará bem" (Carta 155). É nesse período (2ª metade do século IV) que a prática de guardar relíquias para veneração começa a se disseminar (não sem oposição).

Já não fosse trágico a prática em si, é amplamente reconhecido que a maior parte das relíquias expostas em Igrejas Católicas são apenas falsificações:

No entanto, continua a ser verdade que muitas das relíquias mais antigas, devidamente exibidas para a veneração nos santuários da cristandade ou mesmo em Roma, devem agora ser declaradas como certamente falsas ou suspeitas. Para tomar um exemplo da última classe, as tábuas do berço (Praesaepe) - um nome que há mais de mil anos foi associado à basílica de Santa Maria Maggiore - só pode ser considerado como sendo de duvidoso. Em sua monografia "Le memorie Liberiane dell 'Infanzia di N. S. Gesù Cristo" (Roma, 1894), Mons. Cozza Luzi admite francamente que todas as evidências positivas para a autenticidade das relíquias do berço, etc., estão faltando antes do século XI. Curiosamente, uma inscrição em unciais gregos do século VIII é encontrada em uma das placas, mas a inscrição não tem nada a ver com o berço, sendo aparentemente relacionada com alguma transação comercial. É difícil explicar sua presença na suposição de que a relíquia é autêntica. Dificuldades semelhantes podem ser encorajadas contra a suposta "coluna da flagelação" venerada em Roma na Igreja de Santa Prassede e contra muitas outras relíquias famosas. (Enciclopédia Católica)

Multidões e multidões de católicos veneram relíquias falsas sob a égide da Igreja Romana. Esse o resultado de quando abandonamos a intercessão certa e infalível de Cristo para a intercessão de personagens que em alguns casos sequer se sabe se existiram.

8 comentários:

  1. Você cita o cap 6 da carta de Inácio aos Romanos onde o próprio Inácio que já havia morrido relata o seu martírio ? Como um morto relata o seu próprio martírio ? Ou eu entendi errado ?

    Quem é esse tal Antônio que Atanásio citou ? Obrigado

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    1. O cap 6 é da obra "Matírio de Inácio". Anteriormente eu citei a carta de Inácio aos Romanos. São obras distantes. Obviamente o martírio foi escrito por uma fonte que não era Inácio.

      Antônio foi um famoso monge do século IV. Veja mais informações sobre ele aqui:

      https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%A3o_do_Deserto

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  2. Olá, meu amigo. Sou estudante do Tomismo e gostaria muito de poder ter contato intelectual com você. Me mande um e-mail, por favor.

    tiagog.silva.ts@gmail.com

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  3. Bem que você poderia fazer um texto contestando os dogmas da Igreja Ortodoxa.

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    1. Por tabela, já há nesse blog muita coisa contestando a Igreja Ortodoxa, uma vez que ela comunga de alguns dos dogmas do romanismo. Mais para frente pretendo escrever algo mais especifico, mas por enquanto tenho uma lista de artigos em mente que preciso seguir. Infelizmente tem me faltado tempo para dedicar a este blog.

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  4. os apologistas postaram essa semana a seguinte frase de Agostinho:

    "(...) Certa mulher perdeu em seu regaço seu filho enfermo, catecúmeno, de peito ainda. Quando ela percebeu que morrera e estava irremediavelmente perdido, ela começou a chorar por ele, mais como cristã do que como mãe. Não desejava a seu filho outra vida senão a do mundo futuro, e chorava porque ele foi levado e perdido... Cheia de confiança, tomou em suas mãos o menino morto e correu à memória do bem-aventurado mártir Estevão, e começou a pedir de volta a vida de seu filho com estas palavras: «Santo Mártir, você vê que não tenho nenhum consolo, pois não posso dizer que meu filho tenha precedido, pois você sabe que ele pereceu. Você sabe bem porque choro. Devolva-me meu filho para tê-lo na presença dAquele que coroou a ti.» Suplicando estas e outras coisas parecidas, de certo modo mais exigindo do que pedindo, com suas lágrimas, como disse, o filho reviveu.(...)" SERMÃO 324

    são verdadeiras mesmo?

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    1. Quando você precisa usar o testemunho de Agostinho para provar o que a Igreja praticava nos quatro século anteriores a ele, é sinal de que você não dispõe de provas robustas em favor do que alega. A citação é sim verdadeira. Eu tratei desse assunto em outro artigo:

      http://respostascristas.blogspot.com.br/search?q=AGOSTINHO+E+ORA%C3%87%C3%83O+AOS+SANTOS

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