sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

O Papado e o Conciliarismo Medieval



Atualmente, há um virtual consenso entre historiadores católicos romanos, ortodoxos e protestantes a respeito da ausência do papado na Igreja Primitiva (aqui  e aqui). Além disso, historiadores católicos de renome como Klaus Schatz e Yves Congar afirmam que a igreja oriental não aceitaram o primado jurídico do bispo de Roma (aqui). Dessa forma, advogo a posição de que só faz sentido se referir ao bispo de Roma como um papa após o grande cisma de 1054. Obviamente estou aqui tomando o ponto de vista católico romano segundo o qual o papa é o chefe supremo de toda a Igreja de Cristo. Como protestante eu não acredito nisso, pois não concedo que a Igreja de Cristo esteja circunscrita à igreja romana. Antes do cisma, a Igreja de Roma estava em comunhão com a Igreja Oriental (uma comunhão bem precária e cheia de interrupções). Se a Igreja Oriental era considerada parte da Igreja cristã por Roma e ainda assim não aceitava o primado jurídico do bispo romano, não há que se falar em papado nesse período.

Todavia, o foco desse artigo é o período pós-cisma da igreja ocidental. Alguém pouco familiarizado com a história da igreja poderia pensar que o papa reinava soberanamente. Muito pelo contrário, mesmo em tal época o papado sofreria severos questionamentos teológicos. Houve épocas em que o conciliarismo foi adotado por diversos teólogos da Igreja acidental. O ápice foi a solução conciliarista empregada para resolver o chamado “grande cisma do ocidente” (aqui). Veremos o que o historiador católico romano Joseph Kelly escreveu na obra “The Ecumenical Councils of the Catholic Church: A History”. A maior parte das citações podem ser verificadas nesta cópia online aqui:

Os códigos canônicos sempre permitiram todo tipo de possibilidade, não importando quão aparentemente minuciosa, absurda ou improvável fosse. No início do século XIII, os juristas canônicos haviam especulado sobre o que fazer se um papa caísse em heresia. De forma lenta, mas verdadeira, alguns juristas canônicos construíram a visão de que o papa não tem um domínio absoluto sobre a igreja porque o poder da igreja é maior que o dele. Eles especularam que o poder supremo da igreja residia no concílio ecumênico. Estas poucas frases resumem décadas de desenvolvimentos muito complexos. A superioridade do concílio sobre o papa é a teoria conciliar. A aplicação prática é o conciliarismo. (p. 107)

O conciliarismo foi uma visão popular na igreja ocidental:

Empurrados pelos governantes e a nobreza [durante o Grande Cisma] em 1409, os cardeais de ambos os papas os abandonaram e se encontraram na cidade italiana de Pisa, onde proclamaram a necessidade de ir acima das cabeças dos papas para um concílio geral, citando as consequências do cisma por esta clara violação do direito canônico. Com algumas grandes exceções (Alemanha, os Reinos espanhóis), a Europa católica os apoiou (...) Muitos na Europa católica, tanto clérigos como leigos, acreditavam que o papado nunca se reformaria e que apenas um concílio poderia realmente reformar a igreja (...) A crença nos poderes curativos de um concílio reformador nunca morreu até a Reforma (...) As tradições conciliares correram fortemente no norte da Europa. (p. 107, 121, 123)

Concílios medievais reivindicaram autoridade sobre o papa:

Este [o ensinamento do Concílio Ecumênico de Constança] é o conciliarismo no seu nível mais básico. O Concílio afirma que se encontra sob a orientação do Espírito Santo, que representa a Igreja Católica e, portanto, tem autoridade suprema na igreja, e que sua autoridade deriva de Cristo e até mesmo os papas devem obedecer ao Concílio (...) Mas nenhum estudioso duvida que Constança quis dizer o que disse, porque em 1417, antes de escolher um novo papa, o concílio aprovou um segundo grandioso decreto que afirmava que o novo papa deveria chamar outro concílio cinco anos depois de Constança acabar, depois outro sete anos depois, e depois um concílio a cada dez anos para que, em vigor, houvesse um concílio em cada pontificado. Os líderes de Constança realmente desejavam mudar a estrutura governamental da igreja (...) Muitos católicos, incluindo governantes e bispos, favoreceram o conciliarismo, e Martinho [o papa Martinhho V] foi obrigado a obedecer ao decreto. (p. 111, 114)

Kelly também discute o conciliarismo do Concílio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (p. 114-119). Ele observa que o cardeal escolhido pelo papa Eugenio IV para abrir o concílio e presidi-lo era ele próprio um conciliarista (p. 114). Até o Conselho de Trento, o "fantasma do conciliarismo" ainda estava na mente da liderança católica, e temia-se o reavivamento do conciliarismo em Trento quando o Papa Pio IV parecia estar próximo da morte (p.145).

Quão significativo é o conciliarismo medieval? Por um lado, mina o apelo popular católico a uma suposta unidade pré-Reforma. A igreja católica romana pré-reforma tinha um nível de divergência muito superior àquela que a visão romantizada dos católicos modernos comporta. Em segundo lugar, o apoio conciliar e papal ao conciliarismo é problemático para as reivindicações de autoridade do catolicismo romano. Em terceiro lugar, a dúvida generalizada sobre algo tão simples e fundamental como a autoridade papal, tão tarde quanto a era medieval pós-patrística e ainda no Ocidente, demonstra quão frágeis são as bases históricas do papado.

A resistência dentro da igreja ocidental à supremacia papal persistiria após a reforma. É exemplo notável o galicanismo (aqui). Esse era o movimento que pregava a independência da Igreja francesa. Eles também faziam uso do conciliarismo. O historiador protestante George Salmon escreveu sobre o apologista católico e proponente do galicanismo Bossuet:

Bossuet era, no seu tempo, o terror dos sectários protestantes, o mais confiável campeão de sua Igreja. Mas ele lutou por ela não só contra os protestantes, mas contra a teoria da infalibilidade, então chamada Ultramontana, porque se manteve do outro lado das montanhas, mas rejeitado pela Igreja Galicana. Em outra palestra, devo falar mais sobre os princípios do galicanismo e da sua história. Basta mencionar que uma das suas doutrinas fundamentais era que as decisões doutrinárias do Papa não deveriam ser consideradas como definitivas, que poderiam ser revisadas, corrigidas ou mesmo rejeitadas por um concílio geral ou pela Igreja em geral. O tratado formal de Bossuet em prova desse princípio era um armazém de argumentos, em grande parte inspirado nas controvérsias dos anos de 1869 a 1870. Todavia, este princípio foi condenado com um anátema no Concílio Vaticano do último ano (...) A ironia dos eventos poderia dar uma refutação mais singular do que essa? Um homem escreveu um livro para provar que o protestantismo é falso porque os protestantes discordam entre si, e o romanismo é verdadeiro porque suas doutrinas são sempre as mesmas e seus filhos nunca discordam. Mas, em alguns anos ele próprio é classificado com um adorador do diabo pelas autoridades autorizadas da religião que ele defende, e cujas doutrinas ele supunha serem suportadas pelos demais. Podemos dizer que os campeões romanistas do presente podem não ser os melhores. O Cardeal Manning pode estar seguro de que, à medida que o desenvolvimento da doutrina romana prosseguir, ele não pode ser deixado de fora dos limites da ortodoxia e ser classificado entre os adoradores do diabo pelos campeões romanistas do próximo século? (Fonte)

Salmon traz um argumento importante. Ele parte do exemplo de Bossuet para questionar o fervor com que muitos católicos defendem sua fé. A tradição da igreja romana não é fixa. Ninguém sabe ao certo o que a igreja estará ensinando no futuro. Alguém que hoje é considerado ortodoxo poderá ser visto como um herege pelos padrões futuros. Eu fiz um argumento semelhante quando discuti Tomás de Aquino e Imaculada Conceição. Concedo que a maioria dos católicos não o tem como herege, mas deveriam se fossem consistentes com seus próprios critérios. Os apologistas romanos afirmam que não havia problema em negar a imaculada conceição, já que a Igreja ainda não havia se pronunciado em definitivo. O problema dessa defesa é que mina a retórica de que a Igreja romana apenas dogmatiza aquilo que “sempre foi a fé da igreja”. Gerações e gerações de cristãos tiveram crenças que mais tarde seriam objeto de anátemas. Imagine aplicar o mesmo raciocínio à igreja primitiva. Uma vez que a divindade de Cristo só foi definitivamente estabelecida no Concílio de Niceia, não haveria problema em negar a doutrina antes do concílio. Nenhum pai da igreja da igreja desculparia a heresia dessa forma. 

A obra de Kelly (aqui) é uma poderosa fonte contra as reivindicações da apologética católica. Ele expressa o consenso dos historiadores modernos que contradiz a ideia de que a igreja primitiva era católica romana. Ele se refere a outros estudiosos católicos que o ajudaram no processo de pesquisa e edição do livro (p. 11). Ele contrasta o atual papel dos papas nos concílios ecumênicos com seu envolvimento no passado (p. 2, 5), observando, por exemplo, que "o segundo conselho ecumênico de Constantinopla chamado em 381, reuniu-se, decidiu as questões e encerrou-se sem informar o papa Damaso I (366-384) de que um concílio estava acontecendo" (p. 5). Ele contrasta a visão do Cardeal Newman sobre o desenvolvimento doutrinal com as crenças populares sobre esse assunto em gerações anteriores (p.3). Ele se refere a uma visão mais espiritual da presença eucarística de Jesus nos primeiros teólogos, contrastando com os pontos de vista de teólogos posteriores que tinham "uma compreensão mais material da presença real" (p. 5). Ele se refere à rejeição do papado durante a era patrística no norte da África (p. 16, 31). Mesmo alguns bispos da Itália no século VI "entraram em cisma e não se reconciliaram com Roma até o século VII" (p.54). Ele interpreta o cânon 6 de Niceia como uma referência à autoridade regional de Roma no ocidente (p. 23-24). Referindo-se ao tempo de Niceia, Kelly escreve: "Então, como agora com as igrejas ortodoxas, os bispos orientais não reconheceram nenhuma autoridade jurisdicional romana sobre suas igrejas" (p. 24). Ele se refere à oposição dos primeiros cristãos à veneração de imagens (p. 61). Em suma, quando lemos os autores católicos modernos, percebemos quão vazio é o discurso de que a Igreja Romana apenas manteve aquilo que a igreja sempre ensinou. 

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O Desenvolvimento da Doutrina vs A Tradição Católica Romana


Quem deseja entender o catolicismo moderno precisa conhecer a Teoria do Desenvolvimento da Doutrina de Newman. Recomendo que leiam o artigo sobre o novo conceito de tradição adotado por Roma (aqui). Uma das maiores (talvez a maior mudança) nos ensinamentos do magistério romano foi seu novo conceito de Tradição. Roma historicamente ensinou que seus dogmas sempre foram cridos pela Igreja. A igreja romana ensinava que suas doutrinas atendiam aos critérios da regra de Vicente de Lérins (crido por todos, sempre e em todos os lugares). Essa visão foi articulada pelos Concílios de Trento e Vaticano I.

Ocorre que tal reivindicação é indefensável a luz da história da Igreja. É reconhecido pelos historiadores católicos que doutrinas como Assunção de Maria e Papado eram desconhecidas nos primeiros séculos. Como conciliar a falta de evidências históricas para tais doutrinas e o atual ensinamento da Igreja romana? A resposta é que a fé cristã não teria sido completamente compreendida pelos primeiros cristãos ou até mesmo pelos apóstolos. Só depois de muita reflexão, combates a heresias e desenvolvimentos é os dogmas católicos vieram a luz. Por isso, os proponentes do desenvolvimento não têm problema em admitir que os pais da igreja primitiva não criam ou até mesmo contradiziam muito do que mais tarde seria definido como dogma (a imaculada conceição é exemplo por excelência). Newman reconhece:

Enquanto os Apóstolos estavam na terra, não havia bispo ou papa. (Ensaio sobre o Desenvolvimento da DoutrinaCristã, Cap. 4, Seção 3)

A rigor, não há prazo para o “desenvolvimento” acontecer. Pode durar séculos. A implicação é que no futuro a igreja pode definir como dogma crenças que os católicos atuais desconhecem. A teoria do desenvolvimento tem um problema fatal. Ela, em si mesma, é um desvio da tradição católica romana. É irônico como uma teoria que deseja validar a tradição seja contrária a própria tradição. O Concílio Vaticano I afirmou:

1822. Ensinamos, pois, e declaramos, segundo o testemunho do Evangelho, que Jesus Cristo prometeu e conferiu imediata e diretamente o primado de jurisdição sobre toda a Igreja ao Apóstolo S. Pedro (...) A esta doutrina tão clara das Sagradas Escrituras, tal como sempre foi entendida pela Igreja Católica, opõe-se abertamente as sentenças perversas daqueles que, desnaturando a forma de governo estabelecida na Igreja por Cristo Nosso Senhor, negam que só Pedro foi agraciado com o verdadeiro e próprio primado de jurisdição, com exclusão dos demais Apóstolos, quer tomados singularmente, quer em conjunto. (Fonte)

Os proponentes do desenvolvimento afirmam que o primado jurisdicional de Pedro foi fruto de um processo gradual. Logo, tal entendimento não foi sempre sustentando pela igreja, o que contradiz os ditames do concílio.

1824. Porém o que Nosso Senhor Jesus Cristo, que é o príncipe dos pastores e o grande pastor das ovelhas, instituiu no Apóstolo S. Pedro para a salvação eterna e o bem perene da Igreja, deve constantemente subsistir pela autoridade do mesmo Cristo na Igreja, que, fundada sobre o rochedo, permanecerá inabalável até ao fim dos séculos. "Ninguém certamente duvida, pois é um fato notório em todos os séculos, que S. Pedro, príncipe e chefe dos Apóstolos, recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador e Redentor do gênero humano, as chaves do reino; o qual (S. Pedro) vive, governa e julga através dos seus sucessores".

1825. [Cânon] Se, portanto, alguém negar ser de direito divino e por instituição do próprio Cristo que S. Pedro tem perpétuos sucessores no primado da Igreja universal; ou que o Romano Pontífice é o sucessor de S. Pedro no mesmo primado – seja excomungado
Em outras palavras, o papado é um fato notório de todos os séculos. Ele teria sido aceito e compreendido desde o início:

1832. Esta Santa Sé sempre tem crido que no próprio primado Apostólico que o Romano Pontífice tem sobre toda a Igreja, está também incluído o supremo poder do magistério. O mesmo é confirmado também pelo uso constante da Igreja e pelos Concílios Ecumênicos, principalmente aqueles em que os Orientais se reuniam com os Ocidentais na união da fé e da caridade.

1836. (...) Pois o Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de S. Pedro para que estes, sob a revelação do mesmo, pregassem uma nova doutrina, mas para que, com a sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente o depósito da fé, ou seja, a revelação herdada dos Apóstolos. E esta doutrina dos Apóstolos abraçaram-na todos os veneráveis Santos Padres, veneraram-na e seguiram-na todos os santos doutores ortodoxos, firmemente convencidos de que esta cátedra de S. Pedro sempre permaneceu imune de todo o erro, segundo a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo feita ao príncipe dos Apóstolos: Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos [Lc 22, 32].

Sobre a infalibilidade:

1839. Por isso Nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.

O concílio afirma que a infalibilidade papal não é fruto de um desenvolvimento, mas que se trata de uma tradição que remonta ao início da fé cristã. Percebam que o concílio apela ao texto de Lucas 22:32. Todavia, não há no primeiro milênio da igreja ninguém que o tenha interpretado como texto-prova da infalibilidade do bispo de Roma. A encíclica papal, Satis Cognitum, escrita pelo Papa Leão XIII em 1896, comenta e confirma as declarações do concílio:

É, portanto, incontestável, depois do que acabamos de dizer, que Jesus Cristo instituiu na Igreja um vivo, autêntico e perpétuo magistério também investido com sua própria autoridade (...) Portanto, Jesus Cristo designou Pedro para ser este chefe da Igreja. Ele também determinou que a autoridade instituída perpetuamente para a salvação de todos deveria ser herdada por seus sucessores, nos quais a mesma autoridade do próprio Pedro deveria permanecer. E assim fez essa notável promessa a Pedro e a ninguém mais: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (Mt. 16:18) (...) Era necessário um governo desse tipo, uma vez que pertence à constituição e formação da Igreja, como seu elemento principal - isto é, como o princípio da unidade e o fundamento de uma estabilidade duradoura - não devendo chegar ao fim com São Pedro, mas devendo passar para seus sucessores (...) Quando o fundador divino decretou que a Igreja deveria ser una na fé, no governo e na comunhão, escolheu Pedro e seus sucessores como princípio e centro, por assim dizer, desta unidade. Na verdade, a Sagrada Escritura atesta que as chaves do Reino dos Céus foram dadas a Pedro somente, e que o poder de ligar e desligar foi concedido aos Apóstolos e a Pedro (...) Portanto, no decreto do Concílio do Vaticano quanto à natureza e à autoridade do primado do Romano Pontífice, nenhuma opinião recém-concebida é apresentada, mas a crença venerável e constante de todas as idades (Seção IV., Cap. 3)   

O papado seria a crença de todas as idades. O papa Pio X em seu famoso juramento contra o modernismo também disse:

Eu sinceramente mantenho que a Doutrina da Fé nos foi trazida desde os Apóstolos pelos Padres ortodoxos com exatamente o mesmo significado e sempre com o mesmo propósito. Assim sendo, eu rejeito inteiramente a falsa representação herética de que os dogmas evoluem e se modificam de um significado para outro diferente do que a Igreja antes manteve.

Já o desenvolvimento da doutrina assume que os pais ortodoxos poderiam ter compreendido de forma errada determinadas doutrinas. Somente após séculos de reflexão, a igreja as teria compreendido corretamente. Recentemente, um comentarista católico escreveu em meu blog:

O problema é que bem no início da igreja o sacramento da penitência (confissão) era bem rígido e mal compreendido por muitos. Acreditava-se que após ser batizado, a pessoa só teria direito a confessar os PECADOS GRAVES ao sacerdote apenas 1 vez na vida, além de ter que cumprir grandes e duras penitências, que em alguns casos durava a vida toda.

O comentarista está parcialmente certo. A confissão e penitência era um processo público e permitido apenas 1x após o batismo em caso de pecados graves (mais detalhes aqui). No entanto, esta compreensão não ficou limitada ao início da igreja. O comentarista presume que tal doutrina passou por um processo de desenvolvimento. Então, vejamos o que o Concílio de Trento afirmou:

911. Cân. 1. Se alguém disser que a Penitência na Igreja Católica não é verdadeiro e próprio sacramento instituído por Jesus Cristo Nosso Senhor para reconciliar os fiéis com o mesmo Deus, todas as vezes que depois do Batismo caírem em pecados — seja excomungado [cfr. n° 894].

913. Cân. 3. Se alguém disser que estas palavras de Nosso Senhor: Recebei o Espirito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados e a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos (Jo 22, 22 s) não se devem referir ao poder de perdoar e reter os pecados no sacramento da Penitência, segundo sempre o entendeu a Igreja Católica desde o princípio, mas as torcer, contra a instituição deste sacramento, para a autoridade de pregar o Evangelho — seja excomungado [cfr. n° 894].

916. Cân. 6. Se alguém negar que a confissão sacramental foi instituída e é necessária para a salvação por direito divino; ou disser que o modo de confessar em segredo, só ao sacerdote, que a Igreja desde o princípio sempre observou e ainda observa, é alheio à instituição de Cristo e não passa de invenção humana — seja excomungado [cfr. n° 899 s].

O Concílio reivindica que a confissão era acessível para todas as vezes em que se caia em pecado. E ainda afirma que a confissão auricular foi observada desde o início. O erudito Alister McGrath escreve:

O desenvolvimento sistemático da teologia sacramental é uma característica importante do período medieval, particularmente entre os anos 1050 e 1240. (Iustitia Dei, A History of the Christian Doctrine of Justification, Third Edition, Cambridge, UK: Cambridge University Press, ©2005), pg. 117)

McGrath também observa que a inclusão por Pedro Lombardo da penitência entre os sete sacramentos foi "de grande importância para o desenvolvimento da doutrina da justificação dentro da esfera da igreja ocidental" (120-121). Ele também diz: "Pode-se notar, no entanto, que não houve acordo geral sobre a necessidade da confissão sacerdotal: no século XII, por exemplo, a escola [pedro] abelardiana rejeitou sua necessidade, enquanto a escola de Victorino insistia nela (121). Não foi até o Quarto Concílio de Latrão (1215) que a "penitência" se tornou oficialmente um "sacramento". Esse concílio "obrigou os crentes a confessar seus pecados anualmente ao sacerdote" (122). Ele ainda diz:

O século IX, no entanto, viu o sistema anglo-irlandês de penitência privada tornar-se generalizado na Europa, com importantes modificações na teologia da penitência seguindo em sua sequência (...) Embora os escritores anteriores considerassem que a penitência poderia ser realizada apenas uma vez na vida, como uma "segunda tábua após um naufrágio" (tabula secunda post naufragiam - ver Jerome Epistola 130), essa opinião foi gradualmente abandonada, em vez de refutada, tanto por razões sociais como pastorais. Assim, o bispo do oitavo século, Chrodegang de Metz, recomendou uma confissão regular a um superior pelo menos uma vez por ano, enquanto Paulino de Aquileia advogava a confissão e penitência antes de cada missa. A classificação de Gregório o Grande de pecados mortais [século VI] foi incorporada ao sistema penitencial da igreja durante o século IX, de modo que a penitência privada na presença de um padre se tornou geralmente aceita. (p. 117)

Percebem que a penitência em seu aspecto moderno é fruto de um longo processo que só iria se generalizar no século IX. A questão é como uma igreja assistida por um magistério infalível pode deter a crença errada por nove séculos em algo tão fundamental? Não é isso que se espera de uma instituição assistida pelo Espírito Santo. Observem também como as reivindicações históricas do Concílio de Trento são falsas. Este concílio não adotava o desenvolvimento da doutrina. Todavia, como já dito, a evidência histórica obrigou Roma a redefinir seu conceito de tradição da igreja. Percebam que a mudança de confissão pública para privada, de apenas uma vez para quantas vezes for preciso, de penas que poderiam durar toda uma vida para rezar algumas ave marias é precisamente a evolução do dogma condenada pelo juramento contra os modernistas. No mesmo juramento, ainda lemos:

Também rejeito o erro daqueles que dizem que a Fé mantida pela Igreja pode contradizer a história, e que os dogmas católicos, no sentido em que são agora entendidos, são irreconciliáveis com uma visão mais realista das origens da Religião cristã. Também condeno e rejeito a opinião dos que dizem que um cristão erudito assume uma dupla personalidade - a de um crente e ao mesmo tempo a de um historiador, como se fosse permissível a um historiador manter coisas que contradizem a Fé do crente, ou estabelecer premissas que, desde que não haja negação direta dos dogmas, levariam à conclusão de que os dogmas são falsos ou duvidosos.

Agora, comparem com a declaração do Joseph Ratzinger a respeito da Assunção de Maria:

Antes que a assunção corporal de Maria ao céu fosse definida, todas as faculdades teológicas do mundo foram consultadas para dar opinião. A resposta de nossos professores foi enfaticamente negativa (...) "Tradição" foi identificada com o que poderia ser provado com base em textos. Altaner, o patrologista de Würzburg (...) provou de maneira cientificamente persuasiva que a doutrina da assunção corporal de Maria ao céu era desconhecida antes do século V. Esta doutrina, portanto, argumentou, não poderia pertencer à "tradição apostólica". E essa foi a conclusão que meus professores em Munique compartilharam. Este argumento é convincente se você entender a "tradição" estritamente como o manuseio de fórmulas e textos fixos (...) Mas se você conceber a "tradição" como um processo vivo pelo qual o Espírito Santo nos apresenta a plenitude da verdade e nos ensina como entender o que anteriormente não podíamos entender (Jo 16:12-13), então a "lembrança" subsequente (Jo 16:4, por exemplo) pode reconhecer o que não tinha visto anteriormente e ainda como repassado na palavra original. (Milestones (Ignatius, 1998), 58-59)

Ratzinger incorre no erro condenado pelo juramento e para “salvar” a assunção de Maria apela ao desenvolvimento da doutrina. Não importa que por séculos tenha sido uma doutrina desconhecida pela Igreja. Pio X também iria condenar o desenvolvimento da doutrina na Lamentabili Sine. Ele condena as seguintes afirmações:

22. Os dogmas que a Igreja apresenta como revelados não são verdades caídas do Céu; são uma certa interpretação de fatos religiosos que a inteligência humana logrou alcançar à custa de laboriosos esforços.

53. A constituição orgânica da Igreja não é imutável; a sociedade cristã assim como a sociedade humana, está submetida a uma perpétua evolução.

 Especificamente sobre o batismo infantil:

43. A prática de conferir o batismo às crianças foi uma evolução disciplinar, que concorreu como uma das causas para que este sacramento se desdobrasse em dois, a saber: Batismo e Penitência.

Já Newman disse:

(...) Assim, vemos que com o passar do tempo, a doutrina do Purgatório estava aberta sobre a compreensão da igreja, como uma porção ou forma de penitência por pecados cometidos após o batismo: e, portanto, a crença nessa doutrina e a prática do batismo infantil cresceriam dentro de uma geral recepção conjunta (Newman, p. 417)

Newman faz duas afirmações que incorrem nas condenações papais. Ele diz que a doutrina do purgatório estava em aberto e consistia numa forma radicalmente distinta de como viria a ser compreendida depois e também que a prática do batismo infantil viria a surgir em virtude dessa disciplina penitencial primitiva (que ele próprio identificou como sendo a doutrina do purgatório daquele período). Tanto purgatório como batismo infantil iriam surgir apenas gradualmente na igreja e não teriam sido explicitamente e diretamente instituídos por algum apóstolo. Pio X ainda disse:

54. Os dogmas, os sacramentos e a hierarquia, tanto em sua noção quanto em sua realidade, não passam de interpretações e evoluções do pensamento cristão que, por meio de incrementos externos, desenvolveram e aperfeiçoaram um pequeno germe que existia em estado latente no Evangelho.

Essa é uma acurada descrição da teoria do desenvolvimento. Newman afirmou que o impulso para desenvolvimento da doutrina partia geralmente da heresia. Nenhuma doutrina seria definida se não fosse antes contestada. Creio ter clarificado a contradição que o desenvolvimento da doutrina cria para a igreja de Roma. A teoria abraçada por Vaticano II contradiz Vaticano I e Trento. Além disso, o recurso usado para definir o que é a tradição da igreja é em si mesmo condenado pela tradição da Igreja. Não por acaso, Newman costuma ser visto como herege modernista pelos círculos mais tradicionalistas da igreja romana.

Ademais, os apóstolos não acreditavam que a fé que transmitiram estava sujeita a tais desenvolvimentos. Pelo contrário, aquela fé foi de uma vez por todas entregue aos santos (Jd. 1:3). O erudito neotestamentário Larry Hurtado escreve:

Não é claro, por exemplo, que os crentes em Jesus do tempo de Paulo (cerca de 30-60 d.C) pensaram em si mesmos, sua fé e práticas como "primitivas" ou "embrionárias" de uma forma mais madura e completa de devoção de Jesus que deveria ser desenvolvida ao longo do tempo. Ao invés disso, tenho a impressão de que Paulo (por exemplo) pensou nas convicções e nos ensinamentos que ele forneceu como adequadamente formado e totalmente apropriado para sua situação. Então, se nos referimos aos primeiros anos do movimento de Jesus como embrionário ou sementes de algo que se desenvolveu mais tarde, acho que estamos importando um julgamento de valor que não se baseia na evidência. (Fonte)