sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

O Papado e o Conciliarismo Medieval



Atualmente, há um virtual consenso entre historiadores católicos romanos, ortodoxos e protestantes a respeito da ausência do papado na Igreja Primitiva (aqui  e aqui). Além disso, historiadores católicos de renome como Klaus Schatz e Yves Congar afirmam que a igreja oriental não aceitaram o primado jurídico do bispo de Roma (aqui). Dessa forma, advogo a posição de que só faz sentido se referir ao bispo de Roma como um papa após o grande cisma de 1054. Obviamente estou aqui tomando o ponto de vista católico romano segundo o qual o papa é o chefe supremo de toda a Igreja de Cristo. Como protestante eu não acredito nisso, pois não concedo que a Igreja de Cristo esteja circunscrita à igreja romana. Antes do cisma, a Igreja de Roma estava em comunhão com a Igreja Oriental (uma comunhão bem precária e cheia de interrupções). Se a Igreja Oriental era considerada parte da Igreja cristã por Roma e ainda assim não aceitava o primado jurídico do bispo romano, não há que se falar em papado nesse período.

Todavia, o foco desse artigo é o período pós-cisma da igreja ocidental. Alguém pouco familiarizado com a história da igreja poderia pensar que o papa reinava soberanamente. Muito pelo contrário, mesmo em tal época o papado sofreria severos questionamentos teológicos. Houve épocas em que o conciliarismo foi adotado por diversos teólogos da Igreja acidental. O ápice foi a solução conciliarista empregada para resolver o chamado “grande cisma do ocidente” (aqui). Veremos o que o historiador católico romano Joseph Kelly escreveu na obra “The Ecumenical Councils of the Catholic Church: A History”. A maior parte das citações podem ser verificadas nesta cópia online aqui:

Os códigos canônicos sempre permitiram todo tipo de possibilidade, não importando quão aparentemente minuciosa, absurda ou improvável fosse. No início do século XIII, os juristas canônicos haviam especulado sobre o que fazer se um papa caísse em heresia. De forma lenta, mas verdadeira, alguns juristas canônicos construíram a visão de que o papa não tem um domínio absoluto sobre a igreja porque o poder da igreja é maior que o dele. Eles especularam que o poder supremo da igreja residia no concílio ecumênico. Estas poucas frases resumem décadas de desenvolvimentos muito complexos. A superioridade do concílio sobre o papa é a teoria conciliar. A aplicação prática é o conciliarismo. (p. 107)

O conciliarismo foi uma visão popular na igreja ocidental:

Empurrados pelos governantes e a nobreza [durante o Grande Cisma] em 1409, os cardeais de ambos os papas os abandonaram e se encontraram na cidade italiana de Pisa, onde proclamaram a necessidade de ir acima das cabeças dos papas para um concílio geral, citando as consequências do cisma por esta clara violação do direito canônico. Com algumas grandes exceções (Alemanha, os Reinos espanhóis), a Europa católica os apoiou (...) Muitos na Europa católica, tanto clérigos como leigos, acreditavam que o papado nunca se reformaria e que apenas um concílio poderia realmente reformar a igreja (...) A crença nos poderes curativos de um concílio reformador nunca morreu até a Reforma (...) As tradições conciliares correram fortemente no norte da Europa. (p. 107, 121, 123)

Concílios medievais reivindicaram autoridade sobre o papa:

Este [o ensinamento do Concílio Ecumênico de Constança] é o conciliarismo no seu nível mais básico. O Concílio afirma que se encontra sob a orientação do Espírito Santo, que representa a Igreja Católica e, portanto, tem autoridade suprema na igreja, e que sua autoridade deriva de Cristo e até mesmo os papas devem obedecer ao Concílio (...) Mas nenhum estudioso duvida que Constança quis dizer o que disse, porque em 1417, antes de escolher um novo papa, o concílio aprovou um segundo grandioso decreto que afirmava que o novo papa deveria chamar outro concílio cinco anos depois de Constança acabar, depois outro sete anos depois, e depois um concílio a cada dez anos para que, em vigor, houvesse um concílio em cada pontificado. Os líderes de Constança realmente desejavam mudar a estrutura governamental da igreja (...) Muitos católicos, incluindo governantes e bispos, favoreceram o conciliarismo, e Martinho [o papa Martinhho V] foi obrigado a obedecer ao decreto. (p. 111, 114)

Kelly também discute o conciliarismo do Concílio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (p. 114-119). Ele observa que o cardeal escolhido pelo papa Eugenio IV para abrir o concílio e presidi-lo era ele próprio um conciliarista (p. 114). Até o Conselho de Trento, o "fantasma do conciliarismo" ainda estava na mente da liderança católica, e temia-se o reavivamento do conciliarismo em Trento quando o Papa Pio IV parecia estar próximo da morte (p.145).

Quão significativo é o conciliarismo medieval? Por um lado, mina o apelo popular católico a uma suposta unidade pré-Reforma. A igreja católica romana pré-reforma tinha um nível de divergência muito superior àquela que a visão romantizada dos católicos modernos comporta. Em segundo lugar, o apoio conciliar e papal ao conciliarismo é problemático para as reivindicações de autoridade do catolicismo romano. Em terceiro lugar, a dúvida generalizada sobre algo tão simples e fundamental como a autoridade papal, tão tarde quanto a era medieval pós-patrística e ainda no Ocidente, demonstra quão frágeis são as bases históricas do papado.

A resistência dentro da igreja ocidental à supremacia papal persistiria após a reforma. É exemplo notável o galicanismo (aqui). Esse era o movimento que pregava a independência da Igreja francesa. Eles também faziam uso do conciliarismo. O historiador protestante George Salmon escreveu sobre o apologista católico e proponente do galicanismo Bossuet:

Bossuet era, no seu tempo, o terror dos sectários protestantes, o mais confiável campeão de sua Igreja. Mas ele lutou por ela não só contra os protestantes, mas contra a teoria da infalibilidade, então chamada Ultramontana, porque se manteve do outro lado das montanhas, mas rejeitado pela Igreja Galicana. Em outra palestra, devo falar mais sobre os princípios do galicanismo e da sua história. Basta mencionar que uma das suas doutrinas fundamentais era que as decisões doutrinárias do Papa não deveriam ser consideradas como definitivas, que poderiam ser revisadas, corrigidas ou mesmo rejeitadas por um concílio geral ou pela Igreja em geral. O tratado formal de Bossuet em prova desse princípio era um armazém de argumentos, em grande parte inspirado nas controvérsias dos anos de 1869 a 1870. Todavia, este princípio foi condenado com um anátema no Concílio Vaticano do último ano (...) A ironia dos eventos poderia dar uma refutação mais singular do que essa? Um homem escreveu um livro para provar que o protestantismo é falso porque os protestantes discordam entre si, e o romanismo é verdadeiro porque suas doutrinas são sempre as mesmas e seus filhos nunca discordam. Mas, em alguns anos ele próprio é classificado com um adorador do diabo pelas autoridades autorizadas da religião que ele defende, e cujas doutrinas ele supunha serem suportadas pelos demais. Podemos dizer que os campeões romanistas do presente podem não ser os melhores. O Cardeal Manning pode estar seguro de que, à medida que o desenvolvimento da doutrina romana prosseguir, ele não pode ser deixado de fora dos limites da ortodoxia e ser classificado entre os adoradores do diabo pelos campeões romanistas do próximo século? (Fonte)

Salmon traz um argumento importante. Ele parte do exemplo de Bossuet para questionar o fervor com que muitos católicos defendem sua fé. A tradição da igreja romana não é fixa. Ninguém sabe ao certo o que a igreja estará ensinando no futuro. Alguém que hoje é considerado ortodoxo poderá ser visto como um herege pelos padrões futuros. Eu fiz um argumento semelhante quando discuti Tomás de Aquino e Imaculada Conceição. Concedo que a maioria dos católicos não o tem como herege, mas deveriam se fossem consistentes com seus próprios critérios. Os apologistas romanos afirmam que não havia problema em negar a imaculada conceição, já que a Igreja ainda não havia se pronunciado em definitivo. O problema dessa defesa é que mina a retórica de que a Igreja romana apenas dogmatiza aquilo que “sempre foi a fé da igreja”. Gerações e gerações de cristãos tiveram crenças que mais tarde seriam objeto de anátemas. Imagine aplicar o mesmo raciocínio à igreja primitiva. Uma vez que a divindade de Cristo só foi definitivamente estabelecida no Concílio de Niceia, não haveria problema em negar a doutrina antes do concílio. Nenhum pai da igreja da igreja desculparia a heresia dessa forma. 

A obra de Kelly (aqui) é uma poderosa fonte contra as reivindicações da apologética católica. Ele expressa o consenso dos historiadores modernos que contradiz a ideia de que a igreja primitiva era católica romana. Ele se refere a outros estudiosos católicos que o ajudaram no processo de pesquisa e edição do livro (p. 11). Ele contrasta o atual papel dos papas nos concílios ecumênicos com seu envolvimento no passado (p. 2, 5), observando, por exemplo, que "o segundo conselho ecumênico de Constantinopla chamado em 381, reuniu-se, decidiu as questões e encerrou-se sem informar o papa Damaso I (366-384) de que um concílio estava acontecendo" (p. 5). Ele contrasta a visão do Cardeal Newman sobre o desenvolvimento doutrinal com as crenças populares sobre esse assunto em gerações anteriores (p.3). Ele se refere a uma visão mais espiritual da presença eucarística de Jesus nos primeiros teólogos, contrastando com os pontos de vista de teólogos posteriores que tinham "uma compreensão mais material da presença real" (p. 5). Ele se refere à rejeição do papado durante a era patrística no norte da África (p. 16, 31). Mesmo alguns bispos da Itália no século VI "entraram em cisma e não se reconciliaram com Roma até o século VII" (p.54). Ele interpreta o cânon 6 de Niceia como uma referência à autoridade regional de Roma no ocidente (p. 23-24). Referindo-se ao tempo de Niceia, Kelly escreve: "Então, como agora com as igrejas ortodoxas, os bispos orientais não reconheceram nenhuma autoridade jurisdicional romana sobre suas igrejas" (p. 24). Ele se refere à oposição dos primeiros cristãos à veneração de imagens (p. 61). Em suma, quando lemos os autores católicos modernos, percebemos quão vazio é o discurso de que a Igreja Romana apenas manteve aquilo que a igreja sempre ensinou. 

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O Desenvolvimento da Doutrina vs A Tradição Católica Romana


Quem deseja entender o catolicismo moderno precisa conhecer a Teoria do Desenvolvimento da Doutrina de Newman. Recomendo que leiam o artigo sobre o novo conceito de tradição adotado por Roma (aqui). Uma das maiores (talvez a maior mudança) nos ensinamentos do magistério romano foi seu novo conceito de Tradição. Roma historicamente ensinou que seus dogmas sempre foram cridos pela Igreja. A igreja romana ensinava que suas doutrinas atendiam aos critérios da regra de Vicente de Lérins (crido por todos, sempre e em todos os lugares). Essa visão foi articulada pelos Concílios de Trento e Vaticano I.

Ocorre que tal reivindicação é indefensável a luz da história da Igreja. É reconhecido pelos historiadores católicos que doutrinas como Assunção de Maria e Papado eram desconhecidas nos primeiros séculos. Como conciliar a falta de evidências históricas para tais doutrinas e o atual ensinamento da Igreja romana? A resposta é que a fé cristã não teria sido completamente compreendida pelos primeiros cristãos ou até mesmo pelos apóstolos. Só depois de muita reflexão, combates a heresias e desenvolvimentos é os dogmas católicos vieram a luz. Por isso, os proponentes do desenvolvimento não têm problema em admitir que os pais da igreja primitiva não criam ou até mesmo contradiziam muito do que mais tarde seria definido como dogma (a imaculada conceição é exemplo por excelência). Newman reconhece:

Enquanto os Apóstolos estavam na terra, não havia bispo ou papa. (Ensaio sobre o Desenvolvimento da DoutrinaCristã, Cap. 4, Seção 3)

A rigor, não há prazo para o “desenvolvimento” acontecer. Pode durar séculos. A implicação é que no futuro a igreja pode definir como dogma crenças que os católicos atuais desconhecem. A teoria do desenvolvimento tem um problema fatal. Ela, em si mesma, é um desvio da tradição católica romana. É irônico como uma teoria que deseja validar a tradição seja contrária a própria tradição. O Concílio Vaticano I afirmou:

1822. Ensinamos, pois, e declaramos, segundo o testemunho do Evangelho, que Jesus Cristo prometeu e conferiu imediata e diretamente o primado de jurisdição sobre toda a Igreja ao Apóstolo S. Pedro (...) A esta doutrina tão clara das Sagradas Escrituras, tal como sempre foi entendida pela Igreja Católica, opõe-se abertamente as sentenças perversas daqueles que, desnaturando a forma de governo estabelecida na Igreja por Cristo Nosso Senhor, negam que só Pedro foi agraciado com o verdadeiro e próprio primado de jurisdição, com exclusão dos demais Apóstolos, quer tomados singularmente, quer em conjunto. (Fonte)

Os proponentes do desenvolvimento afirmam que o primado jurisdicional de Pedro foi fruto de um processo gradual. Logo, tal entendimento não foi sempre sustentando pela igreja, o que contradiz os ditames do concílio.

1824. Porém o que Nosso Senhor Jesus Cristo, que é o príncipe dos pastores e o grande pastor das ovelhas, instituiu no Apóstolo S. Pedro para a salvação eterna e o bem perene da Igreja, deve constantemente subsistir pela autoridade do mesmo Cristo na Igreja, que, fundada sobre o rochedo, permanecerá inabalável até ao fim dos séculos. "Ninguém certamente duvida, pois é um fato notório em todos os séculos, que S. Pedro, príncipe e chefe dos Apóstolos, recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador e Redentor do gênero humano, as chaves do reino; o qual (S. Pedro) vive, governa e julga através dos seus sucessores".

1825. [Cânon] Se, portanto, alguém negar ser de direito divino e por instituição do próprio Cristo que S. Pedro tem perpétuos sucessores no primado da Igreja universal; ou que o Romano Pontífice é o sucessor de S. Pedro no mesmo primado – seja excomungado
Em outras palavras, o papado é um fato notório de todos os séculos. Ele teria sido aceito e compreendido desde o início:

1832. Esta Santa Sé sempre tem crido que no próprio primado Apostólico que o Romano Pontífice tem sobre toda a Igreja, está também incluído o supremo poder do magistério. O mesmo é confirmado também pelo uso constante da Igreja e pelos Concílios Ecumênicos, principalmente aqueles em que os Orientais se reuniam com os Ocidentais na união da fé e da caridade.

1836. (...) Pois o Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de S. Pedro para que estes, sob a revelação do mesmo, pregassem uma nova doutrina, mas para que, com a sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente o depósito da fé, ou seja, a revelação herdada dos Apóstolos. E esta doutrina dos Apóstolos abraçaram-na todos os veneráveis Santos Padres, veneraram-na e seguiram-na todos os santos doutores ortodoxos, firmemente convencidos de que esta cátedra de S. Pedro sempre permaneceu imune de todo o erro, segundo a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo feita ao príncipe dos Apóstolos: Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos [Lc 22, 32].

Sobre a infalibilidade:

1839. Por isso Nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.

O concílio afirma que a infalibilidade papal não é fruto de um desenvolvimento, mas que se trata de uma tradição que remonta ao início da fé cristã. Percebam que o concílio apela ao texto de Lucas 22:32. Todavia, não há no primeiro milênio da igreja ninguém que o tenha interpretado como texto-prova da infalibilidade do bispo de Roma. A encíclica papal, Satis Cognitum, escrita pelo Papa Leão XIII em 1896, comenta e confirma as declarações do concílio:

É, portanto, incontestável, depois do que acabamos de dizer, que Jesus Cristo instituiu na Igreja um vivo, autêntico e perpétuo magistério também investido com sua própria autoridade (...) Portanto, Jesus Cristo designou Pedro para ser este chefe da Igreja. Ele também determinou que a autoridade instituída perpetuamente para a salvação de todos deveria ser herdada por seus sucessores, nos quais a mesma autoridade do próprio Pedro deveria permanecer. E assim fez essa notável promessa a Pedro e a ninguém mais: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (Mt. 16:18) (...) Era necessário um governo desse tipo, uma vez que pertence à constituição e formação da Igreja, como seu elemento principal - isto é, como o princípio da unidade e o fundamento de uma estabilidade duradoura - não devendo chegar ao fim com São Pedro, mas devendo passar para seus sucessores (...) Quando o fundador divino decretou que a Igreja deveria ser una na fé, no governo e na comunhão, escolheu Pedro e seus sucessores como princípio e centro, por assim dizer, desta unidade. Na verdade, a Sagrada Escritura atesta que as chaves do Reino dos Céus foram dadas a Pedro somente, e que o poder de ligar e desligar foi concedido aos Apóstolos e a Pedro (...) Portanto, no decreto do Concílio do Vaticano quanto à natureza e à autoridade do primado do Romano Pontífice, nenhuma opinião recém-concebida é apresentada, mas a crença venerável e constante de todas as idades (Seção IV., Cap. 3)   

O papado seria a crença de todas as idades. O papa Pio X em seu famoso juramento contra o modernismo também disse:

Eu sinceramente mantenho que a Doutrina da Fé nos foi trazida desde os Apóstolos pelos Padres ortodoxos com exatamente o mesmo significado e sempre com o mesmo propósito. Assim sendo, eu rejeito inteiramente a falsa representação herética de que os dogmas evoluem e se modificam de um significado para outro diferente do que a Igreja antes manteve.

Já o desenvolvimento da doutrina assume que os pais ortodoxos poderiam ter compreendido de forma errada determinadas doutrinas. Somente após séculos de reflexão, a igreja as teria compreendido corretamente. Recentemente, um comentarista católico escreveu em meu blog:

O problema é que bem no início da igreja o sacramento da penitência (confissão) era bem rígido e mal compreendido por muitos. Acreditava-se que após ser batizado, a pessoa só teria direito a confessar os PECADOS GRAVES ao sacerdote apenas 1 vez na vida, além de ter que cumprir grandes e duras penitências, que em alguns casos durava a vida toda.

O comentarista está parcialmente certo. A confissão e penitência era um processo público e permitido apenas 1x após o batismo em caso de pecados graves (mais detalhes aqui). No entanto, esta compreensão não ficou limitada ao início da igreja. O comentarista presume que tal doutrina passou por um processo de desenvolvimento. Então, vejamos o que o Concílio de Trento afirmou:

911. Cân. 1. Se alguém disser que a Penitência na Igreja Católica não é verdadeiro e próprio sacramento instituído por Jesus Cristo Nosso Senhor para reconciliar os fiéis com o mesmo Deus, todas as vezes que depois do Batismo caírem em pecados — seja excomungado [cfr. n° 894].

913. Cân. 3. Se alguém disser que estas palavras de Nosso Senhor: Recebei o Espirito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados e a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos (Jo 22, 22 s) não se devem referir ao poder de perdoar e reter os pecados no sacramento da Penitência, segundo sempre o entendeu a Igreja Católica desde o princípio, mas as torcer, contra a instituição deste sacramento, para a autoridade de pregar o Evangelho — seja excomungado [cfr. n° 894].

916. Cân. 6. Se alguém negar que a confissão sacramental foi instituída e é necessária para a salvação por direito divino; ou disser que o modo de confessar em segredo, só ao sacerdote, que a Igreja desde o princípio sempre observou e ainda observa, é alheio à instituição de Cristo e não passa de invenção humana — seja excomungado [cfr. n° 899 s].

O Concílio reivindica que a confissão era acessível para todas as vezes em que se caia em pecado. E ainda afirma que a confissão auricular foi observada desde o início. O erudito Alister McGrath escreve:

O desenvolvimento sistemático da teologia sacramental é uma característica importante do período medieval, particularmente entre os anos 1050 e 1240. (Iustitia Dei, A History of the Christian Doctrine of Justification, Third Edition, Cambridge, UK: Cambridge University Press, ©2005), pg. 117)

McGrath também observa que a inclusão por Pedro Lombardo da penitência entre os sete sacramentos foi "de grande importância para o desenvolvimento da doutrina da justificação dentro da esfera da igreja ocidental" (120-121). Ele também diz: "Pode-se notar, no entanto, que não houve acordo geral sobre a necessidade da confissão sacerdotal: no século XII, por exemplo, a escola [pedro] abelardiana rejeitou sua necessidade, enquanto a escola de Victorino insistia nela (121). Não foi até o Quarto Concílio de Latrão (1215) que a "penitência" se tornou oficialmente um "sacramento". Esse concílio "obrigou os crentes a confessar seus pecados anualmente ao sacerdote" (122). Ele ainda diz:

O século IX, no entanto, viu o sistema anglo-irlandês de penitência privada tornar-se generalizado na Europa, com importantes modificações na teologia da penitência seguindo em sua sequência (...) Embora os escritores anteriores considerassem que a penitência poderia ser realizada apenas uma vez na vida, como uma "segunda tábua após um naufrágio" (tabula secunda post naufragiam - ver Jerome Epistola 130), essa opinião foi gradualmente abandonada, em vez de refutada, tanto por razões sociais como pastorais. Assim, o bispo do oitavo século, Chrodegang de Metz, recomendou uma confissão regular a um superior pelo menos uma vez por ano, enquanto Paulino de Aquileia advogava a confissão e penitência antes de cada missa. A classificação de Gregório o Grande de pecados mortais [século VI] foi incorporada ao sistema penitencial da igreja durante o século IX, de modo que a penitência privada na presença de um padre se tornou geralmente aceita. (p. 117)

Percebem que a penitência em seu aspecto moderno é fruto de um longo processo que só iria se generalizar no século IX. A questão é como uma igreja assistida por um magistério infalível pode deter a crença errada por nove séculos em algo tão fundamental? Não é isso que se espera de uma instituição assistida pelo Espírito Santo. Observem também como as reivindicações históricas do Concílio de Trento são falsas. Este concílio não adotava o desenvolvimento da doutrina. Todavia, como já dito, a evidência histórica obrigou Roma a redefinir seu conceito de tradição da igreja. Percebam que a mudança de confissão pública para privada, de apenas uma vez para quantas vezes for preciso, de penas que poderiam durar toda uma vida para rezar algumas ave marias é precisamente a evolução do dogma condenada pelo juramento contra os modernistas. No mesmo juramento, ainda lemos:

Também rejeito o erro daqueles que dizem que a Fé mantida pela Igreja pode contradizer a história, e que os dogmas católicos, no sentido em que são agora entendidos, são irreconciliáveis com uma visão mais realista das origens da Religião cristã. Também condeno e rejeito a opinião dos que dizem que um cristão erudito assume uma dupla personalidade - a de um crente e ao mesmo tempo a de um historiador, como se fosse permissível a um historiador manter coisas que contradizem a Fé do crente, ou estabelecer premissas que, desde que não haja negação direta dos dogmas, levariam à conclusão de que os dogmas são falsos ou duvidosos.

Agora, comparem com a declaração do Joseph Ratzinger a respeito da Assunção de Maria:

Antes que a assunção corporal de Maria ao céu fosse definida, todas as faculdades teológicas do mundo foram consultadas para dar opinião. A resposta de nossos professores foi enfaticamente negativa (...) "Tradição" foi identificada com o que poderia ser provado com base em textos. Altaner, o patrologista de Würzburg (...) provou de maneira cientificamente persuasiva que a doutrina da assunção corporal de Maria ao céu era desconhecida antes do século V. Esta doutrina, portanto, argumentou, não poderia pertencer à "tradição apostólica". E essa foi a conclusão que meus professores em Munique compartilharam. Este argumento é convincente se você entender a "tradição" estritamente como o manuseio de fórmulas e textos fixos (...) Mas se você conceber a "tradição" como um processo vivo pelo qual o Espírito Santo nos apresenta a plenitude da verdade e nos ensina como entender o que anteriormente não podíamos entender (Jo 16:12-13), então a "lembrança" subsequente (Jo 16:4, por exemplo) pode reconhecer o que não tinha visto anteriormente e ainda como repassado na palavra original. (Milestones (Ignatius, 1998), 58-59)

Ratzinger incorre no erro condenado pelo juramento e para “salvar” a assunção de Maria apela ao desenvolvimento da doutrina. Não importa que por séculos tenha sido uma doutrina desconhecida pela Igreja. Pio X também iria condenar o desenvolvimento da doutrina na Lamentabili Sine. Ele condena as seguintes afirmações:

22. Os dogmas que a Igreja apresenta como revelados não são verdades caídas do Céu; são uma certa interpretação de fatos religiosos que a inteligência humana logrou alcançar à custa de laboriosos esforços.

53. A constituição orgânica da Igreja não é imutável; a sociedade cristã assim como a sociedade humana, está submetida a uma perpétua evolução.

 Especificamente sobre o batismo infantil:

43. A prática de conferir o batismo às crianças foi uma evolução disciplinar, que concorreu como uma das causas para que este sacramento se desdobrasse em dois, a saber: Batismo e Penitência.

Já Newman disse:

(...) Assim, vemos que com o passar do tempo, a doutrina do Purgatório estava aberta sobre a compreensão da igreja, como uma porção ou forma de penitência por pecados cometidos após o batismo: e, portanto, a crença nessa doutrina e a prática do batismo infantil cresceriam dentro de uma geral recepção conjunta (Newman, p. 417)

Newman faz duas afirmações que incorrem nas condenações papais. Ele diz que a doutrina do purgatório estava em aberto e consistia numa forma radicalmente distinta de como viria a ser compreendida depois e também que a prática do batismo infantil viria a surgir em virtude dessa disciplina penitencial primitiva (que ele próprio identificou como sendo a doutrina do purgatório daquele período). Tanto purgatório como batismo infantil iriam surgir apenas gradualmente na igreja e não teriam sido explicitamente e diretamente instituídos por algum apóstolo. Pio X ainda disse:

54. Os dogmas, os sacramentos e a hierarquia, tanto em sua noção quanto em sua realidade, não passam de interpretações e evoluções do pensamento cristão que, por meio de incrementos externos, desenvolveram e aperfeiçoaram um pequeno germe que existia em estado latente no Evangelho.

Essa é uma acurada descrição da teoria do desenvolvimento. Newman afirmou que o impulso para desenvolvimento da doutrina partia geralmente da heresia. Nenhuma doutrina seria definida se não fosse antes contestada. Creio ter clarificado a contradição que o desenvolvimento da doutrina cria para a igreja de Roma. A teoria abraçada por Vaticano II contradiz Vaticano I e Trento. Além disso, o recurso usado para definir o que é a tradição da igreja é em si mesmo condenado pela tradição da Igreja. Não por acaso, Newman costuma ser visto como herege modernista pelos círculos mais tradicionalistas da igreja romana.

Ademais, os apóstolos não acreditavam que a fé que transmitiram estava sujeita a tais desenvolvimentos. Pelo contrário, aquela fé foi de uma vez por todas entregue aos santos (Jd. 1:3). O erudito neotestamentário Larry Hurtado escreve:

Não é claro, por exemplo, que os crentes em Jesus do tempo de Paulo (cerca de 30-60 d.C) pensaram em si mesmos, sua fé e práticas como "primitivas" ou "embrionárias" de uma forma mais madura e completa de devoção de Jesus que deveria ser desenvolvida ao longo do tempo. Ao invés disso, tenho a impressão de que Paulo (por exemplo) pensou nas convicções e nos ensinamentos que ele forneceu como adequadamente formado e totalmente apropriado para sua situação. Então, se nos referimos aos primeiros anos do movimento de Jesus como embrionário ou sementes de algo que se desenvolveu mais tarde, acho que estamos importando um julgamento de valor que não se baseia na evidência. (Fonte)

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Transubstanciação, Aristóteles e a Biologia Moderna


Para explicar como a transubstanciação é possível tendo em vista que o pão continua com todas as propriedades do pão comum, os apologistas católicos costumam apelar às categorias “substancia” e “acidentes” de Aristóteles. Substância é aquilo que pertence a essência do ser, que o define. Acidente seria uma característica do ser que não o define, inclusive podendo ser encontrada em outros seres de uma substância diferente. Por exemplo, olhos azuis é uma característica que homens diferentes podem ter em comum, portanto é um acidente. O mesmo pode ser dito de tamanho, peso, cor e etc.

Os católicos afirmam que o mesmo ocorre com o pão. Os acidentes do pão (cheiro, textura, cor) continuam os mesmos, mas a substância do pão é convertida no corpo físico de Cristo. É de se notar que esta explicação deturpa o pensamento aristotélico. Seria inimaginável para o filósofo a ideia de que uma substância poderia ser convertida em outra sem a mudança de seus acidentes (aqui). Ademais, a explicação não faz sentido a luz da biologia e física modernas. 

A biologia moderna afirma que tudo é feito de uma mesma substância (átomos compostos por partículas subatômicas). O que vai diferenciar um ser de outro é a combinação dessa substância. Uma determinada combinação de átomos forma água, outra combinação forma o metal. Ao olhar em mais detalhe, água e metal são compostos por uma mesma substância fundamental (partículas subatômicas). Fazendo uma ponte entre as categorias aristotélicas e a biologia molecular, devemos considerar que o DNA por exemplo é substância e não acidente. É impossível que algo seja humano sem possuir DNA humano. Retomando o exemplo, algo não humano poderia ter olhos azuis, mas jamais poderia ter o DNA humano.

Dessa forma, se a substância do pão se converte no corpo humano de Cristo, segue-se que deveríamos encontrar DNA humano na Eucaristia. Afinal, os acidentes do corpo de Cristo não estão lá, mas a substância (que inclui o DNA) está. Obviamente não há DNA humano no pão eucarístico, o que refuta a ideia de que o corpo de Cristo está presente. Além disso, mudanças no DNA necessariamente resultariam em mudanças nos acidentes. Se o DNA de um homem for convertido no DNA de uma cobra, os acidentes (cor, forma, tamanho e etc) irão acompanhar essa conversão.

A transubstanciação não faz sentido por várias razões. Veja aqui outras razões e aqui uma lista de artigos sobre tema.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

O Batismo Infantil e os Pais da Igreja


Neste artigo vamos analisar o desenvolvimento histórico do batismo infantil. A pergunta chave a ser respondida se tal prática remonta ao tempo dos apóstolos. Os defensores do batismo de bebês costumam apelar à história da igreja. O artigo do site católico veritatis afirma (aqui): “Nos primeiros quatro séculos da era cristã, é completa a unanimidade a respeito (Tertuliano sendo praticamente a única exceção)” . Esse tipo de afirmação é comum em artigos católicos que visam demonstrar que as práticas do romanismo foram o consenso dos tempos antigos. Obviamente afirmações dessa natureza nunca vem acompanhadas de citações de historiadores ou eruditos patrísticos. Isso se dá porque a prática em questão passa longe de ter sido um consenso. O próprio artigo se contradiz pois afirma que foi uma “completa unanimidade”, mas logo depois cita a oposição de Tertuliano. As conclusões que trarei são referendadas pelas modernas pesquisas sobre o assunto. Por isso, farei amplo uso de citações de historiadores da Igreja. Para todos os que desejam se aprofundar no tema, recomendo a obra mais completa sobre o assunto: Baptism in the Early Church do Dr. Everett (aqui). São “apenas” 900 páginas. É uma obra magistral escrita por um dos maiores historiadores da Igreja de nosso tempo.

Didaque (Início do séc. II)

A Didaque é provavelmente o documento cristão mais antigo fora do Novo Testamento. É de interesse para o nosso estudo pois contém instruções específicas em relação ao batismo:

Antes de batizar, tanto aquele que batiza como o batizando, bem como aqueles que puderem, devem observar o jejum. Você deve ordenar ao batizando um jejum de um ou dois dias. (cap. 7)

Não faria sentido exigir de um recém-nascido tal jejum. As instruções da Didaque se encaixam melhor com a tradição credobatista. Alguém pode argumentar que essa orientação tem em vista somente catecúmenos adultos sem descartar o batismo de crianças. É uma leitura possível, mas não é a mais provável. No cap. 7, há diversas orientações que tratam até mesmo da temperatura da água ou sobre o uso de água corrente, mas não há nenhuma orientação sobre o batismo de recém-nascidos. Uma vez que a Didaque foi concebida como um manual litúrgico a ser usado na igreja, essa ausência é relevante. Se a Igreja desse período batizasse recém-nascidos, seria esperado encontrar instruções específicas.

Aristides de Atenas (séc. II)

Aristides escreveu uma apologia em favor do cristianismo provavelmente dirigida ao imperador Adriano (117-138):

Mas quanto aos seus servos ou servas, ou seus filhos, se algum deles tem algum, eles [os cristãos] os persuadem para se tornarem cristãos pelo amor que têm para com eles; e quando eles se tornam cristãos, eles os chamam sem distinção de irmãos (...) (Apologia, cap. 15)

A versão traduzida dessa obra hospedada em sites católicos é mais curta e me parece ter usado o texto grego. Por isso, o trecho acima não é encontrado nelas. Eu traduzi da versão completa (a siríaca) que pode ser encontrada no site tertullian.org (referência em textos patrísticos). O trecho em questão é importante pois sugere que os filhos dos cristãos não eram automaticamente incluídos como membros da Igreja. Eles precisavam ser persuadidos e se tornarem cristãos, o que pressupõe uma decisão consciente.

Justino Mártir (100-165)

Em sua famosa I Apologia (150 d.C):

Todos os que se convencem e acreditam que são verdadeiras essas coisas que nós ensinamos e dizemos, e prometem que poderão viver de acordo com elas, são instruídos em primeiro lugar para que com jejum orem e peçam perdão a Deus por seus pecados anteriormente cometidos, e nós oramos e jejuamos juntamente com eles. Depois os conduzimos a um lugar onde haja água e pelo mesmo banho de regeneração com que também nós fomos regenerados eles são regenerados, pois então tomam na água o banho em nome de Deus, Pai soberano do universo, e de nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo. (cap. 61)

Justino trata especificamente do batismo aqui. Aquele que iria se batizar deveria atender exigências que um recém-nascido jamais poderia. Observem como confissão e arrependimento eram pré-requisitos. Duas objeções podem ser levantadas: (1) o texto não exclui de forma explícita o batismo de recém-nascidos e (2) a igreja desse período era predominantemente missionária – a maioria dos cristãos seriam pessoas que se converteram na fase adulta, por isso, quando se fala de batismo, o foco sempre está sobre o batismo de adultos. Sobre a primeira objeção, a continuação da citação é relevante:

A explicação que aprendemos dos apóstolos sobre isso é a seguinte: Uma vez que não tivemos consciência de nosso primeiro nascimento, pois fomos gerados por necessidade de um germe úmido, através da união mútua de nossos pais, e nos criamos em costumes maus e em conduta perversa, agora, para que não continuemos sendo filhos da necessidade e da ignorância, mas da liberdade e do conhecimento e, ao mesmo tempo, alcancemos o perdão de nossos pecados anteriores, pronuncia-se na água, sobre aquele que decidiu regenerar-se e se arrepender de seus pecados, o nome de Deus, Pai e soberano do universo. Aquele que conduz ao banho pronuncia este único nome sobre aquele que vai ser lavado. (cap. 61)

Ele contrasta o primeiro nascimento (marcado pela nossa falta de conhecimento) com o segundo nascimento que requer conhecimento. Ele contrasta o fato de que não pudemos escolher em nosso primeiro nascimento, por isso o batismo foi instituído, pois agora é possível a escolha. É muito improvável que alguém que concebesse o batismo de bebês argumentasse dessa forma. Os bebês continuariam sendo ignorantes a respeito do primeiro e segundo nascimentos e também não podem exercer qualquer tipo de escolha. O batismo foi discutido por Justino em vários lugares de suas apologias e outras obras, sem qualquer menção ao batismo de infantes. O argumento de que a Igreja era formada por conversos também me parece não prosperar. No período em que Justino escreveu (150), já havia muitas famílias cristãs com filhos pequenos. A obra Diálogo com Trifão é relevante também. Nela, Justino discute com um judeu e diz bastante coisa sobre a circuncisão. Os pedobatistas afirmam que o batismo substituiu a circuncisão. Justino aplica a circuncisão aos cristãos de diversas formas, sem recorrer a qualquer analogia que implique no batismo de infantes:

Jesus Cristo circuncida todos os que desejarem - como foi declarado acima - com facas de pedra, para que eles sejam uma nação justa, um povo que mantem a fé, a verdade e a paz. (Diálogo com Trifo, 24)

Ainda que um homem seja um scitiano ou persa, se ele tiver o conhecimento de Deus e de Seu Cristo, e guardar os decretos justos e eternos, ele é circuncidado com a boa e proveitosa circuncisão. Ele é amigo de Deus e regozija-se com seus presentes e ofertas. (Diálogo com Trifo, 28)

Aqueles também da circuncisão que se aproximam dele, isto é, acreditando nele e buscando suas bênçãos, Ele tanto o receberá como o abençoará. (Diálogo com Trifo, 33)

A sua primeira circuncisão [de Trifo o judeu] foi e é realizada por instrumentos de ferro, pois você permanece com coração duro. Mas a nossa circuncisão, que é a segunda, tendo sido instituída após a sua, nos circuncidou da idolatria e de absolutamente toda espécie de perversidade pelas pedras afiadas, ou seja, pelas palavras pregadas pelos apóstolos. E nossos corações são assim circuncidados do mal, de modo que estamos felizes em morrer pelo nome da boa Rocha, que faz com que a água viva inunde os corações (...) (Diálogo com Trifo, 33)

Observem que, sempre que Justino aplica a circuncisão ao contexto cristão, ele se refere a pessoas que creram no evangelho e foram circuncidadas em seu coração. No último trecho, ele é explícito ao dizer que fomos circuncidados pelas palavras dos apóstolos, ou seja, pelo evangelho. Justino não é tão explícito quanto Tertuliano. Mas, quando alguém discute muito o batismo, a circuncisão e outras questões relacionadas, nunca mencionando o batismo infantil e associando repetidamente o batismo a conceitos que excluem bebês, por que devemos pensar que é provável que ele acreditasse no batismo infantil?

Irineu de Lyon (130-202)

Irineu é a testemunha mais antiga citada em favor do batismo infantil. Ainda que esse pai da igreja apoiasse a prática, há dois problemas: (1) os pedobatistas pressupõe que a posição de Irineu era adotada pela Igreja desde o princípio e (2) a posição de Irineu era generalizada. O problema é que (1) e (2) não podem ser sustentadas com base nos escritos de Irineu. Como abordado acima, documentos mais antigos sugerem que o credobatismo é a tradição mais antiga. E como veremos mais adiante, a Igreja antiga comportava opiniões diversas em relação ao batismo. No entanto, vejamos a citação:

Porque veio salvar a todos. E digo ‘todos’, isto é, àqueles tantos que por Ele renascem para Deus, sejam recém-nascidos, crianças, adolescentes, jovens ou adultos. Por isso, quis passar por todas as idades, para tornar-se recém-nascido com os recém-nascidos, a fim de santificar os recém-nascidos; criança com as crianças, a fim de santificar aos de sua idade, oferecendo-lhes exemplo de piedade e sendo para eles modelo de justiça e obediência. Fez-se jovem com os jovens, para dar exemplo aos jovens e santificá-los para o Senhor. (Contra as Heresias 2:22:4)

O argumento é que como Jesus regenerou os recém-nascidos, segue que eles também deveriam ser batizados. A premissa aqui é santificar/regenerar = batizar. A questão é se Irineu tratava as duas coisas como implicação uma da outra. Irineu respondia a afirmação de que o ministério de Jesus durou apenas um ano. Ele usou o argumento de que como Jesus veio para regenerar pessoas de todas as idades, ele deveria ter passado por todas as idades. Nesse mesmo livro, Irineu afirma que Jesus viveu mais de 40 anos. Obviamente, o bispo de Lyon estava errado. Em todo o caso, nem a citação nem o seu contexto imediato falam sobre batismo. Os pedobatistas complementam o argumento com uma citação de outra obra do bispo:

Nós somos limpos de nossas antigas transgressões por meio da água sagrada e da invocação do Senhor. Nós, portanto, somos regenerados espiritualmente como recém-nascidos, assim como o Senhor declarou: "Se alguém não nascer de novo pela água e pelo Espírito, ele não entrará no reino dos céus". (Fragmento 34)

O argumento então é que Irineu defendia a regeneração batismal, logo, se os recém-nascidos foram regenerados, eles eram batizados. Primeiro, essa combinação de citações diferentes em contextos diferentes é problemática. Hendrick Stander e Johannes Louw explicam:

É bastante pretensioso insistir em substituir a noção de batismo cada vez que um escritor usa o termo "regeneração", a menos que o contexto se relacione claramente com o batismo (...) [esta passagem em Irineu] apenas nos diz que a obra redentora de Cristo se estende a qualquer pessoa (...) A passagem não fala sobre a idade em que as pessoas eram batizadas. (Baptism In The Early Church [Webster, Nova Iorque: Carey Publications, 2004], pp. 53, 55)

Além disso, mesmo supondo que Irineu sustentasse a regeneração batismal, não segue que todo o indivíduo regenerado foi necessariamente batizado. Mesmo os defensores dessa doutrina admitem exceções à regra (ex. o ladro da cruz). Além do mais, Irineu está entre os defensores da salvação infantil – mesmo crianças não batizadas seriam salvas (uma crença popular no séc. II):

E, novamente, quem são os que foram salvos e receberam a herança? São os que sem dúvida acreditam em Deus e continuaram em seu amor, assim como Caleb, filho de Jefoné e Josué o filho de Nun, e os filhos inocentes que não tiveram consciência do mal. (Contra Heresias, 4:28:3)

E também sobra a matança dos recém-nascidos de Belém:

Por essa causa também, ele removeu de repente aqueles filhos pertencentes à casa de Davi, cujo destino feliz era ter nascido naquele tempo, para que Ele pudesse enviá-los antes para o seu reino. Desde que ele mesmo era uma criança, planejou que os bebês humanos fossem mártires assassinados de acordo com as Escrituras, por causa de Cristo, que nasceu em Belém de Judá, na cidade de Davi. (Contra Heresias, 3:16:4)

Nestas passagens, Irineu sugere que as crianças foram salvas apenas por serem inocentes. Dessa forma, como na teologia de Irineu a regeneração é condição necessária para a salvação, segue que regenerado não necessariamente implica em ser batizado. O trecho do fragmento 34 “somos regenerados espiritualmente como recém-nascidos” também não sugere o batismo de infantes. A analogia é que quando nascemos de novo espiritualmente na regeneração, tornamo-nos como bebês em sentido espiritual. Assim, podemos concluir que Irineu não pode ser contado como uma testemunha provável a favor do pedobatismo. Encerramos o segundo século com nenhum pai da Igreja ensinando explicitamente o batismo de recém-nascidos. Isso é problemático para a afirmação de que esta é a prática da igreja desde o princípio.

Tertuliano de Cartago (160-220)

Tertuliano foi a primeira testemunha a tratar de forma explícita sobre o batismo infantil. Em seu tratado sobre o batismo, ele escreveu:

E assim, de acordo com as circunstâncias e o caráter, e até mesmo a idade de cada indivíduo, o atraso do batismo é preferível; especialmente no caso de crianças pequenas (...) O Senhor realmente diz: Não os proibais de virem até mim. Deixe-os vir, então, enquanto estão crescendo. Deixe-os vir enquanto estão aprendendo, enquanto estão aprendendo para onde vir; que se tornem cristãos quando conseguirem conhecer Cristo. Por que o período de vida inocente se apressa para a remissão de pecados? (...) Deixe-os saber como pedir a salvação, que você possa ao menos fazer-lhes essas perguntas (...) Se alguém entender a importância de peso do batismo, temerá a sua recepção mais do que a sua demora: a fé sólida é segura da salvação. (Tratado sobre o Batismo, cap. 18)

O argumento de Tertuliano é claro no sentido de que o batismo é um passo de grande importância. Portanto, deve ser uma decisão consciente e convicta. Agostinho iria desprezar a posição de Tertuliano por entender que ele estava negando a existência do pecado original. Acredito que esse não foi o caso. Ao que parece, como outros pais da Igreja do séc. II, Tertuliano cria na salvação universal das crianças inocentes. Como ele não via risco na salvação de crianças não batizadas, não havia razão para adiantar algo que seria mais adequadamente administrado em idade mais tardia. Os pedobatistas costumam argumentar que Tertuliano pressupõe que a prática do batismo infantil já existia em seu tempo, por isso ele a critica.

No entanto, não está explícito que ele responde alguém em específico. Não há menção a qualquer grupo de dentro da Igreja. Tertuliano poderia muito bem tratar de uma mera possibilidade. É possível que o batismo infantil já fosse praticado? Sim, mas não é o mais provável. De qualquer forma, o mesmo argumento pode ser feito em sentido contrário. Ao condenar o batismo infantil, Tertuliano não parece ter consciência de estar indo contra a uma doutrina da Igreja. Além disso, o tratado sobre o batismo é da fase pré-montanista de Tertuliano, o que invalida a objeção que apologistas católicos constumam levantar contra ele (apenas quando Tertuliano contradiz o romanismo obviamente).

Supondo que o batismo já fosse praticado. É necessário pontuar que a simples existência da prática não a tornaria normativa. Ademais, não sabemos quão generalizada tal prática seria, pois poderia ser característico de um grupo minoritário ou de uma região geográfica específica. Não sabemos se os que a adotavam representavam a ala ortodoxa da Igreja. Toda a evidência anterior a Tertuliano sugere que o pedobatismo seria uma inovação. O fato é que o primeiro pai da Igreja a oferecer uma declaração explícita sobre o pedobatismo está negando-o.

Hipólito de Roma (170-235)

Hipólito, escrevendo no início do séc. III, afirmou:

Os batizandos se despirão e serão batizadas, primeiro, as crianças. Todos os que puderem falar por si próprios, falem; contudo, os pais ou alguém da família falem por aqueles que não puderem falar por si mesmos. Depois batizem-se os homens e, por último, as mulheres. (Tradição Apostólica 3:5)

Há alguns problemas no uso dessa citação em favor do batismo infantil:

1 – Há sérias dúvidas quanto a autenticidade desse trecho. O erudito patrístico David Wright afirmou:

Quase tudo concernente a esse texto continua sendo objeto de vigorosas discussões acadêmicas. (What Has Infant Baptism Done To Baptism? [England: Paternoster Press, 2005], p. 38)

Hendrick Stander and Johannes Louw também afirmam:

Esta citação da Tradição Apostólica é encontrada em uma tradução latina que data do século IV. Alguns estudiosos sugeriram até mesmo que não é improvável que este verso tenha sido inserido na tradução latina, pois foi no século IV que o batismo infantil se tornou popular (...) deve-se lembrar que os antigos tradutores não tinham objeções em inserir e omitir frases no texto a qual eles traduziam. Eles geralmente adaptavam os textos para sua situação atual. Isso pode ser claramente visto quando se compara, por exemplo, as seções existentes das traduções grega, saídica, árabe, etíope e boharica da tradição apostólica (...) O argumento mais importante, no entanto, para a adição posterior desta frase é que não se encaixa bem com o restante da obra. Como Aland (1963:43) apontou, as seções que precedem esta regulação batismal lidam exclusivamente com os catecúmenos adultos(...) Ele também se refere à tradução copta que contém uma declaração de que três anos de instrução na fé cristã são necessários para que uma pessoa receba o batismo. (Baptism In The Early Church [Webster, New York: Carey Publications, 2004], pp. 77-78)

2 – O texto não necessariamente implica em batismo de recém-nascidos. Stander e Louw explicam:

Aqueles que não podiam falar por si mesmos podiam ser crianças muito novas que precisavam de assistência para responder ao pronunciar as fórmulas necessárias. Elas não estavam isentas das preliminares de ensino e jejum etc. (Baptism In The Early Church [Webster, New York: Carey Publications, 2004], p. 77)

A obra em questão comina que os batizandos deveriam passar por um longo processo de instrução catequética e deveriam jejuar antes do batismo. Tais requisitos não poderiam ser atendidos por recém-nascidos, mas poderiam ser cumpridos por crianças pequenas. Dessa forma, a luz do contexto, parece improvável que Hipólito se referisse a recém-nascidos. Um destaque é importante aqui – os credobatistas não afirmam taxativamente que crianças não podem ser batizadas. Uma criança de 6, 7 anos pode estar em condições de entender e responder positivamente ao evangelho. David Wright assevera que a ideia de que um adulto falasse por uma criança, ainda que esta tivesse capacidade de falar não eram sem precedentes:

O que está em vista é a capacidade física e mental da criança ou a habilidade jurídica, implicando o reconhecimento romano de que com a idade de sete anos as crianças adquiriam certos direitos para falar por si mesmas? Agostinho e Jerônimo mais tarde considerariam sete como a nova idade de responsabilidade cristã. Agostinho [afirmou a idade de sete], em relação ao batismo de um menino falando por si mesmo. Em que termos um pai ou outro parente respondia por uma criança, ainda não sabemos e nenhuma fonte nos diz até cerca de 400. (What Has Infant Baptism Done To Baptism? [England: Paternoster Press, 2005], p. 40)

Ou seja, nos tempos de Agostinho, uma criança de 7 anos já poderia responder por si mesma. Isso implica que uma criança de 5, 6 anos não poderia. Todavia, crianças com tais idades não eram incapazes de falar. Elas apenas não tinham o direito jurídico de falar por si mesmas. Obviamente, Agostinho não pertence ao mesmo contexto que Hipólito. Mas isso no mínimo nos leva a concluir que a interpretação pedobatista da citação não é definitiva e necessitaria de mais dados para ser sustentada. Além disso, um concílio em Cartago permitia que alguém falasse pelas pessoas doentes nas cerimônias de batismo (veja o cânon 45 aqui). Isto vem a reforçar que o simples falar por alguém não implica que o catecúmeno fosse totalmente incapaz de se expressar.

Orígenes de Alexandria (185-254)

Orígenes foi o primeiro pai da Igreja a defender claramente o batismo infantil:

Um recém-nascido era capaz de pecar? Ainda assim ele tem um pecado pelo qual é ordenado que sacrifícios sejam oferecidos, e a partir do qual é negado que alguém seja puro, mesmo que sua vida dure apenas um dia (...) É também por isso que a Igreja recebeu dos apóstolos a prática de dar o batismo até aos filhos pequenos. (Comentário sobre Romanos, Livro 5, cap. 9)

A afirmação de Orígenes obviamente não tem raízes históricas confiáveis. Vimos que pele menos um pai da igreja anterior a ele ensinou explicitamente o contrário. Tertuliano não se oporia ao batismo infantil se o considerasse uma prática herdada dos apóstolos. O apoio de Orígenes ao pedobatismo se baseia na pecaminosidade dos bebês. Ele derivou este ensino da pré-existência das almas. Segundo o alexandrino, as almas foram criadas e teriam pecado antes da criação do mundo. Todas essas almas (exceto de Jesus) foram exiladas em corpos humanos. Obviamente, essa visão de queda e redenção não é apostólica. Por isso rejeitamos a doutrina de Orígenes, pois se baseia numa doutrina contrária ao que os apóstolos ensinaram.

Cipriano de Cartago (200-258)

Enquanto Orígenes foi o primeiro a defender o batismo de infantes na igreja oriental, Cipriano foi o primeiro na igreja oriental.

“É no batismo que nós (...) recebemos a remissão dos pecados" (Carta 58 a Fido). Em resposta ao bispo Fido, que sugeriu que o batismo deveria ser no oitavo dia, Cipriano e o Sínodo de Cartago (cerca de 252) disseram que o 2º ou 3º dia eram melhores e que a espera "negaria a misericórdia e a graça de Deus" e "devemos fazer tudo o que possamos para evitar a destruição de qualquer alma".

É inegável que Cipriano ensinou o pedobatismo e que se tratava de uma prática já estabelecida na igreja norte africana em meados do séc. III. Cipriano cria na indispensabilidade do batismo para a salvação. Dessa forma, crianças não batizadas estaria correndo risco de irem para o inferno. Esta é uma visão contrária ao que os pais do segundo século ensinaram, nos quais a salvação infantil independente do batismo foi a visão majoritária.

Basílio Magno (330-379)

Sites católicos como o já mencionado Veritatis trazem uma citação de Basílio acerca da necessidade do batismo. Todavia, nada é falado sobre o batismo de crianças. De fato, nem poderia, pois Basílio via a fé como condição necessária:

A fé e o batismo são dois modos de salvação iguais e inseparáveis: a fé é aperfeiçoada através do batismo, o batismo é estabelecido através da fé, e ambos são completados pelos mesmos nomes. Pois, como acreditamos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, também somos batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; primeiro vem a confissão, apresentando-nos a salvação, e o batismo segue, estabelecendo o selo sobre o nosso consentimento. (O Espírito Santo, Cap. 12:28)

Na mesma obra, ele continua a ensinar a fé que precede o batismo:

Como, então, conseguimos a descida para o inferno? Ao imitar, através do batismo, o enterro de Cristo. Pois os corpos dos batizados estão, por assim dizer, enterrados na água. O batismo simboliza expulsar as obras da carne. (O Espírito Santo, Cap. 15:35)

No que diz respeito ao batismo (...) é impossível que alguém seja imerso três vezes, sem emergir três vezes. (O Espírito Santo, Cap. 15:35)

São descrições incompatíveis com o batismo de infantes.

Gregório Nazianzeno (329-389)

Gregório expressa uma opinião peculiar. É possível dizer que ele ficou no meio termo entre o credo e pedobatismo:

Tudo isto é dito para aqueles que pedem o batismo por si mesmos; mas o que podemos dizer das crianças, ainda de pouca idade, que são incapazes de perceber o perigo em que se encontram e a graça do sacramento? Certamente, no caso de perigo imediato, é melhor batizá-las sem o seu consentimento do que deixá-las morrer sem ter recebido o selo da iniciação. Somos obrigados a dizer o mesmo acerca da prática da circuncisão, que era realizada no oitavo dia prefigurando o batismo, também realizada nos meninos desprovidos de razão. Da mesma forma, realizava-se a unção dos umbrais da porta que, embora se tratasse de coisas inanimadas, protegia os primogênitos. E quanto às demais crianças? Eis aqui a minha opinião: esperai que alcancem a idade de três anos, de modo que sejam capazes de compreender e expressar superficialmente os mistérios; apesar da imperfeição da sua inteligência, recebem o sinal, e o seu corpo e a sua alma se encontram santificados pelo grande sacramento da iniciação. Elas renderão conta dos seus atos no momento preciso em que, com plena posse da razão, chegarem ao pleno conhecimento do Mistério, já que não serão responsáveis das faltas que, pela ignorância da idade, tiverem cometido. Ademais, de todos os modos, lhes resulta vantajoso possuir a muralha do batismo para se proteger dos perigosos ataques que caem sobre nós e ultrapassam as nossas forças (…) Porém, alguém dirá: ‘Cristo, que é Deus, se fez batizar aos trinta anos e tu nos empurras desde logo o batismo’. Afirmar assim a sua divindade é o que responde a essa objeção. Ele – a própria pureza – não precisava de purificação, mas se fez purificar por vós, assim como por vós se fez carne, uma vez que Deus não tem corpo. Além disso, Ele não corria nenhum perigo por retardar o seu batismo, pois podia livremente regular o seu sofrimento assim como regulou o seu nascimento. Para vós, ao contrário, não seria pequeno o perigo no caso de deixardes este mundo sem terdes recebido, no vosso nascimento, nada além que uma vida perecível, sem estardes revestidos da incorruptibilidade. (Sermão 40,26-27)

Gregório expressa a liberdade existente ainda no séc. IV sobre o batismo de crianças. Se a criança corria risco de morte, deveria ser batizada. Em caso contrário, dever-se-ia esperar até os três anos. Mas porque essa idade? Ele acreditava que nessa idade já seria possível expressar de forma superficial o consentimento ao evangelho. Percebam como a regra era que a criança deveria expressar algum consentimento, ainda que com razão imperfeita. Trata-se de uma posição incompatível com o pedobatismo, mas não necessariamente incompatível com o credobatismo. A maioria dos credobatistas discordaria de Gregório quando a idade do batizando, mas concordaria com o requisito do consentimento. Além disso, o bispo cristão atesta que em seus dias havia indivíduos provavelmente cristãos contrários ao batismo de infantes. Estes argumentavam que Cristo foi batizado apenas aos 30 anos, portanto, não faria sentido batizar crianças. Gregório rebate tal argumento. De todo modo, seu testemunho é importante para atestar a liberdade que havia a respeito dessa questão. Se a Igreja desde cedo creu que a prática era apostólica e obrigatória, a existência de opiniões como a de Gregório é inexplicável. Everett Ferguson escreve:

Gregório claramente não rejeita, mas incentiva o batismo de bebes. No entanto, não o reconhece como a prática regular, como também conhece questionamentos a respeito - fatores que não estimulam a ideia de que era uma prática rotineira de longa data. (Baptism in the Early Church, Grand Rapids, 2009, p. 595)

Pais da Igreja que nasceram em famílias cristãs

A evidência de que havia ampla liberdade sobre o batismo de crianças está no fato de que boa parte dos pais da igreja do séc. IV, que nasceram em famílias cristãs, somente foram batizados na idade adulta. S. L Greenslade escreveu:

Ambrósio nasceu no ano de 339 (...) era filho de cristãos e foi criado como cristão, mas, à maneira de seu tempo, teve seu batismo adiado. (Early Latin Theology, S. L. Greenslade, The Westminster Press, Louisville, 1956, p. 175)

O historiador Stefan Rebenich escreveu:

Jerônimo nasceu em 347 (...) [perto] da Dalmácia (...) Os pais de Jerônimo eram cristãos, que cuidaram para que ele tivesse sido como bebê "alimentado com o leite católico". Ele não foi batizado quando era criança (...) mas como jovem (...) Naquele tempo, o batismo foi adiado até a maturidade (...) Os amigos de Agostinho e Jerônimo, Rufino e Heliodoro, são casos paralelos. (Jerome, Stefan Rebenich, Routledge, London 2002, p. 2)
O erudito patrístico J. N. D. Kelly escreveu sobre João Crisóstomo:

Sua família (...) era cristã (...) Apesar disso, ele não foi batizado na infância. Seguindo a prática amplamente aceita naqueles dias (...) foi apenas como um jovem aproximando-se dos vinte que ele se ofereceu para o batismo. (Golden Mouth: The Story of John Chrysostom, Ascetic, Preacher, Bishop, J.N.D.Kelly, Cornell University Press, 1995, p. 5)

Agostinho também testemunha que ele próprio não foi batizado quando criança:

Eu pergunto-lhe, meu Deus, pois, se é sua vontade, eu desejo saber - para que propósito meu batizado foi adiado neste momento? Foi para o meu bem que as rédeas que me privaram do pecado fossem diminuídas? Ou não é verdadeiro que elas estavam relaxadas? (Confessions. Trans. R.S. Pine-Coffin. London: Penguin Books, 1961. Book 1.11, p. 31-32)

Na infância, Agostinho foi acometido por uma doença. Sua mãe Mônica – uma cristã piedosa – considerou a possibilidade de batizá-lo uma vez que o filho corria risco de vida. O bispo de Hipona foi curado e. como era o costume de seus dias, teve seu batismo adiado para a idade adulta. Todos esses exemplos demonstram que adiar o batismo não apenas era aceitável, como foi a posição padrão. Esse é um dado problemático para aqueles que defendem o batismo infantil como uma prática apostólica. O fato de tantos pais cristãos piedosos adiarem o batismo de seus filhos até a idade adulta demonstra que a igreja não havia dogmatizado sobre o tema. Comparemos com o que diz o catecismo:

A Igreja e os pais negariam a uma criança a graça inestimável de se tornar filho de Deus se não conferissem a ele o batismo pouco depois do nascimento (...) Mais urgente é o apelo da Igreja para não impedir que as crianças pequenas venham a Cristo através do presente do santo batismo (...) Com respeito a crianças que morreram sem o batismo, a liturgia da Igreja nos convida a confiar na piedade de Deus e a rezar pela salvação. (Catecismo da Igreja Católica, 1250, 1261, 1283)

Percebam que a prática do batismo infantil não é uma opção, mas uma obrigação dos pais. Negar o batismo às crianças poria em risco a salvação. Isso contrasta com a liberdade que houve na igreja antiga. O ponto de inflexão da história foi Agostinho. Apesar de ele mesmo não ter sido batizado na infância, tornou-se o voraz defensor dessa prática. Foi ele quem ofereceu a justificativa teológica para dogmatização do batismo infantil. Ele viu no pedobatismo um poderoso argumento em sua controvérsia contra os pelagianos. Para o bispo de Hipona, negar o batismo equivalia a negar o pecado original. 

O que a erudição moderna diz a respeito das raízes históricas do batismo infantil?

A erudição moderna realiza a opinião de que o batismo não foi uma prática dos apóstolos. Esta opinião tem sido seguida por muitos teólogos pedobatistas. O batismo de infantes teria sua origem nos filhos de cristãos que corriam risco de vida.  O estudioso luterano pedobatista H.A.W. Meyer diz:

O batismo dos filhos dos cristãos, do qual nenhum vestígio é encontrado no N.T, não deve ser considerado uma ordenança apostólica, pois, de fato, encontrou longa e precoce resistência; mas é uma instituição da igreja, que surgiu gradualmente nos tempos pós-apostólicos em conexão ao desenvolvimento da vida eclesiástica e do ensino doutrinário. Certamente não foi observado antes de Tertuliano, e por ele ainda foi decididamente combatido. Embora defendido por Cipriano, só se tornou uma prática generaliza após o tempo de Agostinho (...). (Commentary on Acts [16:15], New York: Funk & Wagnalls, 1883, p. 312)

O erudito patrístico pedobatista David Wright é um exemplo dessa tendência da erudição moderna:

Nós rastreamos, em grande parte nesta palestra, atendendo aos textos do desenvolvimento batismal ocidental, uma mudança verdadeiramente maciça na história da igreja de Cristo. De uma instituição que recrutava por resposta intencional ao evangelho pelo imperativo do discipulado e batismo, tornou-se uma sociedade inscrita desde o nascimento. Foi indiscutivelmente uma das maiores mudanças na história do cristianismo. Ela levou, como vimos, à formação da cristandade, compreendendo um império cristão, nações ou povos cristãos. O cristianismo tornou-se uma questão de hereditariedade e não de decisão. As famosas palavras de Tertuliano "feunt, non nascuntur, Christiani" - "pessoas são feitas, não nascidas cristãs", foram viradas de cabeça para baixo. (What Has Infant Baptism Done To Baptism? (England: Paternoster Press, 2005), p. 74)

Wright ainda diz sobre os credos ecumênicos:

O único credo ecumênico a mencionar o batismo é o niceno (nenhum menciona a eucaristia) na frase "um batismo para a remissão dos pecados". Tenho argumentado em outro lugar que isso não pode ter compreendido originalmente bebês, porque nos círculos em que este credo surgiu, para ser aprovado no Concílio de Constantinopla em 381 (se aceitarmos o testemunho dos Padres no Concílio de Calcedônia setenta anos depois, como a maioria dos eruditos faz), acreditava-se que os recém-nascidos não tinham pecados. (Ibid., p. 93)

E continua:

Peter Leithart afirmou recentemente que "a igreja foi salva da teologia e prática batista por Agostinho de Hipona". Se “batista” aqui implique a rejeição ao batismo infantil, essa afirmação corajosa é um exagero, mas dentro de limites perdoáveis (...) Para Leithart "o fato notável sobre o batismo na igreja primitiva é que o batismo infantil se tornou (...) a prática dominante da Igreja". Esta não é a maneira como a história geralmente é contada! Na verdade, é bastante enganador ver a era dos pais simplesmente como uma era de batismo infantil. Na verdade, dentre os indivíduos mais conhecidos daqueles séculos que eram cristãos e foram batizados em datas conhecidas, a grande maioria foi batizada pela profissão de fé (...) Como Leithart resume de forma útil: "as primeiras liturgias batismais (...) foram construídas sobre pressupostos batistas, mesmo quando as crianças era incluídas" (...) Leithart não consegue tirar a conclusão óbvia dessa evidência - o batismo infantil nunca pode ter sido a norma neste período inicial (...) O prazo do reinado do batismo de bebês se prolonga desde o início do período medieval, a partir do século VI, isto é, depois de Agostinho de Hipona, que morreu em 430. Foi ele quem forneceu a teologia que levou o batismo infantil a se tornar uma prática geral pela primeira vez na história da igreja. (Ibid., pp. 4-6, 8, n. 7 na p. 8, 12, 17)

O estudioso Anthony Lane expressa uma opinião peculiar:

A situação nos primeiros séculos foi de que as duas formas de batismo existiram lado a lado, tanto por causa do grande afluxo de conversos quanto porque de modo algum todos os cristãos trouxeram seus bebês ao batismo. A "dupla prática" de permitir aos cristãos a escolha de que os seus filhos fossem batizados ou não, e, em caso afirmativo, em que idade, pode parecer hoje confuso e sem princípio. O fato claro é que tal variedade de prática existiu no terceiro e quarto séculos e ninguém criou nenhum princípio opositor contra ela. Na verdade, pode-se argumentar com este fato que é muito provável que tal aceitação de variedades remonta aos tempos apostólicos. (Ibid., p. 7-8)

Everett Ferguson – autor do estudo mais detalhado sobre o tema – escreve:

Há concordância geral de que não há evidências firmes para o batismo infantil antes da última parte do segundo século (...) A explicação mais plausível para a origem do batismo infantil é encontrada no batismo de emergência de crianças doentes que se esperava que morressem em breve, de modo a garantir a entrada no reino dos céus. (Baptism in the Early Church, Grand Rapids, 2009, p. 856)

A respeito do período em que o batismo infantil se tornou dominante:

[Batismo infantil] foi geralmente aceito, mas questionamentos continuaram a ser levantados sobre a sua propriedade no século V. Tornou-se a prática habitual nos séculos V e VI. (p. 857)

Mesmo os eruditos pedobatistas tendem a afirmar que o batismo infantil não é uma prática que remonta aos apóstolos. Nós situamos a primeira evidência patrística favorável em meados do séc. III (Orígenes e Cipriano) e argumentamos contra aqueles que citam Irineu como a primeira evidência. Em todo o caso, o consenso sugere que o batismo infantil começou a ser praticado em virtude de crianças no leito de morte. Até o séc. V, não havia qualquer posição dogmática a respeito. Por isso, era usual que mesmo os filhos de pais cristãos tivessem o batismo adiado. Os defensores do batismo infantil costumam apontar para a história como o argumento decisivo em favor de sua posição. No entanto, concluímos que a história oferece mais problemas do que apoio a posição pedobatista.