segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Salvação Fora da Igreja: Os Pais da Igreja vs. A Igreja de Roma (Parte 1)


Iremos fazer a viagem histórica mais longa desse blog. Usualmente analisamos as doutrinas num período de tempo que compreende os primeiros séculos do cristianismo – comumente o período dos pais da igreja. Dessa vez iremos analisar se o atual ensino da Igreja Romana sobre o slogan “fora da Igreja não há salvação” é consistente com o passado, ou para usar termos mais católicos, com a tradição. Atualmente, há grupos tradicionalistas e sedevacantistas afirmando que a Igreja Romana, tendo sido tomada por modernistas, alterou o ensino histórico sobre esse tema. Se isto for verdade (pretendo demonstrar que é), significa que o magistério católico não é infalível.

Os próximos artigos terão como base o trabalho do renomado eclesiologista católico romano Francis A. Sullivan. Não é a primeira vez que o utilizamos neste blog. Nossos artigos sobre sucessão apostólica (aqui) são em grande parte inspirados na obra desse teólogo. Sullivan apresenta uma substanciosa pesquisa histórica (veja aqui seu livro). Primeiro, trataremos do pensamento patrístico, depois dos teólogos e concílios medievais e então das primeiras sementes da doutrina atual que somente surge no magistério oficial no séc. XIX.

O ensino moderno de Roma

Slogan’s podem ser enganosos. Normalmente um slogan não diz muito sobre seu próprio significado. Duas ou mais pessoas podem concordar com o slogan “Fora da Igreja não há salvação”, mas sustentarem opiniões completamente diferentes sobre seu significado. O papa João Paulo II afirmou:

"... Entre as coisas que a Igreja sempre pregou e nunca deixará de pregar está também a afirmação infalível que nos ensina que 'fora da Igreja não há salvação'." (Fonte)

O catecismo expressa o ensino moderno sobre o slogan:

171. Que significa a afirmação: 'Fora da Igreja não há salvação'?
846-848
Significa que toda a salvação vem de Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é o seu corpo. Portanto não poderiam ser salvos os que, conhecendo a Igreja como fundada por Cristo e necessária à salvação, nela não entrassem e nela não perseverassem. Ao mesmo tempo, graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita." (Fonte)

Todos aqueles que tiverem a chamada ignorância invencível podem ser salvos, mesmo sem expressar fé em Jesus. Isto quer dizer que mesmo pessoas que nunca ouviram falar de Jesus (os não-evangelizados), muçulmanos, judeus, cismáticos e hereges podem ser salvos.

Os Pais da Igreja dos três primeiros séculos

Os cristãos primitivos tiveram que lidar com uma objeção frequentemente levantada por pagãos e judeus – como Jesus poderia ser o salvador se ele veio tão recentemente. Como ficaria a situação dos que viveram antes de Cristo? A resposta cristã sempre foi no sentido de que a salvação dos judeus da antiga aliança e em alguns casos até mesmo de pagãos tementes a Deus era possível. Sullivan escreveu:

Há certamente outras evidências, nos escritos dos pais anteriores a Santo Agostinho, de uma resposta positiva à questão sobre a possibilidade de salvação para as pessoas que viveram antes da vinda de Cristo. Uma fonte frutífera de especulação sobre isso também foi encontrada no Novo Testamento, na referência à "pregação aos mortos" de Cristo durante o tempo entre sua morte e ressurreição (1 Pe 3:19 e 4:6). Contudo, o que temos visto deve ser suficiente para mostrar quão geral era a visão de que Deus havia providenciado os meios de salvação tanto para os judeus quanto para os gentios durante a era pré-cristã. Também foi comumente afirmado que a salvação sempre foi através de Cristo, embora houvesse diferentes explicações sobre isso. (Sullivan, Francis A, Salvation Outside the Church? Tracing the History of the Catholic Response, Wipf and Stock Publishers, 2002, p. 17)

Sobre a salvação na era cristã, Inácio de Antioquia escreveu no início do século II:

Não sejam enganados meus irmãos: se alguém segue um cismático, ele não herda o Reino de Deus. Se alguém anda em doutrina estranha, ele não tem parte na paixão. (Carta aos Filadelfios)

Sullivan comenta:

Deve-se notar que aqui não é apenas o “criador do cisma”, mas também aqueles que o seguem, que não herdarão o reino de Deus. Da mesma forma, não é apenas o originador da falsa doutrina, mas também aqueles que nela andam, que não terão parte na paixão. Quando Inácio adverte cismáticos cristãos e hereges que não há salvação para eles fora da igreja, ele claramente julga-os pessoalmente culpados por estarem do lado de fora. (Sullivan, p. 18)

Irineu escreveu na segunda metade do séc. II:

Na igreja Deus colocou apóstolos, profetas, mestres e todas as outras obras do Espírito, dos quais ninguém é participante a menos que pertença à igreja, mas que se defraudam da vida, por uma mente má e um péssimo meio de agir. Pois onde a igreja está, há o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus, há a igreja e toda a graça. (Contra as Heresias 3:24:1)

Sullivan diz:

Os gnósticos se orgulhavam de seu conhecimento superior, mas Irineu os avisou que é somente na verdadeira igreja que se pode ter a vida e a graça do Espírito, da qual hereges e mestres se defraudam. É óbvio que Irineu os considerou culpados de sua separação da igreja e, portanto, responsáveis por sua própria exclusão do reino do Espírito. (Sullivan, p. 19)

No entanto, há uma citação que alguns poderiam apontar como evidência de que Irineu cria na possibilidade de salvação de não cristãos:

Cristo não veio somente para aqueles que viveram na época do imperador Tibério, nem o Pai exerce sua providência somente para aqueles que estão vivendo agora. Ao contrário, ele providenciou para todos aqueles que desde o princípio viveram virtuosamente em sua própria geração, temeram e amaram a Deus, e trataram seus vizinhos com justiça e bondade, e desejaram ver a Cristo e ouvir sua voz (...) (Contra as Heresias 4:22:2)

O teólogo católico comenta:

A última frase obviamente se refere ao povo de Israel que esperava a vinda do messias. Talvez possa ser tomado também para se referir aos gentios que passaram a acreditar em Deus como salvador, e assim se poderia dizer que desejavam implicitamente a vinda de Cristo. (Sullivan, p. 16)

Ou seja, Irineu está afirmando que houve salvação entre aqueles que viveram antes de Cristo. Eles “desejaram ver a Cristo”. O bispo de Lyon nada está falando sobre os que vieram após o advento. No século III, Orígenes escreveu:

Este comando é dado à mulher que havia sido prostituta antes: “Todos os que são encontrados em sua casa serão salvos. Mas, no que diz respeito àqueles que saem de sua casa, ficaremos livres deste juramento que fizemos a você”. Portanto, se alguém quiser ser salvo, que venha a esta casa dela que já foi prostituta. Se alguém desse povo deseja ser salvo, que ele venha a esta casa, para que possa encontrar a salvação. Que ele venha a esta casa, na qual o sangue de Cristo é o sinal da redenção (...) Portanto, que ninguém persuada si mesmo, não engane a si mesmo: fora desta casa, isto é, fora da igreja, ninguém é salvo. Pois se alguém sair, ele é responsável por sua própria morte." (Homilias em Josué 3:5)

Segue o comentário:

Algumas observações exegéticas podem ser úteis aqui. A “mulher que foi prostituta” sugere a imagem da igreja gentia como pecadora convertida. Ela que viveu no vício pagão é agora a esposa casta de Cristo. O cordão vermelho que Raabe prendeu da janela era o sinal para o exército hebreu invasor de que sua casa seria poupada; para Orígenes, isso significa o sangue de Cristo, que é o sinal de redenção para a igreja. O convite de Orígenes aos membros do "povo" é claramente direcionado aos judeus que não aceitaram a mensagem cristã de salvação. Mas o principal aviso nesta passagem é dirigido contra aqueles que saem da única casa em que a salvação é encontrada. Assim como era o caso em Jericó, qualquer pessoa que saísse também seria responsável por sua própria morte. Isso se refere claramente aos cristãos que, tendo estado na igreja, o deixariam para se juntar a uma seita herética ou estranha. Não há salvação fora da igreja, e aqueles que saem têm apenas a si mesmos para culpar por sua perda. (Sullivan, p. 19-20)

Passemos para um dos mais citados padres da Igreja quando se trata esta questão – Cipriano de Cartago. Ele disse:

Nem o batismo de confissão pública [da fé sob tortura], nem de sangue [derramado pela fé], pode trazer salvação para o herege, porque não há salvação fora da igreja. (Epístola 73:21)

E ainda em sua obra “Da Unidade da Igreja”:

Ainda que esses homens fossem mortos pela confissão do nome cristão, o seu sangue não lavaria esta mancha. O pecado da discórdia é tão grande e tão imperdoável, que não se apaga nem pelos tormentos. Não pode ser mártir quem não está na Igreja, não pode alcançar o Reino quem abandonou aquela que nasceu para reinar. (Da Unidade da Igreja 14:1)

Aquele que, afastando-se da Igreja, vai juntar-se a uma adúltera, fica privado dos bens prometidos à Igreja. Quem abandona a Igreja de Cristo não chegará aos prêmios de Cristo. Torna-se estranho, torna-se profano, torna-se inimigo. Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe. Como ninguém se pôde salvar fora da arca de Noé, assim ninguém se salva fora da Igreja (Da Unidade da Igreja 6:2-3)

Sullivan diz:

Embora, como vimos, outros antes dele tivessem advertido que não havia salvação fora da igreja, o nome de Cipriano está especialmente associado a esse axioma, que ocorre com frequência e urgência em seus escritos. Apesar dessa frequência, no entanto, não há nenhum exemplo de ele endereçar esta advertência aos não-cristãos que ainda eram a maioria do povo no império romano de sua época. Cipriano dirigiu esta advertência para os cristãos que estavam em perigo de serem separados da igreja pela excomunhão, ou já estavam separados dela por cisma. Em todos os casos, há evidências claras de que Cipriano julgou tais pessoas culpadas de sua separação da igreja e, portanto, pessoalmente responsáveis ​​por sua exclusão da salvação para ser encontrada somente na igreja. (Sullivan, p. 20)

Tendo visto os pais da igreja dos três primeiros séculos, observamos que suas advertências quanto a não disponibilidade de salvação fora da igreja foram direcionadas geralmente a cismáticos e hereges. Não encontramos ainda respostas específicas para o caso daqueles que ainda não haviam ouvido o evangelho. Contudo, eles consideram os cismáticos e hereges culpados e merecedores da condenação eterna. A partir disso, pode-se dizer que eles não adotavam a ideia da ignorância invencível para esses grupos.

Pais da Igreja do século quatro

Sullivan comenta sobre este período:

É agora que encontramos os pais aplicando a doutrina de que “não há salvação fora da igreja” para a situação dos pagãos e judeus. Como vimos, a advertência dirigida aos hereges e cismáticos cristãos incluía um julgamento sobre sua culpa por estar fora da igreja. O que encontramos agora é um julgamento semelhante de culpa em relação a todos que não aceitaram a fé cristã (...) A conclusão foi que aqueles que não o aceitaram eram culpados de recusar a oferta de salvação de Deus e seriam justamente condenados. (Sullivan, p. 24)

O mesmo julgamento de culpa aplicado a todos os heréticos e cismáticos era agora aplicado a todos os judeus e pagãos que rejeitavam a fé cristã. Ambrósio de Milão disse:
Se alguém não acredita em Cristo, defraudar-se-á desse benefício universal, como se alguém bloqueasse os raios do sol fechando sua janela. Pois, a misericórdia do Senhor foi espalhada pela igreja para todas as nações; a fé se espalhou para todos os povos. (Sermão 8:57 no Salmo 118)

Gregório de Nyssa – contemporâneo de Ambrósio – também escreveu:

Se, então, a fé é uma coisa boa, eles dizem, por que esse presente não vem para todos? Agora, se o que estamos dizendo foi tomado como significando que a fé foi distribuída aos homens pela vontade divina de tal forma que alguns foram chamados, mas outros não receberam nenhum chamado à fé, então com razão alguém poderia acusar este mistério de injustiça. Mas se, de fato, a convocação foi dada a todos, sem diferença em razão de posição, idade ou nação (...) como poderia ser correto culpar a Deus pelo fato de que sua palavra não alcançou seu domínio sobre todos? Pois aquele que tem plenos poderes sobre o universo, pela suprema honra da humanidade, deixou algo em nosso poder, do qual cada um é o mestre, e esta é a vontade, uma coisa que não pode ser escravizada, e tem poder auto-determinante, uma vez que está assentada na liberdade de pensamento e na mente. Portanto, tal culpa seria mais justamente atribuída àqueles que não foram atraídos pela fé, do que àquele que os chamou para acreditar. (Oração catequética 30)

Observem como Gregório culpa a todos os que não tiveram fé em Cristo. Ele não acreditava na eleição incondicional e atribua unicamente ao arbítrio da criatura a culpa por não ser salvo. Não havia ignorância invencível aqui. João Crisóstomo, escrevendo no fim do séc. IV, foi mais explícito:

Ninguém deveria pensar que a ignorância desculpa o não crente (...) Quando você é ignorante do que poderia ser facilmente conhecido, você tem que sofrer a penalidade. Quando nós fazemos tudo o que nos é possível, em assuntos onde nos falta conhecimento, Deus irá nos estender a sua mão. Mas, se não fazemos o que podemos, Deus não nos estenderá a sua ajuda (...) Então diga: “Como Deus tem negligenciado o pagão sincero e honesto?” Você perceberá que ele não tem sido diligente na busca da verdade, desde que o que concerne à verdade é agora claro como o sol. De quem eles obterão o perdão, quando eles veem a doutrina da verdade diante deles, não fazendo esforço para conhece-la? Pois agora o nome de Deus é proclamado para todos. O que os profetas predisseram se tornou verdade, e a religião dos pagãos foi provada falsa (...) É impossível que alguém que seja vigilante na busca da verdade seja desprezado por Deus. (Homilia em Romanos 26:3-4)

Crisóstomo retorna a este argumento numa homilia no qual ele estava exortando seu rebanho a orar pela conversão dos pagãos:

Cristo deu a si mesmo pelos pagãos? Você pergunta. Sim, Cristo morreu pelos pagãos também. Como você então não tem orado por eles? Mas como é isto você pergunta, já que eles não têm crido? Isto é porque eles não desejavam. Cristo fez a sua parte para com eles, sua paixão testemunha isto. (Homília em 1 Timóteo 7:2)

Sullivan comenta sobre Crisóstomo:

Foi sem dúvida o julgamento de St. João Crisóstomo de que não havia nenhuma salvação para os pagãos fora da igreja e que era por própria culpa que eles estavam fora. Seu julgamento sobre os judeus de seus dias foi ainda mais implacável. Os sermões que ele pregou em Antioquia advertindo os cristãos contra a participação em festividades judaicas contém algumas das mais ofensivas linguagens sobre os judeus a ser encontrada na literatura cristã. Que ele considerou os judeus culpados por rejeitarem a Cristo, e os excluiu da salvação desde que eles persistiram nesta rejeição, é evidente em todas as páginas desses sermões. É suficiente mencionar apenas uma observação que ele fez, no curso de uma exortação para alguns de seus membros que estavam resistindo ao seu chamado para conversão. Ele os avisou:

Você tem motivos para se envergonharem caso não melhorem, mas persistam em seu comportamento prematuro. Isto é o que destruiu os judeus. (Discurso contra os cristãos judaizantes). (Sullivan, p. 26)

Sullivan fornece um sumário da posição dos pais da igreja até o fim do séc. IV. Embora seja possível que as posições variassem, é claro que todas elas são incompatíveis com o atual ensino da Igreja de Roma:

Três pontos destacam-se no pensamento dos escritores deste período [séculos II a IV]. A primeira é sua atitude geralmente positiva sobre a possibilidade de salvação tanto para os judeus como para os gentios que viveram antes da vinda de Cristo. A segunda é a sua atitude uniformemente negativa sobre a possibilidade de salvação para os cristãos que foram separados da grande igreja por heresia ou cisma. Estes eles julgaram culpado de grave pecado pessoal contra a caridade, uma vez que identificaram a comunhão da igreja com o amor, e viram todos os que aderiram a um grupo cismático e não meramente seus fundadores como culpados do pecado de cisma. O terceiro ponto é que é apenas no fim do quarto século, quando o cristianismo se tornou a religião oficial do império e a maioria de seus cidadãos aderiu a ele, encontramos o axioma “Nenhuma salvação fora da igreja” sendo explicitamente aplicado a pagãos e judeus. Aqui o julgamento negativo baseou-se no pressuposto de que agora todos já tinham a oportunidade de aceitar a mensagem cristã, que a sua verdade era evidente para todos, e que aqueles que se recusaram a aceitá-lo estavam fechando seus olhos para a verdade pela qual eles poderiam ser salvos. (Sullivan, p. 27)

Agostinho de Hipona

Agostinha merece um capítulo à parte porque nenhum pai da Igreja tratou de forma tão detalhada a questão da salvação fora da igreja. Agostinho seguiu o ensino tradicional sobre a possibilidade de salvação dos que viveram antes de Cristo. Esta ideia está contida em sua carta a Deogratias, a qual Sullivan comenta:

Nessa resposta à pergunta feita por Deogratias, encontramos várias das convicções de Agostinho em relação economia divina da salvação. Primeiro, a salvação sempre foi através da fé em Cristo e adoração a ele; só isso é a verdadeira religião. No entanto, essa religião sempre esteve disponível para aqueles que eram dignos dela. Mesmo aqueles que não são da raça hebraica receberam alguma revelação obscura, mas suficiente. Se tal revelação não foi feita a alguns, foi porque Deus previu que eles não acreditariam se lhes fosse feito. Daí eles foram responsáveis ​​por sua ignorância do mesmo. Agostinho tirou conclusões adicionais dos princípios que acabamos de mencionar. Uma foi que todos aqueles que já viveram justamente foram salvos por sua fé em Cristo, tiveram Cristo como sua cabeça e foram membros de seu corpo. Assim o corpo e Cristo consiste de todos os justos, começando com Abel, o primeiro homem a morrer na amizade de Deus (3) (...) Ao mesmo tempo, temos que ter em mente a convicção de Agostinho de que ninguém jamais foi salvo, exceto pela fé em Cristo, o único mediador da salvação. Ele não dá uma explicação muito satisfatória de como os gentios poderiam ter chegado a tal fé. Parece que ele simplesmente concluiu, a partir da premissa de que eles devem ter tido fé em Cristo para serem salvos, que deveria estar disponível para eles.  (Sullivan, p. 30)

Observem como Agostinho fez uso da presciência divina para explicar porque alguns gentios não receberam qualquer revelação a respeito do Cristo. Mais importante ainda é perceber que ninguém poderia ser salvo sem expressar fé em Cristo. Agostinho escreveu sobre os hereges e cismáticos:

Quem é separado da Igreja Católica pelo único pecado de ter se apartado da unidade de Cristo, não importa quão estimável tenha sido a vida que ele viveu. Ele não terá vida e sobre ele restará a ira de Deus. (Epístola 141:5)

E também:

O inimigo da unidade não tem parte no amor divino. Consequentemente, aqueles que estão fora da igreja não têm o Espírito Santo. (Epístola 185:50)

O bispo de Hipona disse ao se referir ao batismo ministrado pelos donatistas:

Quando uma pessoa é batizada em algum grupo herético ou cismático, fora da comunhão da igreja, seu batismo não é proveitoso para ele, na medida em que ele dá seu consentimento à perversidade daqueles hereges ou cismáticos. (Do batismo 3:16:2)

Numa declaração mais explicita ele diz:

Fora da Igreja é possível tudo, exceto a salvação. É possível ter honras, é possível ter sacramentos, é possível cantar aleluias, é possível responder amém, é possível possuir o Evangelho, é possível ter fé no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, é possível pregar; mas em nenhum lugar senão na Igreja Católica, é possível encontrar a salvação. (Sermo ad caesariensis ecclesiae plebem 6)

Finalmente, Agostinho insiste que mesmo se o membro de uma seita herética sofresse o martírio, isto não iria salvá-lo:

O batismo não será de nenhum benefício para o herético se, enquanto fora da Igreja, ele fosse morto por confessar a Cristo. Esta é a verdade. O fato de permanecer fora da Igreja prova que ele não tem caridade. (Do batismo 4:17-24)

Será que Agostinho diferenciou aqueles que iniciaram o cisma daqueles que apenas seguiram ou mesmo já nasceram num grupo cismático. Não seria possível alguém seguir o grupo errado, porém, estando de boa-fé (ignorante invencível)?

Aqueles que por ignorância são batizados lá [em um grupo cismático], achando que seja a igreja de Cristo, cometem um pecado menos grave em comparação com aqueles [culpados de iniciar o cisma]. No entanto, eles também são feridos pelo sacrilégio do cisma. Não se pode dizer que eles não sejam gravemente feridos por causa disso, sob o argumento de que os outros estão mais gravemente feridos. (Do batismo 1:5-6)

Embora estabeleça uma diferença de gravidade, os seguidores do cismático também eram culpados. Sullivan escreveu:

Em nossa época ecumênica moderna, sem dúvida estamos inclinados a considerar Santo Agostinho excessivamente duro ao julgar todos os que pertenciam a um grupo cristão separado como compartilhando a culpa do cisma e, portanto, vivendo em um grave pecado contra a caridade. (Sullivan, p. 32)

Alguns apontam a seguinte citação para defender a possibilidade de salvação dos cismáticos/hereges na visão de Agostinho:

O apóstolo Paulo disse: “Quanto a um homem que é herege, depois de admoestá-lo uma ou duas vezes, nada mais tem a ver com ele” (Tito 3:10). Mas aqueles que mantêm sua própria opinião, por mais falsos e pervertidos, sem má vontade obstinada, especialmente aqueles que não originaram o erro por presunção ousada, mas o receberam de pais que haviam se desviado (...) aqueles que buscam a verdade com cuidado e estão prontos para serem corrigidos quando a encontrarem, não devem ser classificados entre os hereges. (Epístola 43:1)

Sullivan traz luz a esta citação:

Agostinho quer dizer que essas pessoas podem ser salvas fora da Igreja Católica? O contexto da carta mostra que o que ele tinha em mente era defender-se contra a acusação de que, ao escrever esta carta, ele estava desobedecendo a injunção das escrituras de não ter nada a ver com hereges. Em outras palavras, ele estava dizendo que os homens a quem ele estava escrevendo esta carta não eram do tipo de hereges com quem um cristão não deve ter nada para fazer. Por outro lado, passagens posteriores da mesma carta mostram que ele estava longe de ser otimista sobre suas chances de salvação se permanecessem em sua seita. Pelo contrário, que ele os viu em perigo de perder suas almas fica claro em sua advertência:

Não é uma questão de perigo para seu ouro ou prata, sua terra ou suas fazendas ou até mesmo sua saúde corporal. Estamos chamando as vossas almas para alcançar a vida eterna e evitar a morte eterna. (Epístola 43:4-6 citado em Sullivan, p. 32)

Suas palavras finais a eles são ainda mais fortes:

Deus vê que nada força você a permanecer neste estado de cisma pestilento e sacrílego. Você pode se libertar caso, por uma questão de ganhar um reino espiritual, você superasse uma atração mundana e se, por uma questão de evitar punições eternas, você não temesse ofender a amizade dos homens que não lhe trazem nada a não ser o julgamento de Deus. (Epístola 43:9-27 citado em Sullivan, p. 33-34)

Sullivan prossegue:

A maneira de Agostinho falar de algumas pessoas como aparentemente “dentro” mas realmente “de fora” e de outras como aparentemente “fora” mas realmente “dentro” da igreja levou alguns a concluir que ele admitiu a possibilidade de algumas pessoas estarem separadas da Igreja Católica, no entanto, poderem estar desfrutando da amizade de Deus e no caminho da salvação. No entanto, para agostinho, esta distinção é baseada na presciência de Deus, como é claro a partir da passagem seguinte:

“Há alguns entre estes [que irão ser salvos] que estão no presente vivendo pecaminosamente, ou mesmo caminhando em heresias ou superstições pagãs. E mesmo aqui “Deus sabe quem são os seus”, pois no inefável conhecimento de Deus, muitos que parecem estar fora na verdade estão dentro, e muitos do que estão dentro na verdade estão fora”. (Do Batismo 5:27-38)

Além disso, Agostinho estava convicto de que se alguém estava “fora” por causa de heresia ou cisma estava na verdade “dentro” pela razão da presciência de Deus. Esta pessoa inevitavelmente se juntaria à igreja católica antes que ele ou ela morresse:

“Mas se é o caso de que algumas daquelas pessoas (separadas no presente) pertencem a nós com base na secreta presciência de Deus, é necessário que eles retornassem a nós. Quantos não pertencem a nós e continuam entre nós, e quantos que pertencem a nós parecem estar fora. “O Senhor sabe quem são os seus”. E aqueles que estão dentro mas não pertencem a nós, quando a ocasião se apresentar, irão para fora. Aqueles que pertencem a nós mas estão fora, quando aparecer a ocasião, irão retornar.” (Enarr. in Ps. 106:14)

Embora isso contrarie nossas sensibilidades ecumênicas, temos que reconhecer o fato de que Santo Agostinho oferecia pouca esperança para a salvação de qualquer cristão que morresse em estado de separação da Igreja Católica. Como veremos agora, ele nutriu ainda menos esperança pela salvação daqueles que em seus dias ainda não haviam aceitado a fé cristã e o batismo. (Sulivan, p. 35-36)

Como já dito, os judeus contavam com menos clemência. Sullivan aborda este tópico:

Como alguém poderia esperar, Agostinho numerou judeus não convertidos entre os culpados por desprezar a misericórdia e os dons de Deus em sua recusa em aceitar a fé cristã. Enquanto exortava seu rebanho a demonstrar grande amor pelos judeus, ele não deixou dúvida quanto ao seu julgamento sobre a culpa dos judeus que continuavam rejeitando Cristo:

Se eles ouvem e não obedecem, se eles veem e são despeitados, eles estão entre aqueles sobre quem o salmo diz: “Os maus irão ver e estarão irados, eles irão ranger seus dentes e serão consumidos. (Contra os Judeus 10:15 citado em Sullivan, p. 36)

Por último e mais importante, Agostinho também manifestou sua opinião sobre os não evangelizados. É importante começar constatando que Agostinho era ciente de que havia povos ainda não alcançados. O bispo de Hipona escreveu:

De fato, em nossa própria terra, isto é, na África, há incontáveis tribos bárbaras entre aqueles para quem o evangelho nunca foi pregado. Nós temos evidência diária disso dos cativos que são traídos para cá e são sujeitos ao trabalho escravo pelos romanos. (Epístola 199:12-46)

Sullivan traz mais esclarecimentos:

Em outra carta ao mesmo bispo, Agostinho falou de áreas do mundo que não haviam sido exploradas, de modo que era impossível dizer quantas nações talvez houvesse a quem o evangelho ainda não havia sido pregado (Epístola 197:4). Muito antes disso, em sua carta a Deogratias, referindo-se aos gentios que poderiam não ter tido a chance de chegar à fé salvadora, Agostinho insistiu que a ninguém faltava a essa oportunidade e que se Deus a recusasse a alguém, era porque ele previa que se fosse oferecido, a pessoa recusaria. Em outras palavras, a solução anterior de Agostinho era colocar a culpa no indivíduo pelo fato de que a oportunidade de chegar à fé não lhe foi dada.  Mais tarde, no período anti-pelagiano, Agostinho propôs uma nova solução para este problema: a culpa universalmente contraída do pecado original era suficiente para justificar Deus condenando não apenas os bebês que morreram sem o batismo, mas também os adultos que morreram na ignorância da fé cristã. Há boas razões para acreditar que foi seu esforço em reconciliar a exclusão dessas duas categorias de pessoas da salvação com a justiça de Deus que levou Santo Agostinho à sua teoria sobre as consequências do pecado original para toda a raça humana.

Santo Agostinho estava firmemente convencido de que aqueles que estavam do lado de fora da igreja por falta de fé e batismo não podiam ser salvos, e ele não conhecia nenhuma alternativa entre salvação e condenação ao inferno. Foi apenas séculos depois que a ideia de “limbo” para crianças morrendo sem batismo ganharia terreno. Na opinião de Agostinho, essas crianças, excluídas da salvação por falta de batismo, devem estar no inferno, para sofrer, como ele disse, “a punição mais branda de todas” (Encbiridion ad Laurentium de fide et spe et caritatej 23:93). Refletindo sobre o que ele entendia ser a certeza de que crianças que morrem sem o batismo e os adultos que morrem na ignorância da fé cristã certamente devem ser condenados. Agostinho chegou à conclusão de que, se Deus é justo condenando-os como tais, deve-se concluir que ele seria justo se condenasse toda a raça humana ao inferno. A culpa que justificaria a Deus se ele escolhesse fazer isso poderia ser apenas a culpa do pecado original. E assim Agostinho chegou à sua ideia de que todos os descendentes de Adão constituem uma “massa damnata”, merecendo ser condenado ao inferno, de modo que, se alguns são poupados, é pela pura misericórdia de Deus. Aqui estão dois exemplos do pensamento de Agostinho sobre esse assunto:

“Agora esta graça de Cristo, sem a qual nem crianças nem adultos podem ser salvos, não é dada em troca de méritos, mas é um presente gratuito; por esta razão é chamado de "graça". Portanto, todos aqueles que não são libertados por essa graça, seja porque não puderam ouvir [a mensagem do evangelho], ou porque eles se recusaram a obedecer, ou, sendo incapaz de ouvi-lo por causa de sua infância, eles não receberam o banho batismal pelo qual eles poderiam ser salvos. Todos estes, eu digo, são justamente condenados, porque eles não estão sem pecado - seja o pecado original que eles contraíram ou os pecados que eles adicionaram por seus próprios atos perversos (...) toda a massa, portanto, incorre na penalidade, e se a merecida punição da condenação fosse imposta a todos, seria sem dúvida justamente dispensada (...) Alguém que julga corretamente não poderia culpar a justiça de Deus por condenar toda a humanidade ”. (Da Natureza e da Graça 4-5)

“Se, como a própria verdade nos diz, ninguém é libertado da condenação que incorremos através de Adão, exceto pela fé em Jesus. E, ainda, aquelas pessoas não evitarão a condenação por dizer que não ouviram o evangelho, desde que a fé vem pelo ouvir (...) No entanto, nem aqueles que nunca ouviram o evangelho nem aquelas que por razão da sua infância eram incapazes de crer (...) estão separados desta massa a qual certamente será condenada.” (Da corrupção e da Graça 7:11-12) (Sullivan, p. 37-38)

É claríssimo que, em sua fase anti-pelagiana (a mais tardia), Agostinho não apelava mais a presciência de Deus para resolver o problema dos não-evangelizados. Ele afirmava que todos eles estavam justamente condenados por causa do pecado original e de seus pecados pessoais. Sullivan ainda diz:

A completa consequência do pensamento de Agostinho a respeito da condenação dos infantes que morreram sem batismo e dos adultos que morreram na ignorância da fé cristã era que ele não via como poderia ser verdade que Deus desejava que todos fossem salvos. Seu conceito da vontade divina era que ela sempre era eficaz. Isto é, se Deus deseja, necessariamente acontecerá como ele deseja. Como ele estava certo de que infantes e adultos não seriam salvos, Ele não podia ver como poderia ser dito que Deus desejava a salvação deles. (Sullivan, p. 38)

Isto extrapola a nossa discussão, mas todo esse arrazoado levou Agostinho a acreditar na eleição incondicional. Ou seja, a chave para entender a opinião de Agostinho sobre a salvação fora da igreja está mais na sua soteriologia do que na sua eclesiologia.

Os seguidores de Agostinho

Para terminar esta parte, trataremos de alguns dos seguidores de Agostinho. Um deles – Fulgêncio de Ruspe – merece especial atenção, pois suas palavras ecoariam mil anos depois no Concílio de Florença, a qual será estudado no próximo artigo. Sullivan traz o relatório sobre Fulgêncio:

Aquele que seguiu Agostinho até o último patamar de seu ensinamento anti-pelagiano, e até mesmo o expressou em sua forma mais radical, foi um bispo norte-africano como Agostinho: Fulgêncio de Ruspe (468-533). Aqui está uma passagem de uma obra de Fulgêncio intitulada “Sobre a verdade da predestinação”, que mostrará como ele seguiu fielmente a liderança de Santo Agostinho.

“Se fosse verdade que Deus desejava universalmente que todos fossem salvos e chegassem ao conhecimento da verdade, como é que a própria verdade ocultou de alguns homens o mistério de seu conhecimento? Certamente, àqueles a quem ele negou tal conhecimento, ele também nega a salvação (...) Portanto, ele desejou salvar aqueles a quem deu conhecimento do mistério da salvação e não desejou salvar aqueles a quem ele negava o conhecimento do mistério da salvação. Se ele tivesse pretendido a salvação de ambos, ele teria dado o conhecimento da verdade para ambos”. (3:16-18)

A seguinte declaração de Fulgêncio estava destinada a entrar na história da nossa questão de uma maneira extraordinária, como foi incorporada a um decreto do Concílio de Florença em 1442.

“O mais firmemente asseguro e de nenhuma maneira duvido de que não apenas todos os pagãos, mas também todos os judeus, e todos os hereges e cismáticos que morrem fora da Igreja Católica, irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos.” (De fide, ad Petrum 38) (Sullivan, p. 43)

Sullivan também cita outro seguidor de Agostinho – o monge Gottschalk:

Um monge saxão do século IX chamado Gottschalk, que era um ávido leitor das obras anti-pelagianas de Santo Agostinho e de Fulgêncio de Ruspe, publicou um trabalho cuja tese era que, visto que Deus predestinou algumas pessoas à condenação eterna, não podia ser dito que Deus quis a salvação de todos, ou que Cristo sofreu pela redenção de todos. (Sullivan, p. 44)

É importante mencionar que a ideia agostiniana de que a vontade salvífica de Deus não era universal nunca se tornou o padrão da Igreja antiga. Tal ideia foi rejeitada mesmo por alguns de seus seguidores como Próspero de Aquitânia. Apesar disto, Próspero continuava a seguir a ideia de que os pagãos não poderiam ser salvos sem fé em Cristo:

Pode ser verdade que, assim como sabemos que em tempos antigos alguns povos não foram admitidos à comunhão dos filhos de Deus, também hoje existem nas partes mais remotas do mundo algumas nações que ainda não viram a luz do mundo - a graça do Salvador. Mas não temos dúvidas de que, no julgamento oculto de Deus, para eles também foi designado um tempo de chamada, quando eles ouvirão e aceitarão o Evangelho que agora permanece desconhecido para eles. Mesmo agora eles recebem aquela medida de ajuda geral que o Céu sempre concedeu a todos os homens. A natureza humana, é verdade, foi ferida por uma ferida tão severa que a especulação natural não pode levar uma pessoa ao pleno conhecimento de Deus se a verdadeira luz não dissipar toda a escuridão do seu coração. Em seus desígnios inescrutáveis, o bom e justo Deus não derramou essa luz tão abundantemente nas eras passadas quanto nos nossos dias. (De vocatione 2:17)

Ele estava ciente da existência de povos não alcançados. Contudo, estes povos ainda seriam chamados e aceitariam o evangelho. Ou seja, eles não seriam salvos apenas pelo conhecimento da revelação geral contida nas coisas criadas. Isto fica claro quando afirma “a especulação natural não pode levar uma pessoa ao pleno conhecimento de Deus”. Encerramos esta parte do período patrístico com a conclusão de que o atual ensino da Igreja de Roma não pode evocar a tradição mais primitiva em seu favor. No próximo artigo, analisaremos os concílios medievais e outros teólogos de renome.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Os Pais Nicenos e o Culto às Imagens (Eusébio de Cesareia)



Aqui damos continuidade ao nosso estudo sobre os pais da igreja e o culto às imagens e ícones. Vamos elencar os pais nicenos (séc. IV), especialmente Eusébio e Epifânio. Antes de tudo, vejamos o panorama da situação no séc. IV. O especialista em história da Arte Ernst Kitzinger escreveu:

Quando, no início do século IV, a arte cristã tornou-se objeto de comentários mais articulados, estes eram a princípio ou de alguma forma restritivos. Não foi antes da segunda metade do quarto século que algum escritor começou a falar da arte pictórica cristã em termos positivos. Ainda assim, era uma questão com referências fugazes ao invés de uma defesa sistemática (...) Estas justificativas das imagens cristãs como foram tentadas durante a segunda metade do século IV baseava-se exclusivamente em sua utilidade como ferramentas educacionais, particularmente para os analfabetos. (Kitzinger,Ernst, "The Cult of Images in the Age before Iconoclasm", DumbartonOaks Papers, Vol. 8, (1954), p. 87)

Mesmo durante o século quatro, as vozes mais importantes da igreja eram contrárias às imagens. E mesmo entre as vozes apoiantes, não havia qualquer culto envolvido. O argumento favorável apelava à utilidade pedagógica das imagens para instruir uma população predominantemente analfabeta. Ernst Kitzinger prossegue:

A aversão primitiva do cristianismo às artes visuais estava enraizada em sua espiritualidade. "É chegada a hora em que os verdadeiros adoradores adoram o Pai em espírito e em verdade" (João 4:23). O conceito espiritualizado de culto encontrou o que é talvez a sua expressão mais eloquente nas palavras de Minucio Felix (...) (Ibid., p. 89)

Não transcrevi a citação de Minúcio porque está contida na primeira parte de nosso estudo. Kitzinger prossegue:

Como esta passagem mostra [a citação de Minúcio], a rejeição radical das artes visuais pela Igreja primitiva foi parte de uma rejeição geral aos acessórios materiais na vida religiosa e no culto. A resistência para fazer representações foi, no entanto, particularmente forte, em parte devido à proibição de imagens que fazia parte da Lei Mosaica, e em parte por causa do papel central que as estátuas e as imagens em geral ocupavam nas religiões do paganismo greco-romano. (Ibid., 89)

Observem que os cristãos primitivos tinham razões teológicas (a lei mosaica) e razões práticas (as religiões pagãs) para rejeitar o uso de imagens. Kitzinger vai então nos dar importante informações de quando e como o culto às imagens se originou no seio da Igreja cristã:

O caminho para o culto às imagens foi pavimentado no século IV pela adoção generalizada de outros suportes materiais que não eram barrados por quaisquer proibições específicas, nomeadamente cruzes e relíquias. A veneração da cruz pode ter sido praticada aqui e ali mesmo durante o período de perseguições, mas recebeu seu maior impulso através da identificação simbólica do instrumento da Paixão de Cristo com o padrão vitorioso do exército de Constantino o Grande, uma identificação expressa graficamente no sinal do labarum, que aparece em moedas na terceira década do quarto século. No final do século IV, a proskynesis [veneração] diante do sinal da paixão [a cruz] foi considerada perfeitamente natural para um cristão. O culto das relíquias deve ter se espalhado ainda mais amplo e rapidamente. Pequenas partes da cruz verdadeira, supostamente redescoberta no reinado de Constantino, foram logo ansiosamente procurados pelos fiéis em todo o mundo, de acordo com Cirilo de Jerusalém (ano 350) (...) O culto da cruz e das relíquias estava em pleno andamento no tempo dos grandes padres da Capadócia. O culto às imagens, no entanto, não veio ao seu alcance, mesmo de forma negativa. Ao menos o culto de imagens religiosas não veio. É bom lembrar ao considerar a ascensão das práticas idólatras entre os cristãos que os Pais do quarto século admitem a justeza das honras e cumprimentos tradicionalmente prestados à imagem do Imperador. De acordo com Malalas, Constantino instituiu a prática de ter sua própria imagem carregada em procissões solenes no dia do aniversário da fundação de sua capital e ter o dia de ser curvar diante dela (...) Não faltam evidências de que o culto tradicional ao imperador sofreu pouca ou nenhuma interrupção por causa do triunfo do cristianismo. Numerosas fontes do século IV mostram que uma vez que o imperador se tornou um cristão, tais práticas não foram mais contestadas pela maioria das autoridades clericais. A famosa citação do Tratado de São Basílio sobre o Espírito Santo, tantas vezes utilizada em séculos posteriores em defesa do culto de imagens de Cristo, bem como passagens de outros escritores desse período no qual o culto à imagem imperial é apresentado para ilustrar um ponto, mostram que essa forma de culto era de fato considerada costumeira e apropriada. Gregório Nazianzeno, em sua primeira diatribe contra Juliano, afirmou que a atitude cristã com relação ao que ele chama de “costumeira honra ao soberano” mais explicitamente: “(...) eles devem ter adoração para que eles possam parecer mais terríveis - e não apenas a adoração que recebem em pessoa, mas também que recebem em suas estátuas e retratos, a fim de que a veneração pode ser mais insaciável e mais completa (Contra Juliano 1:80). Quanta influência o culto à imagem do imperador teve sobre o culto às imagens religiosas é bem ilustrado por duas passagens na História Eclesiástica de Philostorgio, escrita durante a primeira metade do quinto século. Se nós podemos confiar no testemunho de Potios (...) O culto à estátua de Constantino no fórum era, no tempo de Philostorgio, era completo com sacrifícios propiciatório, queima de velas e incenso, orações e súplicas (...) Finalmente, na primeira metade do sexto século, encontramos a primeira alusão na literatura de proskynesis [veneração] sendo praticada diante das imagens nas igrejas. Isto parece ter sido contido em um inquérito recebido pelo Bispo Hypatio de Éfeso de um de seus subordinados, Juliano de Atramytion. (Ibid., p. 90-95)

Assim como outras práticas heréticas, o culto às imagens nasceu a partir da influência pagã sobre o cristianismo. O embrião desse desenvolvimento foi o culto à imagem do imperador que não foi devidamente censurado pelos cristãos. Já havia no séc. IV o precedente do culto à cruz e às relíquias. Daí para o culto às imagens foi um passo não muito grande. Contudo, a primeira alusão à veneração de imagens na igreja remonta ao século VI. Isto é absolutamente incompatível com a afirmação de que a veneração das imagens foi sempre praticada pela Igreja Cristã. O bispo ortodoxo oriental Kallistos Ware confirma o relato acima:

O primeiro tipo de ícone que recebeu veneração não era religioso, mas secular - o retrato do imperador. Este era considerado como uma extensão da presença imperial, e as honras que eram mostradas ao imperador em pessoa eram prestadas também ao seu ícone. Incenso e velas eram queimados diante dele, e como um sinal de respeito os homens inclinavam-se até ao chão perante ele, tal prostração era normalmente descrita pelo termo proskynesis [1]. Este culto da imagem imperial remonta aos tempos pagãos: com a conversão do imperador ao Cristianismo ele foi prontamente aceito pelos cristãos, e não houve qualquer objeção levantada por parte das autoridades eclesiásticas.

Se os homens dispensam tal respeito à imagem do governante terreno, não devem mostrar igual reverência à imagem de Cristo o Rei celestial? Foi uma inferência óbvia e natural, mas não foi uma inferência que foi feita de uma só vez. Na verdade, proskynesis foi mostrado para com as relíquias dos santos e da Cruz antes de começar a ser mostrado para com o ícone de Cristo. Foi só no período seguinte a Justiniano - durante os anos 550-650 - que a veneração dos ícones em igrejas e casas particulares tornou-se aceito na vida devocional dos cristãos orientais. Pelos anos 650-700 foram feitas as primeiras tentativas por escritores cristãos de fornecer uma base doutrinal para este crescente culto de ícones e de formular uma teologia cristã da arte. De particular interesse é a obra, que sobrevive apenas em fragmentos, de Leôncio de Neápolis (em Chipre), rebatendo críticas judaicas.

A veneração dos ícones não foi aceite em todos os lugares sem oposição. No final do século VI foram feitos protestos em extremos geográficos distantes, em ambos os casos fora dos limites do Império Bizantino - a Ocidente, em Marselha, e a Oriente, na Arménia». (Extraído de “Christian Theology in the East,” in A History of Christian Doctrine, editado por Hubert Cunliffe-Jones [Philadelphia: Fortress Press, 1980], pp. 191-92)

O estudioso ortodoxo aponta a origem espúria do culto às imagens – o culto pagão à imagem do imperador. Ele ainda atesta que este culto, embora tenha surgido apenas no século VI, encontraria ainda ferrenha oposição no seio da igreja. 

Eusébio de Cesareia

A Evidência mais contundente a respeito de Eusébio está contida em sua carta à Constância Augusta – irmã do Imperador Constantino. Ela pede uma imagem de Cristo, mas a resposta de Eusébio é a seguinte:

Você escreveu a mim a respeito de um certo ícone de Cristo e o seu desejo de que eu enviasse tal ícone a você: o que você tinha em mente, e de que tipo este ícone de Jesus deveria ser? Como você chama isto? (...) Qual ícone de Cristo você está procurando? A verdadeira e imutável imagem que tem por natureza a semelhança de Cristo, ou melhor, aquela que ele tomou para nós quando se vestiu com a forma de um servo (Fp 2:7)? (...) Eu não posso imaginar que você está requerendo um ícone de imagem divina. O próprio cristo instruiu você de que ninguém conhece o Pai exceto o filho, e de ninguém é digno conhecer o filho exceto somente o Pai que o gerou (...) Então, eu presumo que você deseje um ícone de sua forma como um servo, a forma da carne humilde a qual ele próprio vestiu para nosso amor. Já a respeito disso nós aprendemos que ela está misturada com a glória de deus e o que é mortal foi engolido pela vida (...) é repugnante só a ideia de que possa haver pinturas nos lugares destinados ao culto. (Carta a Constância)

O renomado estudioso ortodoxo George Florovsky escreveu:

A carta não pode ser datada com precisão. Foi uma resposta a Constância Augusta -  uma irmã de Constantino. Ela pediu a Eusébio que lhe enviasse uma imagem de Cristo. Ele ficou surpreso. Que tipo de imagem ela quis dizer? Ele nem conseguia entender por que ela deveria querer um. Seria a imagem verdadeira e imutável, que teria em si o caráter de Cristo? Ou era a imagem que ele assumira quando tomou a forma de um servo por nossa causa? A primeira, observa Eusébio, é obviamente inacessível ao homem, pois somente o pai conhece o filho. A forma de um servo, que ele assumiu na Encarnação, foi amalgamada com sua Divindade. Após sua ascensão ao céu, ele havia mudado essa forma de servo para o esplendor que, por antecipação, revelara aos seus discípulos (na Transfiguração) e que era mais elevado do que a natureza humana. Obviamente, esse esplendor não pode ser representado pelas cores e sombras sem vida. Os apóstolos não podiam olhá-lo. Se mesmo em sua carne havia tal poder, o que dizer agora quando ele transformou a forma de um servo na glória do Senhor e de Deus? Agora ele descansa no insondável peito do Pai. Sua forma anterior foi transfigurada e transformada naquele esplendor inefável que passa a medida de qualquer olho ou ouvido. Nenhuma imagem desta nova forma é concebível, se esta substância deificada e inteligível ainda pudesse ser chamada de forma. Não podemos seguir o exemplo dos artistas pagãos que retratam coisas que não podem ser retratadas e cujas imagens são sem qualquer semelhança genuína. Assim, a única imagem disponível seria apenas uma imagem em estado de humilhação. No entanto, todas essas imagens são formalmente proibidas na Lei, e nenhuma dessas é conhecida nas igrejas. Ter essas imagens significaria seguir o caminho dos pagãos idólatras. Nós, cristãos, reconhecemos a Cristo como o Senhor e Deus e estamos nos preparando para contemplá-lo como Deus na pureza de nossos corações. Se quisermos antecipar essa imagem gloriosa, antes de encontrá-lo face a face, há apenas um bom pintor - a própria Palavra de Deus. O ponto principal deste argumento eusebiano é claro e óbvio. Os cristãos não precisam de nenhuma imagem artificial de Cristo. Eles não têm permissão para voltar, mas devem olhar para frente. A imagem histórica de Cristo, na forma de sua humilhação, já foi superada por seu esplendor divino no qual ele agora habita. Este esplendor não pode ser visto ou delineado, mas no devido tempo, os verdadeiros cristãos serão admitidos na glória da era vindoura. Seria supérfluo, para nosso propósito atual, compilar os paralelos dos outros escritos de Eusébio. (George Florovsky, ‘ Origen, Eusebius and the Iconoclastic Controversy', ChurchHistory, Vol. 19, No. 2 (Jun., 1950), pp. 77-96)

É notório que o argumento de Eusébio é cristológico. Florovsky identifica Orígenes como a fonte da iconoclastia de Eusébio:

Não poderíamos deixar de observar a íntima semelhança entre as ideais de Orígenes e aquelas na carta de Eusébio a Constancia. A cristologia de Orígenes foi o pano de fundo e a pressuposição de Eusébio. Ele tirou conclusões legítimas dos princípios estabelecidos por Orígenes. Se alguém caminha nas etapas de Orígenes, ele realmente se interessaria por alguma imagem histórica do Senhor? O que poderia ser representado já foi superado e substituído e a verdadeira e gloriosa realidade do Senhor ressuscitado escapa de qualquer descrição. Além disso, do ponto de vista origenista, a verdadeira face do Senhor dificilmente poderia ser descrita mesmo nos dias de seu corpo. (Ibid)

O estudioso David M. Gwynn expressa o mesmo:

Por volta do ano 327, o famoso historiador da igreja primitiva Eusébio, que morava em Jerusalém, recebeu uma carta da irmã do imperador, Constancia, pedindo-lhe uma imagem de Cristo. Eusébio escreveu-lhe uma resposta muito severa. Ele sabia que tais imagens existiam nos mercados, mas ele não acreditava que as pessoas que faziam tais coisas eram cristãs. Ele tomou como certo que apenas os artistas pagãos sonhariam em fazer tais representações. Eusébio insistiu que mesmo o Cristo encarnado não pode aparecer em uma imagem, pois “a carne que Ele assumiu por nós ... foi mesclada com a glória de Sua divindade, de modo que a parte mortal foi engolida pela Vida”. Esse foi o esplendor daquele Cristo revelado na Transfiguração e que não poderia ser capturado na arte humana. Descrever puramente a forma humana de Cristo antes de sua transformação, por outro lado, é quebrar o mandamento de Deus e cair em erro pagão. (From Iconoclasm to Arianism: The Construction ofChristian Tradition in the Iconoclast Controversy [Greek, Roman, and ByzantineStudies 47 (2007) 225–251], p. 227)

A objeção mais comumente levantada questiona a autoria desta carta. No entanto, a maioria dos estudiosos a considera autêntica devido ao estilo de escrita e ao fato de a teologia nela expressa estar contida em outras obras de Eusébio. Por isso, Florovsky afirma que “seria supérfluo, para nosso propósito atual, compilar os paralelos dos outros escritos de Eusébio”. A cristologia da carta à Constância é atestada como sendo de Eusébio a partir de suas outras obras e também pelo fato de ele ser um reconhecido Origenista. Florovsky também escreve: “Não há razão alguma para questionar sua autenticidade”. Ele cita como autoridade a opinião do renomado historiador da igreja Karl Holl. O estudioso de Havard Peter Van Nuffelen escreveu:

No entanto, agora é geralmente aceito que a carta é uma peça genuína de Eusébio (41). (Fonte)

Ele cita os seguintes estudiosos na nota de rodapé 41 em apoio a autenticidade da carta:

(41) Gero 1981; Thümmel 1984; Stockhausen 2000; Gwynn 2007: 227n5 e 6. Barnes 2010 argumenta que a carta é genuína, mas retocada após a morte de Eusébio.

O arcebispo de Viena Christoph Schönborn também afirma a autenticidade da obra:

Nós acreditamos que o estilo da carta e a teologia se encaixam bem na obra deste grande historiador. (Fonte)

Um forte argumento para autenticidade da carta é que mesmo em meio a controvérsia iconoclasta que emergiria séculos depois, os partidários do culto aos ícones não questionaram sua autenticidade. Eles apenas desqualificaram o testemunho de Eusébio acusando-o de ser um ariano. É digno de nota que a maioria dos historiadores não vê justiça nesta acusação. Eusébio não era ariano, mas sim um origenista. Florovsky escreve:

A evidência de Eusébio, curiosamente, nunca recebeu muita atenção. Tem sido frequentemente citada, mas nunca analisada adequadamente. Não há razão alguma para questionar sua autenticidade. Parece ser o argumento-chave em todo o sistema do raciocínio iconoclástico. Não foi por acaso que São Nicéforo se sentiu compelido a escrever um antirrético especial contra Eusébio. O nome de Eusébio exige atenção por outro motivo: toda a concepção iconoclástica do poder e autoridade imperial na Igreja remonta a Eusébio. Havia uma tendência óbvia de arcaísmo na política iconoclasta. A carta de Eusébio não é preservada na íntegra. Algumas partes dela foram citadas e discutidas no Concílio de Nicéia e novamente por Nicéforo, e todos os trechos disponíveis foram reunidos por Boivin e publicados pela primeira vez nas notas de sua edição da História de Nicéforo Gregoras (1702). (Fonte)

Obviamente, partidários dos ícones como Nicéforo teriam toda a predisposição para colocar em dúvida o testemunho de Eusébio caso houvesse algum motivo razoável para tal. A posição pró-autenticidade é tão dominante que até mesmo fontes como a Enciclopédia Católica atribuem a carta a Eusébio:

A história [mostra] a preservação das três cartas, (45) a Alexandre de Alexandria, (46) a Eufrásio ou Eufração, (47) à Imperatriz Constancia, que é bastante curiosa. Constancia pediu a Eusébio que lhe enviasse uma certa imagem de Cristo, da qual ela havia ouvido falar. Sua recusa foi expressa em termos que séculos depois foram apelados pelos iconoclastas. Uma parte desta carta foi lida no Segundo Concílio de Nicéia. (Fonte)

E em outro artigo da enciclopédia também lemos:

Mas é interessante ver que no final do primeiro período havia alguns bispos que reprovavam o crescente culto de imagens. Eusébio de Cesaréia (d. 340), o Pai da História da Igreja, deve ser contado entre os inimigos dos ícones. Em vários lugares de sua história, ele mostra sua antipatia por eles. Eles são um "costume pagão" (História Eclesiástica, VII, 18). Ele escreveu muitos argumentos para convencer a irmã de Constantino, Constancia, a não guardar uma estátua de nosso Senhor (ver Mansi, XIII, 169). (Fonte)

Observem que a Enciclopédia Católica cita a mais famosa obra de Eusébio – a História Eclesiástica. Não há dúvida quanto a autoria deste livro. Portanto, não dependemos apenas da Carta à Constância para estabelecer a iconoclastia de Eusébio:

Mas já que fizemos menção a esta cidade [Paneia], creio que não é justo passar por alto um relato digno de memória inclusive para nossos descendentes. De fato, a hemorrágica, que pelos Evangelhos sabemos que encontrou a cura de seu mal por obra de nosso Salvador, diz-se que era originária desta cidade e que nela se encontra sua casa, e que ainda subsistem monumentos admiráveis da boa obra nela realizada pelo Salvador. Efetivamente, sobre uma pedra alta, diante das portas de sua casa, alça-se uma estátua de mulher em bronze, com um joelho dobrado e com as mãos estendidas para a frente como uma suplicante; e em frente a esta, outra do mesmo material, efígie de um homem em pé, belamente vestido com um manto e estendendo sua mão para a mulher; a seus pés, sobre a mesma pedra, brota uma estranha espécie de planta, que sobe até a orla do manto de bronze e que é um antídoto contra todo tipo de enfermidades. Dizem que esta estátua reproduzia a imagem de Jesus. Conservava-se até nossos dias, como comprovamos nós mesmos de passagem por aquela cidade. E não é estranho que tenham feito isto os pagãos de outro tempo que receberam algum benefício de nosso Salvador, quando perguntamos por que se conservam pintadas em quadros as imagens de seus apóstolos Paulo e Pedro, e inclusive do próprio Cristo, coisa natural, pois os antigos tinham por costume honrá-los deste modo, simplesmente, como salvadores, segundo o uso pagão vigente entre eles. (História Eclesiástica, VII, 18)

Impressiona o fato de apologistas católicas usarem tal citação para contradizer a iconoclastia de Eusébio. Ele reconhece que havia imagens de Jesus e dos Apóstolos, mas como atesta a Enciclopédia Católica, este não era o costume cristão e sim pagão. Caso a prática de usar estas imagens num contexto cristão fosse vista como natural e costumeira por Eusébio, algumas explicações das diferenças entre o uso pagão e cristão das imagens seriam esperadas. Além disso, há dúvidas entre os historiadores sobre se tais imagens eram de Jesus. O arcebispo Christoph Schönborn menciona:

Alguns historiadores pensam que esta pode ser uma estátua de Asclépio, o deus da cura, somente reinterpretada neste período como uma estátua de Cristo. (Fonte)

Por fim, um último argumento usado pelos defensores do culto aos ícones é a obra Vida de Constantino (aqui) escrita por Eusébio. A obra contém referências ao uso da arte cristã na cidade de Constantinopla, bem como na decoração das igrejas:

E estando totalmente decidido a distinguir a cidade que recebeu seu nome com honra especial, ele a embelezou com numerosos edifícios sagrados - tanto memoriais de mártires em grande escala, como outros edifícios do tipo mais esplêndido, não apenas dentro da própria cidade, mas em sua vizinhança. E assim, ao mesmo tempo, prestou honra à memória dos mártires e consagrou sua cidade ao Deus dos mártires. Sendo preenchido também com a sabedoria Divina, ele determinou purgar a cidade, a qual deveria ser distinguida por seu próprio nome, da idolatria de todo tipo. A partir de então nenhuma estátua poderia ser adorada ali nos templos daqueles falsamente reputados como deuses, nem quaisquer altares profanados pela poluição do sangue - para que não haja sacrifícios consumidos pelo fogo, nem festivais de demônios, nem quaisquer outras cerimônias geralmente observadas pelos supersticiosos.

Por outro lado, pode-se ver as fontes no meio do mercado enfeitadas com figuras representando o bom Pastor, bem conhecido por aqueles que estudam os oráculos sagrados, e o de Daniel também com os leões, forjados em latão e resplandecentes com placas de ouro. De fato, uma medida tão grande do amor Divino possuía a alma do imperador que no aposento principal do próprio palácio imperial, em uma vasta placa exposta no centro de seu teto revestido de ouro, ele fez com que o símbolo da Paixão de nosso Salvador fosse fixado, composto de uma variedade de pedras preciosas ricamente enriquecidas com ouro. Ele pretendia que este símbolo fosse a salvaguarda do próprio império. (Livro 3:49)

Esta citação refere-se à cidade de Constantinopla. Constantino teria mandado destruir as estátuas do culto pagão e teria construído igrejas na cidade e vizinhanças. Os defensores do culto aos ícones tentam a partir desta citação demonstrar que Eusébio era favorável a tal culto. Ocorre que não há nenhuma contradição explícita aqui. Eusébio refere-se ao uso da arte cristã através de símbolos cristãos (como o bom pastor) para fins decorativos. Não há menção de estátuas de santos em igrejas, nem de pessoas prestando qualquer tipo de culto aos ícones. Não há nada que se assemelhe ao culto praticado por católicos romanos e orientais. 

Peter Van Nuffelen escreve sobre esta aparente contradição: 

De fato, Eusébio rejeitou a produção de imagens de Cristo em sua carta a Constância, um documento que, sem surpresa, ressurgiu durante a controvérsia iconoclasta. Dada a sua primeira atestação tardia e o aparente contraste de atitude com o uso extensivo de imagens de Eusébio em outros lugares em seus escritos, sua autenticidade tem sido questionada. No entanto, agora é geralmente aceito que a carta é uma peça genuína de Eusébio. Uma discussão extensa desta questão não pode ser tentada aqui. Eu gostaria de argumentar que, mesmo que a carta fosse autêntica, a posição que ela assume sobre as imagens não é muito diferente daquela que eu detectei na Vida de Constantino. De fato, a reflexão sobre as imagens que recuperamos da vida de Constantino se encaixa muito bem com a posição encontrada na carta a Constância. Seria enganoso afirmar que a carta rejeita todos os tipos de imagens e que a Vida abrange todas elas. Mesmo na vida de Constantino, o uso de imagens é limitado em termos teológicos de duas maneiras. Por um lado, as imagens são atribuídas ao reino humano. Como conseqüência, eles são imperfeitos e incapazes de refletir plena e verdadeiramente o divino. Na melhor das hipóteses, são aproximações imperfeitas das verdades superiores. Esta posição é bem ilustrada pela ideia que encontramos no prefácio de que o logos humano pode ascender ao céu e ver o esplendor divino, mas não expressá-lo. Por outro lado, as imagens não são ficções para Eusébio e somente são admissíveis sob a condição de que elas mantenham uma relação de verdade com seu modelo: se essa condição não for cumprida, como é o caso dos ídolos, são geradas falsas imagens. (Fonte)

Ou seja, Eusébio não era contrário a qualquer tipo de uso das imagens. Ele não seria contrário à arte decorativa por exemplo. No entanto, os requisitos que ele estabelecia não permitiria a feitura de imagens de Jesus ou dos apóstolos, afinal tais imagens não poderiam representar o modelo real que andou pela terra. Isto, por óbvio, coloca Eusébio em oposição ao culto às imagens praticado atualmente.