sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A Veneração de Relíquias e a Evidência Histórica

O concílio de Trento assim decretou sobre as relíquias:

Devem ser venerados pelos fiéis os santos corpos dos santos mártires e dos outros que vivem com Cristo, corpos que foram membros vivos do mesmo Cristo e templo do Espírito Santo, que por ele devem ser ressuscitados para a vida eterna e glorificados e pelos quais Deus concede aos homens muitos benefícios. Por isso, os que afirmam que às relíquias dos santos não se deve veneração nem honra, ou que inutilmente os fiéis as honram como também a outros monumentos sagrados, e que em vão frequentam as memórias dos Santos para obter o seu auxílio, todos devem ser absolutamente condenados como já outrora a Igreja os condenou e também agora os condena. (DH 1822)

A questão é se tal doutrina foi crida pela Igreja desde o início ou seria uma inovação surgida séculos depois do período apostólico? O católico romano acredita que a veneração a relíquia de um santo é uma forma de obter seu favor. Logo, a veneração de relíquias está ligada a intercessão dos santos. Como a prática de orar ao santos não é encontrada nos pais pré-nicenos (aqui), é provável que a veneração de relíquias também não. Muitos acreditam que através da veneração à relíquia o favor do santo seria obtido mais rápido ou até mesmo não seria caso não fosse venerado. Isso obviamente incentivou um sem número de falsificações e um vultoso comércio. Relíquias podem ser os restos mortais do santo, seus pertences ou até mesmo objetos em contato com seu túmulo. O primeiro mártir cristão foi Estevão. Não há nenhum registro bíblico e ainda é de todo improvável que os restos ou objetos de Estevão tenham sido guardados para culto ou utilizados como meio de intercessão. Outro mártir famoso e muito antigo é Inácio de Antioquia. Seu martírio ocorreu por volta do ano 107. A carta de Inácio aos romanos sugere que ele desconhecia a prática de veneração das relíquias:

Escrevo a todas as Igrejas e anuncio a todos que, de boa vontade, morro por Deus, caso vós não me impeçais de o fazer. Eu vos suplico que não tenhais benevolência inoportuna por mim. Deixai que eu seja pasto das feras, por meio das quais me é concedido alcançar a Deus. Sou trigo de Deus, e serei moído pelos dentes das feras, para que me apresente como trigo puro de Cristo. Ao contrário, acariciai as feras, para que se tornem minha sepultura, e não deixem nada do meu corpo, para que, depois de morto, eu não pese a ninguém. Então eu serei verdadeiramente discípulo de Jesus Cristo, quando o mundo não vir mais o meu corpo. (Aos Romanos 4)

Inácio não foi o primeiro mártir e deveria ter conhecimento de vários outros cristãos devorados pelas feras. O ponto é que ele não esperava que as feras deixassem qualquer vestígio do seu corpo. Ele desejava que nada sobrasse e que as próprias feras fossem sua sepultura. Ele pressupõe que caso algo sobrasse, os seus irmãos iriam enterrá-lo numa sepultura. Todo o contexto é incompatível com a ideia de que os cristãos guardavam os restos mortais para veneração ou pedido de intercessão. Ou não restaria nada ou ele seria sepultado. O relato do martírio de Inácio diz:

Pois apenas as porções mais duras de seus santos vestígios foram deixadas, que foram transportadas para Antioquia e envoltas em linho, como um tesouro inestimável deixado para a santa Igreja pela graça que estava no mártir. (Cap. 6)

Os restos mortais de Inácio foram envoltos em linho porque esta era a prática de um sepultamento. O corpo de Cristo também foi envolto em linho (João 19:40). O testemunho patrístico vai na mesma direção – Tertuliano relata a mulher que sonhou com um “pano de linho” e morreu cinco dias depois (Spetaculis, cap. 26). Dionísio o grande relata em 260 d.c um homem cuja ocupação era "vestir e enterrar os corpos daqueles mártires aperfeiçoados e abençoados" (Epístolas e Fragmentos, Epístola 1, parágrafo 3). Os mártires eram vestidos em linho e enterrados e a roupa de Inácio era a linho no qual seus restos estavam embrulhados. Confirmando isso, Jerônimo testifica que os restos de Inácio foram transportados para Antioquia e enterrados:

Quando ele foi condenado aos animais selvagens e com zelo pelo martírio ouviu os leões rugir, ele disse: "Eu sou o trigo de Cristo. Estou morto pelos dentes das bestas selvagens para que eu possa ser o pão do mundo". Ele foi morto no décimo primeiro ano de Trajano e os restos de seu corpo estão em Antioquia, fora do portão Daphnitic no cemitério. (Vidas de homens ilustres, cap.16)

Mesmo no século IV, quando o culto às relíquias começava a despontar na Igreja, homens como Antônio pareciam não endossar a prática. Atanásio escreveu:

Os egípcios costumavam honrar com ritos funerários e envolver em linho os corpos dos homens bons e especialmente dos santos mártires. Eles não os enterravam no chão, mas os colocavam em sofás os mantinham em suas casas, pensando nisso que honravam os falecidos. Antônio muitas vezes instou os bispos a darem mandamento às pessoas sobre esse assunto. Da igual forma, ele ensinava os leigos e repreendia as mulheres dizendo: "que isso não era lícito nem santo, pois os corpos dos patriarcas e dos profetas estão até agora preservados em túmulos, e o próprio corpo do Senhor foi posto em um túmulo, e uma pedra foi colocada sobre ele e o escondeu até Ele se levantou no terceiro dia". E assim dizendo, ele mostrou que aquele que não enterrava os cadáveres dos mortos após a morte transgredia a lei, embora fossem sagrados. O que seria mais sagrado do que o corpo do Senhor? Então muitos o ouviram e depois enterraram os mortos no chão e agradeceram ao Senhor porque eles tinham sido ensinados com justiça. (Vida de Antônio, parágrafo 90)

A prática de guardar os restos mortais num relicário não contava com a aprovação de Antônio. A evidência mais antiga oferecida pelos apologistas católicos é o martírio de Policarpo que ocorreu por volta do ano 157:

Vendo a rixa suscitada pelos judeus, o centurião colocou o corpo no meio e o fez queimar, como era de costume. Desse modo, pudemos mais tarde recolher seus ossos, mais preciosos do que pedras preciosas e mais valiosos do que o ouro, para colocá-los em lugar conveniente. Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá reunir-nos, na alegria e contentamento, para celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no futuro. (Martírio de Policarpo, cap. 18)

A datação desta obra é objeto e controvérsia. Alguns estudiosos como Candida Moss situam a obra no século III:

Da mesma forma, o autor descreve práticas devocionais religiosas que não tomaram forma até o terceiro século. Na conclusão da obra, depois que o corpo de Policarpo é queimado pela segunda vez, os cristãos roubam os fragmentos de ossos e cinzas que permaneceram e os depositam em um local apropriado para a guarda (...) Além do martírio de Policarpo, a prática de colecionar e venerar os corpos de mártires é completamente sem paralelo no segundo século. Nossas próximas primeiras referências a relíquias são do século III e são muito menos desenvolvidas. Eles podem até não ser referências firmes a relíquias, mas apenas referências à distribuição de memórias. (Fonte)

Esta autora acredita que o relato é do terceiro século porque a prática de guardar os restos mortais não encontra nenhum paralelo no segundo século (vide exemplo de Inácio). E mesmo no século III, as referências às relíquias são pouco conclusivas. Além disso, é nítido que o relato do martírio foi objeto de embelezamento, estando mais no campo da ficção histórica do que relato acurado. De todo o modo, católicos costumam tirar conclusões abusivas desse relato. É comum ouvir dizer que os restos de Policarpo foram guardados num relicário e que anualmente eles seriam expostos para veneração e pedidos de intercessão.

No entanto, não há nada no texto que diga isso. O texto não diz qual o lugar apropriado em que os restos foram guardados. Mas, analisando o contexto histórico [o caso de Inácio (séc. II), o testemunho de Dionísio a respeito dos homens que enterravam os mártires (séc. III) e as exortações de Antônio (séc. IV)] é mais provável que Inácio tenha sido enterrado como era a prática dos cristãos de seu tempo. O texto diz que a Igreja se reunia anualmente para celebrar o aniversário de seu martírio de forma a encorajar os demais cristãos. Não há nada sobre exposição das relíquias de Policarpo nem sobre orações realizadas a ele. É inegável que há especial carinho e cuidado com os restos mortais do mártir, mas há diferença substancial entre isso e a prática católica romana de veneração das relíquias. Dado que neste período os cristãos não se reuniam em templos e que os aniversários dos martírios eram comemorados nas tumbas, o mais provável é que as relíquias dos cristãos ficassem enterradas e não expostas em algum relicário.

Ainda que o martírio de Policarpo fosse um exemplo fidedigno da veneração de relíquias, o apologista católico precisa oferecer evidências adicionais. Porque deveríamos acreditar tal prática remonta aos apóstolos? Porque deveríamos acreditar que tal prática era generalizada na Igreja Antiga? A luz de evidências mais antigas como o martírio de Inácio, devemos acreditar que tal prática nem seria generalizada e nem tão antiga.

No séc. IV iniciou-se o processo de desenterrar as relíquias dos mártires para que fossem transferidas a alguma Igreja. O primeiro caso conhecido de ossos de um mártir sendo desenterrados e movido para outro local para a veneração é o transporte dos ossos de São Bábilas de Antioquia por César Constantino Gaio em 354 d.C. Dois anos depois, o Imperador Constâncio II transportou os ossos de Timóteo em 356 d.C e os ossos de André e Lucas em 358 d.C. Uma das primeiras referências a um cristão que recolhe as relíquias dos mártir para a veneração pessoal é uma carta de Basílio situada em 373 d.C: "Se você enviar as relíquias dos mártires para casa, você fará bem" (Carta 155). É nesse período (2ª metade do século IV) que a prática de guardar relíquias para veneração começa a se disseminar (não sem oposição).

Já não fosse trágico a prática em si, é amplamente reconhecido que a maior parte das relíquias expostas em Igrejas Católicas são apenas falsificações:

No entanto, continua a ser verdade que muitas das relíquias mais antigas, devidamente exibidas para a veneração nos santuários da cristandade ou mesmo em Roma, devem agora ser declaradas como certamente falsas ou suspeitas. Para tomar um exemplo da última classe, as tábuas do berço (Praesaepe) - um nome que há mais de mil anos foi associado à basílica de Santa Maria Maggiore - só pode ser considerado como sendo de duvidoso. Em sua monografia "Le memorie Liberiane dell 'Infanzia di N. S. Gesù Cristo" (Roma, 1894), Mons. Cozza Luzi admite francamente que todas as evidências positivas para a autenticidade das relíquias do berço, etc., estão faltando antes do século XI. Curiosamente, uma inscrição em unciais gregos do século VIII é encontrada em uma das placas, mas a inscrição não tem nada a ver com o berço, sendo aparentemente relacionada com alguma transação comercial. É difícil explicar sua presença na suposição de que a relíquia é autêntica. Dificuldades semelhantes podem ser encorajadas contra a suposta "coluna da flagelação" venerada em Roma na Igreja de Santa Prassede e contra muitas outras relíquias famosas. (Enciclopédia Católica)

Multidões e multidões de católicos veneram relíquias falsas sob a égide da Igreja Romana. Esse o resultado de quando abandonamos a intercessão certa e infalível de Cristo para a intercessão de personagens que em alguns casos sequer se sabe se existiram.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Sola Scriptura, Tradição, Irineu e a defasagem da apologética católica (Parte 2)

O conteúdo da Tradição de Irineu

Diante de tudo o que já vimos, torna-se vital saber qual era o conteúdo doutrinário da tradição de Irineu:

Muitos povos bárbaros que creem em Cristo, se atêm a esta maneira de proceder; sem papel nem tinta. Levam a salvação escrita em seus corações pelo Espírito e preservam cuidadosamente a antiga tradição, acreditando em um único Deus, o Criador do céu e da terra, e todas as coisas nele, por meio de Cristo Jesus, o Filho de Deus, que por causa de Seu amor pela sua criação condescendeu em ser nascido da virgem, unindo o homem através de Si mesmo a Deus, e, depois de ter sofrido sob Pôncio Pilatos, subiu novamente aos céus, sendo recebido em esplendor, e virá em sua glória como o Salvador daqueles que são salvos, e como juiz daqueles que serão julgados, enviando para o fogo eterno aqueles que transformaram a verdade e desprezaram o Seu Pai e seu advento. Aqueles que na ausência de documentos escritos acreditam nessa fé, sendo bárbaros até no que diz respeito à nossa língua, mas no que dizem respeito à doutrina, moral e teor de vida são, por causa da fé, muito sábios, pelo favor de Deus, conversando em toda a justiça, castidade e sabedoria. Se alguém fosse pregar a esses homens as invenções dos hereges, falando com eles em sua própria língua, eles iriam tampar de uma só vez os ouvidos e fugiriam ao mais longe possível, não suportando até mesmo escutar tais blasfêmias. Assim, por meio da antiga tradição dos apóstolos eles não têm sua mente aberta para conceber qualquer doutrina sugerida por esses mestres. (Contra as Heresias, Livro III, 3:3)

Sobre esta citação, Behr também comentou:

O conteúdo da tradição que esses bárbaros acreditavam, é importante notar, não é nada além do que está escrito nos escritos apostólicos, eles próprios [os escritos apostólicos] "de acordo com as Escrituras". Novamente, os escritos e a tradição apostólica não são duas fontes independentes ou complementares, mas duas modalidades do Evangelho "de acordo com as Escrituras". Assim, para Irineu, tanto a verdadeira tradição apostólica mantida pelas igrejas como os próprios escritos apostólicos, derivam dos mesmos apóstolos e têm um mesmo conteúdo, o Evangelho, que é, como vimos, "de acordo com As Escrituras ". A "Tradição" para a Igreja primitiva é, como afirmou Florovsky, "a Bíblia entendia corretamente". O apelo de Irineu à tradição é, portanto, fundamentalmente diferente de seus oponentes. Enquanto eles apelavam para a tradição precisamente para o que não estava na Escritura, ou para princípios que legitimariam sua interpretação da Escritura, Irineu, em seu apelo à tradição, não apelava a nada mais do aquilo que também estava na Escritura. Assim, Irineu podia apelar à tradição para estabelecer seu caso e, ao mesmo tempo, sustentar que a Escritura não poderia ser entendida, exceto com base na própria Escritura, usando sua própria hipótese e cânone. (Behr, p. 40)

É neste momento que vemos quão vazios são os apelos apologéticos romanistas a Irineu. Não há absolutamente nada das peculiares doutrinas de Roma. Onde está o purgatório, os dogmas marianos, a infalibilidade papal, indulgências, transubstanciação e etc? A Tradição a que Irineu se refere não tem nenhuma relação com a tradição fantasma criada por Roma. De fato, Irineu jamais poderia ser considerado um católico Romano (aqui). A Tradição de Irineu nada mais era do que um sumário de doutrinas claramente expostas na Escritura – algo que mais tarde formaria o credo apostólico. Há outras citações onde Irineu novamente expressa o conteúdo doutrinário da tradição:

A Igreja, embora dispersa através de todo o mundo, até os confins da terra, recebeu dos apóstolos e de seus discípulos essa fé: num Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da terra, e do mar, e de todas as coisas que neles há, e em Cristo Jesus, o Filho de Deus, que se encarnou para a nossa salvação, e no Espírito Santo, que proclamou através dos profetas as dispensações de Deus, os adventos, o nascimento através de uma virgem, a paixão, a ressurreição dos mortos, a ascensão para o Céu em carne do nosso amado Cristo Jesus, nosso Senhor, e a Sua futura manifestação do Céu na glória do Pai, para reunir todas as coisas em uma e levantar de novo toda a carne de toda a raça humana, a fim de que a Jesus Cristo, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, de acordo com a vontade do Pai invisível, se dobre todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que por Ele deve ser executado o juízo para todos, e que os anjos que transgrediram e se tornaram apóstatas, juntamente com os ímpios e profanos entre os homens, sejam condenados ao fogo eterno, mas no exercício da Sua graça conferir imortalidade ao justo e santo, e àqueles que mantiveram Seus mandamentos e perseveraram em Seu amor, alguns desde o início e outros desde o seu arrependimento, e conduzi-los à eterna glória. Como já observado, a Igreja, tendo recebido essa pregação de fé, embora espalhada por todo o mundo, cuidadosamente a preserva. (Contra as Heresias 1:10:1-2)

Não encontramos o mínimo sinal das inovações romanistas. Behr expressa de forma inequívoca a visão de Irineu segundo a qual a Escritura estava acima da tradição:

A Escritura, como está escrita, é constante, e embora a tradição mantida pela sucessão dos presbíteros seja igualmente constante em princípio, na prática é muito menos segura e, em qualquer caso, nunca pode ser, para Irineu, um ponto de referência a parte da Escritura. A doutrina em relação a Deus e a verdade que é Cristo, é encontrada na exposição das Escrituras como interpretada pelos apóstolos, que por si só proclamaram o Evangelho, entregando-o tanto na Escritura quanto na tradição. (Behr, p. 45)

Mais interessante ainda é que Behr (sendo ortodoxo oriental) alerta para o perigo de as Igrejas posteriores projetarem nos conceitos de tradição e sucessão de Irineu os seus próprios conceitos de tradição e sucessão:

Igualmente importante é que, apesar da grande variedade de posições contra as quais essa base foi articulada, e mesmo que não se manifeste clara e continuamente desde o início, é, no entanto, baseada no que foi entregue no início. A ordem e a estrutura da Igreja cristã, seus ministros ordenados e sua liturgia, sofreram muitos desenvolvimentos e modificações nos séculos subsequentes (...) Devido a essas mudanças, é preciso ter cuidado para garantir que os entendimentos posteriores da Igreja, seus ministros e sua tradição não sejam projetados de volta ao uso que foi feito do apelo à sucessão apostólica e à tradição nos primeiros debates sobre a base o cristianismo normativo ou ortodoxo. (Ibid)

Behr descreve o comportamento dos apologistas católicos que usam a tradição de Irineu de forma abusiva para atestar doutrinas que levaram séculos e séculos para serem cridas por sua Igreja. O próprio estudioso admite que a Igreja Cristã passou por muitos desenvolvimentos (diria eu que ilegítimos), e que, portanto, os atuais ensinos sobre tradição e sucessão apostólica não são o que Irineu entendia em seu tempo. Mais à frente vamos lidar com esses “desenvolvimentos”.

A alta visão de Irineu sobre a Escritura

Irineu acreditava piamente na inspiração, inerrância e infalibilidade das Escrituras. Ele claramente se referiu às Escrituras em termos muito elevados que não foram igualmente aplicados a tradição ou ao magistério. Ele declara que as "Escrituras são perfeitas, entregues pelo Verbo de Deus e pelo seu Espírito" (2.28.2). Elas são chamadas de "a Escritura da verdade" em oposição aos "escritos falsos" dos hereges (1.20.1). O fato de que "toda a Escritura, que nos foi dada por Deus", é mais uma prova de sua inerrância, já que Deus não pode erradicar (AH 2.28.3). Do mesmo modo, o fato de serem "encontrados por nós perfeitamente consistentes" mostram seu caráter impecável. Na verdade, Irineu fala dos autores da Escritura como "os apóstolos, igualmente, sendo discípulos da verdade, estão acima de qualquer falsidade" no que ensinaram (3.5.1). Os evangelhos, escritos pelos apóstolos, baseiam-se nas palavras de nosso Senhor. E "nosso Senhor, portanto, sendo a verdade, não disse mentiras" (3.5.1). Esta é uma constante entre os Pais da Igreja. Eles defenderam de forma explícita a inspiração e infalibilidade da Escritura. Todavia, os mesmos termos nunca são usados para se referir à Tradição ou magistério da Igreja. Isso demonstra a preeminência da Escritura.

A defasagem dos apologistas católicos

O argumento de que a Tradição complementa as Escrituras é muito popular ente os apologistas católicos. De fato, esse é o ensino histórico da Igreja Romana. O Concílio de Trento afirmou:

Vendo que esta verdade e disciplina estão contidas nos livros escritos e nas tradições orais, que – recebidas ou pelos Apóstolos dos lábios do próprio Cristo, ou dos próprios Apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo – chegaram até nós como que entregues de mão em mão, fiéis aos exemplos dos Padres ortodoxos, com igual sentimento de piedade e reverência aceita e venera todos os livros, tanto os do Antigo, como os do Novo Testamento, visto terem ambos o mesmo Deus por autor, bem como as mesmas tradições que se referem tanto à fé como aos costumes, quer sejam só oralmente recebidas de Cristo, quer sejam ditadas pelo Espírito Santo e conservadas por sucessão contínua na Igreja Católica. (Sessão IV – 783)

Resta claro que Escritura e Tradição deveriam estar no mesmo patamar. As duas devem ser recebidas com igual devoção. A Escritura não é tratada como a fonte mais excelente da revelação. O proeminente teólogo católico Karl Rahner escreveu:

Não seremos capazes de duvidar ou questionar o fato de que na teologia pós-tridentina a principal tendência de pensamento tem sido a de manter, com base numa frente antiprotestante, que há não somente a verdade da inspiração e do cânon das escrituras, mas que também há outras verdades de fé que não são encontradas nas escriturasde modo que para eles tradição oral é uma fonte materialmente distinta da fé. (Theological Investigations [Londres: Darton, Longman & Todd, 1969], Vol. VI, 106-107)

Todavia esta jamais foi a visão dos pais da Igreja. Já apresentamos o testemunho de Kelly, vejamos a opinião do franciscano Van den Eynde que foi perito do Concílio Vaticano II:

[Os Padres pré-nicenos] ... derivam do Novo e mesmo do Antigo Testamento toda a doutrina propriamente dita da Igreja, todos os pontos que são compreendidos naquilo que eles chamam a regra da verdade ou a pregação dos apóstolos. É certo que Irineu invoca muitas vezes em favor da fé eclesiástica as palavras dos presbíteros e anciãos. Mas eles lhe servem para confirmar, não para completar as verdades escriturísticas; ele mesmo acentua isso habitualmente. (EYNDE, D., Les Normes de l’Enseignement Chrétien dans la Litttératura Patristique des trois premiers siecles, p. 122; apud KLOPPENBURG, B., A Defensibilidade da Suficiência Material da S. Escritura, p. 25)

O Padre Ari Luís do Vale Ribeiro em seu artigo sobre a teoria das duas fontes afirma:

Os Santos Padres apoiavam a doutrina cristã sobre a Revelação divina, manifestada pelos profetas, por Cristo e pelos Apóstolos, identificando esta Revelação com as Escrituras do Antigo e do Novo Testamento. Todos admitem que entre a Revelação e Escritura haja perfeita harmonia que vai até a identidade de conteúdo; a voz de Deus ou a doutrina das Escrituras goza duma autoridade absoluta. Por isso, os Padres a apresentam como critério do verdadeiro ou do falso, como a única demonstração da fé e norma do ensinamento cristão. (Fonte)

Na Idade Média e na Escolástica, os escritores eclesiásticos são incisivos em identificar a revelação divina e as verdades da fé cristã com a Sagrada Escritura. Na Idade Média “Teologia” e “Sacra Página” são simplesmente sinônimos; estudar a teologia significa estudar a Sagrada Escritura; “praticar a teologia” é crer na Escritura, explicá-la, defendê-la e tirar dela conclusões. Desta forma, para os escolásticos a Escritura e a Teologia são uma coisa só, e a teologia está sempre centrada na Escritura. (Ibid)

Segundo S. Tomás, a teologia assume os seus princípios exclusivamente da S. Escritura (STh I, q. 1, a. 8, ad 2). Das sentenças dos Doutores da Igreja, a teologia se serve quase como de argumentos próprios, mas de um valor apenas provável (Ib.). Estes argumentos não podem reclamar a mesma certeza daqueles que são diretamente da Revelação porque não fazem parte dos princípios infalíveis, como os da Palavra de Deus. Segundo S. Tomás, o argumento fundado sobre a autoridade dos Padres da Igreja tem um valor intermediário entre o dos argumentos fundados sobre o “locus firmissimus” da Escritura e o dos argumentos fundados sobre a autoridade dos filósofos, que são “argumentos externos e meramente prováveis. (Ibid)

Sobre a elevada visão de Tomás de Aquino sobre a Escritura (aqui). Nos últimos tempos, os teólogos católicos têm aderido a visão da Suficiência Material da Escritura. Eles não mais acreditam que a tradição contenha doutrina apostólica não presente na Escritura (teoria das duas fontes). Todavia, parece que o círculo apologético católico ainda não se deu conta disso. O Cardeal Yves Congar escreveu:

(...) Podemos admitir Sola Scriptura no sentido de uma suficiência material das Escrituras canônicas. Isso significa que a Escritura contém, de uma forma ou de outra, todas as verdades necessárias para a salvação. Esta posição pode reivindicar o apoio de muitos Padres e teólogos primitivos. Tem sido e ainda é defendida por muitos teólogos modernos.  (Yves Congar, Tradição e Tradições, p. 410.)

O teólogo também católico Thomas G. Guarino escreveu:

Os evangélicos, é claro, seguiram geralmente o ditado reformado da Sola Scriptura. A essência desta frase tem uma história teológica longa e interessante e é, com nuances, aceita por muitos, se não a maioria dos teólogos católicos contemporâneos (...) Enquanto Congar e J. Geiselmann acreditam que Trento deixou a porta aberta para a tese da suficiência material das Escrituras, Joseph Ratzinger afirma a mesma reivindicação para a Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II, Dei Verbum. Este texto é "... o produto da tentativa de levar em consideração, na mais ampla medida possível, as observações feitas pelas igrejas reformadas e destina-se a manter o campo aberto para a ideia católica de Sola Scriptura ...". Se esses teólogos estão corretos, e a maioria dos teólogos católicos contemporâneos certamente concorda com eles, então os católicos, em sua própria maneira, poderiam concordar com a posição de que toda a verdade da salvação é encontrada nas Escrituras. (Thomas G. Guarino, “Catholic Reflections on Discerning the Truth of Sacred Scripture” inYour Word Is Truth, edited by Charles Colson and Richard John Neuhaus, 2002, pp. 79 85, 86.)

Quando os católicos utilizam citações dos Pais da Igreja para atacar a suficiência material da Escritura (o que há aos montes nos blogs católicos), eles estão tentando refutar uma posição que tem sido amplamente abraçada pelos teólogos da sua própria Igreja. Alguns chegam a dizer que a Dei Verbum chegou ao ponto de declarar a suficiência material da Escritura. Eu não chegaria a tanto e diria que, como em quase todos os documentos católicos, a linguagem é ambígua. Além disso, historicamente o decreto do Concílio de Trento foi entendido a luz da teoria das duas fontes, mas como a doutrina romana está em constante mutação, nada impede que no futuro haja uma declaração oficial mais explícita em favor da suficiência material.

O novo conceito de Roma sobre a Tradição

Ocorre que não foi somente a relação entre Tradição e Escritura que sofreu mudanças na Igreja Romana. O próprio conceito de tradição passou por uma mudança radical que parece ainda não ter sido percebida pela maioria dos apologistas católicos. Isso ficou claro no parágrafo final do texto católico que inspirou este artigo:

O mesmo se aplica à Tradição não escrita. Há crenças e práticas da igreja nos primeiros séculos que independem da Escritura e que são tão universalmente aceitas quanto esta: a concepção da eucaristia como presença real, corporal e transmutacional de Cristo, bem como a crença no seu caráter sacrificial; o governo eclesiástico episcopal; a devoção à virgem Maria e a intercessão dos santos; etc. Todas estas práticas eram tratadas com importância e centralidade e o seu registro é tão antigo quanto amplo, até mais que o das Escrituras, em certos casos. E aqui é importante discernir se a igreja antiga, no momento em que reconhecia as obras apostólicas como escriturísticas, tinha a intenção de fazer delas único fundamento da doutrina. Como supracitado, a igreja antiga possuía doutrinas e práticas que não poderiam se fundamentar apenas nas Escrituras e atribuía à elas origem apostólica, o que também pode ser demonstrado como acima fora dito, logo, não pretendia apoiar-se só na Sagrada Escritura, mas também na Sagrada Tradição.

Ele afirma que há crenças e práticas da Igreja Primitiva que independem da Escritura. Ou seja, elas não carecem de uma prova bíblica. Já vimos que esta posição seria amplamente rejeitada pela Igreja Antiga. E esta opinião não é de estudiosos protestantes apenas, mas é predominante também entre teólogos romanos e ortodoxos. Ele então nos dá exemplos dessas doutrinas cuja crença foi universal e até mais antiga do que a própria Escritura: a concepção eucarística romanista que se vale da transubstanciação, o governo episcopal, a devoção à virgem Maria e a intercessão dos Santos.

Primeiro percebe-se que ele comete o erro básico de limitar as Escrituras ao Novo Testamento. Como já visto, antes mesmo de Cristo encarnar já havia Escritura Sagrada Autoritativa. Segundo, o fato de a Igreja ter práticas e costumes que não estão na Escritura é irrelevante para a discussão da Sola Scriptura. Igrejas Protestantes tem práticas e costumes que não estão na Escritura, que são admissíveis desde que não contradigam nenhum dos princípios expostos no Livro Sagrado. O ponto em questão são as doutrinas. Terceiro, demonstrando desconhecer a doutrina reformada, o autor acredita que Sola Scriptura implica que nada além da própria Escritura pode ser usado para fundamentar uma doutrina – ou seja – um espantalho da doutrina reformada. O teólogo protestante Kevin Vanhoozer sintetizou num vídeo de poucos minutos a relação entre Escritura e Tradição na doutrina reformada (aqui). Para um vídeo mais longo do mesmo teólogo sobre Sola Scriptura – aquiE mais importante, as doutrinas por ele citadas não passam nem perto de terem sido cridas desde o início e universalmente pela Igreja Antiga. Esse é o tipo de afirmação que até mesmo historiadores romanos não fazem. Apenas pessoas leigas sobre a história da Igreja ou que usam os “óculos de Roma” para ler os Pais fazem esse tipo de afirmação. Felizmente eu tratei do desenvolvimento histórico destas doutrinas em meu blog. Eu tratei sobre a Eucaristia numa série de artigos (aqui). Como os historiadores da Igreja Antiga afirmam, nós encontramos uma variedade de posições ente os Pais sobre a Eucaristia. Desde a visão simbólica até a visão espiritual da Eucaristia (defendida por Agostinho). Um exemplo notável é de Gelásio (bispo de Roma) que negou a transubstanciação (aqui):

Certamente o sacramento, que tomamos, do corpo e sangue de Cristo é uma coisa divina, pela qual somos feitos participantes da natureza divina; e, contudo, a substância ou natureza do pão e do vinho não deixa de existir. E certamente a imagem e semelhança do corpo e sangue de Cristo celebram-se na ação dos mistérios. (Sobre as duas naturezas de Cristo)

O reconhecido especialista católico jesuíta Edward J. Kilmartin disse:

Segundo Gelásio, os sacramentos da Eucaristia comunicam a graça do mistério principal. A sua principal preocupação, no entanto, é realçar, como fez Teodoreto, o fato de que, após a consagração os elementos permanecem o que eram antes da consagração (...) O ensino de Gelásio sobre o assunto dos sacramentos da Eucaristia tem sido frequentemente explicado como sendo de acordo com o ensinamento do Concílio de Trento. Mas, como uma questão de fato, Trento o rejeitou-o por duas razões. No cânon 1 da décima terceira sessão (1551), o concílio ensinou que a Eucaristia não significa apenas, mas contém "o totum Christum”. A explicação de Gelásio não a inclui. De fato parece excluir explicitamente a doutrina da presença real somática do "Cristo total". (Edward J. Kilmartin, S.J., “The Eucharistic Theology of Pope Gelasius I: A Nontridentine View” in Studia Patristica, Vol. XXIX (Leuven: Peeters, 1997), p. 288.)

A doutrina romana sobre a Eucaristia foi tão aceita por “todos” e desde “antes do Novo Testamento”. Ainda na idade média os teólogos ocidentais debatiam sobre a questão. O historiador católico romano Garry Wills escreveu:

Tomás foi obrigado a empreender muitos esforços porque as alternativas à transubstanciação foram condenadas pela Igreja. Uma dessas alternativas foi oferecida no século 9 por Ratramo de Corbie, que disse que Jesus estava presente na Eucaristia apenas simbolicamente (em figura), não fisicamente. Ratramo foi repreendido por seu superior, Pascácio Radberto, que insistiu na presença real de Jesus na Eucaristia - o que fez o estudante Ratramo afirmar que Pascácio estava defendendo o canibalismo. A visão de Pascácio seria dominante nos dois séculos seguintes. Mas, no século XI, Berengário de Tours renovou de forma mais sofisticada o que Ratramo havia defendido, que a Eucaristia é Cristo em figura (em símbolo). Baseando-se na filosofia do sinal de Agostinho, Berengário disse que o sinal não está sozinho. Tem que ter um significante e destinatário do sinal. Todo o sistema não pode funcionar sem essa transação. Para ele, a Eucaristia era um sistema dinâmico, no qual as riquezas da salvação eram oferecidas àqueles com fé para recebê-las. (Why Priests,"describes the development of Eucharistic theology in the Middle Ages [p. 49])

Note-se que não estamos falando de homens considerados hereges pela Igreja Romana – mas de teólogos até hoje tidos em alta conta (especialmente Berengário de Tours). Somente no séc. XII a Igreja Romana iria dogmatizar sua visão da Eucaristia e assim desprezando a posição de diversos pais da Igreja, dentre os quais poderíamos citar Agostinho (aqui). O próprio Berengário (e outros teólogos medievais) iriam seguir Agostinho e rejeitar a ideia da transubstanciação. Conforme Schaff, muitos outros autores cristãos, inclusive seu pupilo Facundus, seguindo o mestre Agostinho, defenderam uma visão espiritual e não literal da eucaristia:

O discípulo de Agostinho, Facundus, ensinou que o pão sacramental "não é propriamente o corpo de Cristo, mas contém o mistério do corpo." Fulgêncio de Ruspe tinha a mesma visão simbólica; e até mesmo em um período bem mais tarde, podemos segui-la [a visão de Agostinho] por meio da poderosa influência dos escritos de Agostinho em Isidoro de Sevilha e Beda o Venerável. Entre os teólogos da época carolíngia, em Ratramo, e Berengário de Tours, até que irrompeu em uma forma modificada com maior força do que nunca, no século XVI, e tomou posição permanente nas igrejas reformadas. (Fonte)

Sobre o Governo Episcopal, tratei em detalhes aqui e aqui. Há um virtual consenso entre historiadores romanos, ortodoxos e protestantes de que, nos tempos dos Apóstolos, as Igrejas eram governadas por um colégio de presbíteros e não por um bispo monárquico. Ao longo do século II, em intervalos de tempo diferentes, as Igrejas locais começaram a nomear um presbítero para presidir sobre os demais (esta eleição sempre contava com a participação do povo). O exemplo notável é a Igreja de Roma que em princípio era formada por várias Igrejas domésticas independentes. A ascensão do bispo monárquico só veio a acontecer na segunda metade do século II. O Teólogo Jesuíta Francis Sullivan escreve:

A palavra grega traduzida por "oficiais" é prohegoumenois, que também aparece em I Clemente 21:6. Literalmente significa "aqueles que vão antes e liderar o caminho"; tanto aqui como em I Clemente refere-se aos líderes da Igreja local. Em ambos os textos a palavra está no plural; não havia nenhum bispo de Corinto quando Clemente escreveu, nem há qualquer indicação de um único bispo na Igreja [Roma] para a qual Hermas estava escrevendo. (Sullivan F.A, Op. Cit., pp. 134)

Da ausência de qualquer referência a um bispo e as várias referências no plural para os líderes e presbíteros, a maioria dos estudiosos agora conclui que, durante o período em que esta obra foi escrita, a Igreja de Roma ainda tinha liderança colegial. (Op. Cit., pp. 138)

Klaus Schatz, reconhecido teólogo e também sacerdote jesuíta, afirma sobre a carta de Clemente:

No entanto, ele [Clemente de Roma] não é apontado como o autor da carta; em vez disso, o verdadeiro remetente é a comunidade romana. Nós provavelmente não podemos dizer com certeza que havia um bispo de Roma na época. Parece provável que a Igreja romana era governada por um grupo de presbíteros, de quem muito rapidamente surgiu um oficiante ou "primeiro entre iguais", cujo nome foi lembrado e que posteriormente foi descrito como "bispo", após meados do século II (...) Mas seria ir longe demais deduzir que a Igreja romana tinha autoridade formal ou precedência sobre outras Igrejas, como foi feito com muita pressa por católicos romanos no passado. Em primeiro lugar, mesmo se essa admoestação reivindicasse a autoridade de Deus e a assistência do Espírito Santo, permaneceria dentro do contexto da universal e fraterna solidariedade das Igrejas cristãs, embora seja falado a uma igreja irmã que havia se desviado.  (El primado del papa: su historia desde los orígenes hasta nuestros días. Ed. Sal Terrae, Maliaño 1996, pp. 4, 5)

Aqui chegamos a uma importante questão – não importa quão generalizada uma prática ou doutrina tenha se tornado em tempos depois dos apóstolos, se ela não pode ser rastreada até o período apostólico, não pode ser vinculante para os cristãos. O Epsicopado Monárquico se tornaria uma prática generalizada no fim do séc. II, no entanto, ao analisarmos as evidências mais antigas, percebemos que foi fruto de mudanças não instituídas por qualquer apóstolo. Dessa forma, embora seja uma forma aceitável de Governo da Igreja, não pode ser obrigatória. Outras Igrejas que se organizam na forma presbiteral (mais antiga do que a episcopal) ou congregacional estão tão ou até mais harmônicas à doutrina apostólica.

O autor católico ainda afirma que a doutrina romana de intercessão dos santos seria uma dessas tradições generalizadas e tão antigas quanto a própria Escritura (resta saber que documentos tão antigos são esses?) Essa é outra afirmação que apenas alguém muito leigo faria. Isso se dá porque a crença na oração aos santos só ganhou força na Igreja a partir do séc. IV (ainda assim com oposição). Eu tratei desta questão aqui. O fato histórico é que não há sequer um escrito patrístico confiável dos três primeiros séculos que apoie a oração aos santos. Levando-se em conta que a oração é um dos temas mais abordados pelos Pais da Igreja, como tal crença poderia ser a prática de toda a Igreja desde o início? Tertuliano por exemplo escreveu um tratado sobre a oração e parece ter “esquecido” de mencionar esta importante doutrina. Que tipo de católico romano esqueceria de tal “detalhe” num tratado sobre oração?

Como alguém pode afirmar que uma crença que só passou a ganhar força mais de 300 anos após a fundação da Igreja pode ser uma tradição generalizada e tão antiga quanto a própria Igreja? Nesse ponto, os romanistas passam a fazer uso de uma linha de evidências que mostra quão distorcida é sua abordagem da história da Igreja. É comum ouvirmos falar de inscrições em catacumbas que eram locais de culto cristão nas quais havia pedidos a algum apóstolo já morto. O problema é que não sabemos quem eram os autores destas inscrições. Sabemos que tais crenças não eram generalizadas, pois os Pais da Igreja mais antigos não as adotaram. E o mais importante, não sabemos se eram fontes ortodoxas. O que apologistas católicos não costumam falar é que nas catacumbas também foram encontradas inscrições de pedidos feitos a deuses pagãos. Devemos então concluir que esta era a crença generalizada da Igreja? Boa parte das cartas do Novo Testamento foi escrita para repreender Igrejas que estavam aderindo a doutrinas heréticas. Se tais cristãos, sob supervisão direta dos apóstolos, poderiam claudicar, como então as práticas de “cristãos” que sequer sabemos quem eram pode se tornar o critério da ortodoxia da Igreja? Lembremos que as heresias sempre surgiram dentro da Igreja e contaram com o apoio de muitos cristãos. O gnosticismo por exemplo teve seu epicentro na Igreja de Roma.

Ainda é citado a devoção à Maria. A abordagem que os Pais da Igreja mais antigos tinham sobre Maria era muito mais parecida àquela dos reformadores do que atuais católicos Romanos. Maria é pouquíssimo citada pelos pais do séc. II (em oposição aos católicos atuais que a citam até em uma simples carta). Não há um registro patrístico sequer de Oração a Maria anterior ao século IV? Essa seria mais uma dessas tradições secretas que passam séculos e séculos escondidas? A oração à Maria era uma prática tão “generalizada” na Igreja Antiga que a evidência mais antiga desta prática (de uma fonte que sequer conhecemos) é o papiro 470. O problema é que a data mais antiga atribuída ao papiro é o ano 250. Agora pense nos católicos romanos atuais. Um fiel praticante deve rezar para Maria quase todos os dias. Como uma prática tão generalizada poderia ter evidência tão escassa e tardia? A datação do papiro também é objeto de controvérsia:

Este fragmento de papiro é uma oração para Theotokos escrito em torno de 250 d.c, por papirorólogos que examinaram o estilo de caligrafia. Alguns inicialmente colocaram o papiro no quarto ou quinto século (a descrição da Biblioteca de John Rylands abaixo o enumera como 3º - 4º século), talvez porque não pensassem que os cristãos estariam orando pelos Theotokos tão cedo. (Fonte)

Os dogmas marianos são exemplos por excelência de como a tradição romana não pode rastrear suas doutrinas até fontes apostólicas. A ideia da Assunção de Maria foi completamente desconhecida pela Igreja por séculos (aqui e aqui). A imaculada conceição não conta com nenhum testemunho patrístico favorável e com muitos contrários (aqui), (aqui) e (aqui). Como qualquer teologia dogmática católica vai reconhecer, a imaculada conceição foi contestada por vários teólogos medievais, cujo principal exemplo é Tomas de Aquino (aqui). Será que o doutor da Igreja Romana desconhecia o fato de que esta era uma dessas tradições generalizadas aceitas desde o início? A virgindade perpétua foi tratada por mim (aqui). Trata-se de uma crença que tem como fonte mais antiga evangelhos apócrifos e fontes gnósticas, tendo, contudo, sido contestada por vários pais da igreja em alguns de seus fundamentos (virgindade no parto e pós-parto). Durante mais de 300 anos após os apóstolos, absolutamente nenhum pai da Igreja afirmou que a virgindade pós-parto e no parto eram artigos de fé da Igreja.

O mesmo raciocínio se aplica a outras inovações romanistas como o papado (veja coleção de artigos aqui), purgatório (aqui), Confissão e Penitência (aqui). Onde estavam as indulgências na Igreja antiga? Nenhum historiador católico romano por mais enviesado que fosse afirmaria que as Indulgências foram uma prática da Igreja antiga desde os apóstolos. Eu não estou falando de teses de autores anti-católicos. Quem se der ao trabalho de ler os artigos, verá que tais conclusões são amplamente compartilhadas por autores católicos. Por exemplo, Klaus Schatz (reconhecido teólogo jesuíta) afirma sobre o papado:

Se perguntássemos se a Igreja primitiva estava ciente, após a morte de Pedro, de que a sua autoridade tinha passado para o próximo bispo de Roma, ou em outras palavras, que o chefe da comunidade em Roma era agora o sucessor de Pedro, a Pedra da Igreja, portanto, o sujeito da promessa em Mateus 16:18-19, a questão, colocada nesses termos, deve certamente ser dada uma resposta negativa. (Klaus Schatz, Papal Primacy: From Its Origins to the Present. Collegeville, Minnesota: Liturgical Press, 1996, p. 2)

O historiador católico Garry Wills citando ninguém menos do que Cardeal Newman disse:

O papado não veio à existência ao mesmo tempo que a Igreja. Nas palavras de John Henry Newman: "Enquanto os apóstolos estavam na terra, não havia nem Bispo nem Papa". Pedro não era um Bispo em Roma. Não houve bispos em Roma por pelo menos cem anos após a morte de Cristo. O próprio termo "papa" (papai) não foi reservado para o bispo de Roma até o século V - antes disso era usado para qualquer bispo. (Why I am a Catholic. Boston, Houghton, Mifflin and Company, 2002. p. 54)

A opinião acima expressa não é minoritária, sendo também endossada pela maioria dos teólogos católicos, inclusive aqueles que receberam imprimatur em suas obras. Veja aqui  e aqui. Ocorre que a maior parte da apologética católica está defasada e utiliza um conceito de tradição que já foi há muito abandonado pela Igreja Romana. A maioria dos apologistas (e parece ser esta a linha de argumento aqui atacada) defende a tradição romana como aquela que foi a crença da Igreja desde o início. Todavia, os teólogos católicos já perceberam que esta linha de argumento invalidaria as peculiares doutrinas romanas. Roma abandonou este conceito de tradição que remonta a Vincente Lérins (aquilo foi crido por todos, em todos os lugares, em todos os tempos) e abraçou a teoria do desenvolvimento da doutrina proposta por Cardeal Newman. Esta é a grande mente por trás do catolicismo moderno. Roma adota o conceito de tradição viva. Trata-se de uma tradição que está em constante desenvolvimento, de forma que é perfeitamente possível que gerações e gerações de cristãos não cressem em algo mais tarde dogmatizado. Como dito no início, o autor católico defende um conceito de tradição já abandonado por sua própria Igreja. A tradição católica não precisa mais ser rastreada até uma fonte apostólica (algo que seria impossível). A Tradição é o que o magistério infalível da Igreja ensina, não importando se ela não é capaz de evidenciar isso ao longo do corredor da história. Essa mudança é abordada em detalhes aqui. Várias doutrinas poderiam ser tomadas como exemplo, mas o caso mais exemplificativo é o dogma da Assunção de Maria proclamado 19 séculos depois da morte do último Apóstolo. O historiador católico romano Joussard escreveu:

Nestas condições não vamos apelar ao pensamento patrístico - como alguns teólogos fazem ainda hoje sob uma forma ou outra - para transmitir, no que diz respeito à assunção, uma verdade recebida como tal no início e fielmente repassada às épocas subsequentes. Tal atitude não caberia aos fatos ... o pensamento patrístico não tem, nesse caso, desempenhado o papel de um fiel instrumento de transmissão. (Joussard, L'Assomption coropelle, pp. 115-116. Cited by Juniper B. Carol, O.F.M., ed., Mariology, Vol. I (Milwaukee: Bruce, 1955), p. 154. Juniper B. Carol, O.F.M., ed., Mariology, Vol. I (Milwaukee: Bruce, 1955), p. 154)

Os editores do livro (entre eles o famoso mariologista Juniper B. Carol) fazem referência a essas declarações de Joussard com os seguintes comentários:

Uma palavra de cautela não é impertinente aqui. A investigação dos documentos patrísticos pode muito bem levar o historiador à conclusão: nos primeiros sete ou oito séculos nenhuma tradição histórica confiável sobre a assunção corpórea de Maria é existente, especialmente no Ocidente. A conclusão é legítima; se o historiador parar por aí, alguns nervos teológicos serão tocados. O erro do historiador seria concluir: portanto, nenhuma prova da tradição pode ser apresentada. O método histórico não é o método teológico, nem tradição histórica é sinônimo de tradição dogmática. (Juniper B. Carol, O.F.M., ed., Mariology, Vol. I (Milwaukee: Bruce, 1955), p. 154)

Por isso, os critérios propostos pelo autor católico apenas serviriam para chegar a uma conclusão inaceitável para um bom católico romano – doutrinas como papado, assunção de Maria e tantas outras não seriam parte da tradição apostólica. É inútil para ele dizer que devemos investigar a tradição. As conclusões individuais dele serão irrelevantes caso se choquem com os ensinos de sua Igreja. Livre exame mesmo da tradição é coisa de protestante. No caso de outras doutrinas como o culto às imagens isso é mais patente. Os pais da Igreja pré-nicenos foram amplamente contrários ao uso de imagens (aqui). Todavia, tal prática se generalizou na Igreja de séculos depois. Se formos aplicar o raciocínio do autor católico para filtrar dos pais da Igreja a verdadeira tradição, teríamos que rejeitar o uso de imagens no culto. Eu duvido que ele irá fazer isso, pois pouco importa qual é a posição dos pais da Igreja, a posição do magistério atual sempre deverá prevalecer por mais infundada que seja. Cardeal Newman expressa a inaplicabilidade da regra de Vicente para referendar a tradição romana aqui:

Não parece possível, então, evitar a conclusão de que, qualquer que seja a chave apropriada para harmonizar os registros e documentos da Igreja Primitiva e da Igreja mais tardia e considerando como verdadeiro o ditado de Vicente, deve ser considerado em abstrato, e como possível a sua aplicação em sua própria época, quando ele quase poderia pedir aos séculos primitivos o seu testemunhoIsso dificilmente está disponível agora, ou efetivo para qualquer resultado satisfatório. A solução que ele oferece é tão difícil quanto o problema original. (John Henry Newman, An Essay on the Development of Christian Doctrine (New York: Longmans, Green and Co., reprinted 1927), p. 27)

A Tradição como intérprete das Escrituras

Essa é a posição defendida por aqueles que não negam a Suficiência Material da Escritura. Quanto à utilidade e importância da tradição da Igreja (entendida aqui como o ensino histórico da Igreja) não há objeção da Fé Protestante. Todavia, os Pais da Igreja são intérpretes falíveis da Escritura. Dessa forma, nenhum Pai da Igreja possui autoridade tal que ofereça uma interpretação obrigatória da Escritura.

Apologistas católicos costumam dizer que não podemos interpretar a Escritura por nós mesmos. O Texto sagrado é complexo e obscuro, então, somente o magistério “infalível” teria essa prerrogativa. Deixando de lado a existência desse magistério infalível (que como já visto sequer é parte da Tradição da Igreja), onde estão as interpretações infalíveis do texto bíblico? Há um comentário infalível da Escritura? Há sequer uma lista de textos bíblicos para os quais o magistério produziu as tais interpretações? Não há nada disso. Os teólogos católicos mais otimistas afirmam que o magistério produziu a interpretação infalível de talvez doze versículos bíblicos. E só para constar, Mateus 16:18 (o mais utilizado por apologistas) sequer é um deles. Doze versículos não representam sequer 1% da Escritura. Isso quer dizer que, em mais de 99% dos versículos, ele depende de uma interpretação falível. Por motivos como tais, podemos dizer que se foi a vontade de Deus que houvesse um magistério infalível sucessor dos apóstolos, a Igreja de Roma não pode tê-lo. Como um magistério com grau de eficiência ridiculamente baixo poderia cumprir o propósito de prevenir a Igreja de Cristo do erro. Em séculos de história, a igreja Romana nunca produziu uma tradução bíblica infalível. Na verdade, tentou produzir, mas falhou miseravelmente.

O papa Sisto V, encorajado pela decisão do Concílio de Trento, onde a "Vulgata" foi reconhecida como um artigo autêntico da Igreja católica romana, publicou e distribuiu uma nova edição, historicamente conhecida como a edição "sixtina". No decreto papal que anunciou a edição, Sisto V mencionou que o referido texto seria o único texto autêntico e que o considerava como tendo sido corrigido "pela mesma mão fundamentada na autoridade da abundância do poder apostólico." (Paul Fr. Ballester Convalier, My turn to Orthodoxy, Athens 1954, pg 33, 1-pg34)

Ele também determinou que todas as outras publicações das Sagradas Escrituras não tinham valor e que quem tentasse derrubar o novo texto seria automaticamente excomungados. Dois anos mais tarde, o Papa Clemente VII (1592-1605) retratou a edição de Sisto V porque estava cheio de enganos e erros em "tradução, expressão e ensino." (Ibid., p. 34). Na verdade, o cardeal jesuíta Roberto Belarmino - um dos maiores teólogos papistas até aquela data, um santo para os católicos romanos e grande defensor do primado papal - caracterizou o artigo de Sisto V "como um labirinto de enganos de toda espécie." (Ibid., p. 34)

O mesmo Belarmino na verdade menciona em sua autobiografia que pediu ao Papa Gregório XIV (1590-1591) para proteger a reputação de Sisto V do escárnio. Como? Através da republicação de sua edição de 1590 corrigida e com a adição de um prólogo de Belarmino em que ele iria explicar aos fiéis que Sisto V não foi culpado pelos erros, mas as "impressoras e outros." (Ibid., p. 34)

Eu tratei numa série de três artigos as principais objeções à Sola Scriptura (AQUI http://respostascristas.blogspot.com.br/2016/05/respondendo-objecoes-sola-scriptura.html). Não há nenhum problema em apelar aos Pais da Igreja para apoiar determinada interpretação, todavia, é um problema definir uma interpretação como verdadeira assentado unicamente sobre a autoridade dos Pais da Igreja. Como já visto, Tomás de Aquino entendia que os pais da Igreja ofereciam apenas um argumento provável. Além disso, há outro problema – o consenso interpretativo dos Pais da Igreja é raro. Nenhuma das peculiares doutrinas de Romana pode invocar para si o consenso dos Pais. Cardeal Congar escreveu:

Em todas as épocas o consenso dos fiéis, ainda mais o acordo daqueles que são comissionados para ensiná-los, tem sido considerado como uma garantia de verdade: não por causa de alguma mística da votação universal, mas por causa do princípio do Evangelho de que a unanimidade e o companheirismo em matéria cristã exigem e também indicam a intervenção do Espírito Santo. A partir do momento em que o argumento patrístico começou a ser usado em controvérsias dogmáticas, ele apareceu pela primeira vez no segundo século e se tornou comum no quarto século. Teólogos tentaram estabelecer um acordo entre as testemunhas qualificadas da fé, e têm tentado provar a partir desse acordo que esse era de fato a crença da Igreja ... consentimento patrístico unânime como um locus theologicus confiável é clássico na teologia católica; ele tem sido muitas vezes declarado pelo magistério e o seu valor de interpretação bíblica foi especialmente valorizado. A aplicação do princípio é difícil, pelo menos, num certo nívelEm relação aos textos individuais das Escrituras, total consenso patrístico é raro. Na verdade, um consenso completo é desnecessário: muitas vezes, aquilo que é objeto de recurso como suficiente para pontos dogmáticos não vai além do que é encontrado na interpretação de muitos textos. Mas às vezes acontece de alguns Padres terem entendido uma passagem de uma maneira que não vai estar de acordo com o ensinamento da Igreja mais tarde. Um exemplo: a interpretação da confissão de Pedro em Mateus 16: 16-18Exceto em Roma, esta passagem não foi aplicada pelos Padres ao primado papal; eles trabalhavam fora uma exegese ao nível do seu próprio pensamento eclesiológico, mais antropológica e espiritual do que jurídica. Esse exemplo, selecionado a partir de um número de outros semelhantes, mostra que os primeiros pais não podem ser isolados da igreja e da sua vida. Eles são grandes, mas a Igreja supera-os em idade, como também pela amplitude e riqueza de sua experiência. É a Igreja, e não os pais. O consenso da Igreja, na submissão ao seu Salvador, é a regra suficiente de nosso cristianismo. (Yves Congar, Tradition and Traditions (New York: Macmillan Company, 1966), pp. 397-400)

Congar expressa a inaplicabilidade do consenso unânime dos Pais para validar muitos dos ensinos atuais da Igreja, em especial, a interpretação de Mateus 16:18. Dessa forma, o uso dos pais da Igreja se torna arbitrário. Se pegarmos um texto individual da Escritura e procurarmos as várias interpretações patrísticas sobre eles, provavelmente encontraremos diversas interpretações divergentes. Isso é tão verdadeiro que havia duas escolas interpretativas rivais na Igreja Antiga: Antioquia e Alexandria. A primeira pendia para uma interpretação mais literal enquanto a segunda abusava da alegoria e tipologia do texto (o que dava origem a interpretações bizarras).

Além disso, há um problema adicional – a tradição que emerge do ensino dos Pais precisa ser interpretada e sua interpretação é mais difícil do que a do texto bíblico. Diferente da Escritura, onde há limites claros, ninguém pode consultar um volume onde vá encontrar toda a genuína interpretação patrística da Escritura. O argumento da tradição interpretativa não raro cria uma solução mais problemática do que o problema original. Além disso, tem a questão do peso das testemunhas. Alguns pais da Igreja tinham maior bagagem teológica como Agostinho. Outros tinham melhor conhecimento das línguas originais como Jerônimo. Outros já estavam mais próximos das fontes como Policarpo. Todavia, pouquíssimos escritos sobreviveram dos pais mais antigos. A maior parte dos escritos são do séc. IV em diante – ou seja – testemunhas distantes das fontes apostólicas.

Outro problema é o estado de preservação das obras. Os Escritos apostólicos, até pela posição suprema que ocupavam, foram muito mais replicados e preservados do que os escritos patrísticos. Quem estuda patrística sabe que há dúvidas sobre a autenticidade de várias obras e já foram descobertas diversas interpolações em escritos patrísticos. As obras de Irineu por exemplo são objeto de várias dúvidas de autenticidade. Teólogos medievais acreditaram numa série de falsificações (muitas delas usadas por Roma para sedimentar sua ânsia por poder), tais como: a doação de Constantino e pseudo-dionísio. Aquino acreditava por exemplo em obras espúrias atribuídas a Agostinho e que pseudo-dionísio fora escrito pelo areopagita convertido por Paulo.

Além do mais, para aqueles que acreditam na tradição apenas como um veículo diferente da mesma doutrina apostólica contida na Escritura, a tradição não terá grande valor interpretativo. Se a doutrina X foi registrada por escrito por Paulo e foi preservada oralmente, como a mesma doutrina poderia interpretar a si mesma? A interpretação de uma doutrina não pode ser a própria, sempre será uma entidade a parte. A interpretação da Escritura, da Tradição ou até mesmo dos documentos do magistério sempre será um apelo externo que precisará se valer de elementos não contidos nem na Escritura, nem no Magistério e nem na Tradição. Nenhum texto pode conter sua própria interpretação.

Os Pais da Igreja não foram defensores vorazes apenas da Suficiência Material. Eles também defenderam a Suficiência Formal da Escritura – ou seja – a clareza do texto bíblico a ponto de que o homem comum fazendo uso das ferramentas corretas (sem a necessidade de um bispo infalível) poderia chegar ao correto entendimento do texto. Tratei desse tema numa série de artigos que atesta com quase 100 citações este fato aqui. Como escolhemos Irineu para o nosso estudo, deixo abaixo o seu testemunho:

Leia com maior diligência aquele evangelho que nos foi dado pelos apóstolos; e leia com maior diligência os profetas, e você encontrará cada ação e toda a doutrina de Nosso Senhor neles pregados. (Contra as Heresias 4:66)

O bispo de Lyon instrui a ler com diligência o evangelho apostólico e os profetas – uma provável referência à novo e antigo testamento. O leitor individualmente conseguiria perceber cada ação e doutrina pregada pelo Senhor.

Em compensação, uma inteligência sã, equilibrada, piedosa e amante da verdade dedicar-se-á a considerar as coisas que Deus pôs em poder dos homens, à disposição dos nossos conhecimentos, e aplicando-se a elas com todo o seu ardor, progredirá e, pelo estudo constante, terá conhecimento profundo. Estas coisas são tudo o que cai debaixo dos nossos olhares e tudo o que está contido, claramente e sem ambiguidade, em termos próprios nas Escrituras. Eis por que as parábolas não devem ser adaptadas a coisas ambíguas, porque quem as explica o deve fazer sem acrobacias e devem ser explicadas por todos da mesma maneira, e assim o corpo da verdade se manterá íntegro, harmoniosamente estruturado e livre de transformações (...) Ora, todas as Escrituras, profecias e evangelhos, que todos têm a possibilidade de ouvir, ainda que nem todos acreditem, proclamam claramente e sem ambiguidade , excluindo qualquer outro, que um só e único Deus criou todas as coisas por meio de seu Verbo, as visíveis e as invisíveis, as celestes e as terrestres, as que vivem na água e as que se arrastam debaixo da terra, como demonstramos com as próprias palavras da Escritura. Por seu lado, o mundo em que nós estamos, por tudo o que apresenta aos nossos olhares, testemunha que é único quem o fez e o governa. Então, como parecem néscios os que diante de manifestação tão clara, estão com os olhos cegos e não querem ver a luz da pregação, que se fecham em si mesmos e com explicações obscuras das parábolas se imaginam, cada um, de ter encontrado o seu Deus! Com efeito, no que diz respeito ao Pai imaginado por eles, nenhuma Escritura diz algo claramente, em termos próprios e sem contestação possível; e eles próprios são testemunhas disso quando afirmam que o Salvador ensinou estas coisas secretamente, não a todos, mas a alguns discípulos capazes de entendê-las, indicando-as por meio de provas, enigmas e parábolas. E chegam ao ponto de dizer que um é o que é chamado Deus e outro é o Pai, indicado pelas parábolas e pelos enigmas. (Contra as Heresias 2:27:1-2)

Diferente dos apologistas católicos que tratam a Escritura de forma semelhante aos gnósticos – acusando-a de ser complexa e obscura, exigindo assim a intervenção de um suposto magistério infalível e de uma tradição secreta, Irineu não compartilhava disso. Como Kelly bem asseverou:

Por outro lado, Irineu pressupunha que a tradição apostólica também fora depositada em documentos escritos. Conforme ele diz (A.H 3.1.1), o que os apóstolos incialmente proclamavam, mediante a palavra falada, passou mais tarde, por vontade de Deus, a ser transmitido por eles nas Escrituras. À semelhança dos apologistas, ele sustentava (A.H 4.33.10-14) que toda a vida, a paixão e os ensinos de Cristo haviam sido prenunciados no Antigo Testamento; mas o Novo era, a seus olhos, a formulação escrita da tradição apostólica (A.H 3.1.1; 3.1.2; 3.10.6 e 3.14.2). Por essa razão, seu teste para determinar os livros que pertenciam a esta tradição não era apenas o costume da Igreja, mas a apostolicidade (A.H 1.9.2; 3.1.1; 3.3.4; 3.10.1 e 3.10.6), isto é, o fato de terem sido compostos pelos apóstolos ou pelos seguidores destes, sendo possível, desse modo, confiar que continham o testemunho apostólico. Havia, claro, a dificuldade de que os hereges estariam sujeitos a extrair das Escrituras um sentido diferente, mas Irineu se satisfazia (A.H 2.27.2) com o fato de que, sendo interpretada como um todo, o ensino da Bíblia era evidente por si. Os hereges que a interpretavam erroneamente faziam-no apenas porque, não levando em conta sua unidade intrínseca, apegavam-se a trechos isolados e os reorganizavam de forma a adaptarem às suas próprias ideias (A.H 1.8.1; 1.9.1-4). As Escrituras deveriam ser interpretadas à luz de seu plano fundamental, a saber, a própria revelação original. Por essa razão, a exegese correta era prerrogativa da Igreja, onde se mantinha intata a tradição ou a doutrina apostólica, que era a chave das Escrituras (A.H 4.26.5; 4.32.1; 5.20.2). Teria Irineu, dessa forma, subordinado as Escrituras à tradição não-escrita? É comum fazer esta inferência, mas ela provém de uma antítese um tanto enganosa. Sua plausibilidade depende de considerações como: (a) na controvérsia com os gnósticos, a tradição, não as Escrituras, parecia ser sua instância final de apelação; e (b) aparentemente ele dependia da tradição para determinar a verdadeira exegese da Escritura. Mas uma análise cuidadosa de seu Adversus haereses revela que, conquanto o apelo dos gnósticos à sua suposta tradição secreta tenha-o levado a enfatizar a superioridade da tradição pública da Igreja, sua verdadeira defesa das Escrituras baseava-se nas Escrituras (A.H 2.35.4; 3.2.1). Aliás, em sua própria maneira de ver, a própria tradição era confirmada pelas Escrituras, que era o “alicerce e a coluna da nossa fé”. Segundo, como se sabe, Irineu afirmava (A.H 1.9.4) que uma compreensão sólida do “cânon da verdade”, recebida por ocasião do batismo, evitaria que uma pessoa distorcesse o sentido das Escrituras. Mas esse “cânon”, longe de ser algo distinto das Escrituras, era simplesmente um resumo da mensagem nela contida. (Kelly, p. 27-28)

Além de outros apontamentos já feitos neste artigo, Irineu não acreditava que os hereges interpretavam as Escrituras erroneamente por uma ambiguidade ou dificuldade intrínseca ao texto bíblico, mas por erro dos próprios hereges. É nítido que os reformadores estavam muito mais próximos da compreensão de Irineu do que seus oponentes romanistas. Por outro lado, Trento dogmatizou uma posição mais próxima da heresia gnóstica do que de Irineu. A partir do século IV, o apelo aos pais da igreja seria frequente nos debates doutrinários. Kelly escreve:

Esses desdobramentos podem insinuar que a tradição dos pais, por si, estava passando a ser tratada como autoridade. No entanto, seria um engano ler as evidências desta maneira. Por maior que fosse o respeito pelos pais, não se cogitava que eles houvessem tido acesso a outras verdades que não aquelas contidas, explícita ou implicitamente, nas Escrituras. Na controvérsia cristológica, por exemplo, o recurso final de Cirilo (De recta fide ad regin. 2) sempre esteve no ensino da Bíblia – “a tradição dos apóstolos e evangelistas .... e o propósito das Escrituras divinamente inspiradas como um todo”. De sua parte, Teodoreto cristalizou sua posição nesta afirmação (Eran 1): “Devo obediência apenas às Sagradas Escrituras”. Aos olhos de ambos, a autoridade dos Pais consistia precisamente no fato de que eles haviam exposto de modo muito fiel e completo a verdadeira intenção dos escritores bíblicos. (Kelly, p. 36)

Até mesmo um liberal que não acredita na inspiração da Bíblia reconhece a precedência desta sobre a tradição por uma simples questão lógica. Supondo a hipótese irreal de que os Pais da Igreja possuíam doutrinas apostólicas extra-bíblicas, como os escritos do próprio Apóstolo estariam no mesmo patamar que os escritos de pessoas que viveram tempos depois dos apóstolos (em alguns casos séculos)? Uma fonte direta precede uma fonte intermediária.