quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Sola Scriptura, Tradição, Irineu e a defasagem da apologética católica (Parte 1)


Sola Scriptura e Tradição então ente os temas mais debatidos entre católicos e protestantes. Quando afirmamos que muitos dos pais da igreja sustentavam o princípio da Sola Scriptura, os romanistas costumam apontar citações em que eles escrevera sobre autoridade da Igreja e da Tradição, logo eles não poderiam adotar a Sola Scriptura. Neste artigo vou discorrer sobre a relação ente e Escritura e Tradição nos pais da Igreja. Utilizarei Irineu de Lyon como exemplo pela sua importância teológica e porque os argumentos que valem para esse teólogo também são válidos para os outros. Irineu é um bom exemplo de como a Igreja Antiga entendia a questão. Vou utilizar como pano de fundo os comentários de um apologista católico. Tais argumentos são muito populares na apologética católica, por isso os utilizo para fins didáticos. Por último, pretendo demonstrar como estes argumentos já foram abandonados há muito tempo por boa parte dos teólogos de Roma. Os comentários do católico estão em vermelho com meus grifo:

O historiador da Igreja, protestante, John Norman Davidson Kelly, na sua obra Patrística: Origem e desenvolvimento das doutrinas centrai da fé cristã, dá uma definição para o termo Tradição, não muito peculiar nos círculos protestantes, onde geralmente é usado em referência à tudo aquilo que pretende alcançar força de verdade estando fora da Escritura e sendo colocado, por vezes, em relação antitética às Escrituras:

"No sentido atual da palavra, "tradição" denota o corpo de doutrinas não-escritas transmitidas pela igreja ou a transmissão de tais doutrinas e, desse modo, costuma estar em contraste com as Escrituras. Na linguagem dos pais, como aliás também ocorre no Novo Testamento, obviamente o termo continha essa ideia de transmissão e, por fim, o sentido moderno tornou-se comum. Mas seu significado básico (cf. paradidonai, tradere), a saber, o pronunciamento feito com autoridade, estava, em sua origem, em primeiro plano e sempre permaneceu em destaque. Por isso, para os pais, "tradição" significa a doutrina que o Senhor ou Seus apóstolos entregaram à igreja, não importando se foi transmitida oralmente ou em documentos [...] O significado antigo do termo é bem ilustrado na referência de Atanásio "à tradição, ao ensino, e à fé verdadeiras e originais da Igreja Católica, que o Senhor outorgou, os apóstolos proclamaram e os pais preservaram"." (pag. 22. São Paulo. Edições Vida Nova. 2015).

É comum que romanistas usem J.N.D Kelly de forma descontextualizada. Será que este estudioso está afirmando que os pais da igreja entendiam a tradição da mesma forma que o interlocutor católico entende? Como veremos adiante, definitivamente não.  Mais adiante em seu texto, o interlocutor católico nos dá sua definição de tradição:

Para debatermos sobre a relação entre a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura, precisamos compreender ambos os conceitos. Em continuidade com os primeiros séculos de cristianismo, todas as igrejas apostólicas (católicos romanos, ortodoxos, pré-calcedonianos) entendem por Tradição — com T maiúsculo — TODO o corpo de doutrina que nos foi legado pelos apóstolos e transmitido pela Igreja. Como visto no anteriormente citado, Paradidonai, Tradere, Tradição, era algo que a Igreja antiga recebia como que imbuído de autoridade e essa autoridade advinha da sua origem apostólica. Aqui é importante fazer distinção entre a Tradição supracitada e tradições: igrejas particulares, regionais, podem ter costumes que lhes são peculiares, que não ofendem a genuína Tradição. Diante deste quadro, de forma alguma, Tradição e Escritura podem ser tomadas como realidades opostas. A Sagrada Escritura é Sagrada Tradição, está incluída nela, como nos diz o santo apóstolo: "Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa" (Almeida RC), "Portanto, irmãos, sede firmes e conservai as tradições que vos foram ensinadas por nós, oralmente ou por carta" (Bíblia de Jerusalém) (2 Tessalonicenses 2.15).

Preliminarmente, o texto bíblico citado não apoia tal conclusão. É óbvio que os apóstolos pregavam oralmente e por escrito. A questão é como nós podemos saber hoje o que os apóstolos pregaram no séc. I? A não ser que ele nos diga o conteúdo desta pregação oral, o argumento é inócuo. O católico precisaria definir que esta pregação oral tinha o conteúdo doutrinário X, que por sua vez não poderia ser encontrado em nenhum dos outros textos apostólicos. Nada no texto sugere isso. O conteúdo oral da pregação de Paulo poderia ser o mesmo da carta (é o que o contexto sugere) ou então ainda que não fosse, este conteúdo poderia ser acessado nas outras cartas que o apóstolo escreveu (Paulo escreveu 2 Tessalonicenses 51-52 D.C quando a maior parte de suas cartas e outros escritos apostólicos ainda não havia sido produzido). Segundo o autor católico, a Tradição é toda a doutrina de origem apostólica que foi transmitida pela Igreja. Dessa forma, a doutrina apostólica que está na Escritura seria apenas parte deste corpo maior de doutrinas. A Tradição seria então um suplemento. Isso fica mais claro em outro trecho:

E aqui é importante discernir se a igreja antiga, no momento em que reconhecia as obras apostólicas como escriturísticas, tinha a intenção de fazer delas único fundamento da doutrina. Como supracitado, a igreja antiga possuía doutrinas e práticas que não poderiam se fundamentar apenas nas Escrituras e atribuía à elas origem apostólica, o que também pode ser demonstrado como acima fora dito, logo, não pretendia apoiar-se só na Sagrada Escritura, mas também na Sagrada Tradição.

Segundo ele, a Igreja Antiga sustentava doutrinas que não poderiam ser fundamentadas na Escritura. Estas doutrinas precisariam do “plus” da Tradição. Uma das dificuldades de debater este tema com romanistas é que dificilmente eles fazem uso da correta definição de Sola Scritptura. A definição concisa é que a Escritura é a única regra infalível de Fé. A fé reformada nunca negou que a Igreja tenha autoridade magisterial, nem negou o valor ou autoridade da tradição. O que afirmamos é que a Escritura é a única autoridade imune ao erro, o que a torna suprema.

A Igreja pode errar. Embora tenha autoridade para dirimir controvérsias doutrinárias, seu parecer nunca é infalível, podendo ser corrigido pela autoridade superior – as Escrituras. Subjacente a isso, os protestantes afirmam que a Escritura é suficiente materialmente e formalmente. Materialmente – todas as doutrinas que o cristão precisa crer e seguir estão de forma explícita ou implícita contidas na Escritura. Formalmente – tais doutrinas podem ser acessadas pelo cristão sem a necessidade de um magistério infalível. Desta forma, o fato de os pais da igreja apelarem a tradição, não é por si só prova de que eles não eram Sola Scripturistas. Eu sigo a tradição reformada e subscrevo documentos como a Confissão de Fé de Westminster. Eu entendo que esta tradição está fundamentada na Escritura (a autoridade suprema) e que embora tal documento pudesse ter erros doutrinários, eles não os cometeram (esta é a diferença entre inerrância e infalibilidade). Uma autoridade falível como a igreja pode fazer afirmações sem erros (inerrantes), mas isto não quer dizer que todas as suas afirmações serão necessariamente sem erros.

Católicos tem dificuldade de lidar com a ideia de que autoridade não implica em infalibilidade. Todavia, é óbvio que os católicos possuem autoridades falíveis. Por exemplo, o bispo não é infalível, mas tem autoridade sobre seu rebanho. Se um católico acredita que o bispo está indo contra aquilo que ele entender ser a “tradição da Igreja”, ele pode resisti-lo. A própria Escritura estabelece instâncias de autoridade que são falíveis. Devemos obedecer nossos pais, mas se eles nos pedissem por exemplo para abandonar a fé cristã, nós deveríamos resisti-los. Da mesma forma, Paulo estabelece em Romanos 8 a autoridade do Estado. No entanto, o próprio Apóstolo resistiu a esse quando foi perseguido por sua fé. Se os romanistas desejam de fato refutar a Sola Scriptura, precisam demonstrar que existe outra autoridade infalível além da Escritura.

Devo dizer também que por Sagrada Tradição não entendo os escritos dos santos padres. Estes, não são infalíveis como as Escrituras. Mas a tradição neles contida pode ser analisada e podemos concluir o que, neles, tem procedência apostólica e é, portanto, tão autoritativo quanto as escrituras, segundo os critérios acima citados.

Nesse ponto, o próprio apologista demonstra porque a tradição não pode ser uma regra infalível de fé. Os escritores bíblicos eram inspirados, logo o que eles escreviam necessariamente era infalível. Já os pais da igreja não são inspirados. Eles estão sujeitos aos erros que qualquer homem está. Embora ele diga que os escritos dos pais não são a tradição em si, eles são o único registro para o qual apologista pode apelar de forma a demonstrar a existência da tradição. Suponhamos que o Pai da Igreja A ouviu um apóstolo pregar. Ele por sua vez repassou o conteúdo desta pregação ao Pai da Igreja B que repassou ao C e assim por diante. Temos aí um perfeito exemplo de tradição oral sendo transmitida adiante. A questão é que A pode ter interpretado erradamente as palavras do Apóstolo ou simplesmente não ter memorizado ou não ter ouvido corretamente. Da mesma forma, B está sujeito aos mesmos erros de A, assim como C. Todos estes personagens estão sujeitos ás fraquezas que qualquer ser humano possui, portanto, a tradição subjacente não pode ser considerada uma regra infalível uma vez que todo o processo depende de homens falíveis. É isto que torna a Escritura uma autoridade única e acima da tradição. O registro escrito da pregação dos apóstolos foi inspirado, logo não estava sujeito a todas estas fraquezas inerentes aos homens. Neste sentido, Papias serve como bom exemplo da falibilidade da tradição. Eusébio escreveu sobre ele:

O próprio Papias acrescenta outras coisas que teriam chegado a ele por meio da tradição oral, além de certas parábolas estranhas do Salvador, bem como o ensinamento dele e outras coisas que parecem ainda mais fabulosas. Entre essas coisas, diz que haverá mil anos após a ressurreição dos mortos e que então o reino de Cristo se estabelecerá fisicamente nesta nossa terra. Suponho que tenha essa opinião por ter interpretado mal as explicações dos apóstolos e que ele não compreendeu as coisas que eles diziam de maneira figurada e simbólica. O fato é que, segundo o que se pode deduzir de seus próprios discursos, Papias parece homem de inteligência curta. Todavia, ele é culpado pelo fato de muitos escritores eclesiásticos que lhe sucederam adotarem a opinião dele, pois confiavam na antiguidade desse homem. Foi o que aconteceu com Irineu e outros que pensaram as mesmas coisas que ele. (Eusébio de Cesaréia, HE, III, 39, 11-14a)

Papias escreveu cinco obras intituladas “Explicações das Sentenças do Senhor”. Delas, sobreviveram apenas fragmentos. Irineu cria que Papias foi discípulo do apóstolo João. Estamos falando de um homem numa ótima posição para receber uma genuína tradição apostólica. Ele conheceu pessoas que andaram com os apóstolos e nos conta que era ávido em entrevista-los. Em virtude de sua antiguidade, disseminou uma doutrina que a Igreja Romana rejeita – o milenarismo, e fez com que outros Pais seguissem o mesmo ensino. Eusébio rejeitou essa doutrina alegando que Papias interpretou errado as explicações dos apóstolos e passou adiante uma falsa tradição. O que aconteceu com Papias é passível de acontecer com qualquer testemunha patrística. Sobre este e outros problemas do conceito romanista de tradição, veja aqui. Sobre o caso de Papias, veja aqui. Percebam que apenas um homem deu origem a um erro doutrinário seguido por vários outros autores que confiavam na sua antiguidade. Se os Escritos dos pais não necessariamente contêm a tradição apostólica, como poderíamos a partir deles definir o que é ou não tradição apostólica? O católico responde:

Devemos submeter a Tradição a um exame crítico, que vise estabelecer ou não, a sua autenticidade, ou seja, sua apostolicidade. Devemos testa-la afim de saber se foi possível e se de fato ocorreu que a Igreja ao longo dos séculos a tenha preservado desde os apóstolos. E esse exame é devido a toda Tradição, quer Escrita (o Novo Testamento), quer Oral. Aqui devemos inserir um segundo elemento: aqueles que reconhecem qual a legitima tradição, mais que isso, aqueles que a preservaram: a igreja.

Ou seja, precisamos exercer nosso exame crítico para filtrar nos escritos dos pais o que era a verdadeira tradição apostólica. O problema é que ele como católico romano não pode fazer isso. Ele está se utilizando de um paradigma protestante rejeitado pela Igreja romana – o livre exame. O católico romano não pode por seu próprio juízo determinar qual a verdadeira tradição, ele precisa necessariamente seguir a opinião da Igreja. É simplesmente inútil para um romanista fazer isso, pois se a sua consciência lhe disser que determinada doutrina sustentada por Roma não faz parte da fé apostólica, o que ele como bom católico deve fazer? Seguir a consciência ou a Igreja? Necessariamente a Igreja. Inácio de Loyola cristalizou este fato na seguinte frase:

Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a que o branco, que eu vejo, acreditar que é negro, se a Igreja hierárquica assim o determina. (Fonte)

O católico deseja operar sob um paradigma protestante. O texto é um pouco confuso, mas me parece que ele diz que precisamos reconhecer de antemão que cabe à Igreja determinar qual a legítima tradição. Qual a utilidade então de julgar criticamente os escritos dos Pais da Igreja, se no fim das contas seu juízo necessariamente precisa seguir o juízo de uma igreja em particular? Antes de tudo, seria necessário determinar que cabe a um magistério determinar infalivelmente qual a verdadeira tradição e também qual igreja exerce este magistério. Percebam que ele repetidamente se refere à Igreja, mas na verdade está se referindo unicamente à Igreja Romana. Está implícito a falsa pressuposição de que Roma é o superior hierárquico que define o que é ou não tradição. Em outro trecho, ele afirmou:

(...) todas as igrejas apostólicas (católicos romanos, ortodoxos, pré-calcedonianos) entendem por Tradição — com T maiúsculo — TODO o corpo de doutrina que nos foi legado pelos apóstolos e transmitido pela Igreja.

O problema é que todas estas igrejas têm opiniões radicalmente diferentes sobre qual é o conteúdo da tradição e sua relação com a Escritura. Ortodoxos e os demais não acreditam em dogmas como: infalibilidade papal, purgatório, indulgências, imaculada conceição e etc. Essas igrejas não aceitam aquela que é a doutrina sobre a qual a igreja romana está alicerçada – o papado. Cada uma alega ter guardado incorruptamente a verdadeira tradição. O recurso a sucessão apostólica não resolve o problema. Todas elas alegam ter uma suposta sucessão apostólica, inclusive, a igreja romana reconhece a sucessão dos ortodoxos. Todavia, tais igrejas estão ensinando doutrinas radicalmente diferentes. Isso apenas demonstra que uma suposta sucessão apostólica é insuficiente para manter a igreja na verdadeira fé apostólica.

Um problema grave para os católicos romanos é que sua igreja nunca definiu os limites da tradição. Afinal quais são todas estas doutrinas legadas pela tradição oral que não poderiam ser fundamentadas na Escritura? Onde está o cânon da tradição? Ele simplesmente não existe. Mesmo depois de séculos, não há qualquer declaração da igreja romana definindo exatamente tudo aquilo que é ou não é tradição apostólica – o que se esperaria de um magistério supostamente infalível. Como bem observamos, a tradição virou um saco onde Roma coloca o que bem entender. Sempre que uma inovação romanista não pode ser comprovada pelo apelo à Escritura (e são muitas), remete-se a tradição. Por isso, é bastante conveniente não definir os limites, afinal não sabemos quais inovações Roma produzirá no futuro.

Se meus amigos protestantes estão dispostos a crer na Sola Scriptura, devem, primeiramente, estar dispostos a crer nas Escrituras, as quais foram reconhecidas como autenticas, canônicas, normativas, pela Igreja e por seu magistério. Deve-se então reconhecer que o magistério não só tem autoridade, como capacidade para fazê-lo.

É óbvio que coube a Igreja reconhecer quais livros eram apostólicos. A questão é como isso invalida a Sola Scriptura? Um protestante pode perfeitamente olhar parra os testemunhos patrísticos e aliados a outras linhas de evidências (ex. as evidências internas) chegar à conclusão de que eles estavam certos. O ponto é que nada disso implica na existência de uma autoridade infalível fora da Escritura.  Além do mais, a Igreja Antiga nunca tomou qualquer decisão sobre o cânon bíblico que pudéssemos chamar de infalível mesmo sob o ponto de vista romanista. A Enciclopédia Católica afirma:

Segundo a doutrina católica, o critério do cânon bíblico é a decisão infalível da Igreja. Esta decisão não foi dada até muito tarde na história da Igreja no Concílio de Trento. Antes deste havia algumas dúvidas sobre a canonicidade de certos livros Bíblicos, i.e., sobre a sua pertença ao cânon. O Concílio de Trento definitivamente resolveu a questão do cânon do Antigo Testamento. Que isto não havia sido feito anteriormente é evidenciado pela incerteza que persistia até o tempo de Trento. (New Catholic Encyclopedia, Vol. I (Washington D.C.: Catholic University, 1967), p. 390 [colchete acrescentado)

Isso só demonstra como a igreja católica antiga não era romana. Caso fosse, o cânon (uma questão vital) teria sido objeto de algum concílio ecumênico ou algum decreto papal considerado infalível. Não foi o que ocorreu. Gerações e gerações de cristãos sustentavam o cânon bíblico sem apelarem a nenhuma suposta autoridade infalível. Por isso, não vemos nenhum pai da igreja afirmando que seria necessário um concílio ou decreto para definir algo que eles já tinham como certo. Ou será que alguém acredita que a igreja ficou quinze séculos esperando a questão ser decidida? Se não houve uma decisão definitiva do magistério da igreja referente ao cânon, o argumento católico simplesmente é falso. Os católicos costumam citar Hipona e Cartago, mas tratavam-se de concílios locais que não vinculavam toda a igreja. Prova disso é que mesmo após tais concílios que aceitavam os apócrifos, gerações e gerações de teólogos continuavam não considerando os apócrifos como escritura inspirada. Tratamos disso aqui.

Além do mais, os próprios pais da igreja cometeram erros em relação ao cânon. Embora o núcleo formado pelos quatro evangelhos, atos e cartas paulinas fossem reconhecidos desde o início, pais da igreja como Irineu não incluíam outras cartas que constam do cânon. Isso só demonstra que embora o testemunho deles seja importante, a tradição extraída era falível. No entanto, mesmo cometendo tais erros, os romanistas acreditam que os pais da igreja poderiam facilmente apelar a um magistério infalível. A questão é se eles de fato não criam nisto, porque não o fizeram?

Como meus amigos protestantes estão muito mais familiarizados com esse procedimento aplicado à Tradição Escrita, eu pergunto: quais foram os critérios usados para o reconhecimento canônico das Escrituras neotestamentárias como as temos hoje? São basicamente três: ortodoxia (o que já pressupõe a independência da doutrina em relação à fundamentação escriturística), antiguidade e amplitude de aceitação. Não é atoa que, ao contrário do que os críticos liberais nos querem fazer pensar, o cerne do cânon, a saber, o quadruplo evangelho, o livro de Atos e o Corpus Paulino, são desde sempre e universalmente aceitos por praticamente todos os autores ortodoxos antigos, quer por alusão explicita, quer por citação acompanhada de alguma formula que explicite seu caráter escriturístico. Outras obras, como a segunda epístola de Pedro, que não era amplamente reconhecida e cuja primeira citação (feita por Orígenes), bem como a mais antiga cópia conhecida, datam do século III, entraram com dificuldades no Cânon.

Tais critérios foram aplicados – o que só demonstra que tal igreja não era romana. Caso fosse, o critério para definir o cânon seria a decisão infalível da igreja. Afinal, porque sujeitaríamos a critério consistentes, porém falíveis, uma decisão dessa amplitude, sabendo-se que havia a disposição uma autoridade que definiria infalivelmente a questão? Além do mais, a ortodoxia não pressupões a independência da fundamentação da Escritura. Católicos parecem esquecer que antes mesmo de Jesus vir em carne, já havia Escritura infalível e autoritativa. Os apóstolos citaram abundantemente tais Escrituras como autoridade inspirada e inclusive elogiaram os bereanos por submeterem a pregação apostólica ao crivo destas Escrituras. Se até os próprios apóstolos tiveram sua doutrina testada pela Escritura, como os pais da igreja não fariam o mesmo? J.N.D Kelly nos diz que os pais da igreja entendiam que o evangelho já havia sido pregado pelos profetas:

Deve-se notar outros três pontos. Primeiro, conquanto as Escrituras (isto é, o Antigo Testamento) e o testemunho apostólico fossem formalmente separados, esses pais parecem ter tratado o conteúdo de um e de outro como se praticamente coincidissem entre si. O que os apóstolos viram e anunciaram como testemunhas oculares, os profetas testificaram com antecedência nos mínimos detalhes; bastava procurar nas Escrituras para demonstrar que não havia um só item na mensagem dos apóstolos que não havia sido predito pelos profetas. (Pag. 28. São Paulo. Edições Vida Nova. 2015)

Não por acaso, Justino quando debateu com Trifo, citou abundantemente o Antigo Testamento. Ou seja, eles já possuíam Escritura que servia como padrão de ortodoxia. Dessa forma, os apócrifos (em boa parte escritos gnósticos) já podiam ser rejeitados pela Igreja com base na revelação vetero-testamentária. Não podemos rejeitar também a importância da evidência interna. A maior parte dos apócrifos poderia ser rejeitado pelo seu próprio conteúdo. Um traço constante era o fato de serem atribuídos a apóstolos que eram judeus, mas o autor do livro demonstrava total ignorância a respeito da cultura e costumes judaicos. O protoevangelho de Tiago incorre no mesmo erro. É um livro atribuído a um judeu que é totalmente ignorante sobre os costumes judaicos. Além do mais, o livro comete uma série de erros de natureza histórica e geográfica, descrevendo festas judaicas que sequer existiam e narrando situações inimagináveis para o povo judeu do século I. Quando lidamos com a questão do cânon, temos a evidência interna (conteúdo do próprio livro) e evidência externa (testemunho histórico). Não há dúvida de que os pais da igreja fornecem importante testemunho histórico, mas atualmente as discussões sobre canonicidade giram em torno da evidência interna. Tanto autores cristãos como céticos utilizam tal linha de evidência para afirmar ou negar a origem dos escritos apostólicos. Para mais detalhes sobre Sola Scriptura e Cânon, vejam aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Outro ponto frequentemente ignorado é que ao utilizarem tais critérios, está implícito que os Pais da Igreja não receberam qualquer lista advinda de uma tradição oral. Nenhum apóstolo deixou uma lista de livros canônicos. Coube aos pais utilizando meios comuns de prova reconhecer quais escritos eram de fato canônicos. Os evangelhos e as cartas paulinas foram aceitos desde cedo, logo os novos candidatos já poderiam ser examinados a luz da doutrina contidas nestes livros. Outro erro é acreditar que tais livros (Quatro evangelhos, Atos e Cartas Paulinas) foram reconhecidos como apostólicos só depois de terem sua ortodoxia analisada a luz de uma tradição oral. Como ele próprio disse, esses livros foram reconhecidos desde o início. Assim que a carta à Igreja de Corinto foi recebida, ela já era de autoridade inquestionável, pois foi de imediato reconhecida como de autoria paulina. Dessa forma, desde o princípio a Igreja possuía não somente o Antigo Testamento, mas também boa parte do Novo Testamento para testar a ortodoxia de outros livros sobre os quais pairavam dúvidas. Isso se dava porque o principal critério canônico era a apostolocidade. Assim que um livro era recebido como sendo de um apóstolo ou alguém ligado um apóstolo, automaticamente era considerado autoritário. A ortodoxia e o costume da Igreja eram critérios secundários aplicados somente àqueles livros sobre os quais havia dúvidas a respeito da autoria apostólica.  Em relação ao cânon transcrevo as palavras de Keith Thopson:

Na Sola Scriptura não há nada de errado em seguir autoridades externas como a igreja, desde que o que ela declare não contradiga a Bíblia e seja consistente com a Escritura pelo menos implicitamente. Deste modo, não há nenhum problema para a Sola Scriptura ao se afirmar o cânon através da Igreja, uma vez que os critérios utilizados pela Igreja para conhecer o cânon no século IV podem ser validados biblicamente pelo menos implicitamente.

Por exemplo, a Igreja usou os critérios de apostolicidade para decidir se um livro do Novo Testamento era Escritura (ou seja, se um livro foi escrito por um apóstolo ou companheiro de um apóstolo). Qualquer boa introdução conservadora ao Novo Testamento dará argumentos internos para o fato de um livro ter sido escrito por um apóstolo ou por alguém próximo de um apóstolo (por exemplo, Donald Guthrie’s, D. A. Carson e Douglas J. Moo’s, dentre outros). No que diz respeito aos critérios de antiguidade utilizados pela Igreja, podemos olhar para o conteúdo interno do livro para descobrir se ele foi escrito no primeiro século ou se é uma obra do segundo século.

Estudiosos do Novo Testamento fazem isso regularmente. Qualquer boa introdução teológica irá fornecer argumentos internos de que um livro foi escrito no primeiro século. No que diz respeito aos critérios da ortodoxia utilizados pela Igreja, podemos ver quais livros são internamente consistentemente e quais não são. Então não há nada inconsistente em se afirmar a Sola Scriptura ao mesmo tempo em que se reconhece a autoridade da Igreja em reconhecer o cânon, uma vez que quando observamos os livros reconhecidos vemos que seu reconhecimento é consistente com a Escritura, pelo menos implicitamente.

A Sola Scriptura não nega a autoridade da igreja e da tradição, mas afirma que ambas são subordinadas a uma autoridade maior e infalível. Os pais da igreja utilizaram critérios consistentes com a Escritura no processo de reconhecimento do cânon. Eles poderiam estar errados sobre o cânon? Poderiam. Eles erraram? Em alguns casos sim, na medida em que alguns autores tinham um cânon incompleto. Todavia, a luz das evidências de que dispomos, temos boas razões para acreditar que o cânon do Novo Testamento reúne todos os livros de origem apostólica acessíveis atualmente.

A Tradição como suplemento doutrinário

Em debates com católicos, é comum ouvir o argumento de que nem todas as doutrinas estão na Escritura. Portanto, parte da doutrina apostólica está na Escritura e parte na Tradição. Por isso, quando pedimos que o católico prove pela Escritura todas as suas doutrinas, ele responderá que tais doutrinas foram preservadas apenas na Tradição. O ex-papa Joseph Ratzinger disse:

(...) ninguém é capaz de sustentar que existe uma prova na Escritura para cada doutrina católica. (Joseph Ratzinger, "The Transmission of Divine Revelation", commenting on article 9 of Dei Verbum. Found in Vorgrimler, ed, Commentary on the Documents of Vatican II, vol 3, p 195)

A Enciclopédia católica afirmou:

Os católicos, por outro lado, sustentam que pode haver, que de fato há verdades reveladas independentemente daquelas contidas na Bíblia. (Catholic Encyclopedia, Vol. XV [New York: Encyclopedia Press, Inc, 1913], p. 6, 2nd column)

O problema é que esta visão seria rejeitada amplamente pelos pais da Igreja. Aqui você pode verificar as principais citações patrísticas que atestam a suficiência material da Escritura e aqui o melhor artigo em português sobre a Sola Scriptura na Igreja Antiga. Os pais da Igreja acreditavam que cada doutrina carecia de prova bíblica. Nenhuma doutrina poderia ter seu fundamento apenas numa fonte extra-escritural. J.N.D Kelly afirma novamente:

No entanto, se por um lado o conceito de tradição se expandiu, tornando-se mais concreto nestes aspectos, a apreciação de sua posição frente às Escrituras como norma doutrinária permaneceu basicamente inalterada. O sinal mais claro do prestígio desfrutado pelas Escrituras é o fato de que quase todo o esforço teológico dos pais, fossem seus objetivos polêmicos ou construtivos, era dispendido no que equivalia à Exposição da Bíblia. Além disso, em toda a parte, tinha-se por assentado que, para alguma doutrina ganhar aceitação, ela tinha primeiramente de demonstrar sua base escriturística. (Kelly, p. 34)

Nossa análise se concentrará em Irineu. Este pai da igreja deixou claro a posição suprema ocupada pela Escritura:

De ninguém mais temos aprendido o plano de nossa salvação, senão daqueles através de quem o evangelho nos chegou, o qual eles pregaram inicialmente em público, e, em tempos mais recentes, pela vontade de Deus, nos foi legado por eles nas Escrituras, para que sejam o fundamento e pilar de nossa fé. (Contra as Heresias, Livro III, 1:1)

Em sua disputa com os gnósticos, Irineu afirma a autoridade dos apóstolos. É deles que a igreja retira sua doutrina. A questão é onde estava esta doutrina? Ela fora preservada apenas oralmente? Obviamente não. Os apóstolos transmitiram o evangelho à igreja. Este evangelho foi pregado inicialmente de forma oral, mas, depois, não por simples capricho, mas por providência divina, foi registrado na Escritura. Irineu deixa claro que o que inicialmente foi pregado em público fora preservado nas Escrituras. Ele vai adiante. Esta Escritura era o pilar e fundamento da fé. Ou seja, sua posição era única e, portanto, suprema. Não era um pilar, mas O pilar. Uma objeção levantada é que “pilar e fundamento” se referiria ao Evangelho. Alguns citam que a tradução da Ed. Paulus contém “para que seja ....”, ou seja, no singular, de forma a determinar que o referente é o Evangelho e não as Escrituras. Esta até pode ser a posição de tradutor, mas é somente isso. Irineu escreveu “Contra as Heresias” em grego, mas somente alguns trechos foram preservados nesta língua. A obra completa é somente acessível em manuscritos em latim, logo a regra de concordância verbal que poderíamos usar em português não se aplica.

Todavia, esta distinção é irrelevante, uma vez que Irineu deixa claro que o conteúdo do Evangelho era idêntico ao da Escritura. A pregação oral foi escriturada. Apelar ao Evangelho era necessariamente apelar à Escritura. Ademais, a leitura natural do texto indica a Escritura como “pilar e fundamento”. O trecho “para que sejam” indica a finalidade de uma ação anterior. E a ação anterior descrita é “em tempos mais recentes, nos foi legado por eles nas Escrituras...”. O contexto imediato aponta para a Escritura. Que o conteúdo do evangelho estava totalmente contido na Escritura fica claro na continuação da citação:

Nem é lícito afirmar que eles pregaram sem antes possuir a gnose perfeita, como ousam dizer alguns que se gloriam de corrigir os apóstolos, por que, depois da ressurreição de nosso Senhor dos mortos, os apóstolos foram revestidos da força do alto, pela vinda do Espírito Santo; foram repletos de todos os dons e possuíram o conhecimento perfeito. Foi então que foram até as extremidades da terra anunciando a boa nova dos bens que Deus nos concede e a paz celeste para os homens: eles possuíam todos e cada um o Evangelho de Deus. Assim, Mateus publicou entre os judeus, na língua deles, o escrito dos Evangelhos, quando Pedro e Paulo evangelizavam em Roma e aí fundavam a Igreja. Depois da morte deles, também Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu por escrito o que Pedro anunciava. Por sua parte, Lucas, o companheiro de Paulo, punha num livro o Evangelho pregado por ele. E depois, João, o discípulo do Senhor, aquele que recostara a cabeça ao peito dele, também publicou o seu Evangelho, quando morava em Éfeso, na Ásia. (Contra as Heresias, 3:1:1)

Cada Apóstolo possuía o Evangelho em sua integralidade. O Evangelho de João era o mesmo que de Marcos, Lucas e Mateus. Mais uma vez, o pai da igreja trata a mensagem do evangelho como de mesmo conteúdo ao que foi registrado nos escritos. O que Pedro anunciava foi escrito por Marcos. O que Paulo anunciava foi escrito por Lucas. Assim fizeram também João e Mateus. Se todos eles possuíam cada um o Evangelho e puseram este Evangelho por escrito, a implicação lógica é que o Evangelho oralmente pregado foi totalmente escriturado.  John Berh (proeminente erudito patrístico ortodoxo) escreveu:

Foram os apóstolos somente que trouxeram a revelação de Cristo para o mundo, embora o que eles pregaram já tivesse sido anunciado pelas Escrituras -  a Lei e os Profetas [Antigo Testamento]. Os evangelhos compostos por aqueles que não eram apóstolos, afirma Irineu, são explicações daqueles que eram apóstolos. Irineu ainda enfatiza o papel fundamental dos apóstolos ao afirmar, na passagem citada acima, que os apóstolos não começaram a pregar até que eles fossem investidos da plenitude do conhecimento pelo Senhor ressuscitado. Que os apóstolos pregaram o Evangelho e, posteriormente, o escreveram é importante para Irineu, já que isso irá mais tarde capacitá-lo a apelar a contínua pregação do Evangelho na Igreja - a tradição dos apóstolos. Também é importante para Irineu especificar que o que escreveram foi transmitido ("tradicionalmente") nas Escrituras, como o fundamento e o pilar da nossa fé. Enquanto Paulo falou da Igreja como sendo o pilar e fundamento da verdade (1 Tim 3:15), na necessidade de definir de forma mais clara a identidade da Igreja, Irineu modifica as palavras de Paulo, de modo que é a Escritura que é o " fundamento e pilar da fé", ou afirma mais tarde que é o Evangelho, encontrado em quatro formas, e o Espírito da vida que é "o pilar e fundamento da Igreja" (AH 3.11.8). É por sua pregação do Evangelho que Pedro e Paulo lançam as bases para a Igreja, e a Igreja, constituída pelo Evangelho, deve preservar este depósito intacto. (John Behr, The Way to Nicaea (Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 2001), pp. 37)

John Behr é representante da posição predominante ente os eruditos patrísticos (incluindo Kelly) que identifica as Escrituras como o “pilar e fundamento da fé” em Irineu. O também estudioso ortodoxo Georges Florovsky salienta que na Igreja antiga a exegese era:

 (...) o principal e, provavelmente, único método teológico, e a autoridade das Escrituras era soberana e suprema. (Bible, Church, Tradition: An Eastern Ortodox View, (Bucherver-triebsanstalt, 1987), 75)

Irineu passa então a descrever a atitude dos hereges gnósticos:

Quando são vencidos pelos argumentos tirados da Escrituras retorcem a acusação contra as próprias Escrituras, dizendo que é texto corrompido, que não tem autoridade, que se serve de expressões equívocas e que não podem encontrar a verdade nele os que desconhecem a Tradição. Com efeito - dizem eles - a verdade não foi transmitida por escrito, mas por viva voz, o que levou Paulo a dizer: "É a sabedoria que pregamos entre os perfeitos, não, porém, uma sabedoria deste século". E cada um deles diz que esta sabedoria é a que ele descobriu, ou melhor, inventou, e assim se torna normal que a verdade se encontre ora em Valentim, ora em Marcião, ora em Cerinto e depois em Basílides ou nalgum outro contendente, sem nunca ter podido afirmar nada acerca da salvação. Cada um deles está tão pervertido que, falsificando a regra da verdade, não cora de vergonha ao pregar a si mesmo. E quando, por nossa vez, os levamos à Tradição que vem dos apóstolos e que é conservada nas várias igrejas, pela sucessão dos presbíteros, então se opõem à tradição, dizendo que, sendo eles mais sábios do que os presbíteros, não somente, mas até dos apóstolos, foram os únicos capazes de encontrar a pura verdade. Com efeito, os apóstolos teriam introduzido, junto com as palavras do Salvador, as prescrições da Lei; e não somente os apóstolos, mas até o próprio Senhor, teriam pronunciado palavras provindas ora do Demiurgo, ora do Intermediário, ora da Potência suprema. Quanto a eles, conheceriam o mistério escondido, sem a mínima dúvida, sem contaminação e confusão. Ora, esta é a maneira mais desavergonhada de blasfemar contra o seu Criador! Acontece com isso que já não concordam nem com as Escrituras nem com a tradição. (Contra as Heresias 3:2:1-3)

Essa é uma das citações mais usadas pelos católicos para provar que Irineu não poderia sustentar a Sola Scriptura, uma vez que ele também usa a tradição para refutar os hereges. Como já vimos, este argumento ataca um espantalho e não a doutrina reformada. O simples uso da tradição não é uma negação da Sola Scriptura. Irineu acreditava que havia doutrina apostólica fora da Escritura? Ele cria que a tradição era uma regra infalível de fé? Irineu acreditava que a Igreja possuía alguma instância hierárquica infalível? A resposta para todas estas perguntas seria não.

Na citação acima, fica claro que o primeiro recurso usado para refutar os hereges era a Escritura e não a tradição. Quando vencidos pelo recurso às Escrituras, os hereges utilizavam argumentos que os apologistas católicos de internet costumam usar: a Escritura seria obscura e incompleta. A verdade não teria sido entregue apenas por Escrito, mas por viva voz. E quem preservava esta verdade? O magistério exercido pelos próprios hereges. Um magistério que preserva uma tradição oral que não consta da Escritura é precisamente o argumento mais utilizado pelos católicos. Irineu então apela à tradição da igreja para refutar os hereges. Esta tradição nada mais era do que a pregação pública da Igreja. Ellen Flesseman-van Leer comenta:

Para Tertuliano a Escritura é o único meio para refutar ou validar uma doutrina quanto ao seu conteúdo (...) para Irineu, a doutrina da Igreja certamente nunca é puramente tradicional; pelo contrário, o pensamento de que poderia haver alguma verdade transmitida exclusivamente de viva voz (oralmente) é uma linha gnóstica de pensamento (...) se Irineu quer provar a verdade de uma doutrina materialmente, vira-se para a escritura, porque é aí que o ensino dos apóstolos é objetivamente acessível. A prova da tradição e da escritura serve a um e mesmo fim: identificar o ensino da Igreja como o ensino apostólico original. A primeira [tradição] estabelece que o ensino da Igreja é o ensino apostólico, e a segunda [Escritura] qual é o ensino apostólico. (Tradition and Scripture in the Early Church (Van Gorcum, 1953, pp. 184, 133, 144)

John Behr também comentou a citação de Irineu:

De acordo com Irineu, a resposta de seus oponentes à acusação de que seu ensino não era encontrado nas Escrituras é simplesmente afirmar que essas Escrituras não são autoritativas, que são inadequadas para o pleno conhecimento, que são ambíguas e precisam ser interpretadas à luz de uma tradição que não é transmitida por escrito, mas por via oral. Ou seja, apelam para uma dicotomia entre a Escritura e a tradição, entendendo por esta última a comunicação oral do ensino derivado dos apóstolos, contendo material que não se encontra nas Escrituras e que ainda é necessário para entender as Escrituras corretamente. Como vimos, os apóstolos certamente entregaram uma nova maneira de ler as Escrituras, proclamando Cristo "de acordo com as Escrituras", mas, de acordo com Irineu, o que eles transmitiram, tanto na pregação pública quanto na escrita, permaneceu vinculado à Escritura. (Behr, p. 38)

A Tradição era o que a igreja vinha pregando de forma consistente desde o início. A Escritura era a fonte desta pregação. Se alguém perguntasse a Irineu qual era o ensino dos apóstolos? Ele apontaria para a Escritura. Se alguém perguntasse qual o ensino da Igreja? Ele apontaria para a tradição. Se fôssemos comprar as duas coisas, elas seriam idênticas. Assim, restaria provado que a Igreja preservou a doutrina dos apóstolos. O próprio Irineu já estava convencido de que a própria Escritura havia refutado os hereges, mas ele tinha argumentos adicionais. Se os Apóstolos tivessem deixado um corpo de ensinos não encontrados na Escritura, quem seriam as testemunhas mais confiáveis destas doutrinas? Os homens por eles deixados para cuidar da Igreja. Todavia, a pregação destes homens (tradição) era coincidente com os Escritos dos apóstolos e não continham nenhuma daquelas estranhas doutrinas gnósticas. Além de estes homens estarem ligados aos apóstolos, a pregação deles era pública enquanto a dos gnósticos era secreta. A tradição da Igreja também era uniforme (as várias igrejas possuíam a mesma tradição), já no caso dos hereges, cada grupo tinha uma tradição diferente (caso semelhante ao das igrejas romana, ortodoxa, não macedonianas que apelam a tradições apostólicas com conteúdos conflitantes). Já os hereges não podiam provar a apostolicidade de sua doutrina (seja pelo apelo às Escrituras, seja pelo apelo a uma suposta sucessão de mestres). Além disso, era uma tradição secreta (não verificável) e inconsistente.

O grande erro dos católicos romanos é afirmar que um protestante não poderia usar o mesmo sistema de argumentação. É comum ouvir Testemunhas de Jeová afirmarem que a Trindade é uma invenção de Constantino. O Protestante obviamente vai apelar a instância superior de autoridade e demonstrar que a Trindade é uma doutrina bíblica. Todavia, assim como os reformadores eu posso argumentar também que a Trindade foi crida pela Igreja muito antes de Constantino. Eu poderia citar várias testemunhas de que tal doutrina não só foi ensinada pelos apóstolos, mas foi mantida pela Igreja desde o início. Tecnicamente, estou apelando a tradição da Igreja e isso de forma alguma implica na negação da Sola Scriptura por uma razão simples – a primeira instância de apelo foi à Escritura. Meu apelo à tradição foi para demonstrar que a Igreja se manteve fiel ao texto bíblico.

Eu próprio apelo à tradição (o ensino histórico da Igreja) em todos os meus artigos para demonstrar quão falsas são as alegações de Roma. Quando um católico romano afirma que o papado é uma doutrina ensinada pela Igreja desde os apóstolos? O que eu fiz? Primeiramente, li as Escrituras e cheguei à conclusão de que os Apóstolos não ensinaram tal coisa. Após, eu fui estudar a história da Igreja e cheguei à mesma conclusão. Da mesma forma, em debates intramuros, os reformados apelam constantemente a sua própria tradição. Calvinistas e arminianos frequentemente citam confissões de fé e teólogos de renome em seus debates. Todavia, ambos concordam que o árbitro final é a Escritura. É a tal hierarquia de autoridades que já mencionamos.

O verdadeiro conhecimento é a doutrina dos apóstolos, e a antiga constituição da Igreja em todo o mundo, e a manifestação distinta do Corpo de Cristo conforme as sucessões dos bispos, pelas quais eles transmitiram aquela Igreja que existe em todos os lugares, e chegou até nós, sendo guardada e preservada sem nenhuma falsificação nas Escrituraspor um sistema muito completo de doutrina, e sem receber adição nem subtração; e a leitura [da Palavra] sem falsificação, e uma exposição lícita e diligente em harmonia com as Escrituras, sem perigo nem blasfêmia, e o preeminente carisma do amor, o qual é mais precioso do que o conhecimento, mais glorioso do que a profecia, e que excede todos os outros dons. (Contra as Heresias, Livro III, 1:1)

Novamente, Irineu torna coincidente a doutrina apostólica e o conteúdo das Escrituras. Ele afirma que a doutrina apostólica (o verdadeiro conhecimento) foi guardada e preservada sem nenhuma falsificação nas Escrituras, por um sistema muito completo de doutrina. Quem se deu ao luxo de ler toda a obra “Contra as Heresias” perceberá que não há uma doutrina gnóstica que não tenha sido refutada por Irineu usando primariamente a Escritura. Não por acaso o número de citações do texto bíblico é abundante. O argumento da tradição era secundário e só era utilizado para refutar a falsa tradição vindicada pelos gnósticos.

Romanistas também apontam a ideia de Irineu segundo a qual a verdadeira tradição era mantida pela Igreja por uma sucessão de bispos que remontavam aos apóstolos. Este argumento não é inconsistente com a Sola Scriptura, uma vez que a doutrina reformada não exclui a autoridade da Igreja e afirma que é na Igreja que a palavra de Deus deve ser interpretada e difundida. É na Igreja que as controvérsias doutrinárias devem ser resolvidas. Behr também atesta a posição suprema que a Escritura ocupava na fé cristã primitiva:

O objetivo da filosofia (...) pelo menos desde Platão, tem sido descobrir o ultimato - os primeiros princípios não hipotéticos. Mas mesmo aqui, como admite Aristóteles, é impossível exigir demonstrações dos primeiros princípios. Os primeiros princípios não podem ser provados, senão eles dependeriam de algo antes deles, e assim o inquiridor seria levado a uma regressão infinita. Isto significa, como Clemente de Alexandria aponta, que a busca dos primeiros princípios da demonstração termina com a fé indemonstrável. Para a fé cristã, de acordo com Clemente, são as Escrituras, e em particular, o Senhor que fala nelas, o primeiro princípio de todo conhecimento. É a voz do Senhor, falando ao longo da Escritura, que é o primeiro princípio, a (não hipotética) hipótese de todas as manifestações da Escritura, pelas quais os cristãos são levados ao conhecimento da verdade. (John Behr, The Way to Nicaea (Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 2001), pp. 38)

Além disso Irineu recorria às igrejas apostólicas, em especial, à Igreja de Roma para refutar os hereges. De forma consistente, ele dizia que se os apóstolos tivessem ensinado uma tradição secreta, essa deveria ser encontrada nestas igrejas. Vejamos mais uma citação:
Mas visto que seria coisa bastante longa elencar, numa obra como esta, as sucessões de todas as igrejas, limitar-nos-emos à maior e mais antiga e conhecida por todos, à igreja fundada e constituída em Roma, pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e Paulo, e, indicando a sua tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada aos homens, que chegou até nós pelas sucessões dos bispos, refutaremos todos os que de alguma forma, quer por enfatuação ou por vanglória, quer por cegueira ou por doutrina errada, se reúnem prescindindo de qualquer legitimidade. Com efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua origem mais excelente, toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque nela sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos apóstolos (...).   Podemos ainda lembrar Policarpo, que não somente foi discípulo dos apóstolos e viveu familiarmente com muitos dos que tinham visto o Senhor, mas que, pelos próprios apóstolos, foi estabelecido bispo na Ásia, na Igreja de Esmirna (...) E é disso que dão testemunho todas as Igrejas da Ásia e os que até hoje sucederam a Policarpo, que foi testemunha da verdade bem mais segura e digna de confiança do que Valentim e Marcião e os outros perversos doutores (...) Também a igreja de Éfeso, que foi fundada por Paulo e onde João morou até os tempos de Trajano, é testemunha verídica da tradição dos apóstolos. (Contra as Heresias 3:3:2-4)

Neste ponto, os católicos romanos passam a usar uma série de argumentos totalmente anacrônicos. Primeiro, Irineu nunca ensinou a infalibilidade da Igreja Romana, muito menos a infalibilidade do seu bispo. Segundo, as qualificações de Irineu se aplicam à Igreja Romana de seu tempo. Tendo em vista que os ensinos de Roma mudaram radicalmente com o passar dos séculos, é simplesmente anacrônico argumentar que as igrejas precisariam concordar com o que Roma ensina HOJE. Ademais, Irineu apelou a outras igrejas apostólicas como Éfeso e Esmirna, no entanto, tais igrejas sequer estão em comunhão com Roma atualmente e ensinam doutrinas substancialmente distintas. Terceiro, a argumentação de Irineu cabia a seu tempo pois ele estava próximo às fontes apostólicas. Com o passar dos tempos, tais argumentos que apelavam a uma sucessão de bispos perdem sentido uma vez que se distancia da fonte histórica. Irineu nunca ensinou que uma hierarquia manteria infalivelmente a Igreja na reta doutrina. Existe uma enorme diferença entre dizer “A Igreja X mantém fielmente a doutrina apostólica” e dizer “A Igreja X manterá para sempre a doutrina apostólica”.

Irineu sem dúvidas sustentou contra os hereges um conceito de sucessão apostólica consistente com a fé reformada. Católicos apressadamente passam a contar Irineu como testemunha da doutrina da sucessão apostólica ensinada por Roma. Todavia, duas afirmações podem ser feitas: a sucessão apostólica romana não é uma doutrina deixada pelos apóstolos e a doutrina de Irineu é radicalmente distinta do que Roma ensina atualmente (não há qualquer conceito de Papado em Irineu por exemplo). Irineu acreditava numa sucessão de doutrina e não numa sucessão de ofícios. Para ele, a validade de uma igreja local como corpo de cristo dependia da pregação desta e não da existência de uma sucessão ininterrupta de ordenações sacramentais. Ninguém menos do que Joseph Ratzinger, confirmando os estudos do erudito patrístico protestante Hans von Campenhausen, afirma que a doutrina da sucessão apostólica surgiu depois do período apostólico, na segunda metade do século II:

O conceito de sucessão [apostólica] foi claramente formulado, como von Campenhausen tem demonstrado de forma impressionante, na polêmica anti-gnóstica do século II; o seu objetivo era contrastar a verdadeira tradição apostólica da Igreja contra a pseudo-apostólica tradição da gnosis. (God’s Word: Scripture-Tradition-Office (San Francisco: Ignatius Press ©2008; Libreria Editrice Vaticana edition ©2005; pp. 22-23)
Ratzinger cita diretamente Campenhausen:

O passo decisivo no desenvolvimento do conceito de tradição foi tomado (...) em meados do século II. É nessa época que as ideias de "transmitir" e "receber" a tradição adquiriram uma nova importância teológica e significado marcadamente técnico. As origens desse fenômeno não devem ser procuradas nos círculos que elaboraram a eclesiologia da Grande Igreja; em vez disso, nos levam ao mundo da gnose e seu culto do professor individual livre. De qualquer forma, no mundo cristão foi Ptolomeu gnóstico que forneceu a mais antiga evidência conhecida por nós desse novo teologicamente orientado uso. Na carta à Flora ele fala explicitamente da secreta e apostólica tradição (παράδοσεις) que complementa a coleção canônica das palavras de Jesus, e que ao ser transmitida através de uma sucessão (διαδοχἡ) de professores e instrutores chegou agora a "nós", isto é, para ele ou sua comunidade. Aqui o conceito de "tradição" é claramente usado em um sentido técnico, como é mostrado particularmente pela colocação junto ao conceito correspondente da "sucessão". (Ibid., 158)

John Behr escreveu o seguinte sobre a citação analisada:

A tradição dos apóstolos é manifesta em todas as igrejas em todo o mundo, preservadas por aqueles a quem os apóstolos confiaram o cuidado das igrejas fundadas sobre o Evangelho. Para demonstrar isso, Irineu se volta para listar a sucessão dos bispos em Roma, sendo o exemplo preeminente de uma igreja apostólica. Ao considerar esta passagem, é importante lembrar que o episcopado monárquico não foi estabelecido em Roma até pelo menos no final do segundo século, e talvez mais tarde. A igreja em Roma foi composta principalmente de igrejas domésticas, cada uma com seu próprio líder. Essas comunidades apareceram como escolas filosóficas, grupos reunidos em torno de seus professores, como Justino e Valentino, estudando suas escrituras e realizando seus ritos. Assim, o propósito de enumerar "aqueles que foram apontados pelos apóstolos como bispos nas igrejas" não é estabelecer a "validade" de seus ofícios individuais e a jurisdição que lhe pertence, mas, como diz Irineu, possibilitar a descoberta "em toda igreja" da "tradição dos apóstolos" manifestada no mundo inteiro, isto é, a verdade ensinada pelos apóstolos, na medida em que foi preservada, em público e intacta. Da mesma forma, embora Irineu descreva os apóstolos como deixando esses homens como seus sucessores, eles não são descritos como "apóstolos". Uma distinção firme é feita entre os "apóstolos abençoados" e o primeiro "bispo" de Roma (AH 3.3.3). Mais importante do que o próprio ofício é a continuidade do ensino com o qual os sucessores foram encarregados. Depois de listar os vários presbíteros/ bispos até seu próprio tempo, Irineu conclui enfatizando novamente o ponto de se referir a tais sucessões: "Nesta ordem e por esta sucessão, a tradição eclesiástica dos apóstolos e a pregação da verdade chegaram até nós"(AH 3.3.3). É a pregação da verdade, preservada pelos presbíteros / bispos ao longo de suas sucessões, que é a tradição eclesiástica derivada dos apóstolos. Finalmente, depois de estabelecer isso como sendo o caso em Roma, Irineu se volta brevemente para falar das igrejas na Ásia, em Esmirna e Éfeso, ambas para ele são "verdadeiras testemunhas da tradição dos apóstolos" (AH 3.3.4). (Behr, p. 38)

Eu tratei do testemunho de Irineu a respeito do papado e sucessão apostólica aqui. A continuação da citação anterior de Irineu segue:

Sendo as nossas provas tão fortes, não é necessário procurar noutras pessoas aquela verdade que facilmente podemos encontrar na Igreja, porque os apóstolos trouxeram, como um rico celeiro, tudo o que pertence à verdade, a fim de que cada um que o deseje, encontre ai a bebida da vida. É ela definitivamente o caminho de acesso à vida e todos os outros são assaltantes e ladrões que é mister evitar. Por outro lado, deve-se amar com zelo extremo o que vem da Igreja e guardar a tradição da verdade. Ora, se surgisse alguma controvérsia sobre questões de mínima importância, não se deveria recorrer a Igrejas mais antigas, onde viveram os apóstolos, para saber delas, sobre a questão em causa, o que é líquido e certo? E se os apóstolos não nos tivessem deixado as Escrituras, não se deveria seguir a ordem da tradição que transmitiram aqueles aos quais confiavam as Igrejas? (Contras as Heresias 3:3:4)

Esta é mais uma citação muito utilizada por católicos. A doutrina apostólica seria encontrada na Igreja – nenhuma objeção. Se surgisse uma controvérsia doutrinária, as igrejas mais antigas deveriam ser consultadas. Este argumento fazia todo o sentido no tempo de Irineu, hoje obviamente não faz mais pois não estamos próximos às fontes. Além disso, Irineu fala de Igrejas e não apenas de Roma. Ocorre que se fôssemos utilizar o critério da sucessão apostólica, estas mesmas igrejas sequer estão em comunhão hoje e ensinam doutrinas opostas. O fato é que as igrejas a que Irineu se referiu (Roma, Éfeso, Esmirna e outras) não sustentam as mesmas doutrinas que sustentavam no séc. II. E no fim Irineu deixa claro a preeminência da Escritura sobre a tradição. Ele traz uma situação hipotética irreal (caso não houvesse Escritura), o que restaria para um cristão daquele tempo – seguir a tradição mantida pelas igrejas. A implicação continua sendo que a tradição tinha o mesmo conteúdo doutrinário que a Escritura. Todavia, como a Igreja possuía Escritura, o recurso a tradição se tornava secundário. 

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