quinta-feira, 10 de julho de 2025

A Pena de Morte: A anatomia de mais uma contradição da Igreja de Roma


Neste artigo, vamos explorar em detalhes o ensino histórico dos Pais da Igreja, Teólogos e Papas sobre a pena de morte. O objetivo é demonstrar que a mudança do catecismo da Igreja Romana contradiz sua própria tradição, fundamentada em seus doutores e papas. Trata-se de um texto baseado no livro dos autores católicos Edward Feser e Joseph Bessette (aqui)  que traz uma defesa da aplicabilidade da pena de morte. Sempre que eu me referir ao livro, citarei Feser.

Pais da Igreja (séculos II ao V)

Atenágoras de Atenas (séc. II) parece indicar que em caso de acusações justas, a punição (que incluía a pena capital) poderia ser aplicada:

“Se, de fato, alguém pode nos convencer de um crime, seja pequeno ou grave, não pedimos isenção de pena, mas estamos dispostos a suportar as mais agudas e implacáveis punições”. (Petição em favor dos Cristãos, cap. II)

Tertuliano (séc. III), apesar de ser considerado um pacifista, escreveu:

“Portanto, aquelas almas devem ser consideradas como passando um exílio no Hades— aquelas que as pessoas tendem a ver como arrancadas pela violência, especialmente pelas torturas cruéis, tais como na cruz, pelo machado, pela espada e pelo leão; mas não consideramos como mortes violentas aquelas que a justiça impõe, aquele vingador da violência”. (Tratado sobre a Alma – 56)

Lactâncio (séc. III) também diz:

“Enganam-se profundamente aqueles que, por temor de parecer cruéis, condenam toda censura — humana ou divina — afirmando que só quem causa dor pode ser chamado de ilícito. Se assim fosse, seriam as leis perversas por estabelecerem punições para os que pecam, e seriam culpados os juízes que decretam a pena capital contra condenados por crimes”. (Tratado sobre a Ira de Deus 17)

Clemente de Alexandria (séc. III):

“Mas, quando [a lei] vê que alguém se encontra em condição tal que parece incurável, avançado ao último estágio da maldade, então, em sua solicitude pelo restante, para que não venha a ser destruído por ele (assim como ao amputar uma parte para preservar o corpo inteiro), condena tal indivíduo à morte, por ser este o meio mais propício à saúde.” (Stromata, I, 27)

Agostinho (séc. IV-V), pela sua importância, sempre merece destaque especial:

“Após o exposto acima, alguns homens santos (...) puniram certos pecados com a pena de morte, tanto porque os vivos eram atingidos por um temor salutar, quanto porque não era a morte em si que penalizava os condenados, mas o pecado, o qual se agravaria se continuassem a viver. Não decidiram com precipitação sobre aqueles a quem Deus havia conferido tal poder de julgar.” (Comentário ao Sermão da Montanha I, 20, 64).

Agostinho também afirma que o mandamento “não matarás” quando a autoridade aplica a pena capital:

“Todavia, há exceções feitas pela autoridade divina à sua própria lei, para que alguns homens não sejam mortos (...) Aqueles que fizeram guerra em obediência ao mandato divino, ou em conformidade com Suas leis, representaram, em suas pessoas, a justiça pública ou a sabedoria de governo, e, nessa condição, executaram sentenças capitais a homens perversos; tais pessoas de modo algum violaram o mandamento ‘Não matarás’.” (Agostinho, A Cidade de Deus, Livro I, cap. 24).

Optato de Milevo (séc. IV) também escreve:

“Como se ninguém jamais merecesse morrer pela vindicação de Deus (..) Seja qual for o sofrimento que [os executados] possam ter padecido, se é mal ser morto, eles são causa do seu próprio mal (...) Acuse primeiro Moisés, o próprio legislador, que, tendo descido do Monte Sinai, quase antes de as tábuas da Lei terem sido colocadas à vista, nas quais estava escrito ‘Não matarás’, ordenou a morte de três mil pessoas num único momento.” (Contra os donatistas, Livro 3)

Jerônimo (séc. IV-V), ao comentar a passagem de Jeremias diz que:

“(...) punir assassinos, sacrílegos e envenenadores não é derramamento de sangue, mas dever das leis” (Comentário sobre Jeremias, Livro 4)

Ele também diz:

“Quem mata o homem cruel não é cruel.” (Comentário sobre o Profeta Isaías).

Feser traz vários testemunhos de Pais da Igreja do século IV:

“Após o tempo de Constantino, passa a ser corrente a opinião de que até mesmo as autoridades governamentais cristãs podem recorrer à pena de morte, embora a leniência também seja frequentemente recomendada. Eusébio afirmou que a execução, por Constantino, de seu rival Licínio foi a justa punição de um tirano (Eusébio, Vita Constantini, Livro I, cap. 53). Em suas Homilias sobre as Estátuas, São João Crisóstomo elogia o imperador Teodósio por abstiver-se, com misericórdia, daquilo que teria sido um “massacre justificável” como castigo pelas ações sediciosas dos cidadãos de Antioquia e observa que “ainda que vocês fossem condenados à morte, ou qualquer outra coisa que resolvessem fazer, jamais teriam sobre nós a vingança que merecemos” (João Crisóstomo, Homilias sobre as Estátuas, Homilia II, §§ 37–38). São Gregório Nazianzeno, embora também recomende clemência, admite que os malfeitores podem ser punidos com a pena de morte (Gregório de Nazianzo, Orationes, Oração 17). São Efrém da Síria (m. 373) sustenta que as mulheres que praticam aborto merecem a morte (Efrém, De Timore Dei X). São Hilário (m. 368) afirma que é lícito matar quando se exerce o ofício de juiz (citado em Robert Bellarmino, De Laicis, p. 55). São Ambrósio de Milão (c. 340–397), apoiando-se na autoridade de São Paulo, reconheceu em princípio a legitimidade da pena capital (Ambrósio, Cartas 90).  (p. 114-115)

Em consonância com o exposto, Feser frequentemente cita um autor católico contrário a pena de morte chamado E. Christian Brugger (aqui) que afirma:

“Para os Pais da Igreja Primitiva, a autoridade do Estado para matar malfeitores é dada como garantida. As opiniões diferem se os cristãos poderiam ocupar cargos cuja responsabilidade incluía o julgamento e aplicação de penas capitais. Os autores pré-constantino diriam que não, já os escritos após 313 disseram que eles poderiam – mas o princípio da legitimação da própria punição nunca foi questionado”. (Feser, p. 111; Brugger, p. 74)

Como se vê, há um consenso dos Pais da Igreja a respeito do assunto. Neste sentido, é oportuno trazer a posição histórica da Igreja de Roma a respeito do consenso dos Pais da Igreja, embora, a adoção mais recente da teoria do desenvolvimento tenha minado esse apelo. Os Concílios de Trento e Vaticano I utilizam linguagem forte em condenação a interpretação da Escritura contrariamente ao consenso dos Pais, embora as doutrinas peculiares de Roma não contem com esse apoio:

“Para refrear as pessoas insolentes e astutas, o sínodo decreta que ninguém que confie em seu próprio juízo em matéria de fé e moral — o que diz respeito à edificação da doutrina cristã —, e que ninguém que distorça as Sagradas Escrituras segundo suas próprias opiniões, ouse interpretar a Sagrada Escritura em sentido contrário ao que é mantido pela Santa Mãe Igreja, cujo dever é julgar o verdadeiro sentido e a interpretação das Sagradas Escrituras, ou mesmo em contradição com o consentimento unânime dos Padres.” (Concilio de Trento, Sessão IV, Decreto sobre a Sagrada Escritura)

“Em matérias de fé e moral, uma vez que fazem parte da doutrina cristã, o significado das Sagradas Escrituras a ser tido como o verdadeiro deve ser aquele que a Santa Mãe Igreja sustentou e sustenta, uma vez que tem o direito de julgar o verdadeiro sentido e a interpretação da Sagrada Escritura. Em consequência, não é permissível a ninguém interpretar a Sagrada Escritura em sentido contrário a este, ou em oposição ao consentimento unânime dos Pais.” (Concílio Vaticano I, Dei Filius, cap. 3)

O teólogo católico G. Van Noort afirma que:

“O acordo unânime dos Pais sobre uma doutrina revelada é um argumento seguro para a Tradição Divina”. (Van Noort, Dogmatic Theology, vol. 3, p. 172)

A posição dos Doutores da Igreja Romana (séculos XIII a XVII)

Comecemos com o principal – Tomás de Aquino (séc. XIII):

“É lícito ao príncipe, como ministro da comunidade civil, impor a pena de morte aos malfeitores, para que o bemestar dos inocentes seja protegido.” (Suma Teológica, I-II, Q. 108, Art. 4, resp.)

“Assim como ao médico é permitido amputar um membro corrupto para preservar o corpo, com maior razão ao juiz é lícito extirpar pela morte aquele cuja perversidade é incurável, a fim de garantir a segurança de toda a cidade.” (Suma Teológica, I-II, Q. 108, Art. 4, ad 2um)

Ao comentar o “poder da espada” mencionado por Paulo em Romanos 13:4, ele diz:

“Pelo ‘gládio’ entende-se aqui o poder punitivo temporal, sobretudo a pena de morte, com o qual o magistrado extermina os malfeitores. ” (Comentário à Epístola aos Romanos, Livro IV, cap. 20)

Respondendo ao argumento de que a pena capital seria demasiada, ele retoma Rom 13,4:

“…pois ‘não traz em vão a espada’, isto é, o poder de impor a morte não é vã nem inútil, mas justo instrumento para punir quem pratica o mal.” (Suma Teológica I-II, q. 108, a. 4, ad 2um)

Pedro Canísio (séc. XVI) reponde, em seu catecismo, perguntas sobre como o homicídio voluntário deveria ser tratado apontando passagens como Gênesis 9,6 (“Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado”) e Salmo 55,23 (“"Mas tu, ó Deus, farás descer à cova da destruição aqueles assassinos e traidores, os quais não viverão a metade dos seus dias; quanto a mim, porém, confio em ti.”) (Catecismo, sobre Genesis 9:6 e Salmos 55:23). Afonso de Ligório (séc. XVIII) defende a pena de morte “se for necessária para a defesa da república” ou “para preservar a ordem da lei” (Theologia Moralis III, 4,1). Roberto Belarmino (séc. XVI-XVII) argumenta que:

É lícito ao magistrado cristão punir com a morte os que perturbam a paz pública; prova-se isso, primeiramente, pelas Escrituras, pela lei natural, por Moisés e pelos Evangelhos, nos quais temos preceitos e exemplos. “Pois Deus diz: ‘Aquele que derramar o sangue do homem, pelo homem será derramado o seu sangue.” Essas palavras não podem ser mera profecia — porque uma profecia desse tipo muitas vezes se revelaria falsa — mas constituem um decreto e um preceito. Em segundo lugar, isso se prova pelo testemunho dos Pais. Por fim, se demonstra pela razão; pois é dever de um bom governante, a quem foi confiado o cuidado do bem comum, impedir que os membros que existem para o bem de todos o prejudiquem, e, portanto, se ele não pode preservar todos unidos, deve antes cortar um do que permitir que o todo seja destruído — assim como o lavrador poda ramos e brotos que prejudicam a vinha ou a árvore, e o médico amputa membros que possam ferir o corpo inteiro”. (Tratado sobre o Governo Civil, cap. 13)

Percebam como ele defende a pena capital como um decreto e um preceito, ou seja, é um dever do Governo aplicar a pena quando justo. Os demais doutores da Igreja seguem a mesma tendência. Feser escreveu:

Diante do testemunho uniforme dos Pais e Doutores da Igreja, não surpreende que os mais eminentes teólogos católicos, desde a Idade Média até hoje — dentre eles o Bemaventurado João Duns Scotus (1266–1308), o Cardeal Caetano (1469–1534), Francisco de Vitoria (1492–1546), Francisco Suárez (1548–1617), Juan de Lugo (1583–1660), CharlesRené Billuart (1685–1757) e os autores dos manuais eclesialmente aprovados de teologia moral nos séculos XIX e XX — também tenham afirmado a legitimidade da pena capital. Se a pena capital fosse realmente, afinal, sempre e intrinsecamente imoral, isso implicaria numa ruptura massiva no Magistério ordinário da Igreja por dois milênios e, consequentemente, lançaria dúvidas sobre sua confiabilidade geral. (Feser, p. 121)

Este consenso que envolve Pais e Doutores é extremamente sério. Um conhecimento manual de teologia católica afirma:

“Se… [os teólogos] concordam em declarar que uma doutrina é suficientemente certa e demonstrada, seu consentimento não constitui prova formal do caráter católico da doutrina; entretanto, a existência desse consentimento mostra que a doutrina pertence ao entendimento da Igreja (catholicus intellectus), e, consequentemente, sua negação incorreria na censura de imprudência. Estes princípios da autoridade dos teólogos foram fortemente sustentados por Pio IX em Gravissimas inter (cf. infra § 29), e são consequências evidentes da doutrina católica da Tradição. Embora a assistência do Espírito Santo não seja prometida diretamente aos teólogos, não obstante, a assistência prometida à Igreja exige que Ele os livre, como corpo, de cair em erro; caso contrário, os fiéis que seguem a eles seriam todos desviados. O consentimento dos teólogos implica o consentimento do episcopado, segundo o ditado de São Agostinho: “Não resistir a um erro é aprová-lo — não defender uma verdade é rejeitá-la” (Agostinho, A Cidade de Deus, I, 21). A Igreja estima quase da mesma forma os Doutores medievais e os Padres antigos. A substância dos ensinamentos dos Escolásticos e seu método de tratamento foram ambos fortemente aprovados pela Igreja.” (Wilhelm e Scannell, A Manual of Catholic Theology, vol. 1, p. 79)

O conhecido cardeal Dulles (citando Melchior Cano) também escreveu:

“Excepcionalmente, Pais da Igreja podem errar individualmente, mas, de acordo com Cano, é impossível que todos os Pais errem em matéria de fé. Assim como para os teólogos escolásticos, seria próximo a heresia, ele afirma, contradizer a opinião unânime em matéria de fé e moral.” (Magisterium: Teacher and Guardian of the Faith. Naples, FL: Sapientia Press, 2007, p. 43)

O papa Pio IX (séc. XIX) também escreveu sobre o consentimento dos teólogos:

“A sujeição que deve ser manifestada por um ato de fé divina (...) não precisaria ficar limitada àquelas matérias que foram definidas por decretos expressos dos Concílios ecumênicos, ou dos Pontífices Romanos e desta Sede, mas teria de se estender também àquelas matérias que são transmitidas como divinamente reveladas pelo poder de ensino ordinário de toda a Igreja espalhada pelo mundo, e, portanto,  também pelo consentimento universal e comum sustentado por teólogos católicos como pertencentes à fé. Não basta aos católicos aceitar e venerar os dogmas antes mencionados da Igreja, mas (...) é também necessário sujeitar-se (...) àquelas formas de doutrina que são mantidas pelo consentimento comum e constante dos católicos como verdades teológicas e conclusões, de modo tão certo que opiniões opostas a essas mesmas formas de doutrina, embora não possam ser chamadas heréticas, merecem, não obstante, alguma censura teológica.” (Tuas Libenter, carta de 1863 ao Arcebispo de Munique-Freising)

Ou seja, a Fé da Igreja Romana não estaria restrita apenas às fórmulas decretas pelos Concílios Ecumênicos ou pelos Papas, mas também pelo consenso dos teólogos e pais da Igreja. Isto implicaria que o ensino sobre a aplicabilidade da pena de morte é parte da fé revelada.

A posição dos Papas

Em 405, Inocêncio I escreveu uma carta ao bispo de Tolouse, respondendo se as autoridades civis, mesmo depois de se tornarem cristãs, poderiam continuar aplicando a pena de morte:

“A respeito dessas coisas não lemos nada definitivo dos antecessores. Eles lembravam que esses poderes haviam sido concedidos por Deus e que, para punir os malfeitores, permitiu-se o uso da espada. Dessa forma, foi nos dado um ministro de Deus, um vingador. Como, pois, eles criticariam algo que veem como tendo sido concedido pela autoridade de Deus? A respeito desses assuntos, portanto, mantemo-nos naquilo que até agora se observou, para que não pareçamos subverter a ordem sã ou ir contra a autoridade do Senhor.” (Carta XCVII para Exsuperium)

Obviamente, por uso da espada, ele se refere ao texto de Romanos 13:7. Assim, como outros Pais da Igreja (Tertuliano, Orígenes, Ambrósio e etc), ele interpretava tal passagem como autorizando a aplicação da pena capital. Já Inocêncio III requereu no ano 1210 aos valdenses, como condição para se reconciliar com a Igreja, que afirmassem um número de doutrinas que incluía o seguinte:

“Declaramos que o poder secular pode, sem pecado mortal, impor um julgamento de sangue, desde que a pena seja devidamente executada.” (Epistola ad Waldenses, 1210)

O fato de esta proposição ser requerida de um grupo considerado herético é clara no sentido de que a possibilidade de aplicação da pena capital era parte da ortodoxia católica. É interessante observar que a posição católica atual está mais próxima dos Valdenses, que condenavam a aplicação da pena de morte como pecado mortal, do que dos Papas anteriores. Já em 1520, o Papa Leão X condenou proposições associadas a Martinho Lutero:

“[Elas são] heréticas, escandalosas, falsas, ofensivas aos ouvidos piedosos, sedutoras para pessoas simples e contrárias à verdade católica. Ao listá-las, decretamos e declaramos que todos os fiéis de ambos os sexos devem tê-las como condenadas, reprovadas e rejeitadas (...) Proibimos firmemente, em virtude de santa obediência, sob pena de excomunhão automática.” (Bula Exsurge Domine)

Uma dessas proposições heréticas e sujeitas a pena de excomunhão era:

“Queimar hereges é contra a vontade do Espírito Santo”.

Novamente, ele ameaça de excomunhão quem negar a afirmação acima, fazendo do uso da pena de morte para combater a heresia. Ou seja, o papa afirma que é herético não apenas se opor a pena de morte, mas se opor a perna de morte aos hereges. Podemos dizer que os papas atuais seriam considerados hereges e excomungados da Igreja de Roma do século XVI. Na verdade, eles provavelmente seriam queimados em alguma fogueira. A Enciclopédia Católica traz o Catecismo criado a partir Concílio de Trento (também chamado de catecismo romano) e promulgado pelo Papa Pio V em 1566:

O Catecismo não possui, é claro, a autoridade de definições conciliares ou de outros símbolos primários da fé (...) No entanto, possui alta autoridade como exposição da doutrina católica. Foi composto por ordem de um concílio, emitido e aprovado por um papa. Seu uso foi prescrito por numerosos sínodos em toda a Igreja. O Papa Leão XIII, numa carta aos bispos franceses (8 de setembro de 1899), recomendou o estudo do Catecismo Romano a todos os seminaristas, e o papa reinante, Pio X, indicou seu desejo de que os pregadores o explicassem aos fiéis. (Joseph Wilhelm, “Roman Catechism”, Catholic Encyclopedia, vol. 13)

Este é o catecismo que o Centro Dom Bosco e outros grupos tradicionalistas apoiam em oposição ao catecismo oriundo do Vaticano II. Ele foi considerado por séculos uma exposição fiel da doutrina católica e nele encontramos o seguinte:

Outro tipo legítimo de morte pertence às autoridades civis, às quais foi confiado o poder sobre a vida e a morte, e que o exercem de forma legal e prudente ao punirem os culpados e protegerem os inocentes. O uso justo desse poder — longe de ser homicídio — é um ato de obediência ao mandamento que proíbe o assassinato. O objetivo desse mandamento é a preservação e a segurança da vida humana. Ora, as punições infligidas pela autoridade civil, enquanto legítima vingadora do crime, tendem naturalmente a esse fim, pois asseguram a vida ao reprimir a violência e os excessos. (Catecismo do Concílio de Trento, ed. TAN Books, 1982, p. 421)

E também:

“É fácil perceber… quantos são, de fato ou ao menos de desejo, culpados de assassinato. Por isso, as Sagradas Escrituras prescrevem remédios severos para um mal tão perigoso. O pastor não deve poupar esforços nesse sentido em faze-los conhecidos aos fiéis. Dentre esses remédios, o mais eficaz é formar uma noção justa da malícia do homicídio. A gravidade desse pecado se manifesta em muitas e importantes passagens da Sagrada Escritura. Deus abomina tanto o homicídio que declara em Sua Lei que, mesmo que uma fera mate o homem, Ele exigirá vingança pela vida humana, ordenando que o animal seja morto.” (Catecismo do Concílio de Trento)

Ou seja, a pena capital é um ato justo demandando pelo caráter retribuitivo da justiça – um ato de vingança pela vida humana. Cardeal Avery Dulles descreve como a legitimidade da pena de morte foi defendida por papas que exerceram autoridade civil:

Nos Estados Pontifícios, a pena de morte foi imposta para uma variedade de delitos (...) O Estado da Cidade do Vaticano, de 1929 até 1969, possuía um código penal que incluía a pena capital para quem tentasse assassinar o papa.” (Catholicism and Capital Punishment, First Things 112, 2001, p. 31)

E também:

“O papado (...) participou nessa época de maneira volumosa em execuções resultantes de seu papel como autoridade civil. De 1815, quando o Papa recuperou o controle político de Roma após Napoleão, até 1870, os papas ordenaram a execução de centenas de criminosos.”

Ou seja, os papas não apenas defenderam a possibilidade da pena capital como parte da moral católica, mas, inclusive, quando no exercício da autoridade civil, ordenaram a execução de pessoas.  O autor católico George Rutler escreveu sobre Pio IX:

O Papa Pio IX — beatificado por João Paulo II no ano 2000 — foi inflexível quanto à importância que atribuía às execuções públicas como forma de "encorajamento" a outros (...) Quando pediram ao Beato Pio IX que concedesse clemência a um condenado à morte em 1868, o papa respondeu firmemente: "Não posso, e não quero." (Fr. George Rutler, “Hanging Concentrates the Mind”, Crisis, 8 de fevereiro de 2013)

Outro autor católico documenta:

Um homem, Giovanni Battista Bugatti, realizou 516 execuções como “Carrasco do Papa” entre 1796 e 1865. O executor utilizava um de três métodos: guilhotina (a partir de 1816), golpear a cabeça com um malho e cortar a garganta do condenado, ou esquartejamento. (Michael A. Norko, “The Death Penalty in Catholic Teaching and Medicine, Journal of the American Academy of Psychiatry and the Law 36 (2008): 470–81.)

Em sua encíclica de 1891 Pastoralis Officii, o Papa Leão XIII observa que a Escritura proíbe matar um ser humano, exceto em caso de “legítima defesa” ou de “causa pública”. O Catecismo de Doutrina Cristã de 1912, promulgado por São Pio X (também conhecido como Catecismo de São Pio X), afirma a respeito do Quinto Mandamento:

"É lícito matar... ao se executar por ordem da Autoridade Suprema uma sentença de morte como punição de um crime."

Na encíclica Casti Connubii (1930), o Papa Pio XI declara que “o direito da autoridade pública... de tirar a vida (..) diz respeito apenas aos culpados”.

Os opositores da pena de morte defendem o aspecto preventivo e ressocializador da punição, e tendem a rejeitar o aspecto retributivo ou também chamado de vindicativo. O Papa Pio XII traz uma defesa eloquente do aspecto retributivo da punição, no que se baseia a justiça da pena de morte para alguns casos:

Muitos, embora não todos, rejeitam a punição vindicativa, mesmo quando se propõe que ela venha acompanhada de penas com fins medicinais… [Mas] não seria justo rejeitá-la completamente e, como questão de princípio, a função da punição vindicativa permanece. Enquanto houver homem sobre a terra, tal punição pode e deve visar sua reabilitação definitiva… Este, como já apontamos, é um elemento essencial da punição.  Muitos — talvez a maioria — dos juristas civis rejeitam a punição vindicativa… No entanto, a Igreja, em sua teoria e prática, mantém esse duplo tipo de pena (medicinal e vindicativa), e isso está mais de acordo com o que as fontes da revelação e da doutrina tradicional ensinam sobre o poder coercitivo da legítima autoridade humana. Não é uma resposta suficiente dizer que tais fontes exprimem apenas pensamentos condicionados pelas circunstâncias históricas e pela cultura da época, e que, portanto, não se pode atribuir a elas validade universal e permanente. (Discurso aos juristas católicos da Itália)

Ele também diz que “A fixação das penas da lei e suas adaptações ao caso individual devem corresponder a gravidade do crime”. Dentro desse contexto do aspecto retributivo da pena, Pio XII irá defender claramente a possibilidade da pena de morte para certos crimes:

“A justiça penal do passado... e, até certo ponto, também a do presente, e — se for verdade que a história muitas vezes nos ensina o que esperar do futuro — a do amanhã também, faz uso de punições que envolvem dor física... e da pena capital sob diversas formas.”

“Nada além dessa fé pode conferir a força moral necessária para observar os limites corretos diante de todas as tentações insidiosas de ultrapassá-los, tendo em mente que, exceto nos casos de legítima defesa, de guerra justa travada com meios justos, e de pena capital infligida pela autoridade pública por crimes claramente definidos e comprovadamente gravíssimos, a vida humana é intangível.” (Michael Chinigo, ed., The Pope Speaks: The Teachings of Pope Pius XII (New York: Pantheon Books, 1957), pp. 227–28.)

“Mesmo quando se trata da execução de um homem condenado à morte, o Estado não dispõe do direito à vida do indivíduo. Esse direito pertence, antes, à autoridade pública, para privar o criminoso do benefício da vida quando, pelo seu crime, ele já tiver privado a si mesmo do direito à vida.” (citado por Brugger, p. 130)

Ou seja, a alegação de que a Igreja Romana apenas admitiu a pena de morte no passado por não haver outros meios de pena passíveis de aplicação é completamente falsa. O ensino de que a pena de morte é um requisito da justiça retributiva (uma necessidade da lei moral) está fartamente documentado na tradição católica.  Já em 1976, sob a direção de Paulo VI, a Comissão para Justiça e Paz produziu um documento chamado “A Igreja e a Pena de Morte”, que começa a apresentar um tom mais negativo sobre a questão. Contudo, ainda afirma:

“a doutrina tradicional é que a pena de morte não é contrária à lei divina nem exigida pela própria lei divina, e que depende das circunstâncias, da gravidade do crime etc.”

“O fato de o Estado ter o direito de aplicar a pena de morte foi cedido pela Igreja há séculos”.

“A Igreja nunca condenou seu uso pelo Estado”.

“O que a Igreja condenou foi negar esse direito ao Estado.”

O grande ponto de virada na visão católica sobre a pena de morte ocorre no pontificado de João Paulo II. O catecismo de 1992 traz:

“Se meios incruentos forem suficientes para defender vidas humanas contra um agressor e para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas, a autoridade pública deve limitar-se a tais meios, pois eles correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais de acordo com a dignidade da pessoa humana”. (Catecismo da Igreja Católica 2267)

Já na Encíclica Evangelium Vitae, ele afirmou:

“É claro que, para que esses objetivos sejam alcançados, a natureza e a extensão da punição devem ser cuidadosamente avaliadas e decididas, e não se deveria chegar ao extremo de executar o infrator, exceto em casos de necessidade absoluta. Em outras palavras, quando não fosse possível, de outro modo, defender a sociedade. Hoje, contudo, como resultado de constantes melhorias na organização do sistema penal, tais casos são muito raros, se não praticamente inexistentes”. (Evangelium Vitae, parágrafo 56)

É interessante observar aqui como começa a ser gestado o principal argumento para a mudança recente do catecismo proibindo a pena de morte: a desnecessidade em virtude do aprimoramento do sistema penal moderno. Ou seja, é enfatizado apenas a proteção da sociedade como razão para a aplicação da pena capital, contudo, vimos que papas e doutores anteriores argumentavam em favor da pena de morte como um requisito da justiça retributiva e não apenas a proteção social.  O papa Bento XVI pouco evoluiria na questão além de reiterar o ensino de João Paulo II sobre a aplicação da pena capital em casos excepcionalíssimos, inclusive deixando aberta a possibilidade de total desnecessidade desta aplicação. Contudo, Papa Francisco seria aquele a dar um verdadeiro salto no tema. Francisco, numa mensagem aos participantes do Quinto Congresso Mundial contra a Pena de Morte, em Madri, em 19 de junho de 2013, pediu a abolição da pena de morte. Numa palestra à Associação Internacional de Direito Penal, em 23 de outubro de 2014, disse:

“É impossível imaginar que hoje os Estados deixem de empregar outros meios que não a pena capital para proteger a vida das pessoas contra o agressor injusto. São João Paulo II condenou a pena de morte (cf. Encíclica Evangelium Vitae, n. 56), assim como o faz o Catecismo da Igreja Católica (n. 2267).”

O destaque aqui, além do pedido de abolição da pena capital, é a interpretação de que João Paulo II havia condenado a pena de morte nos documentos que acabamos de ler. Papa Francisco também disse que “a prisão perpétua é apenas uma pena de morte disfarçada. ” Dessa forma, o argumento de que a pena de morte não seria mais necessária parece ainda mais minado quando se condena também a prisão perpétua, pois, como a sociedade estaria protegida contra psicopatas aparentemente irrecuperáveis quando nem a pena capital nem a prisão perpétua podem ser aplicadas? Francisco tinha também posições bem progressistas sobre a punição de “crianças”, aqui entendidas como menores de idade:

“No que diz respeito à aplicação de sanções criminais às crianças… as crianças… ainda não se desenvolveram plenamente em maturidade e, portanto, não podem ser responsabilizadas. Em vez disso, devem beneficiar-se de todos os privilégios que o Estado é capaz de oferecer, no que se refere à inclusão, tanto quanto possível, em práticas destinadas a desenvolver nelas o respeito pela vida e pelos direitos dos outros.”

Ele seria mais explícito numa carta de 20 de março de 2015, à Comissão Internacional contra a Pena de Morte:

“O magistério da Igreja, partindo da Sagrada Escritura e da experiência do povo de Deus por milênios, defende a dignidade humana como sendo à imagem de Deus (cf. Gn 1:26). (…) Os Estados podem matar por sua ação quando aplicam a pena de morte, quando levam as pessoas à guerra ou quando impõem execuções judiciais ou sumárias. Também podem matar por omissão, quando não garantem às pessoas as condições básicas de vida.

A vida, a vida humana acima de tudo, pertence a Deus somente. Nem mesmo um assassino perde sua dignidade pessoal, e o próprio Deus se compromete a garanti-la (...) Em certas circunstâncias, quando as hostilidades estão em andamento, uma reação medida é necessária a fim de evitar que o agressor cause dano, e a necessidade de neutralizar o agressor pode resultar em sua eliminação. Trata-se de um caso de legítima defesa (cf. Evangelium Vitae, n. 55). Contudo, como os requisitos de legítima defesa pessoal não são aplicáveis na ordem social sem o risco de distorção, de fato, quando a pena de morte é aplicada, as pessoas são mortas não por atos atuais de agressão, mas por delitos cometidos no passado. Além disso, ela é aplicada a pessoas cuja capacidade de causar dano não está presente no momento, pois já foi neutralizada, e que se encontram privadas de liberdade. Hoje, a pena capital é inaceitável, por mais grave que tenha sido o crime cometido pelo condenado. Ela é uma ofensa à inviolabilidade da vida e à dignidade da pessoa humana, que contradiz o plano de Deus para o homem e para a sociedade e sua justiça misericordiosa, e não se conforma a qualquer finalidade justa de punição. Ela não faz justiça às vítimas, mas fomenta a vingança.

Para um Estado constitucional, a pena de morte representa um fracasso, porque obriga o Estado a matar em nome da justiça. Dostoiévski escreveu: “Matar um assassino é um castigo incomparavelmente mais terrível que o crime em si. O homicídio cometido por sentença legal é imensuravelmente mais terrível do que o homicídio cometido por um criminoso.” A justiça nunca é alcançada matando um ser humano (...) A pena de morte perde toda legitimidade também devido à seletividade defeituosa do sistema de justiça criminal e à possibilidade de erro judicial. A pena de morte também implica o menoscabo da humanidade e da ordem divina, que devem ser modelos para a justiça humana. Implica tratamento cruel, desumano e degradante, como a angústia entre o momento da sentença e a terrível suspense que existe entre a emissão da sentença e a execução da pena, uma forma de “tortura” que, em vez de extinguir a dor, tende a prolongar o sofrimento no tempo, levando até muitos anos. Em alguns setores, há debate sobre o método de execução, como se fosse apenas uma questão de encontrar “o melhor modo”. No curso da história, vários mecanismos letais foram abandonados porque reduziam o sofrimento e a agonia do condenado. Mas não há forma humana de matar outra pessoa. Hoje, não apenas existem outros meios eficazes de enfrentar o crime sem recorrer definitivamente à privação da possibilidade do condenado de reformar-se (cf. Evangelium Vitae, n. 27), mas também há uma sensibilidade moral mais aguçada em relação ao valor da vida humana, suscitando opinião pública em apoio às várias disposições destinadas à abolição ou suspensão de sua aplicação e uma crescente aversão à pena de morte (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 405). Por outro lado, penas como a prisão perpétua, bem como aquelas que, devido à sua duração, tornam impossível ao condenado planejar uma futura vida em liberdade, podem ser consideradas penas de morte ocultas, pois o condenado não é apenas privado de sua liberdade, mas insidiosamente privado de esperança. Mas, mesmo que o sistema de justiça criminal possa apropriar-se do tempo das partes culpadas, nunca deve tirar-lhes a esperança”.

A citação é bem longa e assim a deixei para termos boa documentação sobre a questão. Para aqueles que tentam conciliar tais palavras com aquelas ditas por Pio XII em defesa a pena capital como requisito da justiça retributiva, eu apenas desejo boa sorte, pois, é impossível conciliar. Alguém ainda duvida que o Papa Francisco seria conspirado herege no século XVI? O suposto magistério infalível, penhor da ortodoxia da Igreja, foi de matar hereges para a pena de morte é uma ofensa a dignidade humana, portanto, errada em qualquer situação. No discurso dominical do Angelus de 21 de fevereiro de 2016, ele disse:

“Amanhã começa, em Roma, uma conferência internacional intitulada “Por um Mundo Sem Pena de Morte” (...) Espero que esta conferência possa dar um novo impulso aos esforços para abolir a pena de morte. Está se espalhando na opinião pública uma oposição à pena de morte, mesmo como instrumento de legítima defesa social, e isto é um sinal de esperança. De fato, as sociedades modernas têm a capacidade de controlar eficazmente o crime sem ter que tirar definitivamente de um criminoso a chance de se redimir. A questão está no contexto de uma perspectiva de um sistema de justiça criminal que esteja cada vez mais em conformidade com a dignidade do homem e o desígnio de Deus para o homem e para a sociedade. E também de um sistema de justiça criminal aberto à esperança de reintegração social. O mandamento “não matarás” tem valor absoluto e se refere tanto ao inocente quanto ao culpado”.

Não foi sem precedentes que, em 2018, Papa Francisco anunciou a mudança no catecismo proibindo a aplicação da pena capital:

“2267. Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir. Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa» [Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, 11 de outubro de 2017], e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.” (Fonte)

Ou seja, o argumento é que a pena de morte não é mais necessária para proteger a sociedade, uma vez que os sistemas penais se desenvolveram a ponto de existirem outros meios mais adequados de aplicação da pena. O principal problema é que esta proposição contradiz o ensino tradicional de que a pena de morte é um requisito da justiça retributiva, ou seja, ela se baseia não apenas na proteção da sociedade, mas, principalmente na necessidade de fazer justiça pelo ato praticado. Além disso, mesmo em seus próprios termos, é no mínimo controverso que os sistemas penais do mundo inteiro se desenvolveram a ponto de tornar a pena capital desnecessária. Certamente, ainda há no planeta terra regiões com sistemas penais que fariam das masmorras medievais um avanço humanitário. Por último, se a pena de morte é incompatível com dignidade humana, isto se aplicaria a todas as épocas. Em nenhum período seria aplicável uma punição que viola a dignidade humana que deriva da doutrina do imago dei.

Após a eleição do Papa Leão XIV, católicos tradicionalistas receberam com esperança a possibilidade de uma guinada mais tradicional nos ensinos do novo papa, embora, a evidência disponível sugerisse uma continuidade ao papado de Francisco. Quando se trata do tema da pena de morte, o então Cardeal Prevost afirmou uma posição contrária. Em 2011, mesmo antes da mudança introduzida pelo catecismo, ele agradeceu ao Governador de Illinois pela abolição da pena de morte no Estado:

“Caro governador Quinn, obrigado por sua decisão corajosa de sancionar a eliminação da pena de morte. Sei que foi uma decisão difícil, mas aplaudo sua visão e sua compreensão de um tema tão complexo. O senhor conta com todo o meu apoio!” (Fonte)

Ele também publicou no twitter em 2015: “É hora de acabar com a pena de morte”. Em 2022, deu entrevista a um jornal peruano a respeito de uma menina que foi abusada:

“Precisamos estar sempre a favor da vida em qualquer circunstância. Isso significa que, como Igreja, ensinamos que a pena de morte não é admissível, nem mesmo num caso tão trágico como este. É preciso buscar outras formas de fazer justiça.” (Fonte)

Na mesma entrevista, ele também condena a castração química. Num documento do Discatério parar a Doutrina da Fé (do qual Prevost era membro votante) saíram as seguintes palavras:

“A pena de morte que viola a dignidade inalienável de toda pessoa em quaisquer circunstâncias” (Dignitas Infinita)

Em 2023, ele afirmaria na Conferência “Ética pela Vida”:

“Por exemplo, um católico não pode afirmar ser pró-vida apenas para se opor ao aborto e, ao mesmo tempo, declarar-se favorável à pena de morte. Isso não seria coerente com a doutrina social da Igreja.”

Ou seja, segundo Prevost, ser pró-vida implica tanto na oposição ao aborto quanto na oposição a pena de morte. Muitos católicos precisam saber disso no Brasil.

Conclusão

Acredito que não há muito a ser dito. A documentação fornecida prova mais uma evidente contradição do magistério católico romano. Apologistas católicos costumam afirmar que sustentam uma tradição de 2 mil anos. Quase sempre esta afirmação é historicamente inválida, mas, no caso do ensino sobre a aplicabilidade da pena de morte, ela está correta. Trata-se de um ensino perene que perpassou o período patrístico, foi defendido por doutores da Igreja e por papas. Contudo, é uma tradição que foi quebrada e absolutamente revertida. É difícil imaginar como alguém pode sustentar que a Igreja de Roma nunca se contradisse diante de um caso tão claro.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

O Sacerdócio Universal de Todos os Crentes na Igreja Pré-Nicena

 

A imagem comum que muitos cristãos têm da Igreja Antiga é a de uma instituição altamente hierarquizada, em que bispos e presbíteros concentravam toda autoridade litúrgica, doutrinária e disciplinar. No entanto, uma análise atenta das fontes do cristianismo pré-niceno — isto é, anterior ao Concílio de Niceia em 325 d.C. — revela uma configuração bem diferente, marcada por ampla participação dos leigos na vida comunitária e eclesial.

Este artigo apresenta evidências textuais e análises acadêmicas que demonstram que, nos primeiros séculos do cristianismo, os leigos tinham uma presença mais ativa e, em muitos aspectos, mais próxima dos princípios defendidos por várias tradições protestantes posteriores — especialmente no que se refere ao ensino, batismo, carismas e liderança comunitária. O teólogo católico Yves Congar escreveu:

Na Igreja primitiva ainda não aparece a distinção entre clérigos e leigos; vê-se apenas ministérios diversos, nascidos dos carismas e reconhecidos pela comunidade.” (Lay People in the Church: A Study for a Theology of Laity, p. 18)

A participação de leigos no ensino e na celebração de sacramentos

No cristianismo pré-niceno, a distinção entre clero e laicato existia, mas não carregava o peso sacramental, jurídico e institucional que teria a partir do século IV. A Igreja era, sobretudo, uma comunidade carismática, com dons diversos concedidos pelo Espírito a todos os crentes, conforme 1 Coríntios 12.

A Didaque menciona os profetas itinerantes, que não pertenciam ao quadro local de “bispos e diáconos” (15,1), e podiam presidir livremente: “Quando o profeta quiser dar graças, deixe-o fazê-lo como quiser.”

Tertuliano de Cartago (séc. III), ao tratar da celebração da Eucaristia e do batismo permite que leigos o façam, na ausência de clero ordenado, o parecia ser comum neste período, uma vez que novas Igrejas estavam se formando diariamente devido à atividade missionária:

“Portanto, onde não houver reunião da ordem eclesiástica, tu mesmo ofereces (o sacrifício) e batizas, e és sacerdote para ti próprio; mas onde houver três, aí está uma Igreja, ainda que sejam leigos.” (Tertuliano, De Exhortatione Castitatis 7)

“Além desses [bispo, presbítero e diácono], até os leigos têm autoridade para batizar, pois aquilo que se recebe de forma igual pode ser concedido de forma igual.” (Tertuliano, De Baptismo 17)

Hipólito de Roma, escreveu no século III, sobre a possibilidade de mestres leigos ensinarem:

Se chegar um mestre dotado de carisma, não tardeis em ir ao lugar onde a palavra está sendo dada, pois graça será concedida ao orador para dizer coisas proveitosas a todos.” (Trad. Apost. 35:3)

“Se alguém disser: ‘Recebi do Senhor o dom de ensinamento’, seja provado; se ensinar conforme a regra da fé e permanecer humilde, então que ensine, pois a Igreja é edificada por todos; mas, se se ensoberbecer, exaltando-se a si mesmo e ensinando algo estranho à regra, deve ser silenciado.” (Tradição Apostólica 11:1-2)

Orígenes de Alexandria (séc. III) afirma:

“Porém cada pessoa individualmente é chamada ora apóstolo, ora profeta, ora mestre (doctor)… de acordo com aquilo em que pode ser útil aos outros.” (Comentário sobre Romanos, Prólogo).

Ou seja, os testemunhos acima demonstram que leigos participavam do ensino e da celebração de sacramentos como o batismo/ceia. Paul F. Bradshaw afirma:

“O Novo Testamento, claro, nada nos diz; e, embora argumentos a partir do silêncio sejam perigosos, o próprio silêncio pode indicar que não havia qualquer ministério cujo encargo principal fosse pronunciar a oração eucarística: ninguém foi ordenado ou instituído num ofício que consistisse primariamente em dizer a bênção sobre o pão e o vinho.” (Liturgical Presidency in the Early Church, Grove Liturgical Studies 32, 1983, p. 8)

A participação da comunidade na reconciliação dos que cometiam pecados graves

A confissão auricular obrigatória a um sacerdote, tal como estabelecida na Idade Média, não existia no cristianismo primitivo. A confissão era aplicável a pecados graves e envolviam a participação da comunidade e não apenas do sacerdote isoladamente.

A Didaque, no início do século II, nos traz:

Na Igreja confessa as tuas transgressões, e não te aproximes da oração com consciência má. Este é o caminho da vida.” (Didaque 4,14; Ante-Nicene Fathers 7)

“Mas em todo Domingo do Senhor, reuni-vos para partir o pão e dar graças, depois de terdes confessado as vossas transgressões, a fim de que o vosso sacrifício seja puro. E ninguém que esteja em litígio com o irmão se junte a vós, até que se reconciliem, para que o sacrifício não seja profanado.” (Didaque 14,1-2; Ante-Nicene Fathers 7)

As passagens acima sugerem um processo público e comunitário que ocorria dentro da liturgia do culto. O pastor de Hermas, escrevendo no século II, diz:

“O anjo que preside ao arrependimento ordena a Hermas: ‘Publica a tua falta a todos, para que a assembleia ore por ti, e o pecado seja curado’.” (Pastor de Hermas, Mandamento 4)

Tertuliano, no século III, escreveu:

“Esse ato, comumente designado pelo nome grego exomologesis, no qual confessamos nossos pecados ao Senhor, é uma disciplina de prostração e humildade: manda ao penitente deitar-se em saco e cinza, cobrir o corpo de luto, abater o espírito em gemidos; prescreve que não se alimente senão do mais simples, que nutra as orações com jejuns, que se prostre aos pés dos presbíteros e se ajoelhe diante dos ‘amigos de Deus’, suplicando a todos os irmãos que sejam embaixadores da sua prece de perdão.” (De paenitentia 9, 3-4; ANF 3, p. 661-662)

A Didascália dos Apóstolos, um documento do século III, também diz:

Os bispos são exortados a “reunir todo o povo” para chorar, jejuar e impor as mãos sobre o pecador, “para que a Igreja inteira ore e ele seja recebido.”

Igrejas fundadas por leigos e o papel das casas como centros eclesiais

O Novo Testamento menciona um processo não formal de fundação de Igrejas:

“Então os que haviam sido dispersos por causa da perseguição que se levantou por ocasião de Estêvão chegaram até a Fenícia, Chipre e Antioquia, não anunciando a palavra a ninguém, senão somente aos judeus. Alguns deles, porém — homens de Chipre e de Cirene —, chegando a Antioquia, falavam também aos gregos, anunciando o Senhor Jesus. A mão do Senhor estava com eles, e grande número creu e se converteu ao Senhor.” (Atos 11:19-21)

Tertuliano menciona Igrejas que eram formadas sem estarem inclusas na cadeia da sucessão apostólica, mas, eram apostólicas na medida em que ensinam a doutrina dos apóstolos:

“Assim, em primeiro lugar, é evidente que os próprios apóstolos fundaram igrejas em cada cidade; dessas, todas as demais recebem todos os dias a semente da fé para se tornarem igrejas. Toda doutrina que, por parentesco, concorda com a das igrejas apostólicas deve ser tida por verdadeira (...) Há ainda outras bem mais recentes, que de fato hoje mesmo se estão formando; não por isso são tidas como menos apostólicas, pois, embora não possam exibir uma sucessão que remonte aos apóstolos, são reputadas apostólicas pelo parentesco da doutrina e pela unidade da fé.” (De praescriptione haereticorum 20, 5-6; 32, 5-6)

O renomado erudito Adolf Harnack atesta:

“Não podemos hesitar em crer que a grande expansão do cristianismo foi, de fato, realizada por meio de missionários informais”. (The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries, Book III, chap. IV §1; ed. engl. CCEL)

As primeiras igrejas reuniam-se em casas particulares de cristãos leigos, que muitas vezes lideravam essas comunidades. Exemplos do Novo Testamento:

"Saudai igualmente a igreja que se reúne na casa deles" (Romanos 16:5)

"Saudai os irmãos de Laodiceia, bem como Ninfa e a igreja que está em sua casa" (Colossenses 4:15)

"À igreja que está em tua casa" (Filemom 1–2)

Wayne Meeks também diz:

“Nossas fontes nos dão bons motivos para pensar que [a casa/lar] foi a unidade básica no estabelecimento do cristianismo na cidade, assim como, de fato, era a unidade básica da própria cidade. (The First Urban Christians, p. 29)

A participação dos leigos na escolha e deposição dos líderes da Igreja

Mesmo nas comunidades cristãs mais institucionalizadas do período pré-niceno, os leigos não eram excluídos da escolha dos líderes espirituais. Pelo contrário, há ampla evidência de que a eleição de presbíteros e bispos envolvia a aprovação da comunidade local, incluindo os fiéis leigos.

Clemente de Roma, em sua primeira epístola aos Coríntios (c. 95 d.C.), afirma: "Aqueles que foram nomeados bispos e diáconos por homens aprovados pelo Espírito, e com o consentimento de toda a igreja..." (1 Clemente 44).

A Didaquê também instrui as comunidades a escolherem seus próprios líderes: "Escolhei para vós bispos e diáconos dignos do Senhor" (Didaquê 15.1).

Cipriano de Cartago é ainda mais claro:

“E o bispo deve ser ordenado na presença do povo, que conhece plenamente a vida de cada candidato e já observou a conduta habitual de cada um.” (Epístola 67:5)

Ele também reconhece que um bispo impopular poderia ser rejeitado pela comunidade:

“Pois o próprio povo tem autoridade para escolher os dignos e rejeitar os indignos.” (Epístola 67:3)

O grande historiador da Igreja Henry Chadwick observa:

“A eleição dos bispos era frequentemente feita por aclamação popular; tentar impor um bispo a uma comunidade relutante provocava resistência feroz.” (The Early Church, cap. 2 “Faith and Order”, London / Harmondsworth: Penguin, 1967, p. 45)

Conclusões

As evidências patrísticas e historiográficas permitem concluir que:

1. Os leigos tinham papéis ativos no ensino, batismo, disciplina e assistência;

2. A exclusividade clerical ainda não era um modelo dominante;

3. A Igreja funcionou durante um período inicial como um corpo carismático e comunitário;

4. O sacerdócio universal dos crentes tem base na prática da Igreja primitiva;

5. A reconciliação dos pecadores envolvia toda a comunidade, não só o clero;

7. Muitas igrejas eram fundadas e lideradas por leigos;

8. Os leigos participavam da escolha (e rejeição) dos líderes da Igreja.


quarta-feira, 4 de junho de 2025

Anselmo e a Justificação: mais protestante do que católico romano

 Parte 1 – Introdução

Anselmo de Cantuária (1033 – 1109) foi arcebispo de Cantuária, filósofo e teólogo medieval considerado o “pai da Escolástica”. Nascido em Aosta (atual Itália), tornouse monge beneditino em Bec (Normandia) e, posteriormente, arcebispo de Cantuária, na Inglaterra. Sua obra mais famosa, Cur Deus Homo? (1098), busca explicar o motivo da encarnação e morte de Cristo, desenvolvendo a “teoria da satisfação” para a expiação. Em escritos posteriores, como o diálogo De Concordia virginitatis, Anselmo aprofunda temas de justificação, arrependimento e virtude. Ao enfatizar a aplicação imediata da satisfação vicária de Cristo pela fé, Anselmo traçou caminhos teológicos que antecipam aspectos centrais dos Reformadores, distinguindose notavelmente da teologia desenvolvida no Concílio de Trento.


Parte 2 – As visões de Anselmo em comparação com a teologia católica e protestante

2.1 Justificação como ato único

Em Cur Deus Homo? (cap. 13), Anselmo afirma que a justificação se dá num só momento, quando o pecador, arrependido, confia plenamente em Cristo. Seu texto diz:

“Assim que o homem crê verdadeiramente em Cristo, é justificado, porque Cristo aplicoulhe por fé a satisfação que oferecera em favor de todos.”

Para Anselmo, não há “etapas intermediárias”: a fé arrependida “ativa” a justificação num único instante, em que Deus imputa a satisfação de Cristo ao pecador.

Brian Davies (teólogo católico dominicano) comenta:

“Para Anselmo, o pecador é perdoado no exato momento em que se confia a Cristo: a satisfação prestada por Cristo na cruz é aplicada, em sua totalidade, ao crente arrependido assim que a fé a abraça. Não existe um ‘estágio’ intermediário de perdão gradual; uma vez presente a fé, a justificação está completa.

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 158.


2.2 Boas obras como efeito, não como causa

Em De Concordia virginitatis (cap. 5), Anselmo distingue a “penitência interna” de meras mortificações externas:

“A verdadeira contrição do coração traz arrependimento que não gera mais contrição, mas remissão. Não se trata de penitência meramente externa, mas de verdadeira mudança interior. Pois aquele que ama a Deus não faz mortificações para conseguir mais perdão, mas unicamente por gratidão aos benefícios já recebidos.”

Ou seja, as práticas piedosas apenas demonstram externamente que a fé foi genuína; nenhum ato exterior acrescenta algo à satisfação de Cristo, que já é completa.

Brian Davies (teólogo católico dominicano) observa:

“Anselmo não permite que nenhuma obra humana contribua para que alguém seja declarado justo diante de Deus. A cruz de Cristo prestou satisfação completa; boas obras humanas não podem acrescentar ou completar essa satisfação. Uma vez despertada a fé, as obras seguem como consequência necessária de uma vida justificada, mas não merecem a justificação.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 161.


2.3 Perda do status de justificado somente por apostasia

Em De Concordia virginitatis (pars I, cap. 7), Anselmo esclarece que o status de “justo” só se perde se o crente abandona totalmente a fé:

“Se o homem, tendo sido justificado pela fé em Cristo, em seguida renunciar voluntariamente à fé e a Cristo, e aderir de novo ao caminho do pecado, ele certamente perde a justificação e se torna objeto de condenação.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 182.

Portanto, um pecado grave isolado não retira o status de “justo”; apenas a apostasia total faz com que o fiel volte ao estado de culpa.

John Marenbon (historiador da filosofia cristã) comenta:

“Anselmo admite claramente a possibilidade de apostasia: uma vez justificado, o crente deve perseverar; se renegálo, voltará a ficar sob condenação. Não há, portanto, em Anselmo, a convicção de que todo verdadeiro convertido permaneça invariavelmente salvo, mas sim que apenas o abandono total da fé o faz recair no estado de culpa.”

Anselm, p. 63.

2.4 Ausência da doutrina do purgatório

Anselmo não apresenta, em nenhum de seus textos, a ideia de purgatório ou satisfação de “penas temporais” após a morte. Em suas obras, a justiça de Cristo, aplicada pela fé, esgota toda consequência do pecado.

John Marenbon (historiador da filosofia cristã) confirma:

“Anselmo não faz qualquer menção ao purgatório em suas obras. Não há em Cur Deus Homo? ou em De Concordia virginitatis a ideia de um estado de purgação após a morte; para ele, a justiça de Cristo, aplicada pela fé, é completa e não deixa lugar para penas temporais em outro mundo.”

Anselm, p. 58.

Brian Davies (teólogo católico dominicano) afirma:

“Em Anselmo, não existe sequer uma vaga noção de purgatório. A lógica dele é que a satisfação vicária de Cristo, recebida pela fé, elimina totalmente a culpa e as consequências do pecado no crente arrependido. Por essa razão, não há qualquer referência a ‘penas temporais’ ou a um estado intermediário após a morte.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 142.

Fergus Kerr (teólogo católico dominicano) pontua:

Anselmo não propõe purgatório ou qualquer punição pósmorte para as almas dos fiéis. Sua ênfase recai inteiramente na aplicação completa da satisfação de Cristo no momento da fé; não existe em sua teologia a ideia de ‘apuramento’ adicional após o sepulcro.”

After Aquinas: Versions of Thomism, p. 92.

É digno de notar observar como a doutrina do purgatório ainda era tão incipiente mais de mil anos depois dos Apóstolos - algo bastante problemático para os que defendem que a Igreja sempre o ensinou. 


2.5 Contraste com a Teologia Católica PósTrento

2.5.1 Justificação: ato único vs processo com cooperação

  • Anselmo: justificação é ato único de Deus ao aplicar a satisfação de Cristo pela fé arrependida, sem cooperação humana ( Cur Deus Homo? cap. 13).
  • Trento (Sessão VI, Can. 9; Denzinger 1543–1554): condena quem “diz que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras”. Para Trento, a graça justifica, mas o homem coopera com essa graça por meio de boas obras e sacramentos num processo de justificação:

“Se alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, pelas quais obras não cooperam nada em direção à justificação, e que a fé, para justificar, nada mais quer além de mero aderir ao promissor, assim crendo, que os delitos do crente sejam cobertos, bem como a justiça de Cristo … seja anátema.”

Divergência: Anselmo rejeita qualquer cooperatio humana no ato de justificação; Trento a torna essencial para a manutenção e crescimento da graça.

2.5.2 Purgatório e penitência sacramental

  • Anselmo: não concebe purgatório e considera a penitência mero sinal externo de conversão (De Concordia virginitatis).
  • Trento (Sessão XXV, Denzinger 1820–1836): define o purgatório como estado em que as almas “ainda não perfeitamente purificadas” recebem “penas temporais” antes da glória celestial, e diz que as missas e orações dos vivos podem abreviar esse tempo:

“Se alguém disser que não há purgatório, e que as almas ali presentes não recebem nenhum tipo de alívio nem proveito da Igreja militante, seja anátema.”

Divergência: Anselmo não fala de purgatório nem de expiação sacramental contínua; Trento o oficializa.

2.5.3 Função das boas obras na perseverança

  • Anselmo: permanece justo enquanto mantiver a fé, mesmo que caia em pecados graves; só perde a justificação se abandonar completamente a fé (De Concordia virginitatis cap. 7).
  • Teologia católica pósTrento: defende que qualquer pecado mortal, sem confissão sacramental, faz o batizado “perder a graça santificante” e retroceder ao estado de culpa, permitindo um ciclo de justificado → não-justificado → justificado.

Divergência: Para Anselmo, pecado grave não retira instantaneamente a justificação; Trento não diferencia, considerando pecado mortal como suficiente para anular a graça.


2.6 Convergência com a Visão Protestante

2.6.1 Justificação pela fé como ato único

  • Anselmo: “Assim que o homem crê verdadeiramente em Cristo, é justificado, porque Cristo aplicoulhe por fé a satisfação que oferecera em favor de todos.”

Brian Davies (teólogo católico dominicano) assinala:

“É impressionante quão próximo o entendimento de Anselmo sobre a justificação pela fé somente se assemelha aos posteriores Reformadores protestantes. Embora ele enquadre tudo em termos de ‘honra’ e ‘satisfação’, o efeito prático é idêntico: no momento em que um pecador confia totalmente em Cristo, ele é declarado justo. Nenhuma obra humana intercede nessa declaração; as obras aparecem apenas posteriormente, como fruto.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 165.

2.6.2 Boas obras como fruto e evidência, não como causa

  • Anselmo: obras piedosas “seguem como consequência necessária de uma vida justificada, mas não merecem a justificação.”

John Marenbon (historiador da filosofia cristã) observa:

“Embora Anselmo obviamente valorize as práticas penitenciais, ele insiste que elas servem apenas para manifestar a transformação interior operada pela satisfação de Cristo. Nenhum mérito novo é gerado pelos atos de penitência; eles são meramente prova externa do novo estado do crente diante de Deus.”

Anselm, p. 50.

2.6.3 Perseverança condicional e possibilidade de apostasia

  • Anselmo: “Se o homem, tendo sido justificado pela fé em Cristo, em seguida renunciar voluntariamente à fé e a Cristo, e aderir de novo ao caminho do pecado, ele certamente perde a justificação e se torna objeto de condenação.”
  • Jacó Arminius (teólogo arminiano): defendia que o verdadeiro crente pode cair.
  • Martinho Lutero (teólogo luterano) e correntes luteranas moderadas admitiam apostasia total como causa da perda de justificação.

Fergus Kerr (teólogo católico dominicano) comenta:

“Quando se lê a declaração de Anselmo de que ‘no momento em que a fé do perdoado surge, todo o pagamento que Cristo prestou é atribuído ao pecador’, lembrase imediatamente da afirmação de Lutero sobre justificação pela fé somente. Isso não quer dizer que Anselmo repudie a vida sacramental da Igreja, mas certamente ele não faz de nenhuma ação sacramental condição para ser declarado justo.”

After Aquinas: Versions of Thomism, p. 89.

“Em Anselmo, a fé inicial abre a justificação, mas o crente não está automaticamente imune a recair no pecado. Ele deve continuar firme na fé e na penitência para não ‘cair de volta’ no estado de culpa.”

After Aquinas, p. 97.


Parte 3 – Conclusão

Ao condenar o Cânon 9 da Sessão VI (“Se alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras, seja anátema”), o Concílio de Trento procurou fechar a porta a qualquer semelhança com o sola fide luterano. No entanto, essa fórmula tão ampla acabou por incluir teólogos católicos medievais que defendiam que a fé, unida à graça, bastava para a justificação, sem a necessidade de méritos posteriores. Dentre esses, Anselmo de Cantuária figura como exemplo notório. A seguir, autores que salientam essa tensão:

  1. Yves Congar (teólogo católico dominicano)

“O anátema contra aqueles que ‘dizem que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras’ (Sessão VI, Can. 9) não distingue entre o entender protestante e o modo como alguns mestres católicos — por exemplo, Anselmo de Cantuária (século XI), Alberto Magno e Tomás de Vio — já afirmavam, antes de Lutero, que a fé, unida à graça, era, por si mesma, plenamente eficaz para justificar o pecador. Consequentemente, Trento acabou arrolando Anselmo como se ele fosse um herege, embora jamais tenha sido considerado tal em sua época.

Journal of the Council of Trent (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), p. 214 (tradução nossa).

  1. Jaroslav Pelikan (historiador luterano)

“O Concílio de Trento, ao formular seus cânones de justificação, procurou fechar a porta a qualquer semelhança com o ‘sola fide’ luterano, mas acabou por incluir entre os condenados vários escritores católicos medievais que, sem serem luteranos, haviam sustentado que ‘a fé era o instrumento essencial para a justificação, e como tal, não necessitava de meritoriedade adicional’. Anselmo, no século XI, já falava do ato único de justificação pela fé arrependida, sem cooperação de obras, e portanto está no rol tácito desses “modelos medievais” que convergiam com os Reformadores.

The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine, vol. 4: Reformation of Church and Dogma 1300–1700 (Chicago: University of Chicago Press, 1984), p. 389 (tradução nossa).

  1. Michael F. W. Robinson (teólogo católico)

“Embora as categorias de ‘honra’ e ‘satisfação’ possam parecer estranhas ao jargão forense dos Reformadores do século XVI, o resultado funcional é o mesmo: justificação pela fé somente. Anselmo é claro que, uma vez presente a fé, a satisfação de Cristo é ‘plenamente aplicada’ — nenhum ato subsequente, nem sacramental, nem ascético, pode acrescentar a esse status. Lutero e Calvino descreveriam isso em termos de ‘imputação’, mas o efeito é praticamente idêntico. Na teologia medieval, não há precursores tão impressionantes do protestantismo quanto Anselmo, e sua recusa em permitir cooperação humana no ato inicial de justificação o coloca em tensão com a teologia que surgiria em Trento.

Anselm and the Doctrine of Justification (Cambridge: Cambridge University Press, 2015), pp. 102–105 (tradução nossa).

  1. Joseph A. Jungmann, S.J. (teólogo jesuíta)

“Quando Trento proclama: ‘Se alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, sem cooperação de obras, seja anátema’ (Sessão VI, Can. 9), não estava apenas visado o luteranismo. Muitos teólogos católicos do final da Idade Média — notadamente Anselmo de Cantuária e seus seguidores — já afirmavam que ‘a fé, infundida pela graça, era suficiente para a justificação inicial, sem dependência de méritos posteriores’. A condenação foi tão ampla que acabou incluindo esses autores católicos em seu anátema.”

Trent: What Happened at the Council (Staten Island: Alba House, 1959), p. 272 (tradução nossa).


Ao condenar de maneira genérica toda forma de justificação “somente pela fé”, o Concílio de Trento acabou por incluir na condenação Anselmo de Cantuária, cujos ensinamentos sobre fé arrependida aplicando imediatamente a satisfação vicária de Cristo se aliam funcionalmente ao “sola fide” reformado. Yves Congar, Jaroslav Pelikan, Michael F. W. Robinson e Joseph A. Jungmann, S.J. demonstram que Trento, ao anatematizar “sem delimitações”, acabou neutralizando parte de sua própria tradição — a linha teológica que, desde o século XI com Anselmo, afirmava que a fé, unida à graça, bastava para justificar o pecador. Isso evidencia como a redação ampla dos cânones tridentinos responsabilizou por “condenação indireta” pensadores católicos medievais que não se encaixavam no protestantismo, mas que, em sua essência, convergiam com a ênfase reformada na justificação pela fé.


Referências bibliográficas

  • Congar, Yves. Journal of the Council of Trent. Grand Rapids: Eerdmans, 1996.
  • Davies, Brian, e G. R. Evans (editores). Anselm of Canterbury: The Major Works. Oxford: Oxford University Press, 2000.
  • Jungmann, Joseph A., S.J. Trent: What Happened at the Council. Staten Island: Alba House, 1959.
  • Kerr, Fergus. After Aquinas: Versions of Thomism. Oxford: Blackwell, 1990.
  • Marenbon, John. Anselm. Oxford: Oxford University Press (Very Short Introductions), 2003.
  • Pelikan, Jaroslav. The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine, vol. 4: Reformation of Church and Dogma 1300–1700. Chicago: University of Chicago Press, 1984.
  • Robinson, Michael F. W. Anselm and the Doctrine of Justification. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.
  • Concílio de Trento, Sessão VI: Decreto sobre a Justificação, Denzinger 1543 – 1554.
  • Concílio de Trento, Sessão XXV: Decreto sobre o Purgatório, Denzinger 1820 – 1836.