quarta-feira, 30 de março de 2016

Eusébio de Cesareia e o Papado


Já tratamos do testemunho dos pais da igreja até o séc. III sobre o papado aqui, e também de Agostinho e Jerônimo que são autores dos séculos IV e V muito citados pelos católicos. Dessa vez, falaremos sobre outros pais da igreja desse período em ordem cronológica.

Os católicos geralmente apelam a Eusébio para provar a lista dos bispos de Roma. O que eles não percebem é que isso não é suficiente para provar o papado. Mesmo que Pedro tivesse sido bispo de Roma e deixado ai uma sucessão de bispos, algumas premissas papistas precisariam ainda ser provadas. Seria necessário provar que o pescador era um papa. E mesmo sendo um papa, restaria demonstrar que todas as suas prerrogativas papais foram transferidas exclusivamente aos bispos de Roma. Eusébio afirma em sua história eclesiástica que Inácio, bispo de Antioquia, era sucessor de Pedro, mas isso não é suficiente para afirmar o papado de Inácio, porque então com os bispos de Roma deveria ser diferente?

Um dos maiores problemas para quem deseja apresentar Eusébio como testemunha do papado é que na sua história eclesiástica, o bispo de Roma nunca é mencionado como o chefe de toda a igreja. Ele escreveu sobre o propósito de sua obra:

É meu propósito consignar as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador até nós; o número e a magnitude dos feitos registrados pela história eclesiástica e o número dos que nela se sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim como o número daqueles que em cada geração, de viva voz ou por escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus. (História Eclesiástica 1:1)

A questão da autoridade era objeto dessa obra. Portanto, o fato de não haver nenhuma menção ao ofício papal é revelador. Como ele iria ignorar doutrina tão importante. Perceba que Eusébio fala sobre as “igrejas mais ilustres”, grupo da qual Roma com certeza fazia parte, mas nunca coloca Roma como igreja chefe. Ainda mais reveladora é sua exegese de Mateus 16:18:

Contudo, não cometerás qualquer erro do âmbito da verdade se supores que “o mundo” é na realidade a Igreja de Deus, e que o seu “fundamento” é em primeiro lugar aquela inefável sólida pedra sobre a qual está fundada, como diz a Escritura: “Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”; e em outro lado: “E a pedra era Cristo”. Pois, como o Apóstolo indica com estas palavras: “Ninguém pode pôr outro fundamento senão o que está posto, o qual é Cristo Jesus”. Então, também, depois do próprio Salvador, podes retamente julgar que os fundamentos da Igreja são as palavras dos profetas e dos apóstolos, de acordo com a afirmação do Apóstolo: “Edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio Cristo Jesus a pedra angular”. (Comentário sobre os Salmos - PG 23:173, 176)

Eusébio usa as passagens de 1 Coríntios 3:11 e 10:4 como pano de fundo para interpretar Mateus 16:18 como sendo Cristo a rocha referida. Só que ele também diz “depois do próprio Salvador, podes retamente julgar que os fundamentos da Igreja são as palavras dos profetas e dos apóstolos”. Após o fundamento que era Cristo, estava a mensagem dos profetas e apóstolos. Perceba que não eram as pessoas dos apóstolos e profetas, mas a sua mensagem que era o fundamento da igreja. Essa mensagem era um fundamento porque tinha origem na única pessoa que é a rocha da igreja – Cristo.  Era a mensagem de todos os apóstolos e não apenas de Pedro. Eusébio não defendia uma exegese papista desse texto. Católicos então citam a passagem abaixo:

E Pedro, sobre quem se edifica a Igreja de Cristo, contra a qual não prevalecerão as portas do Hades, deixou só uma carta por todos reconhecida. Talvez também uma segunda, pois é posta em dúvida. (HE 6:25)

Será que Eusébio se contradisse ou mudou de ideia? Provavelmente não. Ele considerava os apóstolos o fundamento da igreja por causa da mensagem que pregaram. Nesse aspecto, a igreja estaria edificada sobre Pedro por causa de sua mensagem, assim como sobre Paulo pelo mesmo motivo. Mas a única pessoa que era a rocha da igreja era Cristo. O teólogo católico romano Michael Winter escreve:

Na História Eclesiástica ele diz sem qualquer explicação ou qualificação: "Pedro sobre a qual a igreja de Cristo é edificada, contra a qual as portas do inferno não prevalecerão..." Em outro lugar, ele fala de Cristo como o fundamento da igreja de tal forma a excluir St. Pedro. Por exemplo, em seu comentário sobre os Salmos, a referência ao fundamento da terra no Salmo 17 o leva a considerá-lo o fundamento da igreja. Usando Mateus 16, ele declara que esse fundamento é uma rocha, que é então identificada como Cristo na autoridade do 1Cor. 10:4. Essa interpretação do texto de Mateus, que parece tão estranha ao leitor moderno indica um problema que confundiu um bom número dos primeiros pais. Sua teologia da igreja era, graças a Paulo, tão completamente cristocêntrica que era difícil para eles imaginar uma fundação além de Cristo (...) A terceira opinião que Eusébio apresentou foi uma interpretação de Mateus 16, que via a rocha da igreja nem como Cristo nem precisamente o próprio Pedro, mas como a fé que ele manifesta em seu reconhecimento do Cristo. Este último ponto de vista de Eusébio, em conjunto com outra inovação, ou seja, que a rocha era Cristo, teve uma influência considerável sobre a exegese posterior do texto em questão, tanto na igreja oriental como ocidental. (St. Peter and the Popes (Baltimore: Helikon, 1960), p. 53)

A interpretação de Eusébio era cristocêntrica. O fato de ele apontar Pedro ou sua fé não contraria isso. A citação anterior deixou claro que a pessoa de Cristo era a rocha, mas sobre ela estava a mensagem (ai incluso a fé) dos apóstolos. Uma vez que não encontramos em Eusébio a tese que o bispo de Roma era o chefe de toda a igreja e que a pessoa de Pedro era o fundamento da igreja, qualquer tentativa de coloca-lo como testemunha do papado resta prejudica. Porém, ainda existe um ponto que tem suscitado muitos debates – Eusébio teria dito que Pedro foi o primeiro bispo de Roma? Apologistas católicos costumam citá-lo como testemunha dos 25 anos do episcopado de Pedro em Roma. Independente disso, essa tradição católica é largamente desacreditada pelos historiadores atualmente, inclusive católicos romanos. Eles têm duvidado não somente do período de 25 anos, mas também do fato em si – Pedro não teria sido bispo dessa cidade. A evidência mais antiga a respeito foi tratada aqui. Raymond Brown, um dos maiores eruditos bíblicos do catolicismo no séc. XX, sintetiza essa visão:

Obviamente, os cristãos do primeiro século não teriam pensado em termos de jurisdição ou de muitas outras características que têm sido associadas ao papado ao longo dos séculos. Nem os cristãos que viveram no tempo de Pedro teriam totalmente associado Pedro com Roma, uma vez que foi, provavelmente, só nos últimos anos de sua vida que ele veio a Roma. (Responses to 101 Questions on the Bible [Mahwah, New Jersey: Paulist Press, 1990], p. 134)

É muito improvável que Clemente fosse chamado de o bispo de Roma, ele seria numa moderna terminologia o secretário executivo da Igreja. No entanto, desde que ele foi lembrado como o mais proeminente dos presbíteros de seu tempo, seu nome aparece na lista como bispo de Roma. (Ibid., p. 132-133)

O que eu estou dizendo é que essas listas de bispos foram preservadas para nós como as mais importantes figuras na história de uma Igreja particular, mesmo antes da terminologia de somente um bispo ser utilizada. Então, eu não estou tirando a importância de Pedro, ou sua estadia em Roma, quando eu apontei que é anacrônico pensar nele como um bispo local. De fato, uma vez que a função do bispo era administrar uma pequena congregação e viver entre eles. (Ibid., p. 132-133)

Os dados do Novo Testamento tornam impossível o bispado de 25 anos. Entre as muitas evidências, podemos citar a ausência de menção a Pedro na carta aos romanos escrita entre 54 e 56 D.C ou na segunda prisão de Paulo em Roma após o ano 60. Por isso, até mesmo o erudito católico reconhece que Pedro deve ter chegado a Roma somente no fim da vida. Voltemos então ao testemunho de Eusébio. Os apologistas católicos apresentam a seguinte citação:

Pedro, de nacionalidade galileia, o primeiro pontífice dos cristãos, tendo inicialmente fundado a Igreja de Antioquia, se dirige a Roma, onde, pregando o Evangelho, continua vinte e cinco anos Bispo da mesma cidade.

Muitos sites apresentam essa citação como sendo da História Eclesiástica, mas ela na verdade está na tabela cronológica das crônicas de Eusébio. O problema é que não temos acesso ao texto grego dessa crônica e dependemos de uma versão latina traduzida por Jerônimo ou da versão armena. A versão latina traz a citação acima e a armena afirma que o bispado de Pedro foi de apenas 20 anos. Até mesmo a versão latina a que temos acesso é de data bem posterior à tradução de Jerônimo e nela já foram identificadas muitas adições e interpolações. Há também diversas informações que constam da tradução latina, mas não constam da armena. Algumas dessas diferenças podem ser verificadas aqui com a versão armena destacada em verde. Trata-se, portanto, de uma citação no mínimo suspeita, tendo em vista depender de uma obra retalhada, cuja confiabilidade da versão que temos acesso é baixa.

A Crônica foi escrita antes da História Eclesiástica. Dessa forma, se Eusébio defendia o bispado de Pedro em Roma, tal informação deveria constar na História Eclesiástica. Lembremos que essa obra foi escrita para mostrar a sucessão de bispos das igrejas mais proeminentes. O problema é que Pedro não é colocado como bispo de Roma apesar da sucessão dessa igreja ser um tema tratado na obra:

Depois do martírio de Paulo e de Pedro, Lino foi designado como primeiro bispo de Roma. Ele é mencionado por Paulo quando escreve de Roma a Timóteo, na despedida ao final da carta. (HE 3:2:1)

Neste tempo os romanos eram ainda regidos por Clemente, que também ocupava o terceiro lugar dos que ali foram bispos depois de Paulo e Pedro. O primeiro foi Lino, e depois dele, Anacleto. (HE 3:21:1)

Os bem-aventurados apóstolos [Pedro e Paulo], depois de haverem fundado e edificado a Igreja, puseram o ministério do episcopado em mãos de Lino. Este Lino é mencionado por Paulo em sua carta a Timóteo. (HE 4:6:1)

A este Clemente sucede Evaristo, e a Evaristo, Alexandre; depois é instituído Sixto, o sexto portanto a partir dos apóstolos; e depois deste, Telésforo, que também sofreu gloriosamente o martírio; logo Higinio; depois Pio, e depois deste, Aniceto; havendo Sotero sucedido a Aniceto, agora é Eleutério que ocupa o cargo do episcopado, em décimo segundo lugar a partir dos apóstolos. (HE 4:6:4)

Eusébio não conta Pedro como bispo de Roma. O primeiro seria Lino, o segundo Anacleto, o terceiro Clemente e assim por diante. Além disso, ele sempre conta essa sucessão a partir dos apóstolos Pedro e Paulo. Ambos são colocados igualmente como organizadores da igreja romana. Se os católicos quiserem salvar o testemunho de Eusébio, teriam que atribuir a Paulo o bispado. Dessa forma, a igreja romana teria dois bispos simultâneos – algo que nenhum historiador aceita, muito menos a igreja romana. É interessante contrastar a situação de Roma com Antioquia:

Ao mesmo tempo adquiriram notoriedade Papias, bispo da igreja de Hierápolis, e Inácio, o homem mais célebre para muitos ainda hoje, segundo a obter a sucessão de Pedro no episcopado de Antioquia. (HE 3:36:2)

Eusébio não afirma que Pedro foi bispo em Antioquia, mas atribui a ele a sucessão dessa igreja. É notório que nesse caso, ele coloca Pedro somente. Suponhamos então que Eusébio queira dizer que Pedro foi bispo de Antioquia e também de Roma ao afirmar que deixou ai uma lista de sucessores. Isso só reforçaria a conclusão de que Paulo também seria bispo de Roma, o que contraria toda narrativa católica. A hipótese mais provável é que tanto Paulo e Pedro estiveram pregando em Roma e, segundo Eusébio, teriam deixado ai essa sucessão de bispos, sem que tivessem sido bispos dessa igreja. Isso fica patente a seguir:

Clemente, no livro VI das Hypotyposeis, adiciona o seguinte: "Porque dizem - depois da ascensão do Salvador, Pedro, Tiago e João, mesmo tendo sido os preferidos do Salvador, não tomaram para si esta honra, mas elegeram como bispo de Jerusalém Tiago o Justo." E o mesmo autor, no livro VII da mesma obra, diz ainda sobre ele o que segue: "O Senhor, depois de sua ascensão, fez entrega do conhecimento a Tiago o Justo, a João e a Pedro, e estes o transmitiram aos demais apóstolos, e os apóstolos aos setenta, um dos quais era Barnabé”. (HE 2:1:3-4)

Pedro, Tiago e João escolheram o bispo de Jerusalém sem terem sido bispos dessa cidade. Isso reforça a percepção de que Eusébio não está colocando os apóstolos como bispos ao afirmar que eles deixaram sucessões de bispos nas igrejas. Nota-se também que os três apóstolos são colocados em pé de igualdade. Jesus teria preferido os três e não apenas Pedro e feito a entrega do conhecimento igualmente aos três. Eusébio traz ainda testemunhos de outros pais da igreja que são incompatíveis com o bispado de 25 anos:

Que ambos sofreram martírio na mesma ocasião é afirmado por Dionísio, bispo de Corinto, em sua correspondência escrita com os romanos, nos seguintes termos: "Nisto também vós, por meio de semelhante admoestação, fundistes as searas de Pedro e de Paulo, a dos romanos e a dos Coríntios, porque depois de ambos plantarem em nossa Corinto, ambos nos instruíram, e depois de ensinarem também na Itália no mesmo lugar, os dois sofreram martírio na mesma ocasião." Sirva também isto para maior confirmação dos fatos narrados. (HE 2:25:8)

Dionísio coloca a ida de Pedro a Roma no mesmo período que Paulo. Ocorre que o apóstolo dos gentios só chegou a Roma após o ano 60. Os 25 anos do bispado colocariam Pedro em Roma no ano 42. Ele também traz o testemunho de Orígenes:

Pedro, segundo parece, pregou no Ponto, na Galácia e na Bitínia, na Capadócia e na Ásia, aos judeus da diáspora; por fim chegou a Roma e foi crucificado com a cabeça para baixo, como ele mesmo pediu para sofrer. E o que dizer de Paulo, que desde Jerusalém até o Ilírico cumpriu com a pregação do Evangelho de Cristo e finalmente sofreu martírio em Roma sob Nero? Isto é dito por Orígenes literalmente no tomo III de seus Comentários ao Gênesis. (HE 3:1:2-3)

Orígenes parece dizer que Pedro chegou a Roma no fim da sua vida. O mesmo é dito sobre Paulo.

Pelas palavras de Pedro em sua Carta, da qual já dissemos que é aceita, e que escreve aos hebreus da diáspora, moradores do Ponto, da Galácia, da Capadócia, da Ásia e da Bitínia, percebe-se claramente em que províncias ele pregou a Cristo e transmitiu a doutrina do Novo Testamento aos que procediam da circuncisão. (HE 3:4:2)

Algumas informações valiosas são apresentadas: (1) O ministério de Pedro era voltado aos da circuncisão, o que contradiz uma suposta jurisdição universal. Como um papa que lidera sobre toda a igreja poderia ter um ministério limitado a um grupo étnico? (2) Os lugares em que Pedro principalmente pregou não inclui Roma. Segundo os católicos, a maior parte do ministério de Pedro (25 de 32 anos) teria sido em Roma. Como Eusébio poderia ignorar tal fato destacando outros lugares como recebedores de sua pregação? Uma citação é comumente utilizada para provar o contrário:

Dizem mesmo que todos os primeiros, inclusive os próprios apóstolos, receberam e ensinaram isto que agora eles estão dizendo, e que se conservou a verdade da pregação até os tempos de Victor, que era o décimo terceiro bispo de Roma desde Pedro, mas que, a partir de seu sucessor, Zeferino, falsificou-se a verdade. (HE 4:28:3)

Eusébio continua não colocando Pedro como bispo. Victor foi o 13º, estando de acordo com a contagem em que Lino é o 1º. Porém, dessa vez, ele coloca “desde” Pedro sem mencionar Paulo. Já vimos em diversas outras citações da mesma obra que Paulo também era considerado originador dessa sucessão. O fato de Eusébio não mencioná-lo aqui é irrelevante. Eusébio está se referindo a uma sucessão temporal e não epsicopal. Uma vez que Pedro junto com Paulo foi organizador da igreja de Roma, seria correto dizer que após o tempo de Pedro, Victor foi o 13º. Isso não implica no bispado petrino. Católicos costumam usar as citações abaixo que merecem especial análise:

[Simão Mago] Chegou à cidade de Roma, e com a grande ajuda do poder que nela se assenta, em pouco tempo alcançou tamanho êxito em seu empreendimento, que os habitantes do lugar chegaram a honrá-lo como a um Deus, dedicando-lhe uma estátua. Não chegaria muito longe esta prosperidade. De fato, pisando em seus calcanhares, durante o próprio império de Cláudio, a providência universal, santíssima e amantíssima dos homens, levava sua mão em direção a Roma, como contra um tão grande flagelo da vida, o firme e grande apóstolo Pedro, porta-voz de todos os outros devido a sua virtude. Como nobre capitão de Deus, equipado com as armas divinas, Pedro levava do oriente aos homens do ocidente a apreciadíssima mercadoria da luz espiritual, anunciando a boa nova da própria luz, da doutrina que salva as almas: a proclamação do reino dos céus. (HE 1:14)

Um documento diz que Fílon, nos tempos de Cláudio, chegou a Roma para conversar com Pedro, que então estava pregando aos dali. Isto na verdade pode não ser inverossímil, já que a própria obra de que falo - composta por ele mais tarde, passado muito tempo - contém claramente as regras da Igreja, observadas ainda em nossos dias. (HE 1:17:1)

Esses dois relatos são importantes porque colocam Pedro pregando em Roma no tempo do imperador Cláudio. O reinado de Cláudio foi de 41 a 54. Lembre-se que os católicos alegam que Pedro foi bispo a partir do ano 42. Obviamente nada do relato implica que Pedro era bispo dessa cidade, mas apenas que esteve lá em algum período entre os anos 41 e 54. Além disso, o relato não implica que Pedro permaneceu em Roma até o seu martírio. Sua primeira ida a Roma foi motivada pela presença de Simão Mago lá – supostamente o mesmo Simão de Atos 8:9-24. Nós vimos que Eusébio traz outros relatos que colocam Pedro indo para Roma apenas no fim da vida, próximo ao seu martírio. Dessa forma, a hipótese mais provável é que para ele, o apóstolo esteve em Roma nos tempos de Cláudio, não tendo permanecido lá, e voltando apenas próximo a data de seu martírio.

Independente da opinião de Eusébio, outra questão precisa ser discutida: os relatos de Eusébio são confiáveis? Pedro de fato enfrentou Simão Mago em Roma ou conheceu o judeu alexandrino Filo? O consenso dos historiadores é que ambos os relatos são baseados em lendas. São o que o historiador católico Eamon Duffy chamaria de “ficções piedosas”. Vejamos o que a própria Enciclopédia Católica fala a respeito de Simão o Mago:

Simão não é mencionado novamente nos escritos do Novo Testamento. O relato nos Atos dos Apóstolos é a única informação oficial que temos sobre ele. As declarações dos escritores do século II que lhe digam respeito são em grande parte lendárias, sendo difícil ou praticamente impossível extrair deles qualquer fato histórico cujos detalhes são estabelecidos com certeza. São Justino de Roma (Primeira Apologia XXVI, LVI; Diálogo com Trifo CXX) descreve Simão como um homem que, por instigação dos demônios, afirmou ser um deus. Justino diz ainda que Simão chegou a Roma durante o reinado do imperador Cláudio e pelas suas artes mágicas ganhou muitos seguidores que ergueram na ilha do rio Tibre uma estátua a ele como uma divindade com a inscrição "Simão o Deus Santo". A estátua, no entanto, que Justino acreditou ser dedicada a Simão era sem dúvida uma das antigas Sabina divindade Semo Sancus. Estátuas deste antigo deus com inscrições semelhantes foram encontrados na ilha no rio Tibre e em outros lugares em Roma (...) Se a opinião de Justino que Simão Mago veio a Roma repousa apenas no fato por ele crido de que seguidores romanos tinham erguido esta estátua a ele, ou se ele tinha outras informações sobre este ponto, agora não pode ser determinado de forma positiva. Seu testemunho não pode, portanto, ser verificado e assim permanece duvidoso. Os escritores anti-heréticos posteriores que se reportam a residência de Simão em Roma, apresentam Justino e o apócrifo Atos de Pedro como sua autoridade, de modo que o seu testemunho é de nenhum valor. Simão desempenha um papel importante nas "Pseudo-Clementinas". Ele aparece nelas como o principal antagonista do apóstolo Pedro, por quem ele está em todos os lugares seguido e antagonizado. As supostas artes mágicas do mago e os esforços de Pedro contra ele são descritos de uma maneira que é absolutamente imaginária (...) Todas estas narrativas pertencem naturalmente ao domínio da lenda. (Fonte)

Eusébio basicamente misturou o relato de Justino com fontes apócrifas pouco confiáveis como as Pseudo-Clementinas e Atos de Pedro. O relato de Justino era baseado num engano. A estátua que ele acreditava ser de Simão Mago na verdade era de um antigo deus pagão. Destaca-se que Justino não relata que Pedro foi a Roma enfrentar o mago. Essa informação encontra-se apenas nas lendas apócrifas.

O relato de que Filo conheceu Pedro em Roma também é baseado em lendas improváveis. No cap. 17 do Livro I, Eusébio traz o relato de Fílon sobre judeus ascetas que viviam no Egito chamados de “terapeutas”. Eusébio os representa como ascetas cristãos – uma ideia sem fundamento histórico algum. O próprio Fílon é representado como um cristão, sendo sabido que ele viveu e morreu como um judeu helenista. David T. Runia escreve em seu livro sobre Fílon na literatura cristã primitiva:

A partir desta breve visão é claro que a lenda do Fílon cristão teve uma grande circulação e continha uma série de itens curiosos de informações (...) Especificamente as interações de Fílon com o cristianismo primitivo são lendárias em caráter, e partem do desejo de apologistas cristãos relacionarem os primórdios de seu movimento a representantes importantes e ilustres da sociedade greco-romana, incluindo membros famosos das comunidades judaicas da época. (Philo in Early Christian Literature, Ed. Fortress Press, Mineápolis 1993, pp. 7-8)

O fato de Eusébio colocar Pedro em Roma nos tempos de Cláudio não implica em bispado ali. Contudo, tais relatos são lendas piedosas, portanto, inúteis para a causa papal. Eusébio também relata a controvérsia pascoal que demonstra que a opinião do bispo romano Victor não era final na questão. Ele menciona como outros bispos (ex. Irineu) repreenderam o bispo romano com veemência:

Mas esta medida não agradou a todos os bispos, que por sua parte exortavam-no a ter em conta a paz e a união e a caridade para com o próximo. Conservam-se inclusive as palavras destes, que repreendem Victor com bastante energia. Entre eles está Irineu, na carta escrita em nome dos irmãos da Gália, dos quais era o chefe. (HE 5:10-11)

Eusébio também chama o bispo de Antioquia de papa, o que demonstra que no mínimo esse título não era exclusivo do bispo de Roma. Obviamente, tal título não implica me nenhum tipo de primazia jurídica, mas era apenas a forma carinhosa de tratar alguns bispos. É de se destacar que ele não se referiu ao bispo romano de igual forma, o que no mínimo levantaria suspeita sobre a primazia desse bispo sobre toda a igreja:

Logo, depois de dizer algumas coisas sobre todas as heresias, acrescenta: ‘Eu recebi esta regra e este modelo de nosso bem-aventurado papa Heraclas. (HE 5:7:4)

Ele ainda diz:

Além disso, a tradição nos faz saber igualmente que também alguns profetas foram convertidos em Cristos, figuradamente, por meio da unção com o óleo, de forma que todos estes fazem referência ao verdadeiro Cristo, o Verbo divino e celestial, único sumo Sacerdote do universo, único rei de toda a criação e, entre os profetas, único sumo Profeta do Pai. (HE 1:3:8)

Eusébio expressou bem a crença da igreja primitiva numa comunhão que dispensava um líder supremo humano, pois a chefia de Cristo era suficiente. Diante tudo isso, podemos concluir que Eusébio não é uma testemunha do papado, pelo contrário, a ideia de um bispo sendo chefe supremo da igreja é estranha aos seus escritos.

Hangouts sobre Papado, Sucessão Apostólica, Tradição e Sola Scritpura

Nas últimas semanas, participei de dois Hangouts.

O primeiro sobre o suposto bispado de Pedro em Roma, papado e sucessão apostólica, com Lucas Banzoli (Heresias Católicas) e Elisson Freire (Resistência Apologética)


O segundo continuando o tema sucessão apostólica, com Lucas Banzoli (HeresiasCatólicas)


Nas próximas semanas continuaremos tratando da sucessão apostólica, e falaremos sobre tradição e sola scritpura. 

segunda-feira, 28 de março de 2016

Jerônimo e o Papado


Citações usadas pelos católicos

Jerônimo é um dos pais da igreja mais citados como testemunha do papado. Apologistas católicos costumam citar trechos de duas cartas dirigidas a Dâmaso:

Uma vez que o Oriente, chocado contra si próprio pela fúria habitual de seus povos, está rasgando aos poucos a túnica indivisa de Cristo, tecida de alto a baixo, e as raposas estão destruindo a vinha de Cristo, de modo que entre as cisternas quebradas não há mais água, é difícil saber onde está a fonte selada e jardim fechado, considerei que devia consultar a Cátedra de Pedro e a fé elogiada pela boca do Apóstolo [Rm 1:8], pedindo agora a comida da minha alma, onde na recebi a veste de Cristo no passado (...) Agora é no Ocidente que o sol da justiça sobe; enquanto no Oriente, Lúcifer, que caiu, colocou o seu trono acima das estrelas. Vós sois a luz do mundo, o sal da terra. Aqui, os vasos de barro ou madeira serão destruídos pela barra de ferro e o fogo eterno (...) Minhas palavras são ao sucessor do pescador, ao discípulo da Cruz. Não sigo nenhum líder, mas Cristo, então estou em comunhão com vossa bem-aventurança, isto é, com a cátedra de Pedro. Nesta rocha, eu sei que a Igreja é construída. Todo aquele que comer o Cordeiro fora dessa casa é profano. Se alguém não estiver com Noé na arca, ele perecerá sob a ação do dilúvio (...) Ou, se você acha isso correto que eu deva falar de três hipóstases, explicando o que eu quero dizer com elas, eu estou pronto a me submeter (...) Eu imploro a sua bem-aventurança, portanto, pelo crucificado Salvador do mundo, e pela Trindade consubstancial, para me autorizar, através de carta, de usar ou de recusar esta fórmula de três hipóstases. (Epístola 15)

Parece que não obteve resposta, então escreveu uma segunda carta:

Por outro lado, a Igreja, dividida em três partes, tenta me agarrar. A autoridade dos antigos monges que habitam no entorno se levantou contra mim. Enquanto isso, eu clamo em alta voz: Se alguém está unido à Cátedra de Pedro, ele é meu! Melécio, Vitalis e Paulino dizem que aderem a você. Se um deles afirmasse isso, eu poderia acreditar nele. Mas agora quer dois ou todos os três estão mentindo. Por isso peço a vossa Beatitude pela Cruz do Senhor. (Epístola 16)

Ele de fato cria que Pedro foi bispo de Roma e, portanto, em algum aspecto, os bispos de Roma seriam sucessores do apóstolo. Ele estava no Oriente, onde a heresia ariana ganhava terreno e também havia três reclamantes ao patriarcado de Antioquia. Diante dessas controvérsias, Jerônimo então se volta para a “cátedra de Pedro”. Jerônimo foi batizado em Roma, portanto, seus laços com essa igreja eram íntimos. O bispo de Roma poderia ser considerado o seu pastor, sendo natural que apelasse a ele. De fato, nutria grande admiração por Dâmaso, inclusive, tempos depois, se tornaria seu secretário. Por isso, a opinião do bispo de Roma tinha peso. Mas somente isso não é suficiente para provar o papado. A questão é se tal bispo era considerado uma autoridade suprema e infalível. Que Roma desfrutava de grande prestígio nesse período, não há dúvida. Mas era crido que essa igreja não poderia errar na fé?

O prestígio que outros patriarcas igualmente partilhavam

O historiador católico romano Robert Eno escreve a respeito das elogiosas palavras de Jerônimo:

Quando lidamos com Jerônimo, outro fator que deve ser mantido em mente é a sua retórica. Seu estilo é típico da época, sim, mas é mais exagerada do que o habitual, mesmo para o quarto e quinto séculos. Na verdade, alguns autores modernos têm afirmado que Jerônimo deve ser considerado entre os grandes satiristas da literatura latina .... Ele escreveu duas cartas ao Papa Dâmaso pedindo orientação, cartas feitas nos termos mais lisonjeiros .... No contexto da época, essas são palavras bem enérgicas, mas elas são ilustrativas da forma de Jerônimo escrever. É dito que entre as principais características de Jerônimo estava a incapacidade de ficar de fora da controvérsia e a maneira bajuladora na presença da autoridade ... No fim, ele não diz muito do que poderia ser dito a respeito da posição de Roma e o que ele diz é em certa medida viciado por habitual exagero. (The Rise of the Papacy [Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1990], pp. 84-85)

A implicação é que os termos elogiosos usados por Jerônimo não são suficientes para concluir a supremacia papal. Tanto é que Eno, sendo um católico romano, não o coloca como uma testemunha dessa doutrina. Nós vemos essa atitude elogiosa sendo dirigida a Teófilo o patriarca de Alexandria:

Jerônimo, para o mais abençoado papa, Teófilo. A letra da sua santidade me deu um duplo prazer, em parte porque pelo o que ela trouxe aos seus portadores, os estimáveis homens, bispo Ágato e diácono Atanásio, e em parte porque tem mostrado o seu zelo pela fé contra uma heresia das mais perversas. A voz da sua santidade tem tocado em todo o mundo, e para a alegria de todas as igrejas de Cristo as sugestões venenosos do diabo foram silenciadas (...) Ao mesmo tempo peço que se você tem qualquer influência sobre o assunto dos decretos sinodais, que você encaminhe a mim, para que, fortalecido com a autoridade de um prelado tão grande, eu possa abrir minha boca para Cristo com mais liberdade e confiança. O presbítero Vincent chegou de Roma há dois dias e o saúda humildemente. Ele me diz uma e outra vez que Roma e quase toda a Itália devem a sua libertação, depois de Cristo, às suas cartas. Prova de diligência, portanto, do mais amoroso e mais abençoado papa, e sempre que tiver oportunidade de escrever aos bispos do Ocidente não hesite em suas próprias palavras para cortar com uma foice afiada os brotos do mal. (Epístola 88)

Em outra carta a Teófilo, ele é ainda mais elogioso:

Você persuade como um pai, você ensina como um mestre, você ordena como bispo. Você vem a mim não com autoridade e severidade, mas num espírito de bondade, mansidão e humildade (...) Estaria qualquer homem relutante em se comunicar com você? Alguém vira o rosto quando você estende a mão? Alguém no santo banquete lhe oferece o beijo de Judas? Na sua presença, os monges ao invés de tremer se alegram. Eles correm para conhecê-lo e deixam suas cavernas no deserto por sua humildade. O que os obriga a vir? Não é o amor por você? O que reúne e atrai os habitantes dispersos no deserto? Não é a estima que eles têm por você? Um pai deve amar seu filho e não apenas um pai [deve amar], mas um bispo deve ser amado por seus filhos (...) Por que eles usam o nome de sua santidade para nos aterrorizar, quando sua carta - em estranho contraste com as suas palavras duras e ameaçadoras - respira só a paz e mansidão? (Epístola 82:1;3;8)

Percebe-se quão inconsistentes são os apelos católicos. Quando ao bispo de Roma são proferidas palavras muito elogiosas, isso é tomado como evidência de primazia jurídica. Quando a mesma atitude é feita diante de outros bispos, a mesma conclusão não é tirada. Perceba que a “libertação de Roma” se devia às cartas do papa Teófilo – uma situação estranha se em Roma estava o chefe de toda a igreja.
  
A igreja de Roma poderia errar na fé

Jerônimo tinha uma alta visão da igreja romana sob Dâmaso, mas as coisas mudaram quando seu sucessor Sírico passou a liderar Roma. Escrevendo 30 anos após as cartas a Dâmaso, ele disse:

Enquanto Marcela estava servindo ao Senhor em santa tranquilidade, surgiu nestas províncias um tornado de heresia que jogou tudo em confusão. De fato, tão grande era a fúria com a qual ele açoitava que não poupou nem a si mesmo nem qualquer coisa que era boa. Como se não fosse pouco perturbar tudo aqui, ainda introduziu um navio carregado de blasfêmias na porta da própria Roma. A panela logo encontrou sua tampa, e os pés enlameados dos hereges sujaram as águas cristalinas da fé de Roma (...) Depois veio a versão escandalosa do livro de Orígenes sobre os primeiros princípios, e quão "feliz" o discípulo [Rufino] teria sido realmente se ele nunca tivesse seguido tal mestre. Depois veio a refutação de alguns dos meus apoiadores, que destruíram as ideias dos fariseus e os jogaram em confusão. Foi então que a santa Marcela, que por muito tempo hesitou em agir para que não pensassem que seria por motivos partidários, lançou-se para dentro da confusão. Conscientes de que a fé de Roma - uma vez elogiada pelo apóstolo - estava agora em perigo, e que esta nova heresia atraia não só padres e monges, mas também muitos dos leigos, além de se impor ao bispo que imaginava que os outros eram tão inocentes quanto ele próprio, ela [Marcela] opôs-se publicamente aos seus professores escolhendo agradar mais a Deus do que aos homens (...) Os hereges nestas circunstâncias prosseguiram no mesmo rumo, pois vendo como a questão acendeu um pouco de fogo, e que as chamas aplicadas por eles às fundações tinham a esta altura atingido os telhados, e que o engano praticado por muitos não podia mais ser escondido, eles então pediram e obtiveram cartas de elogio da igreja, de modo que parece que até o dia da sua partida, eles tinham continuado em plena comunhão com ela [a igreja romana]. Pouco depois, o distinto Anastácio sucedeu ao pontificado; mas ele logo foi levado embora, pois não era apropriado que a cabeça do mundo [a cidade de Roma] fosse assaltada [sendo atacada por bárbaros] durante o episcopado de alguém tão grande. Ele foi removido, sem dúvida, para que não pudesse evitar pelas suas orações a sentença que Deus proferiria de uma vez por todas. As palavras do Senhor a Jeremias acerca de Israel aplicam-se igualmente a Roma: "Não ores por este povo para seu bem. Quando jejuarem não ouvirei o seu clamor; e quando oferecerem holocaustos e oblações, não me agradarei deles; mas vou consumi-los pela espada, pela fome e pela peste". Você irá dizer, o que isso tem a ver com os elogios a Marcela? Eu respondo, foi ela quem deu origem à condenação aos hereges. Foi ela quem trouxe as primeiras testemunhas ensinadas por eles e enganadas por seu ensino herético. Foi ela quem mostrou quão grande era o número que eles tinham enganado e que trouxeram contra eles os livros ímpios sobre os "Primeiros Princípios", livros que foram passando de mão em mão depois de terem sido "melhorados" pela mão do escorpião [Rufino]. Ela foi por último quem exortou os hereges em carta após carta para aparecerem em sua própria defesa. Eles não correram o risco de vir, pois estavam conscientes em deixar o caso vir contra eles por negligência, ao invés de enfrentar seus acusadores e serem condenado por eles. Essa vitória gloriosa originou-se com Marcela, ela era a fonte e a causa desta grande bênção. (Epístola 127:9-10)

Esse relato nos propicia uma evidência da visão de Jerônimo sobre a igreja romana. Ele muitas vezes elogiou a fé de Roma, mas sua visão poderia variar de acordo com o tempo e o ocupante do bispado. Ele diz explicitamente que a igreja romana foi poluída pela heresia. Inclusive, o próprio bispo que supostamente seria uma guia contra as heresias foi um dos enganados. Isso fica claro no trecho “além de se impor ao bispo que imaginava que os outros eram tão inocentes quanto ele próprio”. Os apologistas católicos afirmam que o bispo romano preservaria a igreja do erro, porém esse não foi o caso. A heresia aqui referida eram as ideias de Orígenes que foram difundidas em Roma graças à tradução para o latim que outro pai da igreja chamado Rufino fazia. O interessante é que não foi o bispo de Roma ou algum membro do clero que lutou e venceu a heresia. Quem o fez foi uma mulher cristã da nobreza romana chamada Marcela. Se a autoridade do bispo Romano fosse final e incontestável, Marcela teria abraçado a heresia. Porém, ela “opôs-se publicamente aos seus professores escolhendo agradar mais a Deus do que aos homens”. Essas foram as mesmas palavras dirigidas a outro bispo romano (Estevão) no séc. III por Cipriano de Cartago. Isso demonstra que o leigo deveria resistir aos seus professores, caso ensinassem heresia. Está implicado que o leigo tinha condições julgar o ensino do seu mestre, e o bispo romano não seria uma exceção a essa regra. Jerônimo testemunha que o bispo Sírico apoiou a heresia de Rufino:

Você [Rufino] apresenta uma carta de Sírico que agora dorme em Cristo, e a carta de Anastácio que vive você despreza. (Contra Rufino 3:21)

Vejam como o prestígio desfrutado por Roma poderia variar de acordo com o bispo em questão. Os mesmos elogios feitos a Dâmaso não seriam feitos a Sírico. Isso mostra que Roma não desfrutava de uma infalibilidade concedida por Deus. Ela tinha um bom histórico de luta contra a heresia na opinião de Jerônimo, mas a ideia de que a igreja romana nunca poderia errar na fé não se sustenta a luz dos relatos acima. Ele também escreveu sobre Atanásio o patriarca de Alexandria:

Eu tenho todos, mas passei sobre o ponto mais importante. Enquanto você ainda era bastante pequena, o bispo Atanásio de santa e abençoada memória governou a igreja romana. Em seus dias, uma terrível tempestade de heresia veio do Oriente e emprenhou-se primeiramente em corromper e então enfraquecer aquela fé simples que o apóstolo elogiou [Rm.1:8]. Contudo, o bispo rico em pobreza e tão cuidadoso do seu rebanho como um apóstolo ao mesmo tempo feriu a coisa nociva na cabeça. (Epístola 130:6)

Aqui jaz mais um exemplo de exagero nas palavras de Jerônimo que os católicos não interpretarão como primazia jurídica. Obviamente, Atanásio não governava a igreja romana como um bispo, mas é notável que ele tenha sido o principal combatente da heresia ariana mesmo em território romano. Jerônimo atribuiu a ele a vitória contra a heresia.

A infalibilidade era restrita ao colégio apostólico

Eu sei que se deve diferenciar os apóstolos de todos os outros pregadoresOs primeiros sempre falam a verdade, mas sendo os últimos homens, às vezes se desviam (...) é por essas virtudes que eu e outros deixamos as nossas casas. É por essas que viveríamos em paz, sem qualquer contenção na batalha e sozinhos, dando a devida veneração aos pontífices de Cristo - desde que eles preguem a fé correta - não porque temos medo deles como senhores, mas porque os honramos como pais dando também aos bispos como bispos, mas recusando-se a servi-los sob compulsão, sob a sombra da autoridade episcopalhomens a quem não escolhemos a obedecer. Eu não tenho a mente cauterizada para não saber o que é devido aos sacerdotes de Cristo. Pois quem os recebe, não os recebe somente, mas a Ele, de cujos bispos são. Mas deixemos que eles se contentem com a honra que é deles. Que eles saibam que são pais e não senhores, especialmente em relação àqueles que desprezam as ambições do mundo e consideram paz e descanso as melhores de todas as coisas. (Jerônimo Carta 82:7 e 82:11)

Jerônimo reconhecia a autoridades dos bispos, mas não a considerava inquestionável. Nenhuma exceção foi feita ao bispo de Roma. Os apóstolos sempre pregavam a verdade, já os outros pregadores não. Ou seja, a infalibilidade era atributo exclusivo dos apóstolos. Por isso, ele elogiou a atitude de Marcela ao se opor aos seus professores em Roma. Vimos que Jerônimo poderia considerar o bispo de Roma sucessor de Pedro, pois o apóstolo teria supostamente sido bispo dessa igreja. Da mesma forma, ele considerava o bispo de Antioquia sucessor do mesmo apóstolo, pois Pedro teria sido bispo também dessa cidade. Por causa dessa ideia de sucessão, os católicos tendem a afirmar que todas as prerrogativas de Pedro foram transferidas aos seus sucessores. Há dois problemas aqui: (1) o bispo de Antioquia seria tão papa quanto o bispo de Roma (2) Ainda que um bispo fosse considerado sucessor de um apóstolo, ele não teria todas as prerrogativas do apóstolo. Esse segundo problema é especialmente tratado acima – nenhum bispo tinha a mesma autoridade de um apóstolo, há várias prerrogativas que só o apóstolo teria, por exemplo, ser infalível nos seus ensinos. Por isso, mesmo que um pai da igreja acreditasse que Pedro foi bispo de Roma e ai deixou uma sucessão de bispos, isso por si só não prova as pretensões papistas. Jerônimo também testemunha que o bispo romano Libério assinou uma confissão de fé ariana como condição para retornar a sua igreja:

Libério foi ordenado 34º bispo da igreja romana, e quando ele foi encaminhado para o exílio por causa da fé, todo o clero fez juramento de que não reconheceria qualquer outro bispo. Mas quando Felix foi colocado em seu lugar pelos arianos, um grande número renunciou a si próprio. No final do ano eles foram banidos, e Felix também, pois Libério, cedendo ao tormento do exílio e subscrevendo a doutrina herética e falsa, fez uma entrada triunfal em Roma. (E. Giles, ed., Documents Illustrating Papal Authority: A.D. 96-454 (Westport: Hyperion Press, reprinted 1982), p. 151. Cf. S. Hieronymi Chronicon, Ad Ann. 352, PL 27:684-685.)

Em suma, como ele poderia acreditar na infalibilidade do bispo de Roma, sendo testemunha desse fato? Esse é um dos vários exemplos históricos de como o bispo romano poderia errar em matéria de doutrina. Alguém pode argumentar que Libério só o fez por interesse particular e não por crer na heresia. Isso é irrelevante já que ele ensinou uma doutrina herética ao subscrever a confissão ariana.

A autoridade única dos apóstolos

Em seu registro dos povos que o Senhor disse nos escritos sagrados, em Sua Escritura que é lida a todos os povos, para que todos possam saber. Assim, os apóstolos escreveram, assim, o próprio Senhor tem falado, e não apenas para alguns, mas para que todos possam conhecer e compreender. Platão escreveu livros, mas não escreveu para todas as pessoas, apenas para alguns, pois há não muito mais do que dois ou três homens que o conhecem. Mas os príncipes da Igreja e os príncipes de Cristo não escreveram somente para poucos, mas para todos, sem exceção. E príncipes: os apóstolos e evangelistas. "Daqueles que nasceram nela." Nota "que tenha sido" e não "que são." Isto é para certificar de que, com exceção dos apóstolos, tudo que é dito mais tarde deve ser removido e não mais tarde conter força de autoridade. Não importa o quão santo alguém possa ser após o tempo dos apóstolos, não importa quão eloquente, ele não tem autoridade, pois 'em seu registro dos povos e príncipes o Senhor fala daqueles que nasceram nela. (FC, Vol. 48, As Homilias de São Jerônimo: Vol. 1, Sobre os Salmos, Homilia 18 (Washington D.C.: The Catholic University of America Press, 1964), pp. 142-143)

A autoridade dos apóstolos era única e não foi transferida a nenhum bispo. Jerônimo não conhecia nenhum guia infalível da fé após o colégio apostólico. A autoridade final e suprema era a Escritura. Os bispos tinham autoridade subordinada a ela, sendo legítimo o cristão resistir ao pastor que ensinasse contra as Escrituras.

A estrutura tríplice de liderança da igreja não foi ordenada por Cristo e a limitação da autoridade romana

Quando posteriormente um presbítero foi escolhido para presidir o resto, isso foi feito para sanar o cisma e impedir cada indivíduo de rasgar a igreja de Cristo, chamando-o para si mesmo. Pois ainda em Alexandria desde o tempo de Marcos o Evangelista até o episcopado de Heraclas e Dionísio, os presbíteros sempre nomearam como bispo alguém escolhido dentre eles (...) Pois qual função, com exceção da ordenação, pertence a um bispo que também não pertence a um presbítero? Se se trata de autoridade, o mundo é muito maior do que uma cidade. Por que me invocas a prática de uma só cidade [Roma]? Por que submetes a ordem da Igreja a um pequeno número, do qual procede a presunção? Onde quer que há um bispo, seja em Roma ou em Gubbio, seja em Constantinopla ou em Reggio, tem a mesma dignidade e sacerdócio. O poder das riquezas e a humildade da pobreza não fazem o bispo superior ou inferior, todos são igualmente sucessores dos apóstolos (...) Mas você vai dizer: como, então, que em Roma um presbítero é ordenado apenas na recomendação de um diácono? Ao qual eu respondo como se segue. Por que você apresenta um costume que existe em uma única cidade? Por que você se opõe às leis da Igreja uma exceção insignificante que deu origem à arrogância e orgulho? (Epístola 146)

Essa epístola tem conteúdo muito importante para a questão da liderança da igreja. Jerônimo atacava a ideia de que os presbíteros eram iguais aos diáconos. Ao defender a dignidade dos presbíteros, ele os equipara aos bispos e testemunha que na igreja apostólica, bispos e presbíteros eram termos intercambiáveis se referindo ao mesmo cargo. Com o passar do tempo, por causa do cisma e das brigas pelo poder, um presbítero foi escolhido entre os colegas para ocupar o cargo de bispo monárquico. Ou seja, a emergência do bispo monárquico não era uma ordenação divina, mas resultado de uma questão prática. Isso põe em cheque toda a narrativa papal. Se não havia um bispo monárquico no início, a ideia de que o bispo de Roma recebeu de Pedro todas as suas prerrogativas é infundada, pois não havia apenas um bispo a quem pudesse transferir sua primazia, mas um colégio de presbíteros iguais entre si. Historiadores católicos e protestantes concordam que esse processo foi lento em Roma e o bispo monárquico somente emergiu em meados dos séc. II. Jerônimo inclusive afirma “Pois qual função, com exceção da ordenação, pertence a um bispo que também não pertence a um presbítero?”. Essa igualdade entre as funções mina a teoria papal. Lembremos que o papa era antes de tudo um bispo, se a sua dignidade era equiparável a de um presbítero, resta prejudicada a ideia de que fosse o bispo dos bispos.

Jerônimo testemunha que a emergência do bispo monárquico visava evitar o cisma. Apologistas católicos defendem então que ele também defenderia o papado, pois esse cumpriria o mesmo propósito. Ao utilizar esse argumento, os católicos teriam que admitir que o papado não era uma ordenação divina, mas um resposta da igreja a uma questão prática. O problema é que Roma sempre defendeu a constituição divina do papado. O bispo de Roma deveria ser considerado também juridicamente igual aos outros bispos, pois essa é a conclusão de Jerônimo ao afirmar a igualdade entre presbíteros e bispos. Mas o fato é que Jerônimo nunca expressou a necessidade um bispo dos bispos, pelo contrário, ele entendia que o virtual consenso da igreja universal era superior a opinião de qualquer bispo em particular.

Essa carta ainda contraria qualquer ideia de “bispo dos bispos” ou supremacia jurídica de um bispo sobre os demais. Em Roma, o presbítero era ordenado pela recomendação do diácono e alguém usou esse fato para argumentar em favor da igualdade desses cargos. Se de fato Roma exercesse tal primazia, Jerônimo minimamente daria muitas explicações do porque o costume romano não se impunha ao resto do mundo. A natureza de sua argumentação exclui a possibilidade de qualquer primazia jurídica de Roma. Ele entende que o consenso do resto do mundo é maior do que Roma. O detalhe é que ele opõe as “leis da igreja” ao costume romano. Não se trata apenas do direito de cada igreja ter seus próprios costumes, mas de desobediência às leis da igreja. A autoridade da igreja universal era superior a Roma, portanto, não poderia haver supremacia papal sobre toda a igreja. Ele chama a dissensão romana de “exceção insignificante”, o que só demonstra que a opinião de Jerônimo variava com o tempo e que seu louvor a Roma era circunstancial e temporário.

Por último, observa-se que seu argumento apela à igualdade dos bispos de todas as igrejas. Todos são igualmente sucessores dos apóstolos. Em termos jurídicos, não poderia haver supremacia de um bispo sobre o outro. Essa opinião já tinha sido defendida por Cipriano no século III. Há muitos paralelos entre esses dois pais da igreja. O bispo de Roma ou Alexandria poderia ter mais destaque, sua opinião poderia ter mais peso numa controvérsia, o que implica numa primazia de honra, mas claramente não havia primazia jurídica. É por esse motivo que as controvérsias não eram resolvidas pelo bispo de Roma somente ou pelo colégio de bispos das sedes apostólicas, mas por um concílio universal que contasse com a presença de bispos de todo o mundo. O consenso da igreja universal era superior à opinião de qualquer bispo individual, mesmo o de Roma. Isso fica clara na citação abaixo:

Uma carta sinodal deve ser enviada para mim e para o bispo de Constantinopla, e para quaisquer outros que você acha que se encaixam, expressando a condenação de Orígenes por consenso universal e condenando também a heresia infame, a qual ele era o autor. (Epístola 90)

A heresia de Orígenes foi condenada pelo bispo romano Anastácio, mas somente isso não era suficiente porque esse parecer não era final. Era necessária uma condenação por consenso universal. Por isso, ele não procura ajuda penas em Roma, mas também em Constantinopla. Se o bispo romano fosse supremo e infalível, essa atitude seria desnecessária.

A rocha era Cristo

Já demonstramos a incompatibilidade de Jerônimo com a soberania e infalibilidade do bispo romano. Mas e quanto a Pedro? Ele enxergava o apóstolo como uma autoridade jurídica sobre os demais? Veremos adiante.

Se, porém, Joviniano obstinadamente contendesse que João não era virgem (ao passo que sustentámos que a sua virgindade foi a causa do especial amor que o Senhor lhe tinha), que explique, se não era virgem, por que era mais amado que os outros Apóstolos. Mas tu dizes, “a Igreja foi fundada sobre Pedro”, ainda que em outro lado se diga o mesmo de todos os Apóstolos, e todos eles receberam as chaves do reino dos céus, e a força da Igreja depende de todos eles por igual, no entanto um dos doze é escolhido de modo que se dispôs uma cabeça para que não haja ocasião de cisma. Mas, por que não foi escolhido João que era virgem? Foi prestada deferência à idade, porque Pedro era o mais velho: alguém que era jovem, quase diria um garoto, não podia ser posto sobre homens de idade avançada; e de um bom mestre que se propunha tirar toda a ocasião de disputa entre os seus discípulos, e que lhes havia dito, «Deixo-vos a minha paz, dou-vos a minha paz» e «O que é maior entre vós, que seja o menor» não pode pensar-se que proporcionaria um motivo de inveja contra o jovem que tinha amado... Pedro é um Apóstolo, e João é um Apóstolo - um é um homem casado, o outro um virgem; mas Pedro é somente um Apóstolo, enquanto João é um Apóstolo, um Evangelista, e um Profeta. Um Apóstolo, porque escreveu às Igrejas como mestre; um Evangelista, porque compôs um Evangelho, coisa que nenhum outro Apóstolo, exceto Mateus, fez; um profeta, porque viu na ilha de Patmos, onde tinha sido desterrado pelo imperador Domiciano como um mártir do Senhor, um Apocalipse contendo os ilimitados mistérios do futuro. (Contra Joviniano 1:26)

Jerônimo vê João como um apóstolo maior do que Pedro. Ele ainda afirma que a igreja foi fundada sobre todos os apóstolos, todos possuem as chaves e “a força da Igreja depende de todos eles por igual”. Ainda assim, ele afirma que Pedro foi escolhido para evitar o cisma. Será que ele pensa em Pedro em termos jurídicos ou apenas num primado de honra? A luz de todos os seus escritos, só há como afirmar que se trata de um primado de honra. Pedro foi escolhido como um representante da unidade. Visão semelhante foi defendia por Cipriano que também não pensava em termos jurídicos. Católicos tendem a não compreender a natureza dessa primazia de honra. Alega-se que para ser um representante da unidade, necessariamente deve existir primazia jurídica. Esse argumento é falso e a prática da igreja ortodoxa demonstra isso. O patriarca de Constantinopla é o líder ecumênico, sendo o “primeiro entre iguais” e desfrutando de uma primazia de honra. No entanto, ele não tem primazia jurídica sobre os outros bispos. Os ortodoxos conseguiram captar bem essa ideia popular entre os pais da igreja e totalmente perdida pela igreja romana. Nota-se também que a afirmação de que a igreja foi fundada sobre Pedro partiu de Joviniano. A visão de Jerônimo era que a igreja estava fundada sobre todos os apóstolos (Pedro incluso), mas os apóstolos estavam fundamentados em Cristo. Desta forma, o fundamento era Cristo:

O único fundamento que o arquiteto apostólico colocou foi o nosso Senhor Jesus Cristo. Sobre esse fundamento firme e estável, que ele próprio colocou em fundamento firme, a Igreja de Cristo é construída (...) Pois a Igreja foi fundada sobre a rocha (...) sobre esta pedra o Senhor estabeleceu Sua Igreja e o apóstolo Pedro recebeu o seu nome a partir desta rocha (Mt. 16:18). (Comentário sobre Mateus 7:25)

O nome de Pedro derivava dessa rocha. Quem era a rocha? A resposta é Cristo.

Ela, que com uma sólida raiz está fundada sobre a rocha, Cristo, a Igreja Católica. (Epístola 65:15)

Esta montanha está na casa do Senhor, que o profeta suspira dizendo: “Uma coisa pedi ao Senhor, isso eu irei buscar para que eu possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida" (Sl. 27:4), e em relação ao qual Paulo escreve a Timóteo: "Mas, se tardar, para que saibas como deves te comportar na casa de Deus, que é a Igreja do Deus vivo, a coluna e sustentáculo da verdade (1 Tim. 3:15). Essa casa é construída sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, como imitadores de Cristo. Desta casa, em Jerusalém, o salmista clama dizendo: "Aqueles que confiam no Senhor serão como o Monte São. Eles não se abalam e permanecem para sempre (Sl. 125:1). Onde também sobre uma das montanhas Cristo funda a Igreja, e disse-lhe: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. (Homília 24 sobre o Gênesis)

Percebam a ideia de Jerônimo. A igreja está fundada sobre os apóstolos e profetas igualmente. Ele se refere ao salmista como uma das montanhas, e depois a Pedro como uma dessas montanhas. A igreja não está fundada apenas sobre Pedro, mas sobre todos os apóstolos e profetas que seriam as referidas “montanhas”. Mas, todo esse edifício está fundado em Cristo, portanto, o fundamento último da igreja é o próprio filho de Deus.

A rocha é Cristo, que deu aos seus apóstolos, que também devem ser chamado de rochas "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. (Comentário sobre Amós 6:12-13)

Cristo era a rocha. Na medida em que ele compartilhou da sua autoridade com os apóstolos, todos eles seriam rochas. O interessante é que Jerônimo usa o famoso dito dirigido a Pedro para afirmar que todos os apóstolos eram rochas. Resta claro que Pedro não era uma rocha especial ou mais poderosa, mas juridicamente tinha o mesmo status que os demais.

"Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja". Assim como o próprio Cristo deu a luz aos apóstolos, para que pudessem ser chamados de a luz do mundo, portanto, outros nomes foram derivados do Senhor: por exemplo, a Simão que acreditava na rocha, o Cristo, foi dado o nome de 'Pedro'. E de acordo com a metáfora da pedra, Jesus disse com razão a ele: "eu edificarei a minha Igreja sobre ti. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela". (Comentário sobre Mateus 3)

Pedro era uma pedra na medida em “que acreditava na rocha”. Ele era um fundamento porque sua fé estava fundamentada na rocha. Perceba que apesar de usar Pedro como exemplo, ele se refere a todos os apóstolos “deu a luz aos apóstolos, para que pudessem ser chamados de a luz do mundo”, pois todos eles eram pedras como Pedro por acreditarem também na mesma rocha (Cristo). Esse comentário é sobre a passagem chave do papado (Mateus 16:18). Não há qualquer menção ao bispo de Roma em todo o seu comentário. Que católico romano omitira algo tão relevante? Isso só prova que Jerônimo não detinha a interpretação papista.

Porém, ele diz, o Senhor tinha com os apóstolos Pedro e João; e eles o viram transfigurado no monte, e sobre eles o fundamento da Igreja é colocado (...) (Comentário sobre Gálatas 1:11)

Pedro e João eram igualmente o fundamento da igreja.

Não havia outra província em todo o mundo para receber o evangelho do deleite, e no qual a serpente poderia insinuar-se, exceto o que foi fundado pelo ensinamento de Pedro sobre a rocha Cristo. (Contra Joviniano 2:37)

A igreja era fundada sobre o ensino de Pedro. Mas em que estava fundamentado o ensino de Pedro? Em si mesmo? Não. Era na rocha que era Cristo.

Conclusão

Da mesma forma que outros pais da igreja dos séculos IV e V, Jerônimo tinha grande consideração pela igreja romana, mas definitivamente não considerava seus bispos supremos e infalíveis. Ele também não considerava Pedro um papa, tampouco acreditava que todas as prerrogativas apostólicas do pescador foram transferidas ao bispo de Roma.