segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Agostinho e o Catolicismo Romano - Parte 1 (Papado)



A ideia desse artigo surgiu do pedido de um leitor chamado Marcos Monteiro. Ele nos indicou o link de um artigo do site apologistas católicos que respondia ao site protestante conhecereis a verdade. O site protestante demonstrou que Agostinho não cria em doutrinas católicas fundamentais como:

1) A eficácia ex opere operato dos sacramentos,
2) O culto às imagens,
3) A infalibilidade do Papa,
4) A confissão auricular como sacramento,
5) A imaculada conceição de Maria,
6) A transubstanciação,
7) A missa como repetição do sacrifício de Cristo,
8) O primado de jurisdição do bispo de Roma sobre a igreja universal.

Recomendo a leitura dos comentários desse artigo. Então, o apologista católico respondeu demonstrando que Agostinho não era protestante, mas um convicto católico romano que acreditava em todas as basilares doutrinas do romanismo. Antes de tudo, é preciso esclarecer que o autor protestante assim como outros não consideram o bispo de hipona um protestante, no sentido de que ele cria em todas as doutrinas basilares da reforma. Da mesma forma, é errôneo acreditar que ele era um católico romano, pois como veremos, desacreditava de doutrinas fundamentais do romanismo. Podemos discutir para que lado ele tendia, mas é anacrônico encaixa-lo como pertencente integralmente a qualquer dessas religiões. Ele era um cristão da Igreja norte africana do século V, sendo sob esse contexto que iremos analisá-lo. Entendemos que Agostinho foi representado de forma distorcida pelo católico. Por isso, essa série de artigos irá abordar, na medida do possível imparcialmente, o pensamento desse pai da Igreja a respeito de diversas doutrinas que dividem católicos e protestantes.

Agostinho foi sem dúvida o mais influente teólogo da igreja ocidental. Ele é bem quisto tanto por católicos como reformados. Apesar da sua influência e genialidade teológica, não pode ser considerado uma testemunha histórica qualificada, pois viveu de 354-430, quase três séculos após a era apostólica. Seu testemunho histórico não pode ser comparado ao de Clemente, Inácio ou Policarpo que eram mais próximos da era apostólica e provavelmente conheceram alguns dos apóstolos. Esta será uma grande oportunidade de avaliarmos o status de certas doutrinas no período final do séc. IV e início do séc. V. Nesse primeiro artigo vamos discutir o papado.

A questão da autoridade é a mais importante, a partir dela todas as demais distinções entre católicos e protestantes derivam. Esse é um item que o apologista católico distorceu Agostinho. No item 8, ele traz algumas citações em que Pedro é chamado de a rocha como prova de que o bispo de Hipona acreditava no papado, ou seja, o bispo de Roma exercia primazia jurisdicional sobre toda a Igreja. Antes de tudo, é preciso dizer que alguém considerar que Pedro era a rocha não implica em papado. Alguns autores protestantes como D.A Carson interpretam Pedro como a rocha, mas não acreditam que isso implique em papado. Cipriano, muito estimado por Agostinho, interpretava que Pedro era a rocha, mas não entendia que ele exercia jurisdição sobre os demais apóstolos. Ademais, para Cipriano, todos os bispos e não apenas o de Roma eram sucessores de Pedro. Orígenes interpretou Pedro como a rocha, mas compreendia que qualquer cristão que também confessasse o mesmo que Pedro, deveria ser chamado de rocha. Ou seja, essa intepretação de Mateus 16:18 é necessária, mas não suficiente para provar o papado. Os católicos precisam provar que Pedro exercia primazia jurisdicional, em outras palavras, que por ordenação de Cristo, ele mandava nos demais apóstolos. Mas só isso não é suficiente para a causa papal, também precisam provar que o bispo de Roma é o exclusivo sucessor da suposta primazia petrina. Além de Agostinho não ter ensinado que Pedro tinha primazia jurisdicional como o católico alega, ele se retratou dessa interpretação e passou a dizer que a rocha era a confissão de Pedro:

Numa passagem neste livro, eu disse sobre o Apóstolo Pedro: ‘Sobre ele, como uma pedra, a Igreja foi construída'... Mas eu sei que mui frequentemente em um tempo atrás, eu expliquei que o Senhor disse: ‘Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja', que é para ser entendido como construída sobre Ele, a quem Pedro confessou dizendo: ‘Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo', e assim Pedro, chamado depois esta pedra, representou a pessoa da Igreja que é construída sobre esta pedra, e recebeu ‘as chaves do reino do céu'. Porque, ‘Tu és Pedro' e não ‘Tu és a pedra' foi dito a ele. Mas ‘a pedra era Cristo', em quem confessando, como também toda a Igreja confessa, Simão foi chamado Pedro. Mas que o leitor decida qual dessas duas opiniões é a mais provável. (The Fathers of the Church (Washington D.C., Catholic University, 1968), Saint Augustine, The Retractations Capítulo 20.1)

A pedra era o Cristo que Pedro confessou. Assim como Cipriano, Agostinho entendia que Pedra era figura da Igreja, e não o seu regente máximo. Logo, as chaves não foram transferidas de Pedro exclusivamente para o bispo romano, mas para toda a Igreja. A igreja não estava fundada sobre um homem, mas sobre Cristo, assim, qualquer reivindicação papal sob o testemunho de Agostinho se torna improcedente. O bispo de Hipona continua:

Porque os homens que desejavam edificar sobre homens, diziam, ‘Eu sou de Paulo; e eu de Apolo; e eu de Cefas, que era Pedro. Mas outros que não desejavam edificar sobre Pedro, mas sobre a Pedra, diziam, ‘Mas eu sou de Cristo'. E quando o Apóstolo Paulo averiguou que ele foi escolhido, e Cristo desprezado, ele disse, ‘Está Cristo dividido? Foi Paulo crucificado por vós? Ou fostes vós batizados em nome de Paulo?' E, como não no nome de Paulo, assim nem também no nome de Pedro; mas no nome de Cristo: que Pedro deveria ser edificado sobre a Pedra, não a Pedra sobre Pedro. Este mesmo Pedro, portanto, que tinha sido declarado ‘bem-aventurado' pela Pedra, carregando a figura da Igreja. (Philip Schaff, Nicene and Post-Nicene Fathers (Grand Rapids: Eerdmans, 1956), Volume VI, St. Augustin, Sermon XXVI.1-4, pp. 340-341).

Agostinho condena precisamente o que os católicos romanos fazem – edificar a Igreja sobre um homem. Ele atribuía alguma primazia a Pedro? A resposta é sim, mas essa não implica em papado nem em primado jurisdicional. Isso fica claro a partir das citações abaixo:

Antes de Sua paixão, o Senhor Jesus, como você sabe, escolheu aqueles discípulos dos Seus, os quais chamou apóstolos. Entre aqueles foi somente a Pedro que em quase toda a parte foi dado o privilégio de representar toda a Igreja. Foi na pessoa de toda a Igreja, que ele sozinho representou, que ele foi privilegiado em ouvir, ‘Dar-te-ei as chaves dos céus' (Mateus 16:19). Depois de tudo, não foi somente um homem que recebeu aquelas chaves, mas a Igreja em sua unidade. Assim, está é a razão da preeminência reconhecida de Pedro, de que ele estava representando a universalidade e unidade da Igreja, quando lhe foi dito, ‘A você, estou confiando', que de fato tem sido confiado a todos. (Sermão 295)

Previamente, é claro, ele foi chamado Simão; este nome de Pedro lhe foi concedido pelo Senhor, e isto com a intenção simbólica de sua representatividade da Igreja. Porque Cristo, você vê, é a petra ou pedra; Pedro, ou Rochoso, é o povo Cristão. (Sermão 76)

Ele não poderia ser mais claro. O primado Pedro não era jurídico, nem tinha qualquer implicação papal. Ele era o primeiro porque foi escolhido por Cristo para representar a Igreja. Um erro comum cometido por apologistas católicos é atribuir tudo o que é dito sobre Pedro automaticamente e exclusivamente aos bispos de Roma. Os pais poderiam ter uma visão elevada de Pedro e não atribuir integralmente e exclusivamente essa visão aos bispos de Roma:

Porque, como algumas coisas são ditas que parecem peculiarmente se aplicar ao Apóstolo Pedro, e todavia não são claras em seu significado, a menos quando se refere à Igreja, a quem ele é reconhecido ter figurativamente representado, por causa da primazia que ele tinha entre os Discípulos; como está escrito, ‘Dar-te-ei as chaves do reino dos céus', e outras passagens de propósito semelhante: assim Judas representa aqueles Judeus que eram inimigos de Cristo. (Exposição sobre o Livro de Salmos, Salmos 199)

Muitas coisas ditas sobre Pedro aplicam-se a toda a Igreja e não singularmente ao bispo de Roma. As chaves que são o elemento principal desse debate pertencem a toda a Igreja e não apenas ao bispo de Roma. Numa última tentativa de tentar resguardar a errônea ideia do Agostinho católico romano, os católicos apelam ao trecho: “Mas que o leitor decida qual dessas duas opiniões é a mais provável”. Esse trecho só reforça que ele não era papista. Nesse período, o papa Dâmaso já havia utilizado o texto de Mateus 16:18 para reivindicar autoridade sobre a Igreja. Se Agostinho de fato acreditasse em infalibilidade papal, não teria mudado sua interpretação do texto. Ele estava convicto de sua interpretação, e o fato de apelar à consciência do leitor só demonstra que não condenava o livre exame. Que católico romano diria para alguém escolher qual a interpretação correta dessa passagem? John Rotelle, o editor da série Católica Romana dos sermões de Agostinho, faz estas observações:

Pedro existia, e ele não tinha sido ainda confirmado na pedra': Isto é, em Cristo, como participante em seu ‘rochedo' pela fé. Isto não significa confirmado como a pedra, porque Agostinho nunca pensou de Pedro como a pedra. Jesus, apesar de tudo, não lhe chamou de fato a pedra...mas ‘Rochoso'. A pedra na qual ele construiria sua Igreja, era, para Agostinho, tanto o próprio Cristo como a fé de Pedro, representando a fé da Igreja. (John Rotelle, Ed., The Works of Saint Augustine (New Rochelle: New City, 1993), Sermons, Sermon 265D.6, p. 258-259, n. 9)

W.H.C. Frend afirma o consenso acima sobre a eclesiologia de Agostinho e sua interpretação da comissão de Pedro:

Agostinho...rejeitou a ideia de que ‘o poder das chaves' tinham sido confiado somente a Pedro. Sua primazia era simplesmente uma questão de privilégio pessoal, e não um ofício. Similarmente, ele nunca reprovou os Donatistas por não terem comunhão com Roma, mas pela falta de comunhão com a visão apostólica como um todo. Sua visão do governo da Igreja era que questões menos importantes deveriam ser resolvidas por concílios provinciais, grandes questões em concílios gerais. (W.H.C. Frend, The Early Church (Philadelphia: Fortress, 1965), p. 222)

Para um tratamento mais detalhado aquiO site veritatis traz alguns textos adicionais em favor do papado:

Se a sucessão dos bispos for levada em conta, quanto mais certa e benéfica a Igreja que nós reconhecemos chegar até o próprio Pedro, aquele que portou a figura da Igreja inteira, a quem o Senhor disse: 'Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela'. O sucessor de Pedro foi Lino, e seus sucessores em ordem de sucessão ininterrupta foram estes: Clemente, Anacleto, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telésforo, Higino, Aniceto, Pio, Sótero, Eleutério, Victor, Zeferino, Calisto, Urbano, Ponciano, Antero, Fabiano, Cornélio, Lúcio, Estêvão, Sisto, Dionísio, Félix, Eutiquiano, Caio, Marcelino, Marcelo, Eusébio, Miltíades, Silvestre, Marcos, Júlio, Libério, Dâmaso e Sirício, cujo sucessor é o presente bispo Anastácio. Nesta ordem de sucessão, nenhum bispo donatista é encontrado. (Santo Agostinho, Ep. 53,2)

Apenas mais uma citação que não prova o papado. Agostinho detinha a crença errônea de que Pedro foi bispo em Roma e que deixou nessa cidade uma sucessão de bispos. Como já demonstrado aqui, Pedro não foi bispo de Roma e sequer havia bispo monárquico nessa igreja até metade do séc. II. De qualquer forma, o veritatis antes teria que provar que Pedro detinha um primado jurisdicional e não apenas de honra na visão de Agostinho, só assim essa sucessão de bispos seria relevante para a causa papal. Outras citações irrelevantes são trazidas como Agostinho se referindo à Igreja romana como UMA cátedra apostólica e não A cátedra como alguns católicos erroneamente traduzem. Obviamente ninguém duvida disso, afinal Roma contou com a pregação dos apóstolos Pedro e Paulo. O que não se prova é que o bispo de Roma fosse um papa infalível. Leve-se em conta também que outras Igrejas como Antioquia e Jerusalém eram cátedras apostólicas. O veritatis ainda traz citações em que Agostinho se dirige ao bispo romano de forma elogiosa e a opinião de um autor protestante confirmando a primazia da sé romana. Agostinho de fato dava a sé romana uma primazia, mas essa não tinha a ver com o papado, e muito menos considerava a autoridade da sé romana vinculante por si própria ou infalível. Que o autor protestante não estava falando de papado fica claro aqui. O autor católico traduzido pelo veritatis responde ao próprio César Vidar que havia demitido Agostinho como testemunha do papado. É o velho costume dos católicos lerem qualquer coisa com as "lentes de Roma". Eles viram a palavrado primado e já concluíram sem maior análise que se tratava de papado. O bispo de Hipona também escreveu:

Portanto, se Pedro, sobre como fazendo isso, é corrigido pelo seu mais tarde colega Paulo, e ainda é preservada [a amizade de Paulo] pelo vínculo da paz e da unidade até que ele é promovido ao martírio, quanto mais prontamente e constantemente devemos preferir, ao invés da autoridade de um único bispo ou o concílio de uma única província, a regra que foi estabelecida pelos estatutos da Igreja universal? (...) [citando Cipriano] Pois nenhum de nós coloca-se como um bispo de bispos, nem por terror tirânico alguém força seu colega à obediência obrigatória; visto que cada bispo, de acordo com a permissão de sua liberdade e poder, tem seu próprio direito de julgamento, e não pode ser julgado por outro mais do que ele mesmo pode julgar um ao outro. Mas esperemos todos o julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, que é o único que tem o poder de nos designar no governo de Sua Igreja, e de nos julgar em nossa conduta nela. (Sobre o Batismo, contra os donatistas, 2:2)

Bem, vamos supor que aqueles bispos que decidiram o caso em Roma não eram bons juízes, ainda resta o concílio plenário da Igreja universal, em que esses juízes podem apresentar sua defesa, de modo que, se eles foram condenados por erro, as suas decisões podem ser revertidas. (Carta 43:19)

Ele tinha Cipriano como um mestre e concordou com ele na questão da autoridade. Cipriano foi uma grande testemunha da resistência da igreja norte-africana contra as pretensões papais do bispo romano Estevão. Tratamos desse assunto aqui. Para o bispo de Hipona, a autoridade máxima para resolução de controvérsias na Igreja não era o bispo de Roma, mas o concílio ecumênico. Ele também não defendia o atual ensino papista de que o concílio ecumênico só é válido se convocado ou presidido pelo Papa, tendo em vista que nenhum dos sete primeiros concílios ecumênicos atendeu a esse critério. Robert Eno, historiador católico romano e especialista em Agostinho, comenta:

Em outro lugar eu argumentei em detalhes a visão de Agostinho sobre a autoridade na Igreja e que, na minha opinião, o concílio [não o Papa] foi o principal instrumento para resolução de controvérsias .... Eu acredito que Agostinho tinha grande respeito pela igreja romana cuja antiguidade e origens apostólicas ofuscou, de longe, outras igrejas no Ocidente. Mas assim como em Cipriano, a tradição colegial e conciliar africana foi preferida na maioria das vezes. (The Rise of the papado [Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1990]., p. 79)

Eno também escreve:

É claro que Agostinho tinha um respeito genuíno para a posição da igreja de Roma na Igreja universal. Na verdade, seus pontos de vista eram provavelmente mais amigáveis do que os de muitos de seus colegas africanos. Agostinho, afinal de contas, tinha um conhecimento pessoal  da cidade, bem como de alguns clérigos romanos. Não obstante, sua ação na crise pelagiana não alterou sua visão básica do concílio plenário como a última instância em disputas na Igreja, nem a sua visão da atividade conciliar em geral como o caminho comum para resolver problemas intra-eclesiais além do nível da igreja local (...) Pedro foi o primeiro dos Apóstolos, segurando o Principatus do Apostolado. Mas, qualquer Apóstolo seria maior do que qualquer bispo como o Apostolado é maior do que o episcopado. (“Doctrinal Authority In Saint Augustine", Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 171)

O historiador protestante Philip Schaff escreveu:

Agostinho sem dúvida compreendia por igreja a Igreja Católica visível, descendente dos apóstolos, especialmente a partir de Pedro, através da sucessão de bispos, e de acordo com o uso de seu tempo, ele considerou a igreja romana como tendo eminência entre as sedes apostólicas. Mas, por outro lado, como Cipriano e Jerônimo, ele insiste na unidade essencial do episcopado, e insiste que as chaves do reino dos céus foram dadas não a um único homem, mas a toda igreja, que Pedro estava apenas representando. Com esta visão concorda a posição independente da igreja norte-africana no tempo de Agostinho em relação a Roma, como já observado no caso do recurso de Apiarius, e como ela aparece na controvérsia pelagiana, de que Agostinho era o líder. Este pai, portanto, pode de fato ser citado apenas como um testemunho da autoridade limitada da cadeira romana. E deve também justamente ser observado, que em seus numerosos escritos, ele raramente fala dessa autoridade, e em sua maior parte incidentalmente, mostrando que ele dava muito menos importância a esse assunto do que os teólogos romanos. (The Master Christian Library [Albany, Oregon: AGES Software, 1998], History of the Christian Church, Vol. 3, p. 246)

Visto que Agostinho não defendia o papado, nem seria necessário abordar o tema infalibilidade papal. Mas o site apologistas católicos distorceu tão grosseiramente o erudito patrístico J.N.D Kelly, que é obrigação moral trazer o verdadeiro pensamento desse autor. O católico diz:

De acordo com as declarações de JND Kelly, podemos tirar as seguintes conclusões, sobre o pensamento de Santo Agostinho:
1) O Bispo de Roma, como sucessor de São Pedro, tem a primazia jurisdicional da Igreja;
2) o Papa nesta posição tem a palavra final em questões de doutrina, e foi de fato o árbitro final da verdade e, portanto, infalível.

Ainda que o autor anglicano tivesse dito que o bispo de Roma tinha primazia jurisdicional, coisa que ele não disse, o argumento é falacioso. Como já visto, Agostinho entendia que o árbitro final nas controvérsias era o concílio ecumênico e não o papa. Mas ainda que façamos essa concessão, é sabido que autoridade não implica em infalibilidade. Esse é um erro comum no meio católico. Existem autoridades instituídas por Deus que não são infalíveis. A Escritura nos diz que devemos obedecer aos pais e o magistrado civil, afirmando inclusive que ambos, família e governo, são instituições divinas. Alguém em sã consciência diria que essas instituições são infalíveis? O mesmo se aplica à Igreja. Não é ensinado por Cristo ou algum apóstolo que uma Igreja local seria infalível, pelo contrário, o Novo Testamento é abundante em exortações e exemplos de apostasia das igrejas cristãs. Por isso, a autoridade da família, do governo e da Igreja, cada um dentro de suas esferas, é condicional à autoridade final e infalível da Escritura. Vejamos Kelly em contexto:

Em todos os lugares, tanto no oriente como no ocidente, Roma desfrutava de um prestígio especial, conforme se vê na precedência que lhe atribuíam sem nenhum questionamento (...) A questão crucial, porém, é se esse inquestionável primado de honra era ou não aceito como um direito divino, de modo a envolver uma jurisdição global. No que diz respeito ao Oriente, a resposta deve ser em geral negativa. Embora demonstrasse imensa deferência à Sé romana pela sé romana e desse grande valor aos seus pronunciamentos, as Igrejas orientais jamais trataram Roma como o centro constitucional e a cabeça de toda a igreja, muito menos como um oráculo infalível nos assuntos de fé e moral; por vezes, não tinham o menor constrangimento em resistir a sua vontade expressa. (J.N.D Kelly, Patrística, Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã (Editora Vida Nova, 1994), pág. 308)

Kelly, chamado pelo apologista católico de “estudioso protestante renomado: J.N.D. Kelly, que é dos maiores estudiosos patrísticos do século XX”, disse claramente que não havia papado na Igreja Católica antiga, uma vez que um elemento primordial do papado é a jurisdição universal. Sobre a eclesiologia de Agostinho:

Não é preciso dizer que Agostinho identifica a Igreja como a Igreja Católica de seus dias, com sua hierarquia e sacramentos, e com seu centro em Roma. (Ibid., p. 313)

Agostinho se refere à Igreja Católica de seu tempo e considerava a sede apostólica romana como a primeira entre as outras sedes. Nada disso implica em papado, muito menos infalibilidade papal. Kelly observa que esse conceito de Igreja evoluiu no pensamento de Agostinho. Nos últimos anos ele passou a entender a Igreja como a totalidade dos eleitos, constituída de pessoas que sequer poderiam estar dentro da Igreja institucional num dado momento. Esse ponto de vista se aproxima bastante da eclesiologia reformada:

No entanto, ao desenvolver sua doutrina da predestinação, Agostinho foi levado a introduzir um refinamento nessa distinção entre a igreja visível e invisível. Por fim, ele acabou reconhecendo que os únicos verdadeiros membros da igreja (...) poderiam ser “o número fixo dos eleitos”. Mas “na presciência inefável de Deus, muitos que parecem estar dentro estão fora, e muitos que parecem estar fora estão dentro”. Em outras palavras, até mesmo dentre aqueles que, em todos os aspectos parecem pertencer à “comunhão invisível de amor”, muitos podem não possuir a graça da perseverança e estão, portanto, destinados a se perder; por outro lado, muitos outros, que no presente momento, talvez sejam hereges ou cismáticos, tenham vidas desregradas ou sejam até pagãos inconversos podem estar predestinados à plenitude da Igreja (...) Agostinho jamais tentou harmonizar seus dois conceitos, o de fazer distinção entre a igreja histórica e a igreja verdadeira daqueles realmente consagrados a Cristo e que manifestam seu espírito, e o de identificar o corpo de Cristo com o número fixo dos eleitos conhecido apenas por Deus. De fato, é duvidoso que, em última instância, fosse possível fazer alguma síntese, pois, caso esta doutrina seja levada a sério, a noção de igreja institucional perde toda validade. (Ibid., p. 316)

Sobre a primazia da Igreja romana no ocidente, Kelly escreve:

Nós meados do quinto século, a igreja romana havia estabelecido uma posição de primazia no Ocidente, tanto de direito como de fato, e as pretensões papais de supremacia sobre todos os bispos da cristandade haviam sido formuladas em ter precisos. A narrativa detalhada das etapas pelas quais esse processo foi cumprido pertence na verdade ao campo da história da igreja, e não ao campo da história doutrinas. Aqui, precisamos apenas comentar que, deixando de lado fatos estritamente teológicos, a posição de Roma como a antiga e estimada capital e com única sé apostólica no Ocidente, a ampla influência litúrgica e teológica que exercia no império ocidental, e o papel especial que os papas foram chamados desempenhar na época das invasões bárbaras — tudo contribuiu para desdobramento. Quem acompanha a história da época, especialmente as controvérsias ariana, donatista, pelagiana e cristológica, não deixa de ficar impressionado com capacidade e a persistência com que a Santa Sé apresentava e consolidava continuamente suas reivindicações. Uma vez que seu ocupante era aceito corno sucessor de Pedro, o príncipe dos apóstolos, foi fácil inferir que a autoridade que Roma de fato desfrutava, e que os papas viam concentrada em suas pessoas e seu ofício, era simplesmente o cumprimento do plano divino. (Ibid., p. 316)

Kelly nos dá valiosas informações, mas absolutamente nenhuma delas implica na doutrina papal. Ele explica que Roma tinha uma autoridade única no ocidente por motivos não papais: antiga capital do império, única sede apostólica do ocidente, influência teológica e litúrgica, papel político, atuação incisiva nas controvérsias cristológicas e por último o reconhecimento de que o bispo de Roma era sucessor de Pedro. Já vimos que os pais da Igreja não viam Pedro como uma papa, eles davam ao apóstolo uma posição de honra no colégio apostólico, por isso o consideravam príncipe dos apóstolos, mas não concediam a ele autoridade jurisdicional sobre os demais. Ademais, nem tudo que era aplicado a Pedro era transferido aos bispos de Roma. Apesar de no século IV ter aparecido pela primeira vez a ideia de que Pedro foi bispo de Roma, observa-se que as listas mais antigas não colocam esse apóstolo como bispo de Roma. A lista de Irineu (séc. II) colocava Lino como primeiro bispo, sendo que Pedro e Paulo em igualdade de posição são colocados como os fundadores dessa Igreja. Que essa primazia de honra da Igreja romana não implicava em papado ou infalibilidade papal vemos a seguir:

Enquanto isso, a doutrina que prevalecia na África era um desdobramento dos conceitos de Cipriano (...) A atitude de Agostinho não foi diferente. Acompanhando Cipriano, ele considerava Pedro o representante ou o símbolo da unidade da Igreja e do colégio apostólico, e também o apóstolo a quem foi dado a primazia (mesmo assim ele era um tipo da igreja como um todo). Desse modo, a Igreja romana, a cátedra de Pedro, “a quem o senhor, depois de sua ressurreição, incumbiu de alimentar suas ovelhas”, era para ele a Igreja em que “a primazia da cadeira apostólica sempre esteve presente”.  As três cartas referentes ao pelagianismo que a igreja africana enviou em 416 a Inocêncio I, das quais Agostinho foi o redator, sugerem que ele atribuía ao papa uma autoridade pastoral e didática que se estendia sobre toda a Igreja, tendo encontrado base para isso nas Escrituras. Ao mesmo tempo, não existem dados de que ele estivesse disposto a atribuir ao bispo de Roma, em sua condição de sucessor de Pedro, um magistério doutrinário soberano e infalível. Por exemplo, quando apelou a Inocêncio em sua controvérsia com Juliano de Eclano, sua concepção era que o papa seria apenas o porta-voz de verdades que a igreja romana, desde épocas antigas, sustentava em harmonia com outras igrejas católicas. Em assuntos práticos, ele também não estava disposto a abri mão, mesmo em questões insignificantes, da independência disciplinar da igreja africana, que Cipriano havia defendido com tanta intrepidez em sua época. A verdade é que a doutrina da primazia romana desempenhou um papel secundário em sua eclesiologia, como também em seu pensamento religioso pessoal. (Ibid., p. 318)

Esse é o autor que nosso interlocutor católico coloca como evidência da infalibilidade papal. Kelly negou explicitamente que o bispo de Hipona tenha defendido essa doutrina. Roma tinha uma autoridade maior do que outras igrejas na visão de Agostinho, mas essa autoridade não era soberana e infalível, além do mais, tal primazia que não era papal, desempenhou um papel secundário em sua eclesiologia. Que católico romano consideraria a autoridade de Roma secundário em matéria de eclesiologia? O papista necessariamente deve considerá-la o elemento central da doutrina da igreja.

Ainda sobre infalibilidade, Agostinho é citado em vários sites católicos da seguinte forma: “Roma falou, causa encerrada”. Essa é uma reelaboração das palavras do teólogo latino, e se olharmos o contexto dessa citação, longe de provar a infalibilidade papal, o refuta. Tratamos disso num artigo a parte aqui. Vamos ao testemunho de Klaus Schatz, um proeminente teólogo e historiador católico romano, que escreveu:

No caso do Norte de África é interessante observar a atitude de uma igreja autoconfiante e organizacionalmente intacta em relação a Roma. A declaração do Bispo Agostinho de Hipona (396-430), Roma locuta, causa finita ("Roma falou, o assunto está resolvido") foi citada repetidamente. No entanto, a citação é realmente uma ousada reformulação das palavras do pai da igreja tomadas completamente fora de contexto (...) Tanto o contexto dessa declaração e sua continuidade com o resto do pensamento de Agostinho não permite outra interpretação que não seja a de que o veredicto de Roma somente não é decisivo; em vez disso, dispõe de todas as dúvidas depois de tudo que a precedeu. Isso é porque não restava nenhuma outra autoridade eclesiástica de qualquer consequência para quem os pelagianos poderiam apelar, e em particular a própria autoridade da qual eles poderiam mais facilmente ter esperado uma decisão favorável, ou seja, Roma, tem claramente decidido contra eles! (...) Em geral, Agostinho atribui um peso relativamente importante de autoridade para a igreja romana em questões de fé, mas não considera que ela tenha um ofício superior de ensinoTem auctoritas, mas não potestas sobre a Igreja no Norte da África. Os próprios concílios acima mencionados dão uma imagem clara da forma como os africanos, incluindo Agostinho, consideravam a autoridade de ensino de Roma. Eles enviaram seus registros a Roma não para obter a confirmação formal, mas porque reconheciam que a Igreja Romana, com a sua tradição, tinha um auctoritas recebido em questões de fé; portanto, eles desejavam ter uma decisão Romana junta com a sua própria. Isso é especialmente evidente em uma carta de Agostinho escrita para cinco bispos: “não estamos, disse ele, derramando nossa pequena gota de volta para sua ampla fonte para aumenta-la, mas (...) nós desejamos ser reafirmados por vocês a respeito destas nossas gotas, que escassas todavia, fluem a partir da mesma fonte que seu córrego abundante, e nós desejamos o consolo de seus escritos, tirados de nossa comum partilha da mesma graça”. Toda a Palavra desta deve ser observada: a igreja romana não é a fonte da igreja africana, pois ambos, em fluxos paralelos, fluem do rio da mesma tradição, mesmo que o rio seja mais completo na igreja romana. Roma tem, assim, uma autoridade relativamente maior e mais importante, sendo por isso que a Igreja Africana procura um veredicto de Roma. Na resposta do Papa Inocêncio, é manifesta a diferença entre as duas concepções, romana e africana. O papa interpreta a pergunta dos bispos africanos como um pedido de ratificação e fala que toda água flui do manancial da igreja romana (portanto, não no sentido de correntes paralelas, mas da dependência em relação à Roma). Sublinha também que as questões de fé só podem ser definitivamente resolvidas por Roma. Aqui aparece Roma como a última e decisiva instância em matéria de fé. Na verdade, a "causa" não foi encerrada, pois sob o próximo papa, Zósimo, os pelagianos conseguiram audiência em Roma para defender sua ortodoxia. Agostinho então não esperou a decisão de Roma, mas convocou um novo concílio em Cartago (418) que condenou oficialmente algumas doutrinas pelagianas. Essa decisão foi comunicada a Roma, e em seguida, o papa ratificou a decisão de Cartago. (Papal Primacy, Minnesota: The Liturgical Press, 1996, p. 34-35)

O estudioso católico romano confirma o consenso a respeito. Klaus Schatz usou as expressões “Auctoritas” para se referir à autoridade da Igreja Romana e mencionou que não tinha “potestas”. Essas expressões são do direito romano. Autorictas envolve a autoridade de alguém que possui excelência moral ou notório saber em algo. Eu mesmo fiz uso dessa ao citar Klaus Schatz. Ele possui “autorictas” porque é um estudioso do assunto, portanto, sua opinião tem maior peso, ainda mais quando vai contra a opinião de sua própria denominação. Potestas seria a autoridade institucionalmente e vinculantemente constituída. Um juiz tem este tipo de autoridade, sua autoridade nasce do poder legal, sendo obrigatória. Ao citar Klaus, não estou lhe concedendo este tipo de autoridade, pois apesar de reconhecer que ele tem notório saber no assunto, não considero sua opinião obrigatória ou infalível.

Esta distinção é fundamental para entender a autoridade exercida pela Igreja Romana nos tempos de Agostinho.  Ela era a Igreja mais importante do ocidente e detinha grande prestígio juntamente com as outras sedes apostólicas (Alexandria, Antioquia, Constantinopla e Jerusalém). Sua posição tinha peso, mas não era considerada infalível ou vinculativa por si mesma.  Por isso, nas controvérsias, era comum que a Igreja Romana e as outras Sedes Apostólicas fossem consultadas. Assim foi no caso do arianismo, pelagianismo, monofissimo e outras heresias. Porém, caso a Igreja consultada decidisse de forma contrária à posição apoiada pela Igreja apelante, essa não necessariamente mudaria sua posição, pois não considerava a decisão da Sede Apostólica infalível ou vinculativa. Esse foi o caso da Igreja Norte Africana. Quando o bispo Romano Zózimo voltou atrás da condenação ao pelagianismo, os norte africanos não mudaram sua posição e se mantiveram firmes na condenação à heresia. O certo seria dizer: “Roma falou e a causa não encerrou”. Schatz ainda traz outro episódio em que “Roma falou e a causa não encerrou”:

A igreja africana preservou sua autonomia de modo ainda mais decidido no terreno da jurisdição. Nos conselhos de Cartago realizados em 419 e 424, se chega a proibir o recurso a Roma. O contexto dessa medida foi o caso do presbítero Apiario, que tinha sido excomungado pelo seu bispo e, em Roma (sem o conhecimento da situação) foi reabilitado em seus direitos. Os norte-africanos reagiram, por um lado, concedendo aos presbíteros a possibilidade de uma instância de recurso (o julgamento de seu bispo pelo concílio norte-africano de Cartago), com o qual se satisfazia o desejo de segurança jurídica. Por outro lado, se defendem energicamente contra uma intervenção Roma: ela de longe incorria em julgamentos errados, pela simples razão de que em tais processos judiciais era impossível fazer chegar da África as testemunhas necessárias. Além disso, é impensável que Deus conceda o espírito de juízo justo a um particular, isto é, o bispo de Roma, e não a todo um concílio de bispos. Por isso, os norte-africanos proibiram para o futuro qualquer recurso "ultramarino", mesmo para o caso dos bispos, opondo-se assim os cânones de Sárdica. Essa proibição tinha um precedente no caso de um bispo afastado de sua comunidade, mas que Roma tinha amparado. Por causa disso, o mesmo Agostinho ameaçou se demitir. A instância de recurso era apenas o concílio norte-africano de Cartago. Este caso repetidamente fornecido ao longo da história oferece o exemplo para apoiar a resistência episcopalista das igrejas nacionais contra o centralismo romano. (ibid., 35-36)

Conclusão

Encerramos a parte de 1 de nossa série. Podemos concluir confiavelmente sobre Agostinho:

1. Ele tinha a igreja romana em alta conta, mas não considerava seu bispo uma autoridade soberana e infalível;
2. Agostinho, como Cipriano, atribuía uma primazia de honra a Pedro, pois via nele um representante de toda a Igreja, mas não o considerava uma autoridade jurídica sobre os demais apóstolos;
3. A maior autoridade dentro da Igreja para resolver controvérsias doutrinais era o concílio plenário e não o bispo de Roma.

No próximo artigo trataremos dos temas tradição, sola scriptura e autoridade da Igreja. Responderemos a pergunta básica: “Agostinho acreditava que a autoridade da Igreja ou tradição estava no mesmo patamar da Escritura?” Foi visto que o concílio era a autoridade suprema dentro da Igreja, mas ele considerava as decisões conciliares infalíveis? Ele defendeu uma posição similar à posição reformada da Sola Scriptura?

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Os Pais Pré-Nicenos e a Regeneração Batismal - Parte 2



Clemente de Alexandria (150-215)

Sendo batizado, somos iluminados; iluminados tornamo-nos filhos; sendo feitos filhos, somos aperfeiçoados; tendo sido aperfeiçoados, somos feitos imortais. ‘Eu’, diz ele, ‘disse que sois deuses, e todos filhos do Altíssimo.’ Este trabalho é variadamente chamado graça, iluminação, e perfeição, e lavagem: lavagem, por que limpa os nossos pecados; graça, pela qual as penalidades decorrentes de transgressões são perdoadas; e iluminação, por que essa luz sagrada da salvação é contemplada, ou seja, através da qual vemos Deus claramente. Agora chamamos isso de perfeito que não necessita de nada. (O Pedagogo Livro I, 6)

O batismo que Clemente se refere é a imersão na palavra que é o próprio Cristo. Ele se utiliza de várias figuras como lavagem, graça, iluminação e perfeição se referindo às funções que a Palavra exerce. A obra “o pedagogo” se dedica a exortar os homens a deixarem os maus caminhos e se converterem à palavra que é Cristo, a quem chama de O Pedagogo. Isso vemos pelas citações abaixo:

Fomos iluminados; ou seja, conhecemos a Deus. E não é imperfeito que tem vindo a conhecer a perfeição suprema (...) Uma vez que no conhecimento está a iluminação (...) O conhecimento, portanto, é a luz que dissipa a ignorância e outorga a capacidade de ver claramente. Você também pode dizer que a rejeição das piores coisas destaca as melhores, pois a ignorância mantida mal amarrada desata felizmente conhecimento. Essas ataduras são rapidamente quebradas pela fé do homem e pela graça de Deus. Nossos pecados são lavados pelo único remédio que cura: o batismo da Palavra. Fomos lavados de todos os nossos pecados e de repente já não somos maus. É a graça singular da iluminação, por isso o nosso comportamento não é o mesmo que antes do banho batismal. E como o conhecimento ilumina a inteligência, surge ao mesmo tempo a iluminação e, de repente, sem ter nada aprendido, somos chamados discípulos. A instrução nos foi conferida anteriormente, mas não pode materializar-se nesse momento. A catequese conduz à fé; e a fé, no momento do Batismo, é ilustrada pelo Espírito Santo. (Ibid., cap. 6)

O batismo do Logos é o único remédio que cura. Vemos que o batismo aludido incluía o conhecimento de Deus que iluminava. Portanto, Clemente não ensinava a doutrina romana. Ele via o batismo nas águas como parte do processo de conversão, mas a regeneração do homem era desencadeada pelo conhecimento de Deus e não se limitava ao momento da aplicação da água. A iluminação era conhecer a Deus, portanto, o homem era iluminado ao ter contato com a palavra de Deus. O mesmo se vê abaixo:

É a palavra que resgata o homem do costume deste mundo em que ele foi criado, e o treina na salvação da fé em Deus. (Ibid., cap. 1)

Em seu próprio Espírito Ele diz que vai cobrir o corpo da Palavra; como certamente pelo seu próprio Espírito ele vai nutrir aqueles que têm fome da Palavra. ... Porque, se temos sido regenerados em Cristo, Aquele que nos regenerou nos alimenta com o seu próprio leite, a Palavra; por isso é bom que o gerador forneça imediatamente alimento ao que tem sido gerado. (Ibid., cap. 6)

A palavra não apenas nos regenera, mas também nos alimenta. Outra citação trazida pelos católicos é a seguinte:

O Logos (Cristo) tem com o batismo a mesma afinidade que o leite com água. O leite é o único líquido que tem essa propriedade: é misturado com a água para purificar, como batismo também é recebido para a remissão dos pecados. (Ibid., cap. 6)

Vejamos a continuação dessa citação que geralmente é ocultada:

O leite também é misturado com o mel, à procura de um efeito purificador, ao mesmo tempo que é agradável. O Logos, quando misturado com o amor do homem, sana as paixões e também purifica os pecados. Que "sua voz fluía mais doce que o mel" acredito que foi dito pelo Logos, que é o mel. Em vários lugares a profecia o eleva "acima do mel e do suco dos favos". O leite também é misturado ao vinho doce, e essa mistura é saudável; é como se a sua natureza, quando misturada, se tornasse incorruptível: sob o efeito do vinho, leite torna-se soro, se quebrando, e as sobras são descartadas. Assim, a união espiritual entre a fé e o homem sujeito às paixões, converte em soro os desejos da carne, dando ao homem uma maior firmeza para a eternidade, tornando-o imortal graças à providência divina.

Assim como outros pais da Igreja, Clemente poderia se referir ao batismo sendo recebido para remissão de pecados sem implicar em regeneração batismal. Como já dito, faz parte da relação entre símbolo e coisa simbolizada atribuir ao primeiro as características que são do último. No contexto dessa citação, Clemente faz uso de várias metáforas para ensinar verdades espirituais. Inclusive, diz que a mistura de leite com o mel prefigurava a mistura do Logos com o amor do homem, que também purifica os pecados. Deveríamos concluir que o leite ou o mel em si tem algum efeito purificador? Obviamente não. A partir dessa metáfora, podemos perceber que o batismo não pode ser indispensável para a purificação dos pecados, pois o pai da Igreja aponta outro meio que gera o mesmo resultado: a união de Cristo ao homem. Mais adiante, ele aplica outra metáfora para ensinar que o homem é regenerado pela fé em Cristo. Quando o homem carnal tem fé, seus desejos e paixões são “quebrados”. Perceba que ele aplica essa mesma metáfora para ensinar a regeneração sem ter o batismo em vista.

Deve ser conhecido, então, que aqueles que caem em pecado depois do batismo estão sujeitos à disciplina, pois as obras feitas antes [do batismo] são perdoadas, e aquelas feitas depois são purgadas. (Stromata, IV. 24)

Isso quer dizer que os pecados anteriores foram perdoados no batismo? Vejamos a partir de outras passagens o que ele entendia a respeito:

Por isso é dito que nós deveríamos ser lavados por sacrifícios e orações, [ficando] limpos e resplandecentes; e esse adorno externo e purificação são praticados por um sinal. Agora, pureza é ter pensamentos santos. Além disso, há a imagem do batismo, que também foi entregue aos poetas de Moisés (...) Era um costume dos judeus lavarem-se frequentemente após estar na cama. Foi, em seguida, bem dito: “Seja puro, não pela lavagem da água, mas da mente”. Por santidade, como eu concebo, é a perfeita pureza de espírito, atos, pensamentos e palavras também, e em último grau o ideal da impecabilidade. E purificação suficiente para um homem, eu considero, é o completo e convicto arrependimento. (Ibid., 22)

Fica claro que a purificação ocorria pelo “completo e convicto arrependimento”. Clemente via o batismo como o sinal externo da uma realidade interna e espiritual pelo qual o homem foi perdoado por Deus. Isso é confirmado por outras passagens:

Por isso também vos dei leite para beber, diz ele; significando que “eu tenho instilado em vocês o conhecimento que a partir da instrução, alimenta-os para a vida eterna” (...) Ao dizer, portanto, eu lhe dei leite para beber, não está indicando o conhecimento da verdade, a alegria perfeita na Palavra que é o leite? (O Pedagogo, Livro I, Cap. 6)

Mas acima de tudo é necessário lavar a alma com a Palavra purificadora (...) O Logos disse como iria operar tal purificação dizendo: "No espírito de julgamento e no espírito de purificação". O banho do corpo é feito apenas com água, como ocorre com mais frequência nos campos onde não existem instalações para banho. (Ibid., Livro III, Cap. 9)

Receba a água da palavra; lavai-vos da sujeira; purificai-vos dos costumes, por aspersão com as gotas da verdade. (Exortação aos pagãos, Cap. 10)

Ela que têm fornicado vivendo em pecado, e está morta para os mandamentos; mas se ela se arrepender, sendo como se tivesse nascido de novo pela mudança em sua vida, tem a regeneração da vida; a velha prostituta estando morta, e ela que tem se regenerado pelo arrependimento tendo novamente a vida. (Stromata, Livro II, cap. 23)

A partir de uma visão geral dos escritos de Clemente, percebemos que via a regeneração acontecendo antes da descida às águas. Ele conecta a regeneração à Palavra, fé e o arrependimento.

Tertuliano (160-220)

Bem-aventurado é o nosso sacramento da água, no qual, pela limpeza dos pecados de nossa cegueira primitiva, somos livres e aceitos para a vida eterna. (Batismo, cap. 1)

Essa e outras citações da mesma obra são amplamente utilizadas pelos católicos como prova da regeneração batismal. Sigamos para ter uma visão geral do pensamento de Tertuliano:

Nós temos do mesmo modo uma segunda fonte, [essa] de sangue, a respeito do qual o Senhor disse: "eu tenho que ser batizado com o batismo", quando Ele já havia sido batizado. Pois Ele veio por meio de água e sangue, assim como João escreveu [1 João 5:6]; para que ele pudesse ser batizado pela água e glorificado pelo sangue; para nos fazer, de maneira semelhante, chamados pela água, [mas] escolhidos pelo sangue. Ele enviou esses dois batismos pela ferida em seu lado perfurado, a fim de que os que creem no seu sangue possam ser banhados com a água; eles que tinham sido banhados na água da mesma forma podem beber o sangue. Este é o batismo que tanto está no lugar dos banhos da fonte quando esse não foi recebido, e o restaura quando perdido. (Ibid., cap. 16)

No seu tratado sobre o batismo, Tertuliano combate uma heresia que pregava a não necessidade do batismo. Por esse motivo, ele utiliza linguagem hiperbólica. Mas, da citação acima percebemos que ele acreditava que a água batismal apenas representava o batismo do coração obtido através do sangue de Cristo, chamado de batismo de sangue.

Pois essa árvore num mistério foi no passado com ela que Moisés adoçou a água amarga; onde as pessoas, que estavam perecendo de sede no deserto, beberam e reviveram; assim como nós que tirados das calamidades do paganismo em que permanecíamos perecendo de sede (isto é, privados da palavra divina), bebemos pela fé que há nele a água batismal da árvore da paixão de Cristo, tendo revivido na fé da qual Israel tem se distanciado. (Resposta aos Judeus, 13)

Tertuliano diz que a paixão de Cristo é uma água batismal bebida pela fé que fez os antes pagãos reviverem. Perceba que ele tem em vista a fé no sacrifício de Cristo e não a aplicação da água.

E assim, de acordo com as circunstâncias e disposição, e até mesmo a idade de cada indivíduo, o atraso do batismo é preferível; principalmente no caso de crianças pequenas (...) Por que neste período inocente da vida apressar a remissão de pecados? Mais cuidado será exercido em assuntos mundanos, de modo que aquele que não é de confiança com a substância terrena é confiável com a divina! Deixe-os saber como pedir pela salvação, que você pode fazer parecer (pelo menos) ter sido dada a eles que perguntam (...) Se alguém entender o peso do batismo, eles vão temer a sua recepção mais do que o seu atraso: Fé prudente é o seguro da salvação. (Batismo, 18)

No capítulo 12, Tertuliano defende a necessidade do batismo para a salvação. Isso, por si só, não prova a regeneração batismal. Ele poderia acreditar que o batismo é uma obra que todo cristão já regenerado deve fazer, caso contrário, estaria cometendo pecado grave e perdendo a salvação. Dessa forma, a regeneração batismal implica na necessidade do batismo para salvação, mas, o último não implica necessariamente no primeiro. Porém, o argumento na citação acima torna o pensamento de Tertuliano contraditório. Se o batismo era necessário para a salvação, que vantagem haveria em atrasá-lo? Adiar o batismo significaria aumentar as chances de morrer sem estar salvo. Talvez Tertuliano tenha sido inconsistente ou talvez não acreditasse que o batismo fosse sempre necessário.

Essa lavagem batismal é um revestimento da fé, na qual a fé é iniciada e é recomendada pela fé do arrependimento. Não somos lavados para que possamos parar de pecar, mas porque paramos, já que no coração fomos lavados. (Sobre o Arrependimento, 6)

Aquele que iria se batizar já havia sido batizado no coração. Ou seja, a regeneração já havia acontecido. O batismo nas águas seria a confirmação e publicação dessa realidade anterior e interna. As declarações hiperbólicas desse pai da Igreja sobre o batismo precisam ser lidas a luz de todos os seus escritos, o que mostrará que ele via a regeneração acontecendo antes do batismo.

Hipólito de Roma (170-236)

O Pai da imortalidade enviou o Filho imortal e a Palavra para o mundo, que veio para o homem, a fim de lavá-lo com água e Espírito; e Ele, gerando-nos novamente para a incorruptibilidade da alma e do corpo, soprou em nós o fôlego (espírito) da vida, e nos dotado com uma panóplia incorruptível. Se, portanto, o homem tornou-se imortal, ele também será Deus. E se ele é feito Deus pela água e pelo Espírito Santo, após a regeneração da camada, ele é também co-herdeiro com Cristo após a ressurreição dos mortos. Pelo que eu prego a este efeito: Vinde, vós todas as tribos das nações, para a imortalidade do batismo. (Discurso sobre a Santa Teofania 8)

Essa obra – Discurso sobre a Santa Teofania – é um ensaio sobre o batismo de Jesus e o significado das palavras de Deus nesse momento “Tu és meu filho amado” e a descida do Espírito Santo sobre Cristo na forma de pomba. Se as palavras forem tomadas literalmente, implicariam em regeneração batismal. O problema é que o próprio Hipólito disse que suas palavras deveriam ser tomadas figuradamente:

Você acabou de ouvir como Jesus veio a João, e foi batizado por ele no Jordão. Oh coisas estranhas incomparáveis! Como deveria ser imenso o rio que alegra a cidade de Deus, tendo sido mergulhado em um pouco de água! A nascente ilimitada que nutre a vida a todos os homens, e não tem fim, foi coberto por pobres e temporárias águas! Aquele que está presente em todos os lugares e ausente de nenhum - que é incompreensível aos anjos e invisível ao homem, foi ao batismo de acordo com sua própria vontade. Quando vocês ouvem essas coisas amados, não as tomem como se falado literalmente, mas as aceite como apresentadas numa figura. Por isso, o Senhor não estava despercebido do elemento da água, na qual Ele em secreto, em sua bondade preocupou-se com o homem. (Ibid., cap. 2)

Jesus foi batizado literalmente no rio Jordão. Como veremos a seguir, Hipólito cria que o batismo de Jesus era uma figura da sua morte na cruz:

Este é o meu Filho amado” (...) que está ferido e ainda confere liberdade sobre o mundo. Que é perfurado em seu lado, e ainda repara o lado de Adão. (Ibid., cap. 7)

O batismo de Jesus no rio Jordão cumpriria Gênesis 49:11, sendo uma figura da lavagem que ocorreria na cruz. O manto que Jesus trajava ao ser batizado prefiguraria as nações que seriam lavadas pelo sangue e água que escorreram de Cristo na cruz:

Ele lavará a sua roupa no vinho" [Gênesis 49:11a], ou seja, de acordo com a voz de seu Pai que desceu pelo Espírito Santo no Jordão. "E suas roupas no sangue da uva" [Gênesis 49: 11b]. No sangue de qual uva então? mas apenas em sua própria carne, que foi pendurada na árvore como um cacho de uvas. A partir daquele lado também fluiu duas correntes, de sangue e água, em que as nações são lavadas e purificadas, no qual [as nações] Ele supôs ter como um manto sobre Ele. (Tratado sobre Cristo e Anticristo, 11)

O Evangelho menciona que Jesus foi perfurado, tendo saído sangue e água de seu lado (Jo 19:32-34). Hipólito via nesse fato o cumprimento da profecia de Gênesis 49:11: “ele lavará a sua roupa no vinho, e a sua capa em sangue de uvas”. Esse momento da paixão de Cristo é conectado ao momento do batismo em que o manto de Cristo prefigurava as nações do mundo que seriam purificadas pelo seu sacrifício vicário. Portanto, quando ele se refere ao homem sendo purificado e lavado, está se referindo ao sacrifício de Cristo e não ao batismo. A ideia é que o batismo de Jesus que prefigurava o seu sacrifício e não o nosso próprio batismo é que lavaria o homem com sangue e água:

Vocês veem amados, quantas e quão grandes bênçãos teríamos perdido, se o Senhor tivesse se rendido à exortação de João e recusasse o batismo? Os céus foram fechados antes desse; a região superior era inacessível. Teríamos nesse caso descido para as partes inferiores, e não ascenderíamos as superiores. Mas só por isso o Senhor foi batizado? Ele também renovou o velho homem e pegou novamente o cetro da adoção. Os céus se abriram para ele. A reconciliação ocorreu do visível com o invisível. As ordens celestes estavam cheias de alegria; as doenças da terra foram curadas; coisas secretas foram feitas conhecidas; aqueles em inimizade foram restaurados à amizade. (Capítulo 6)

Toda a argumentação de Hipólito que relaciona regeneração e purificação ao batismo não se refere ao batismo pessoal, mas ao batismo de Cristo. Será então que Hipólito cria que o batismo de Cristo nos regenerava? Não é o caso. O ponto é que o batismo de Cristo apontava para a sua obra na cruz. Essa sim traria todos os benefícios aludidos na citação acima. Através dela o homem é reconciliado com Deus e a nossa regeneração garantida. Voltemos à primeira citação de Hipólito que os católicos costumam usar:

O Pai da imortalidade enviou o Filho imortal e a Palavra para o mundo, que veio para o homem, a fim de lavá-lo com água e Espírito; e Ele, gerando-nos novamente para a incorruptibilidade da alma e do corpo, soprou em nós o fôlego (espírito) da vida, e nos dotado com uma panóplia incorruptível. Se, portanto, o homem tornou-se imortal, ele também será Deus. E se ele é feito Deus pela água e pelo Espírito Santo, após a regeneração da camada, ele é também co-herdeiro com Cristo após a ressurreição dos mortos. Pelo que eu prego a este efeito: Vinde, vós todas as tribos das nações, para a imortalidade do batismo. (Discurso sobre a Santa Teofania 8)

É importante ver o que havia antes desse trecho para vermos o contexto:

Mas dê-me agora a sua melhor atenção, peço-vos, pois desejo voltar à fonte da vida, e ver a fonte que jorra com a cura. O Pai da imortalidade enviou o Filho imortal e Palavra ao mundo, que veio ao homem, a fim de lavá-lo com a água e o Espírito.

Tanto nesse cap. 8 como no cap. 2 já mostrado acima, ele fala de Jesus usando figuras relacionadas à água: “fonte da vida”, “imenso rio que alegra a cidade de Deus”, “a nascente ilimitada que nutre a vida a todos os homens”. Já em relação às aguas do rio Jordão no qual Cristo foi batizado, ele disse no cap. 2: “foi coberto por pobres e temporárias águas”. Vejam a dicotomia, enquanto Jesus era a fonte da vida que sustenta os homens, as águas do batismo são pobres e temporárias. Seria uma forma estranha de se referir às águas que supostamente regeneram. Isso nos permite concluir que quando Hipólito diz que o homem é “lavado pela água”, está se referindo a Cristo e não às aguas batismais.

Hipólito via a paixão de Cristo e não as águas do batismo como a pia da regeneração. Em seus comentários sobre o apócrifo Daniel 13, ele via Suzana como uma figura da Igreja. Em algum momento Suzana se lava numa pia e Hipólito vê essa pia como uma figura do sacrifício pascoal de Cristo:

Enquanto observavam um momento oportuno. O tempo ajustado, mas como da festa da Páscoa, na qual a pia é preparada no jardim para aqueles que se abrasam, e Suzana se lava, sendo apresentada como uma virgem pura a Deus? Com apenas duas servas. Quando a Igreja deseja tomar a pia de acordo com o uso, ela tem necessidade de duas servas para acompanhá-la, pois é pela fé em Cristo e amor a Deus que a Igreja confessa e o recebe. (Fragmentos, Sobre Suzana, 15)

Ele diz que a pia de banho é preparada na festa da páscoa, fazendo alusão à obra de Cristo. Suzana que seria a Igreja toma esse banho, sendo após isso apresentada a Deus como uma virgem pura. Suzana precisa de duas servas para tomar esse banho: a fé em Cristo e o amor a Deus. Dessa forma, a Igreja é lavada por Cristo ao crer em sua obra salvadora e amar o seu Senhor. Hipólito, longe de acreditar na regeneração batismal, cria na regeneração pela palavra de Deus:

Essa é a nossa fé a todos os homens, - ... E nessas prescrições que Deus deu à Palavra. Mas a Palavra declarada por Ele promulgou os mandamentos divinos, transformando o homem da desobediência, não o trazendo à servidão por força da necessidade, mas convocando-o à liberdade através de uma escolha que envolve espontaneidade. (Refutação de todas as heresias, livro X, cap. 29).

Essa é a verdadeira doutrina a respeito da natureza divina, ó homens ... Não dediquem a sua atenção às falácias dos discursos artificiais, nem as promessas vãs dos hereges plagiadores, mas à simplicidade venerável da verdade despretensiosa. Por meio desse conhecimento você deve escapar da ameaça do fogo do julgamento que se aproxima, e o cenário do Tártaro sombrio, onde nunca brilha um raio da voz irradiada da Palavra! ... Agora [tormentos] como esses você deve evitar ao ser instruído num conhecimento do verdadeiro Deus. Você deve possuir um corpo imortal, colocado para além da possibilidade de corrupção, assim como a alma. ... Porque você tem sido deificado e gerado para a imortalidade. (Ibid., cap. 30).

Nessa obra – refutação de todas as heresias – ele pretende refutar todas as heresias de seu tempo, sendo algumas delas relacionadas ao batismo. É de interesse notar que em nenhum momento cita a regeneração batismal como uma heresia relacionada ao batismo.

Orígenes (?-254)

Nós comentamos na seguinte passagem que o batismo de João era inferior ao batismo de Jesus, que foi dado por meio de seus discípulos. Essas pessoas em Atos (Atos 19:2) que foram batizadas com o batismo de João, e que não tinha ouvido falar se havia algum Espírito Santo, são batizadas novamente pelo apóstolo. Regeneração não ocorreu com João, mas com Jesus através de seus discípulos, [regeneração] que é chamada de banho da regeneração ocorrida com a renovação do Espírito, pois o Espírito agora vem em adição, uma vez que vem de Deus e está acima da água e não vem para todos depois da água. (Comentário sobre João, Livro VI, cap. 17)

O Espírito estava acima da água e não vinha para todos depois d’agua. Ele está comentando sobre aqueles que tinham recebido o batismo de João, mas não haviam recebido o batismo de Jesus e o Espírito Santo. Cumpre observar que nessa passagem, o Espírito Santo não usa a água como instrumento, pois ele só vem sobre as pessoas depois da água. Orígenes é uma testemunha explícita contra a regeneração batismal. Embora alguns católicos utilizem a passagem acima para dizer o contrário, percebemos que a regeneração se dava pela renovação do Espírito Santo e não pela aplicação da água. Ele cria que o batismo simbolizava a renovação anterior já ocorrida. Isso ficará mais explícito em outras passagens:

E aqui devemos notar que as obras maravilhosas feitas pelo Salvador nas curas realizadas são símbolos daqueles que em algum momento são libertos pela palavra de Deus de qualquer doença ou enfermidade. Embora fossem feitas para o corpo e trouxeram alívio corporal, também chamam os beneficiados para um exercício de fé, de modo que a lavagem com água, que é um símbolo da alma limpando-se de toda mancha de maldade, não é menos aos que se rendem ao poder divino da invocação da adorável Trindade, o início e fonte dos dons divinos; pois há diversidade de dons. (Comentário do Evangelho de João, Livro 6, cap. 17)

“Que é um símbolo da alma limpando-se de toda mancha da maldade”. Uma negação explícita da doutrina romana. Origines compreendeu que a regeneração é uma obra interna no coração do pecador. O batismo é o símbolo dessa realidade antecedente. O mesmo pensamento é desenvolvido em seu comentário sobre o Evangelho de Mateus, em que as doenças que Jesus curou eram um símbolo da "paralisia na alma" dos cegos de alma e surdos de alma (Comentário ao evangelho de Mateus, Livro XIII, capítulo 4), e que os fariseus deveriam se esforçar para "lavar as mãos de [suas] almas" em vez de criticar os discípulos de Jesus por não lavar as mãos de carne (Comentário ao evangelho de Mateus, Livro XI, Capítulo 8). Em suma, Orígenes enxerga o batismo, as curas e as libertações como apontando para realidades espirituais.

Mas a respeito do significado do batismo, temos falado com o melhor de nossa habilidade que pudéssemos ter, ou melhor, que o Senhor concedeu livremente, quando estávamos explicando o Evangelho segundo João, quando ele trouxe a passagem onde ele diz de Jesus: "ele mesmo vos batizará no Espírito Santo", e novamente, onde o próprio Salvador diz: "a menos que alguém nasça de novo da água e do Espírito, não poderá entrar no reino de Deus". Nessa passagem, nós tentamos revelar a força dessa expressão mais profundamente, em que é dito "a menos que alguém nasça de novo". O que nós latinos falamos usando "novo", os gregos dizem ἄνωθεν que significa tanto "novo" como "de cima". Nessa passagem, todo aquele que é batizado por Jesus é batizado no Espírito Santo, sendo adequado ser entendido não como "de novo", mas como "de cima", pois dizemos "de novo" quando as mesmas coisas que já aconteceram são repetidas. No entanto, aqui o mesmo nascimento não é repetido ou feito uma segunda vez, mas esse [nascimento] terreno é colocado de lado e um novo nascimento de cima é recebido. Por essa razão, gostaríamos de ler de forma mais precisa o texto do Evangelho como: "A menos que alguém nasça novamente de cima, não poderá entrar no reino de Deus". Esse se refere a ser batizado no Espírito Santo. Por essa razão, o batismo é confirmado para ser "de cima", não sendo inapropriada a água, que está sobre os céus e louva o nome do Senhor, ligada ao Espírito Santo. Embora todos nós possamos ser batizados nessas águas visíveis e numa unção visível, de acordo com a forma transmitida às igrejas, no entanto, a pessoa que morreu para o pecado e verdadeiramente está batizada na morte de Cristo, sendo enterrada com ele na morte pelo batismo, é o único que está verdadeiramente batizado no Espírito Santo e com a água de cima. (Comentário sobre Romanos, 6:3-4, seção 8.3)

Primeiro você deve morrer para o pecado, para que possa ser sepultado com Cristo [no batismo]. (Ibid., seção 8.4).

A regeneração seria aplicada pelo Espírito Santo antes do batismo. Este envolve “águas visíveis e numa unção invisível”, mas o batismo no Espírito viria com a “água de cima”. Há um paralelismo entre a renovação espiritual com a água de cima e o rito com a água visível que aponta a regeneração já ocorrida. Assim como Tertuliano, esse cristão de Alexandria acredita que o catecúmeno já deveria ter morrido para o pecado e só então seria batizado, ou seja, a regeneração não era consequência do batismo, mas causa. Não era procedente, mas antecedente.

Agora ele é chamado de a luz dos homens, a verdadeira luz e a luz da palavra, porque Ele ilumina e irradia as partes mais altas dos homens, ou, em uma palavra, de todos os seres razoáveis. E da mesma forma é a partir e por causa da energia que ele produz que o velho amortecido é posto de lado e o que é a vida por excelência é trazida a tona. Assim, os que realmente o receberam levantam dos mortos, o que Ele chama de ressurreição. E isso ele não apenas faz no momento em que o homem diz: "Fomos sepultados com Cristo pelo batismo e ressurgimos novamente com Ele" [Romanos 6: 4], mas muito mais quando o homem, depois de deixar tudo que pertence à morte, anda em novidade da vida que pertence a Ele, o Filho [2 Coríntios 4:10]. (Comentário ao Evangelho de João, Livro I, cap. 25)

Orígenes ensina que Jesus vivifica o homem e isso não acontece no momento da aplicação da água, mas quando o homem deixa sua velha vida e passa a viver as boas novas de Cristo. Portanto, independente do momento do batismo, é quando o homem passa a viver essa nova vida que a regeneração acontece.

Cipriano (?-258)

O Espírito Santo fala nas Sagradas Escrituras e diz: "Pela esmola e pela fé pecados são remidos". Não seguramente os pecados que tinham sido anteriormente cometidos, pois esses são purificados pelo sangue e santificação de Cristo. Além disso, ele diz novamente: "Como a água apaga o fogo, a esmola apaga o pecado" [Eclesiástico 03:30]. Aqui também é mostrado e provado que como na pia da água de salvação, o fogo do inferno é extinto, também pela esmola e as obras de justiça, a chama dos pecados é vencida. E porque no batismo de remissão dos pecados é admitido uma vez por todas, o trabalho constante e incessante, seguindo a aparência do batismo, mais uma vez concede a misericórdia de Deus. (Tratado 8)

Cipriano de fato defendeu a regeneração batismal, embora parece ter sido inconsistente em outros momentos, como na citação abaixo:

Você perguntou também filho querido o que eu achava daqueles que chegaram à graça de Deus na doença e fraqueza, se eles devem ser considerados cristãos legítimos, para que eles não sejam lavados, mas aspergidos com a água da salvação. Nesse ponto, a minha timidez e modéstia não pré-julgam ninguém, de modo a prevenir alguém da percepção que ele acha correta, e de fazer o que ele sente ser correto. Quanto ao que meu pobre entendimento concebe, eu acho que os benefícios divinos não podem em nenhum sentido ser mutilado e enfraquecido; nem pode qualquer coisa menor ocorrer nesse caso, onde com fé plena e completa, tanto o doador e o receptor, são aceitos no que é formado a partir dos dons divinos. No sacramento da salvação, o contágio dos pecados não é sensatamente lavado da mesma maneira que a sujeira da pele e do corpo é lavada no banho carnal e comum, no qual é preciso de sabão e outras aplicações também e um banheiro e uma bacia na qual este corpo vil deve ser lavado e purificado. Desse modo é o peito do crente lavado; Do outro modo, é a mente do homem purificada pelo mérito da fé. (Epístola 62:8)

Ao responder sobre a possibilidade de batizar por aspersão àqueles que se converteram estando fracos e doentes, Cipriano diz que a mente do homem é purificada pela fé, que logicamente antecede o batismo. Deve se observar que os apelos dos católicos a Cipriano, no que concerne ao batismo, são seletivos e inconsistentes. O bispo de Cartago nos ofereceu uma das mais claras evidências contra o papado na Igreja antiga, ao contrariar o ensino do bispo romano Estevão que admitia o batismo herético. Cipriano se opôs fortemente a essa doutrina, contrariando qualquer pretensão de autoridade universal do bispo de Roma. Além disso, ele ensinou que o Espírito Santo não era recebido no batismo, mas após, através da imposição de mãos:

Mas, além disso, não se nasce pela imposição de mãos, quando ele recebe o Espírito Santo, mas no batismo, para que assim, sendo já tendo nascido [no batismo], ele possa receber o Espírito Santo [pela imposição de mãos]. (Epístola 73:5)

Cipriano interpretava “nascer da água e do espírito” como se referindo a dois sacramentos separados:

É uma questão pequena impor as mãos sobre eles para que possam receber o Espírito Santo, a menos que também recebam o batismo da Igreja. Assim, finalmente, eles podem ser totalmente santificados, e ser filhos de Deus, se nascerem de cada sacramento. (Epístola 73:5)

E, portanto, cabe àqueles que devem ser batizados que vêm da heresia para a Igreja, que então eles sejam preparados no legítimo, verdadeiro e único batismo da santa Igreja, pela regeneração divina, para o reino de Deus, que nasçam de ambos os sacramentos, porque está escrito: a menos que o homem não nasça da água e do Espírito, não poderá entrar no reino de Deus. (Epístola 72:21)

Esse não era um ensino particular de Cipriano, o sétimo concílio de Cartago, convocado para rebater o batismo herético, testemunha:

Nemesianus de Thubunae disse: Que o batismo que hereges e cismáticos dão não é o verdadeiro, está em todos as partes declarado nas Sagradas Escrituras (...) Esse é o Espírito que desde o início foi levado sobre as águas; pois nem pode o Espírito operar sem a água, nem a água sem o Espírito. Certas pessoas interpretam malvadamente por si mesmas, quando dizem que por imposição das mãos eles recebem o Espírito Santo, e estão portanto recebidos, quando é manifesto que eles devem nascer de novo na Igreja Católica por ambos os sacramentos.

A doutrina batismal de Cipriano poderia ser semelhante à católica romana em certos pontos, mas a contrariava em outros de forma substancial. Se os católicos podem discordar desse bispo, porque os protestantes também não poderiam?

Gregório Taumaturgo (213-270)

Há um mistério, o que dá nestas águas a representação dos fluxos celestiais da regeneração dos homens. (Quatro Homilias, IV homilia)

Batiza-me, eu que estou destinado a batizar aqueles que acreditam em mim com água e com o Espírito Santo, e com fogo: com água, capaz de lavar a corrupção dos pecados; com o Espírito, capaz de fazer o mudando, espiritual; com o fogo , naturalmente equipado para consumir os espinhos das transgressões. (Quarto Homilia, III Homilia)

O site apologistas católicos traz essas citações. Gregório foi o único em que tive o cuidado de verificar a fonte e percebi que a segunda citação não se encontra na III homília que pode ser vista aqui. Outro problema é que essas homilias são de origem duvidosa. O católico romano Thomas Livius, usando as homilias em sua obra sobre "The Blessed Virgin in the Fathers of the First Six Centuries”, as cita com reserva: "Essas Homilias são de autenticidade duvidosa" (Livius, p 48n).

Argumentos históricos adicionais sobre a necessidade do batismo para a salvação

Na Igreja apostólica, a pessoa era batizada assim que se convertia. O caso do Eunuco evangelizado por Felipe evidencia essa prática (Atos 8). No segundo século, a prática mudou. Uma pessoa passava um bom tempo numa classe de catecúmenos até ser batizado, há evidência de que essas classes poderiam durar meses ou até um ano. Isso mostra que os cristãos não acreditavam na necessidade do batismo para a salvação. Afinal, quem submeteria alguém a uma espera tão longa que poderia comprometer sua própria salvação?

Outro ponto é que muitos cristãos adiavam o batismo ao máximo, só o recebendo no fim da vida. Pensava-se que após o batismo, o cristão poderia cometer pecado mortal apenas uma vez, ou seja, não havia um segundo arrependimento. Por isso, era seguro ser batizado apenas no fim da vida. Ninguém parecia pressupor que essas pessoas não eram cristãs. Se elas de fato acreditassem que o batismo era necessário para a salvação, não adiariam tanto tempo, correndo um risco maior do que a possibilidade de cometer pecado mortal mais de uma vez.

Destacamos também que alguns pais da Igreja como Orígenes, Gregório de Nissa e provavelmente Clemente de Alexandria acreditavam na salvação universal, algo que tratamos com mais detalhes em nosso artigo sobre os pais e o purgatório aqui. Portanto, para eles o batismo não seria necessário para a salvação.

É notável também que alguns pais recomendaram atrasar o batismo como Tertuliano e Gregório Nazianzo, que escreveu:

Que assim seja, alguns dirão, no caso daqueles que perguntam sobre o batismo; o que você tem a dizer sobre os que ainda são crianças, e não conscientes nem do pecado nem da graça. Devemos batizá-los também? Certamente (...) Mas em relação aos outros [infantes] dou o meu parecer de que se deve esperar até o final do terceiro ano, ou um pouco mais ou menos, quando eles podem ser capazes de ouvir e de responder algo sobre o Sacramento, para que, mesmo que eles não se possam compreendê-lo perfeitamente, mas de qualquer forma eles podem conhecer os contornos, e, em seguida, para santificá-los na alma e no corpo com o grande sacramento da nossa consagração. (Orações 40:28)

Se do batismo dependia a salvação, esses homens não fariam tais recomendações. Figuras proeminentes como o próprio Gregório, Agostinho e João Crisóstomo, mesmo sendo filhos de pais cristãos piedosos, só foram batizados quando adultos. O grande historiador e defensor do batismo infantil Philip Schaff confirma:

Constantino sentou-se entre os pais no grande Concílio de Nicéia, e deu efeito jurídico aos seus decretos, e ainda adiou o seu batismo até o leito de morte. Os casos de Gregório de Nazianzeno, Crisóstomo, e Santo Agostinho, que tinham mães de piedade exemplar, e que ainda não foram batizados antes de vida adulta, mostram suficientemente a liberdade considerável prevaleceu a este respeito, mesmo nas idades nicena e pós-nicena. (History of the Christian Church: Vol. 2, Ch. 05, § 073)

Pais cristãos piedosos adiando o batismo dos filhos sugere o contrário do ensino católico romano. Lembremos ainda, que diferente da posição defendida por muitos na idade média de que crianças não batizadas não eram salvas, pais como Irineu defenderam explicitamente a salvação infantil:

E novamente, quem são os que foram salvos e receberam a herança? Aqueles que sem dúvidas, creram em Deus e continuaram em Seu amor, como fez Calebe e Josué, filho de Num e as crianças inocentes, que não tinha noção do mal. (Contra as Heresias, 4:28:3)