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quarta-feira, 28 de maio de 2025

UMA CRÍTICA PROTESTANTE À TEORIA DO DESENVOLVIMENTO DA DOUTRINA DE JOHN HENRY NEWMAN

Olá caros leitores. Após longo hiato, resolvi voltar ao trabalho apologético. Darei seguimento a publicação de novos artigos neste blog, e também criaremos um canal no youtube e página no instagram para melhor divulgação dos artigos aqui publicados (os links serão divulgados nos próximos dias). 

Abaixo, segue uma crítica resumida a teoria do desenvolvimento da doutrina de Newman, que me parece estar sendo cada vez mais abraçada pela apologética católica a fim de justificar as inovações da Igreja de Roma. Já temos alguns artigos (aqui e aqui) sobre o tema que demonstram como a própria adoção dessa teoria é uma ruptura na tradição católica, uma vez que Roma historicamente defendeu suas doutrinas como uma tradição contínua e explícita que remontaria até o período apostólico. Nos próximos dias também traremos a crítica tomista à teoria de Newman.

A teoria do desenvolvimento da doutrina, formulada por John Henry Newman em sua obra seminal An Essay on the Development of Christian Doctrine (1845), tornou-se um dos pilares da teologia católica moderna. Sua função principal é justificar a legitimidade de doutrinas que não possuem testemunho explícito ou uniforme nos primeiros séculos da Igreja, como a infalibilidade papal (dogmatizada em 1870) e a assunção corporal de Maria (1950). Contudo, sob uma perspectiva protestante, essa teoria sofre de múltiplos vícios: relativiza a suficiência e clareza da Escritura, apresenta critérios subjetivos e repousa, em última instância, sobre uma circularidade epistemológica.

1 A doutrina cristã como depósito fixado

Na tradição protestante, a doutrina cristã consiste em um depósito de fé fixado e completo na Escritura: “a fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos” (JUDAS 1.3). O apóstolo Paulo instrui Timóteo: “Guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós” (2 TIMÓTEO 1.14). Esse “depósito” (parakatathēkē) não é um germe de futuras inovações, mas uma entrega plena e definitiva da verdade revelada.

Como afirmou João Calvino: “O Espírito não é autor de novas revelações, ou de alguma doutrina inovadora, mas sim o fiel intérprete da revelação existente” (CALVINO, 2006, p. 109).

Portanto, a função da Igreja é interpretar e aplicar a Escritura, não criar novas doutrinas. O sola Scriptura assegura que não há necessidade de um “desenvolvimento” para além da Palavra inspirada.

2 A crítica protestante aos sete critérios de Newman

Newman propôs sete “notas” para distinguir entre desenvolvimentos legítimos e corrupções (NEWMAN, 1890). Embora apresentem aparência de rigor metodológico, tais critérios são falhos em termos lógicos e teológicos.

2.1 Preservação do tipo

Newman propõe que um verdadeiro desenvolvimento mantém o “tipo” original da doutrina: “Um desenvolvimento verdadeiro, enquanto se amplia, permanece fiel ao tipo do qual deriva” (NEWMAN, 1890, p. 170).

O conceito de “tipo” é altamente maleável. Como determinar, por exemplo, que a doutrina da infalibilidade papal preserva o “tipo” da liderança apostólica, sendo que Pedro jamais reivindicou infalibilidade pessoal? A definição de “tipo” acaba sendo delimitada pelo próprio magistério eclesiástico, resultando em circularidade hermenêutica.

Como observou Oberman: “a insistência na preservação do tipo serve mais para justificar retroativamente doutrinas do que para avaliá-las criticamente” (OBERMAN, 1986, p. 52).

2.2 Continuidade de princípios

Para Newman, desenvolvimentos legítimos mantêm princípios fundamentais da doutrina original.

Princípios isolados podem ser estendidos de forma indevida. Por exemplo, o princípio da honra a Maria pode ser “desenvolvido” até culminar na Imaculada Conceição ou na Assunção, ainda que tais doutrinas não tenham qualquer fundamento claro na Escritura ou na tradição patrística primitiva.

Como escreveu Whitaker: “Não devemos confundir consequências artificiais com a verdade divina revelada” (WHITAKER, 1849, p. 180).

2.3 Poder de assimilação

Segundo Newman, uma doutrina verdadeira assimila elementos de seu ambiente cultural e intelectual.

Este critério valoriza o sincretismo como evidência de autenticidade. Mas a assimilação cultural pode facilmente degenerar em corrupção. O exemplo clássico é a absorção de práticas pagãs no culto cristão medieval — como a veneração de relíquias e santos — frequentemente justificadas como “assimilação”, mas que representaram uma distorção do cristianismo apostólico.

Calvino alertou para esse risco: “Nada é mais perigoso para a pureza da religião do que adaptar-se aos costumes e opiniões do mundo” (CALVINO, 2006, p. 433).

2.4 Lógica sequencial

Desenvolvimentos legítimos seguem uma cadeia lógica a partir de doutrinas precedentes.

A coerência lógica não é critério suficiente de veracidade teológica. É logicamente possível, a partir da doutrina mariana tradicional, desenvolver a ideia de Maria como “co-redentora”, mas esse conceito não possui qualquer respaldo apostólico ou escriturístico.

O teólogo luterano Francis Pieper adverte: “O erro doutrinário geralmente se infiltra sob a aparência de uma conclusão lógica da verdade, mas sem base bíblica” (PIEPER, 1950, p. 87).

2.5 Antecipação precoce

Newman sugere que traços rudimentares de uma doutrina podem ser encontrados nos primeiros tempos.

Tal busca resulta, invariavelmente, em anacronismo interpretativo. Por exemplo, a veneração a Maria como Theotokos no Concílio de Éfeso (431) é retroativamente apresentada como base para a Assunção, ainda que a própria Igreja não tenha definido tal doutrina até 1950.

Kelly observa que muitos dogmas católicos “não possuem suporte claro nas crenças dominantes da Igreja primitiva” (KELLY, 1978, p. 88).

2.6 Consequente vigor

Segundo Newman, doutrinas verdadeiras mostram vitalidade e eficácia na Igreja.

Esse é um critério pragmático e falacioso: heresias também podem ser vigorosas. A teologia da prosperidade hoje possui notável “vitalidade”, mas não por isso é verdadeira.

Lutero destacou: “A verdade de Deus não depende do número de adeptos, mas da fidelidade à Escritura” (LUTERO, 1883, p. 444).

2.7 Persistência crônica

Doutrinas legítimas persistem ao longo do tempo.

A longevidade de uma crença não a valida automaticamente. A Igreja medieval, por séculos, obscureceu a doutrina bíblica da justificação pela fé, até sua redescoberta na Reforma.

Como disse Owen: “A tradição pode preservar erros com a mesma tenacidade que a verdade” (OWEN, 1965, p. 69).

3 A circularidade epistemológica: magistério e desenvolvimento

O ponto mais grave da teoria de Newman, do ponto de vista protestante, é sua dependência do magistério eclesial como árbitro último sobre o que constitui um desenvolvimento legítimo. O próprio Newman reconhece: “É pela autoridade viva da Igreja que a verdadeira doutrina se distingue das corrupções” (NEWMAN, 1890, p. 112).

Entretanto, essa autoridade magisterial é ela mesma um produto do desenvolvimento doutrinário. A infalibilidade papal, dogmatizada apenas em 1870, é agora considerada condição indispensável para autenticar outros desenvolvimentos.

Logo, tem-se aqui uma circularidade:

  1. O magistério autentica os desenvolvimentos.

  2. O magistério é um desenvolvimento.

Cunningham identificou este problema já no século XIX: “O apelo ao magistério é um círculo vicioso: ele legitima os desenvolvimentos que, por sua vez, legitimam o magistério” (CUNNINGHAM, 1862, p. 85).

Em contraste, o protestantismo apela à Escritura como única autoridade normativa, livre desse círculo.

4 Desenvolvimento ou corrupção?

Para a teologia reformada, o desenvolvimento legítimo ocorre como aprofundamento na compreensão da revelação já dada, não como acréscimo de novos conteúdos normativos. O ensino clássico expressa-se bem na Confissão de Fé de Westminster: “O conselho inteiro de Deus [...] ou é expressamente declarado na Escritura, ou pode ser logicamente deduzido dela” (WESTMINSTER, 1996, cap. 1, art. 6).

A teoria de Newman, ao admitir novos conteúdos dogmáticos sob o nome de “desenvolvimento”, dissolve a suficiência da Escritura e exalta a tradição eclesial a uma posição normativa paralela.

Heinrich Heppe resume a posição reformada: “A Igreja não pode desenvolver doutrina; ela só pode confessar novamente o que foi revelado de uma vez por todas” (HEPPE, 1978, p. 8).

Conclusão

Embora a teoria de Newman busque oferecer um modelo histórico plausível para a evolução das doutrinas católicas, ela falha em fornecer critérios objetivos, incorre em circularidade epistemológica e relativiza a autoridade normativa da Escritura. A tradição protestante, por sua vez, permanece firme no princípio sola Scriptura, reconhecendo a Escritura como a regra infalível de fé e prática, completa em si mesma e não dependente de desenvolvimentos doutrinários subsequentes.


Referências

CALVINO, João. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.

CUNNINGHAM, William. Historical Theology. Edinburgh: T&T Clark, 1862. v. 1.

HEPPE, Heinrich. Reformed Dogmatics. Grand Rapids: Baker, 1978.

KELLY, J. N. D. Early Christian Doctrines. San Francisco: Harper, 1978.

LUTERO, Martinho. Weimarer Ausgabe (WA). v. 7. Weimar: H. Böhlau, 1883.

NEWMAN, John Henry. An Essay on the Development of Christian Doctrine. London: Longmans, Green, 1890.

OBERMAN, Heiko A. The Dawn of the Reformation. Edinburgh: T&T Clark, 1986.

OWEN, John. The Works of John Owen. Edinburgh: Banner of Truth, 1965. v. 1.

PIEPER, Francis. Christian Dogmatics. St. Louis: Concordia, 1950. v. 1.

WESTMINSTER. Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: PES, 1996.

WHITAKER, William. A Disputation on Holy Scripture. Cambridge: Cambridge University Press, 1849.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O Desenvolvimento da Doutrina vs A Tradição Católica Romana


Quem deseja entender o catolicismo moderno precisa conhecer a Teoria do Desenvolvimento da Doutrina de Newman. Recomendo que leiam o artigo sobre o novo conceito de tradição adotado por Roma (aqui). Uma das maiores (talvez a maior mudança) nos ensinamentos do magistério romano foi seu novo conceito de Tradição. Roma historicamente ensinou que seus dogmas sempre foram cridos pela Igreja. A igreja romana ensinava que suas doutrinas atendiam aos critérios da regra de Vicente de Lérins (crido por todos, sempre e em todos os lugares). Essa visão foi articulada pelos Concílios de Trento e Vaticano I.

Ocorre que tal reivindicação é indefensável a luz da história da Igreja. É reconhecido pelos historiadores católicos que doutrinas como Assunção de Maria e Papado eram desconhecidas nos primeiros séculos. Como conciliar a falta de evidências históricas para tais doutrinas e o atual ensinamento da Igreja romana? A resposta é que a fé cristã não teria sido completamente compreendida pelos primeiros cristãos ou até mesmo pelos apóstolos. Só depois de muita reflexão, combates a heresias e desenvolvimentos é os dogmas católicos vieram a luz. Por isso, os proponentes do desenvolvimento não têm problema em admitir que os pais da igreja primitiva não criam ou até mesmo contradiziam muito do que mais tarde seria definido como dogma (a imaculada conceição é exemplo por excelência). Newman reconhece:

Enquanto os Apóstolos estavam na terra, não havia bispo ou papa. (Ensaio sobre o Desenvolvimento da DoutrinaCristã, Cap. 4, Seção 3)

A rigor, não há prazo para o “desenvolvimento” acontecer. Pode durar séculos. A implicação é que no futuro a igreja pode definir como dogma crenças que os católicos atuais desconhecem. A teoria do desenvolvimento tem um problema fatal. Ela, em si mesma, é um desvio da tradição católica romana. É irônico como uma teoria que deseja validar a tradição seja contrária a própria tradição. O Concílio Vaticano I afirmou:

1822. Ensinamos, pois, e declaramos, segundo o testemunho do Evangelho, que Jesus Cristo prometeu e conferiu imediata e diretamente o primado de jurisdição sobre toda a Igreja ao Apóstolo S. Pedro (...) A esta doutrina tão clara das Sagradas Escrituras, tal como sempre foi entendida pela Igreja Católica, opõe-se abertamente as sentenças perversas daqueles que, desnaturando a forma de governo estabelecida na Igreja por Cristo Nosso Senhor, negam que só Pedro foi agraciado com o verdadeiro e próprio primado de jurisdição, com exclusão dos demais Apóstolos, quer tomados singularmente, quer em conjunto. (Fonte)

Os proponentes do desenvolvimento afirmam que o primado jurisdicional de Pedro foi fruto de um processo gradual. Logo, tal entendimento não foi sempre sustentando pela igreja, o que contradiz os ditames do concílio.

1824. Porém o que Nosso Senhor Jesus Cristo, que é o príncipe dos pastores e o grande pastor das ovelhas, instituiu no Apóstolo S. Pedro para a salvação eterna e o bem perene da Igreja, deve constantemente subsistir pela autoridade do mesmo Cristo na Igreja, que, fundada sobre o rochedo, permanecerá inabalável até ao fim dos séculos. "Ninguém certamente duvida, pois é um fato notório em todos os séculos, que S. Pedro, príncipe e chefe dos Apóstolos, recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador e Redentor do gênero humano, as chaves do reino; o qual (S. Pedro) vive, governa e julga através dos seus sucessores".

1825. [Cânon] Se, portanto, alguém negar ser de direito divino e por instituição do próprio Cristo que S. Pedro tem perpétuos sucessores no primado da Igreja universal; ou que o Romano Pontífice é o sucessor de S. Pedro no mesmo primado – seja excomungado
Em outras palavras, o papado é um fato notório de todos os séculos. Ele teria sido aceito e compreendido desde o início:

1832. Esta Santa Sé sempre tem crido que no próprio primado Apostólico que o Romano Pontífice tem sobre toda a Igreja, está também incluído o supremo poder do magistério. O mesmo é confirmado também pelo uso constante da Igreja e pelos Concílios Ecumênicos, principalmente aqueles em que os Orientais se reuniam com os Ocidentais na união da fé e da caridade.

1836. (...) Pois o Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de S. Pedro para que estes, sob a revelação do mesmo, pregassem uma nova doutrina, mas para que, com a sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente o depósito da fé, ou seja, a revelação herdada dos Apóstolos. E esta doutrina dos Apóstolos abraçaram-na todos os veneráveis Santos Padres, veneraram-na e seguiram-na todos os santos doutores ortodoxos, firmemente convencidos de que esta cátedra de S. Pedro sempre permaneceu imune de todo o erro, segundo a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo feita ao príncipe dos Apóstolos: Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos [Lc 22, 32].

Sobre a infalibilidade:

1839. Por isso Nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.

O concílio afirma que a infalibilidade papal não é fruto de um desenvolvimento, mas que se trata de uma tradição que remonta ao início da fé cristã. Percebam que o concílio apela ao texto de Lucas 22:32. Todavia, não há no primeiro milênio da igreja ninguém que o tenha interpretado como texto-prova da infalibilidade do bispo de Roma. A encíclica papal, Satis Cognitum, escrita pelo Papa Leão XIII em 1896, comenta e confirma as declarações do concílio:

É, portanto, incontestável, depois do que acabamos de dizer, que Jesus Cristo instituiu na Igreja um vivo, autêntico e perpétuo magistério também investido com sua própria autoridade (...) Portanto, Jesus Cristo designou Pedro para ser este chefe da Igreja. Ele também determinou que a autoridade instituída perpetuamente para a salvação de todos deveria ser herdada por seus sucessores, nos quais a mesma autoridade do próprio Pedro deveria permanecer. E assim fez essa notável promessa a Pedro e a ninguém mais: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (Mt. 16:18) (...) Era necessário um governo desse tipo, uma vez que pertence à constituição e formação da Igreja, como seu elemento principal - isto é, como o princípio da unidade e o fundamento de uma estabilidade duradoura - não devendo chegar ao fim com São Pedro, mas devendo passar para seus sucessores (...) Quando o fundador divino decretou que a Igreja deveria ser una na fé, no governo e na comunhão, escolheu Pedro e seus sucessores como princípio e centro, por assim dizer, desta unidade. Na verdade, a Sagrada Escritura atesta que as chaves do Reino dos Céus foram dadas a Pedro somente, e que o poder de ligar e desligar foi concedido aos Apóstolos e a Pedro (...) Portanto, no decreto do Concílio do Vaticano quanto à natureza e à autoridade do primado do Romano Pontífice, nenhuma opinião recém-concebida é apresentada, mas a crença venerável e constante de todas as idades (Seção IV., Cap. 3)   

O papado seria a crença de todas as idades. O papa Pio X em seu famoso juramento contra o modernismo também disse:

Eu sinceramente mantenho que a Doutrina da Fé nos foi trazida desde os Apóstolos pelos Padres ortodoxos com exatamente o mesmo significado e sempre com o mesmo propósito. Assim sendo, eu rejeito inteiramente a falsa representação herética de que os dogmas evoluem e se modificam de um significado para outro diferente do que a Igreja antes manteve.

Já o desenvolvimento da doutrina assume que os pais ortodoxos poderiam ter compreendido de forma errada determinadas doutrinas. Somente após séculos de reflexão, a igreja as teria compreendido corretamente. Recentemente, um comentarista católico escreveu em meu blog:

O problema é que bem no início da igreja o sacramento da penitência (confissão) era bem rígido e mal compreendido por muitos. Acreditava-se que após ser batizado, a pessoa só teria direito a confessar os PECADOS GRAVES ao sacerdote apenas 1 vez na vida, além de ter que cumprir grandes e duras penitências, que em alguns casos durava a vida toda.

O comentarista está parcialmente certo. A confissão e penitência era um processo público e permitido apenas 1x após o batismo em caso de pecados graves (mais detalhes aqui). No entanto, esta compreensão não ficou limitada ao início da igreja. O comentarista presume que tal doutrina passou por um processo de desenvolvimento. Então, vejamos o que o Concílio de Trento afirmou:

911. Cân. 1. Se alguém disser que a Penitência na Igreja Católica não é verdadeiro e próprio sacramento instituído por Jesus Cristo Nosso Senhor para reconciliar os fiéis com o mesmo Deus, todas as vezes que depois do Batismo caírem em pecados — seja excomungado [cfr. n° 894].

913. Cân. 3. Se alguém disser que estas palavras de Nosso Senhor: Recebei o Espirito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados e a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos (Jo 22, 22 s) não se devem referir ao poder de perdoar e reter os pecados no sacramento da Penitência, segundo sempre o entendeu a Igreja Católica desde o princípio, mas as torcer, contra a instituição deste sacramento, para a autoridade de pregar o Evangelho — seja excomungado [cfr. n° 894].

916. Cân. 6. Se alguém negar que a confissão sacramental foi instituída e é necessária para a salvação por direito divino; ou disser que o modo de confessar em segredo, só ao sacerdote, que a Igreja desde o princípio sempre observou e ainda observa, é alheio à instituição de Cristo e não passa de invenção humana — seja excomungado [cfr. n° 899 s].

O Concílio reivindica que a confissão era acessível para todas as vezes em que se caia em pecado. E ainda afirma que a confissão auricular foi observada desde o início. O erudito Alister McGrath escreve:

O desenvolvimento sistemático da teologia sacramental é uma característica importante do período medieval, particularmente entre os anos 1050 e 1240. (Iustitia Dei, A History of the Christian Doctrine of Justification, Third Edition, Cambridge, UK: Cambridge University Press, ©2005), pg. 117)

McGrath também observa que a inclusão por Pedro Lombardo da penitência entre os sete sacramentos foi "de grande importância para o desenvolvimento da doutrina da justificação dentro da esfera da igreja ocidental" (120-121). Ele também diz: "Pode-se notar, no entanto, que não houve acordo geral sobre a necessidade da confissão sacerdotal: no século XII, por exemplo, a escola [pedro] abelardiana rejeitou sua necessidade, enquanto a escola de Victorino insistia nela (121). Não foi até o Quarto Concílio de Latrão (1215) que a "penitência" se tornou oficialmente um "sacramento". Esse concílio "obrigou os crentes a confessar seus pecados anualmente ao sacerdote" (122). Ele ainda diz:

O século IX, no entanto, viu o sistema anglo-irlandês de penitência privada tornar-se generalizado na Europa, com importantes modificações na teologia da penitência seguindo em sua sequência (...) Embora os escritores anteriores considerassem que a penitência poderia ser realizada apenas uma vez na vida, como uma "segunda tábua após um naufrágio" (tabula secunda post naufragiam - ver Jerome Epistola 130), essa opinião foi gradualmente abandonada, em vez de refutada, tanto por razões sociais como pastorais. Assim, o bispo do oitavo século, Chrodegang de Metz, recomendou uma confissão regular a um superior pelo menos uma vez por ano, enquanto Paulino de Aquileia advogava a confissão e penitência antes de cada missa. A classificação de Gregório o Grande de pecados mortais [século VI] foi incorporada ao sistema penitencial da igreja durante o século IX, de modo que a penitência privada na presença de um padre se tornou geralmente aceita. (p. 117)

Percebem que a penitência em seu aspecto moderno é fruto de um longo processo que só iria se generalizar no século IX. A questão é como uma igreja assistida por um magistério infalível pode deter a crença errada por nove séculos em algo tão fundamental? Não é isso que se espera de uma instituição assistida pelo Espírito Santo. Observem também como as reivindicações históricas do Concílio de Trento são falsas. Este concílio não adotava o desenvolvimento da doutrina. Todavia, como já dito, a evidência histórica obrigou Roma a redefinir seu conceito de tradição da igreja. Percebam que a mudança de confissão pública para privada, de apenas uma vez para quantas vezes for preciso, de penas que poderiam durar toda uma vida para rezar algumas ave marias é precisamente a evolução do dogma condenada pelo juramento contra os modernistas. No mesmo juramento, ainda lemos:

Também rejeito o erro daqueles que dizem que a Fé mantida pela Igreja pode contradizer a história, e que os dogmas católicos, no sentido em que são agora entendidos, são irreconciliáveis com uma visão mais realista das origens da Religião cristã. Também condeno e rejeito a opinião dos que dizem que um cristão erudito assume uma dupla personalidade - a de um crente e ao mesmo tempo a de um historiador, como se fosse permissível a um historiador manter coisas que contradizem a Fé do crente, ou estabelecer premissas que, desde que não haja negação direta dos dogmas, levariam à conclusão de que os dogmas são falsos ou duvidosos.

Agora, comparem com a declaração do Joseph Ratzinger a respeito da Assunção de Maria:

Antes que a assunção corporal de Maria ao céu fosse definida, todas as faculdades teológicas do mundo foram consultadas para dar opinião. A resposta de nossos professores foi enfaticamente negativa (...) "Tradição" foi identificada com o que poderia ser provado com base em textos. Altaner, o patrologista de Würzburg (...) provou de maneira cientificamente persuasiva que a doutrina da assunção corporal de Maria ao céu era desconhecida antes do século V. Esta doutrina, portanto, argumentou, não poderia pertencer à "tradição apostólica". E essa foi a conclusão que meus professores em Munique compartilharam. Este argumento é convincente se você entender a "tradição" estritamente como o manuseio de fórmulas e textos fixos (...) Mas se você conceber a "tradição" como um processo vivo pelo qual o Espírito Santo nos apresenta a plenitude da verdade e nos ensina como entender o que anteriormente não podíamos entender (Jo 16:12-13), então a "lembrança" subsequente (Jo 16:4, por exemplo) pode reconhecer o que não tinha visto anteriormente e ainda como repassado na palavra original. (Milestones (Ignatius, 1998), 58-59)

Ratzinger incorre no erro condenado pelo juramento e para “salvar” a assunção de Maria apela ao desenvolvimento da doutrina. Não importa que por séculos tenha sido uma doutrina desconhecida pela Igreja. Pio X também iria condenar o desenvolvimento da doutrina na Lamentabili Sine. Ele condena as seguintes afirmações:

22. Os dogmas que a Igreja apresenta como revelados não são verdades caídas do Céu; são uma certa interpretação de fatos religiosos que a inteligência humana logrou alcançar à custa de laboriosos esforços.

53. A constituição orgânica da Igreja não é imutável; a sociedade cristã assim como a sociedade humana, está submetida a uma perpétua evolução.

 Especificamente sobre o batismo infantil:

43. A prática de conferir o batismo às crianças foi uma evolução disciplinar, que concorreu como uma das causas para que este sacramento se desdobrasse em dois, a saber: Batismo e Penitência.

Já Newman disse:

(...) Assim, vemos que com o passar do tempo, a doutrina do Purgatório estava aberta sobre a compreensão da igreja, como uma porção ou forma de penitência por pecados cometidos após o batismo: e, portanto, a crença nessa doutrina e a prática do batismo infantil cresceriam dentro de uma geral recepção conjunta (Newman, p. 417)

Newman faz duas afirmações que incorrem nas condenações papais. Ele diz que a doutrina do purgatório estava em aberto e consistia numa forma radicalmente distinta de como viria a ser compreendida depois e também que a prática do batismo infantil viria a surgir em virtude dessa disciplina penitencial primitiva (que ele próprio identificou como sendo a doutrina do purgatório daquele período). Tanto purgatório como batismo infantil iriam surgir apenas gradualmente na igreja e não teriam sido explicitamente e diretamente instituídos por algum apóstolo. Pio X ainda disse:

54. Os dogmas, os sacramentos e a hierarquia, tanto em sua noção quanto em sua realidade, não passam de interpretações e evoluções do pensamento cristão que, por meio de incrementos externos, desenvolveram e aperfeiçoaram um pequeno germe que existia em estado latente no Evangelho.

Essa é uma acurada descrição da teoria do desenvolvimento. Newman afirmou que o impulso para desenvolvimento da doutrina partia geralmente da heresia. Nenhuma doutrina seria definida se não fosse antes contestada. Creio ter clarificado a contradição que o desenvolvimento da doutrina cria para a igreja de Roma. A teoria abraçada por Vaticano II contradiz Vaticano I e Trento. Além disso, o recurso usado para definir o que é a tradição da igreja é em si mesmo condenado pela tradição da Igreja. Não por acaso, Newman costuma ser visto como herege modernista pelos círculos mais tradicionalistas da igreja romana.

Ademais, os apóstolos não acreditavam que a fé que transmitiram estava sujeita a tais desenvolvimentos. Pelo contrário, aquela fé foi de uma vez por todas entregue aos santos (Jd. 1:3). O erudito neotestamentário Larry Hurtado escreve:

Não é claro, por exemplo, que os crentes em Jesus do tempo de Paulo (cerca de 30-60 d.C) pensaram em si mesmos, sua fé e práticas como "primitivas" ou "embrionárias" de uma forma mais madura e completa de devoção de Jesus que deveria ser desenvolvida ao longo do tempo. Ao invés disso, tenho a impressão de que Paulo (por exemplo) pensou nas convicções e nos ensinamentos que ele forneceu como adequadamente formado e totalmente apropriado para sua situação. Então, se nos referimos aos primeiros anos do movimento de Jesus como embrionário ou sementes de algo que se desenvolveu mais tarde, acho que estamos importando um julgamento de valor que não se baseia na evidência. (Fonte)

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Respondendo objeções à Sola Scriptura (erros da posição romana) - Parte 3


Iniciamos aqui a terceira e última parte sobre a Sola Scriptura. O interlocutor católico segue comentando:

Irineu de Lion já dizia que a igreja, pela sucessão ininterrupta, preserva e transmite a explicação que foi ouvida da boca dos apóstolos:

A verdadeira gnose [conhecimento] é a doutrina dos apóstolos, é a antiga difusão da Igreja em todo o mundo, é o caráter distintivo do Corpo de Cristo que consiste na sucessão dos bispos aos quais foi confiada a Igreja em qualquer lugar ela esteja; é a conservação fiel das Escrituras que chegou até nós, a explicação integral dela, sem acréscimos ou subtrações, a leitura isenta de fraude e em plena conformidade com as Escrituras, explicação correta, harmoniosa, isenta de perigos ou de blasfêmias (...) (Irineu de Lion, Contra as Heresias - IV, 33-8)

Vamos sair de Agostinho no século quinto e voltar ao século dois em Irineu. Ele estava combatendo a heresia gnóstica que basicamente usava o mesmo argumento que hoje os católicos usam. Irineu escreveu:

De nada mais temos aprendido o plano de nossa salvação, senão daqueles através de quem o evangelho nos chegou, o qual eles pregaram inicialmente em público, e, em tempos mais recentes, pela vontade de Deus, nos foi legado por eles nas Escrituras, para que sejam o fundamento e pilar de nossa fé. (Contra as Heresias 3:1:1)

Essa é uma poderosa declaração. Aquilo que os apóstolos pregaram oralmente foi legado a igreja nas Escrituras. Percebam que Irineu não afirma que parte da pregação apostólica foi conservada apenas oralmente, mas que ela foi escriturada. Essa Escritura seria apenas uma autoridade subordinada à igreja? Não, seria o pilar e o fundamento. Analisemos a citação de Irineu trazida pelo católico:

O verdadeiro conhecimento é a doutrina dos apóstolos, e a antiga constituição da Igreja em todo o mundo, e a manifestação distinta do Corpo de Cristo conforme as sucessões dos bispos, pelas quais eles transmitiram aquela Igreja que existe em todos os lugares, e chegou até nós, sendo guardada e preservada sem nenhuma falsificação nas Escrituras, por um sistema muito completo de doutrina, e sem receber adição nem subtração; e a leitura [da Palavra] sem falsificação, e uma exposição lícita e diligente em harmonia com as Escrituras, sem perigo nem blasfêmia, e o preeminente carisma do amor, o qual é mais precioso do que o conhecimento, mais glorioso do que a profecia, e que excede todos os outros dons. (Ibid., 4:33:8)

Irineu não está afirmando que a igreja recebeu dos apóstolos a explicação oral da Escritura como se fosse um comentário bíblico. O que a igreja recebeu foi a própria Escritura que era lida na igreja sem falsificações (em oposição aos gnósticos). Ele ainda se refere a doutrina contida na Escritura como um sistema muito completo de doutrina – o que implica em suficiência material. E quanto à Suficiência Formal, foi ainda mais claro:

Em compensação, uma inteligência sã, equilibrada, piedosa e amante da verdade dedicar-se-á a considerar as coisas que Deus pôs em poder dos homens, à disposição dos nossos conhecimentos, e aplicando-se a elas com todo o seu ardor, progredirá e, pelo estudo constante, terá conhecimento profundo. Estas coisas são tudo o que cai debaixo dos nossos olhares e tudo o que está contido, claramente e sem ambiguidade, em termos próprios nas Escrituras. Eis por que as parábolas não devem ser adaptadas a coisas ambíguas, porque quem as explica o deve fazer sem acrobacias e devem ser explicadas por todos da mesma maneira, e assim o corpo da verdade se manterá íntegro, harmoniosamente estruturado e livre de transformações (...) Ora, todas as Escrituras, profecias e evangelhos, que todos têm a possibilidade de ouvir, ainda que nem todos acreditem, proclamam claramente e sem ambiguidade , excluindo qualquer outro, que um só e único Deus criou todas as coisas por meio de seu Verbo, as visíveis e as invisíveis, as celestes e as terrestres, as que vivem na água e as que se arrastam debaixo da terra, como demonstramos com as próprias palavras da Escritura. Por seu lado, o mundo em que nós estamos, por tudo o que apresenta aos nossos olhares, testemunha que é único quem o fez e o governa. Então, como parecem néscios os que diante de manifestação tão clara, estão com os olhos cegos e não querem ver a luz da pregação, que se fecham em si mesmos e com explicações obscuras das parábolas se imaginam, cada um, de ter encontrado o seu Deus! Com efeito, no que diz respeito ao Pai imaginado por eles, nenhuma Escritura diz algo claramente, em termos próprios e sem contestação possível; e eles próprios são testemunhas disso quando afirmam que o Salvador ensinou estas coisas secretamente, não a todos, mas a alguns discípulos capazes de entendê-las, indicando-as por meio de provas, enigmas e parábolas. E chegam ao ponto de dizer que um é o que é chamado Deus e outro é o Pai, indicado pelas parábolas e pelos enigmas. (Contra as Heresias 2:27:1-2)

Irineu falava contra os gnósticos. Eles afirmavam que a Escritura era ambígua e de difícil compreensão, por isso, era necessário seguir a tradição oral originada nos apóstolos para compreender corretamente as parábolas de Jesus – uma posição semelhante ao catolicismo romano. Como o bispo os responde? Apontando para a interpretação de um magistério infalível? Seria a reação natural de qualquer católico romano, mas não, ele aponta para a clareza das Escrituras. Irineu argumenta que as Escrituras são tão claras que não é necessário fazer acrobacias para explica-las. Ou seja, não precisamos tornar complexo o que é simples.

Quando são vencidos pelos argumentos tirados das Escrituras retorcem a acusação contra as próprias Escrituras, dizendo que é texto corrompido, que não tem autoridade, que se serve de expressões equívocas e que não podem encontrar a verdade nele os que desconhecem a Tradição. Com efeito - dizem eles - a verdade não foi transmitida por escrito, mas por viva voz, o que levou Paulo a dizer: "É a sabedoria que pregamos entre os perfeitos, não, porém, uma sabedoria deste século". E cada um deles diz que esta sabedoria é a que ele descobriu, ou melhor, inventou, e assim se torna normal que a verdade se encontre ora em Valentim, ora em Marcião, ora em Cerinto e depois em Basílides ou nalgum outro contendente, sem nunca ter podido afirmar nada acerca da salvação. Cada um deles está tão pervertido que, falsificando a regra da verdade, não cora de vergonha ao pregar a si mesmo. (Ibid., 3:2:1)

Irineu denuncia nos gnósticos algo que os romanistas também fazem. Ambos acusam as Escrituras de serem obscuras, ambíguas e difíceis de entender e se aproveitam disso para distorcê-las em favor das suas próprias inovações.

Ademais em toda a carta, o apóstolo [Paulo] afirma claramente que nós fomos salvos pela carne de nosso Senhor e pelo seu sangue. (Ibid., 5:14:3)

Leia com maior diligência aquele evangelho que nos foi dado pelos apóstolos; e leia com maior diligência os profetas, e você encontrará cada ação e toda a doutrina de Nosso Senhor neles pregados. (Ibid., 4:66)

O bispo de Lyon instrui a ler com diligência o evangelho apostólico e os profetas – uma provável referência ao novo e antigo testamento. O leitor conseguiria perceber cada ação e doutrina pregada pelo Senhor.

E sobre a tradição? O que Irineu chamava de tradição contraria a Sola Scriptura e favorece uma visão católica romana? Felizmente o bispo de Lyon definiu o conteúdo da tradição:

A Igreja, embora dispersa através de todo o mundo, até os confins da terra, recebeu dos apóstolos e de seus discípulos essa fé: num Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da terra, e do mar, e de todas as coisas que neles há, e em Cristo Jesus, o Filho de Deus, que se encarnou para a nossa salvação, e no Espírito Santo, que proclamou através dos profetas as dispensações de Deus, os adventos, o nascimento através de uma virgem, a paixão, a ressurreição dos mortos, a ascensão para o Céu em carne do nosso amado Cristo Jesus, nosso Senhor, e a Sua futura manifestação do Céu na glória do Pai, para reunir todas as coisas em uma e levantar de novo toda a carne de toda a raça humana, a fim de que a Jesus Cristo, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, de acordo com a vontade do Pai invisível, se dobre todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que por Ele deve ser executado o juízo para todos, e que os anjos que transgrediram e se tornaram apóstatas, juntamente com os ímpios e profanos entre os homens, sejam condenados ao fogo eterno, mas no exercício da Sua graça conferir imortalidade ao justo e santo, e àqueles que mantiveram Seus mandamentos e perseveraram em Seu amor, alguns desde o início e outros desde o seu arrependimento, e conduzi-los à eterna glória. Como já observado, a Igreja, tendo recebido essa pregação de fé, embora espalhada por todo o mundo, cuidadosamente a preserva. (Contra as Heresias, Livro I, 10:1-2)

Aqui vemos que tudo aquilo que a Igreja recebeu dos apóstolos como ponto de fé e que é chamado de "tradição" diz respeito exclusivamente a doutrinas pregadas claramente nas Escrituras, tais como:

• A existência do Deus Todo-Poderoso criador dos céus e da terra.
• A encarnação de Jesus Cristo, o Filho de Deus.
• A existência do Espírito Santo.
• Os adventos de Cristo.
• O nascimento através de uma virgem.
• A paixão de Cristo.
• A Sua ressurreição dos mortos.
• A Sua ascensão aos céus em carne.
• A futura volta de Jesus.
• A ressurreição geral dos mortos no fim dos tempos.
• A divindade e reinado de Cristo Jesus, nosso Senhor.
• O juízo vindouro.
• A condenação ao diabo e aos ímpios.
• A vida eterna concedida aos justos e santos.

A tradição não era uma revelação a parte da Escritura. Tratava-se da regra da fé. Eram doutrinas cridas pela igreja claramente expostas na Escritura. A questão é onde estão as inovações de Roma? Infalibilidade papal? Purgatório? Dogmas marianos? Nada disso estava lá. A tradição de Irineu daria mais tarde origem ao credo apostólico. Sobre o credo, Agostinho escreve:

Recebam meus filhos a regra de fé, que é chamada de símbolo [ou credo]. Quando o receberem, escrevam-no em seu coração, e diariamente repitam-no para vocês mesmos (...) Pois esse é o credo que vocês devem repetir e responder. Essas palavras que ouvistes estão nas Divinas Escrituras espalhadas de cima a abaixo, mas nele [no credo] estão reduzidas a uma só, de modo que a memória de pessoas lentas não seja afligida, para que cada pessoa possa ser capaz de dizer e capaz de sustentar o que ele acredita. (Sobre o Credo de Nicéia: um sermão aos catecúmenos, 1)

O credo era uma síntese de doutrinas bíblicas – o mesmo se aplicava à regra da fé de Irineu. De forma bem semelhante Tertuliano e Orígenes trouxeram o conteúdo da tradição – doutrinas claramente extraídas da Escritura.

Nós cremos que o magistério iniciou-se com os apóstolos e se perpetua em seus sucessores legitimamente ordenados.

Basicamente um apelo à sucessão apostólica da igreja romana. O problema é que outras igrejas que também apelam a uma suposta sucessão apostólica ensinam doutrinas opostas à Roma. A igreja romana reconhece pelo menos a sucessão da igreja ortodoxa grega. Dessa forma, é um critério insuficiente para determinar onde está a verdade. Além disso, não é uma doutrina apostólica. Os apóstolos não ensinaram a existência de um magistério infalível pós-apostólico. Pelo contrário, Paulo diz que entre os homens que ele próprio escolheu surgiriam os falsos mestres (Atos 20:17-36). Quando Pedro e Paulo falam da necessidade de guardar a doutrina por eles ensinada, não apelam a nenhum suposto sucessor garantidor da doutrina. Seria simples e fácil. Bastaria falar “sigam o sucessor de Pedro em Roma”. Eles não fazem isso. Passagens chaves (2 Timóteo 3:14-17 e 2 Pedro 1:12-16) mostram isso claramente.

O primeiro vestígio da infalibilidade papal só vai surgir no segundo milênio. Recomendo aos nossos leitores os artigos sobre sucessão apostólica. Nele tratamos em detalhes da falta de fundamento histórico e bíblico para essa doutrina. Ninguém menos do que Joseph Ratzinger, confirmando os estudos do erudito patrístico protestante Hans von Campenhausen, afirma que a doutrina da sucessão apostólica surgiu depois do período apostólico na segunda metade do século II:

O conceito de sucessão [apostólica] foi claramente formulado, como von Campenhausen tem demonstrado de forma impressionante, na polêmica anti-gnóstica do século II; o seu objetivo era contrastar a verdadeira tradição apostólica da Igreja contra a pseudo-apostólica tradição da gnosis. (God’s Word: Scripture-Tradition-Office (San Francisco: Ignatius Press ©2008; Libreria Editrice Vaticana edition ©2005; pp. 22-23)

Além do mais, o conceito de sucessão apostólica formulado pelos pais da igreja é distinto do conceito romanista. É suficiente perceber que eles não acreditavam em papado. A própria validade da sucessão da igreja romana é frágil. Há um virtual consenso entre os historiadores católicos que não havia papado na igreja primitiva. Não há evidências confiáveis de que Pedro tenha sido bispo de Roma e acredita-se que só se pode falar de um bispo de Roma a partir da metade do século II.

Sendo assim, se vc crer na bíblia, é porque inevitavelmente crer em quem escreveu oras, ou seja, crer primeiro nos autores sagrados (magistério).

Aqui o comentarista católico toca um ponto chave. Obviamente cremos no magistério apostólico. Se tudo o que ele quer dizer sobre magistério se refere aos apóstolos, estamos de acordo. Jesus prometeu que os apóstolos seriam guiados em toda a verdade, por isso colocamos a pregação dos apóstolos (Novo Testamento) no ápice da autoridade. O erro crasso é pegar as prerrogativas do magistério apostólico que é único e não repetível e aplicar aos bispos posteriores (em especial ao suposto papa). Clemente de Roma, um pai da igreja próximo aos apóstolos, reconhece que não compartilhava da autoridade dos apóstolos. Inácio de Antioquia adota a mesma posição.

O apologista católico também usa um argumento autodestrutivo. Como católico romano, ele deve acreditar que o magistério da igreja romana é suficiente. Ele acredita que os apóstolos eram parte desse magistério, no entanto, ele defendeu que o Novo Testamento não é suficiente formalmente. A implicação seria então que o magistério da igreja não era suficiente. Nós, porém, defendemos a clareza do magistério apostólico. Eles não eram incompetentes. Eles escreveram para serem compreendidos. Afirmar o contrário é por em dúvida a capacidade do Espírito Santo.

O papel aceita tudo, e é o magistério quem escreve, e diz o que é palavra de Deus e o que é heresia, é algo lógico e racional.

Se ele estivesse somente se referindo ao magistério apostólico, a afirmação estaria correta. Mas quando ele se refere ao magistério, está falando de supostos sucessores dos apóstolos que séculos e séculos depois por algum carisma divino mantiveram intacto o depósito da fé. Quando analisamos os ensinos desse magistério a luz da Escritura, vemos precisamente o contrário. O magistério romano é responsável por ensinar várias doutrinas contrárias à doutrina apostólica.

O grande equívoco protestante é o fundamentalismo, de fazer uma interpretação da Bíblia somente a partir do que está escrito.

Se ele quer dizer que o protestantismo interpreta a Escritura sem utilizar nenhum conhecimento extra-bíblico, mais uma vez está deturpando a posição reformada. Os maiores comentaristas e exegetas bíblicos são protestantes. Estamos falando de homens que estudaram as línguas originais com afinco e dedicaram suas vidas a “mergulhar” no texto bíblico.  O que a teologia reformada nega é que haja algum magistério ou tradição que interprete infalivelmente a Escritura.

Mas a Palavra de Deus não está presa à escrita.

Nem os protestantes afirmam isso. Deus ainda fala ao coração dos homens. O Espírito Santo fala à consciência do cristão. Até sonhos podem ser usados por Deus para comunicar algo. O que afirmamos é que não há nenhuma revelação específica doutrinal de Deus fora da Escritura acessível para o cristão hoje. Experimente perguntar a qualquer católico se ele sabe dizer uma única parábola de Jesus que não está na Bíblia? A resposta será o silêncio. Diga-nos qualquer declaração que Jesus ou os apóstolos fizeram e nós poderíamos confiavelmente acreditar que não foi registada no Novo Testamento. Os apologistas católicos estão sempre falando de uma tradição extra-bíblica, mas quase nunca definem o seu conteúdo e nunca trazem evidências de sua autenticidade.

Para entendermos integralmente as escrituras como palavra divina, devemos estar em comunhão com a Tradição, com o Magistério e com o corpo eclesial. Qualquer coisa fora disso é pessoal.

Essa posição tem vários problemas que já tratamos. Antes de tudo ele precisaria definir qual tradição e qual magistério. E nessa jornada, ele terá que agir como um bom protestante. Embora a igreja tenha autoridade de explicar as Escritura e o ensino histórico da igreja cristã seja útil e importante para refinar nossa teologia, não podemos cometer o erro de elevar essas autoridades que são subordinadas à condição de chefes das Escrituras. Além do mais, a opinião desse católico é só mais uma opinião pessoal. Ele acha que o magistério correto é o romano, mas há milhões de pessoas no mundo que estudaram a tradição e a Escritura e chegaram a uma opinião diferente.

A igreja romana resolve esses vários problemas apelando a sua própria autoridade. O magistério romano seria infalível em certas circunstâncias, assim tudo o que a igreja ensina como artigo de fé seria verdade, mesmo que não haja evidências sólidas de suas doutrinas na Escritura ou na tradição. Por isso, acertadamente a posição romana é chamada de Sola Eclésia (somente a igreja). Enquanto atribuímos à Escritura a posição suprema, os papistas atribuem esse posto ao magistério. Estou ciente de que muitos católicos não concordariam com essa afirmação. Eles diriam que Escritura, Tradição e Magistério possuem a mesma estatura, porém a implicação do paradigma católico romano só pode ser a Sola Eclésia. A Escritura e a tradição não são autoridades reais no romanismo. Elas só podem dizer aquilo que o magistério afirma que elas dizem. Nem Escritura nem a tradição falam por si próprias.

Imagine que você tenha um chefe e todas as vezes que solicita dele uma decisão sobre algo, ele diz que você precisa falar com um segundo chefe. Quem nesse caso seria a verdadeira autoridade? Obviamente o segundo chefe. O mesmo se aplica ao paradigma romanista da autoridade. Esse paradigma não é bíblico nem histórico. Alguém dificilmente vai encontrar a noção de uma igreja infalível nos pais da igreja, para um bispo infalível então, a evidência patrística é zero. Recomendo esse artigo aqui que trata da origem histórica da infalibilidade papal. A semente dessa doutrina só iria surgir no século XII. O mais interessante é que foi condenada pelo papa João XXII em 1324. Ele disse na bula Quia quorundam:

O “Pai da mentira” tem levado seus [do Papa] inimigos a defender a tese errônea de que “o que Pontífice Romano uma vez defina em questões de fé e moral com a chave do conhecimento seja tão imutável que não permita que um sucessor a revogue. (Brian Tierney, Origins of Papal Infallibity: 1150-1350, [Leiden: E.J. Brill, 1988], p. 186)

Brian Tierney escreve:

Os intercâmbios de 1324 são de interesse fascinante para um historiador da doutrina da infalibilidade papal. Aqui, pela primeira vez, uma doutrina da infalibilidade papal baseada sobre o poder petrino das chaves foi manifestamente proposta. Mas a doutrina teve por pai antipapas rebeldes e não teólogos da Cúria. E, longe de abraçar a doutrina, o Papa indignadamente a denunciou como uma invenção perniciosa. (Ibid., p. 187-188)

Não havia um magistério infalível oficial na antiga aliança. Já na nova aliança, os apóstolos poderiam formar o que se poderia chamar de magistério infalível, mas a ideia de que esse magistério era permanente, ou seja, de que algum sucessor apostólico desfrutaria de algum tipo de infalibilidade é totalmente ausente dos livros canônicos e implicitamente negada em vários momentos. Em nenhum lugar é prometido que uma Igreja em particular (no caso Roma) teria esse carisma. É prometido à Igreja de Cristo que no fim ela irá vencer a batalha (Mateus 16:18), mas isso não implica em infalibilidade de uma Igreja local.  O Novo Testamento está cheio de advertências contra a apostasia e exemplos de Igrejas que se desviaram da fé (Atos 20:29-30, Romanos 1: 17-22 e Apocalipse 2:5). Cada advertência bíblica e previsão de falsos cristos, falsos apóstolos e apostasia é uma negação da doutrina da infalibilidade.

Sobre isso São Vicente faz uma clara reflexão:

(...) quem quiser descobrir as fraudes dos hereges nascentes, evitar seus laços e permanecer sadio e íntegro na sadia fé, há de resguardá-la, sob o auxílio divino, duplamente: com A autoridade da lei divina e com a tradição da Igreja Católica. Sem embargo, alguém poderia objetar: Posto que o Cânon das Escrituras é em si mais que suficientemente perfeito para tudo, que necessidade há de se acrescentar a autoridade da interpretação da Igreja? Precisamente porque a Escritura, por causa de sua mesma sublimidade, não é entendida por todos de modo idêntico e universal. De fato, as mesmas palavras são interpretadas de maneira diferente por uns e por outros. Se pode dizer que tantas são as interpretações quantos são os leitores. Vemos por exemplo, que Novaciano explica a Escritura de um modo , Sabélio de outro, Donato, Eunomio, Macedônio, de outro; e de maneira diversa a interpretam Fotino, Apolinar, Prisciliano, Joviano, Pelágio, Celestino, e em nossos dias, Nestório. É pois, sumamente necessário, ante as múltiplas e arrevesadas tortuosidades do erro, que a interpretação dos Profetas e dos Apóstolos se faça seguindo a pauta do sentir católico. (São Vicente, Commonitory, Capítulo 2).

Nós tratamos da diferença entre a definição vicentina de tradição (cânon vicentino) e o atual conceito de tradição da igreja romana (tradição viva) aqui.  Algum dia eu vou entender porque os católicos usam Vicente de Lérins. Será que eles não percebem que Vicente é um claro testemunho da inexistência do papado. A obra citada pode ser lida em português num site católico aqui. A tradução trazida pelo comentarista católico me pareceu tendenciosa no sentido de afirmar que a tradição da igreja era inspirada quando traz o seguinte trecho:

(...) quem quiser descobrir as fraudes dos hereges nascentes, evitar seus laços e permanecer sadio e íntegro na sadia fé, há de resguardá-la, sob o auxílio divino, duplamente: com A autoridade da lei divina e com a tradição da Igreja Católica.

O site católico New Advent traz o seguinte trecho em inglês aqui:

That whether I or any one else should wish to detect the frauds and avoid the snares of heretics as they rise, and to continue sound and complete in the Catholic faith, we must, the Lord helping, fortify our own belief in two ways; first, by the authority of the Divine Law, and then, by the Tradition of the Catholic Church.

A minha tradução abaixo:

Se eu ou qualquer outra pessoa desejar detectar as fraudes e evitar as armadilhas dos hereges quando se levantam e permanecer sadiamente e completamente na fé católica, nós devemos com a ajuda do senhor fortalecer a nossa própria fé de duas maneiras: primeiramente, pela autoridade da lei divina, e depois pela Tradição da Igreja Católica.

Vejam que o auxílio divino em questão não se refere a uma suposta tradição inspirada. Vicente estava se referindo a ajuda que cada cristão deve pedir a Deus para caminhar na verdadeira fé. Isso fica bem evidente no cap. 1 da mesma obra:

No que a mim se refere, já tenho muito em preparar estas anotações para ajudar a minha memória, ou melhor, a minha falta de memória. Não obstante, não deixarei de me empenhar, com a ajuda de Deus, em corrigi-las e completá-las cada dia, meditando no que tenho aprendido.

Além disso, Vicente claramente estabeleceu a precedência da Escritura sobre a tradição - algo que o católico omitiu: “primeiramente, pela autoridade da lei divina”. Ele também implicitamente aceita que o cânon é “mais do que suficiente” na pergunta retórica:

Posto que o Cânon das Escrituras é em si mais que suficientemente perfeito para tudo, que necessidade há de se acrescentar a autoridade da interpretação da Igreja? Precisamente porque a Escritura, por causa de sua mesma sublimidade, não é entendida por todos de modo idêntico e universal.

Vicente basicamente afirma que como diferentes grupos interpretam a Escritura de forma diferente, é preciso um critério que defina qual é a verdadeira fé. Que critério seria esse? Será que se tratava do apelo a um bispo infalível? Ao bispo dos bispos? Ao único e exclusivo sucessor de Pedro que manteria a igreja na fé? Não, não e não. Vicente nunca apela a qualquer coisa como o papado. Vejamos o contexto estendido:

Havendo interrogado com frequência e com maior cuidado e atenção a inúmeras pessoas, sobressalentes em santidade e doutrina, sobre como distinguir por meio de uma regra segura, geral e normativa, a verdade da Fé Católica da falsidade perversa da heresia, quase todas me têm dado a mesma resposta: “Todo cristão que queira desmascarar as intrigas dos hereges que brotam ao nosso redor, evitar suas armadilhas e se manter íntegro e incólume numa fé incontaminada, deve com a ajuda de Deus, apetrechar sua fé de duas maneiras: com a autoridade da lei divina ante tudo, e com a tradição da Igreja Católica”. Sem embargo, alguém poderia objetar: Posto que o Cânon das Escrituras é em si mais que suficientemente perfeito para tudo, que necessidade há de se acrescentar a autoridade da interpretação da Igreja?

Precisamente porque a Escritura, por causa de sua mesma sublimidade, não é entendida por todos de modo idêntico e universal. De fato, as mesmas palavras são interpretadas de maneira diferente por uns e por outros. Se pode dizer que tantas são as interpretações quantos são os leitores. Vemos, por exemplo, que Novaciano explica a Escritura de um modo, Sabélio de outro, Donato, Eunomio, Macedônio, de outro; e de maneira diversa a interpretam Fotino, Apolinar, Prisciliano, Joviano, Pelágio, Celestino, e em nossos dias, Nestório. É pois, sumamente necessário, ante as múltiplas e arrevesadas tortuosidades do erro, que a interpretação dos Profetas e dos Apóstolos se faça seguindo a pauta do sentir católico. Na Igreja Católica deve-se ter maior cuidado para manter aquilo em que se crê em todas as partes, sempre e por todos. Isto é a verdadeiro e propriamente católico, segundo a ideia de universalidade que se encerra na mesma etimologia da palavra. Mas isto se conseguirá se nós seguimos a universalidade, a antiguidade e o consenso geralSeguiremos a universalidade se confessamos como verdadeira e única fé a que a Igreja inteira professa em todo o mundo; a antiguidade, se não nos separamos de nenhuma forma dos sentimentos que notoriamente proclamaram nossos santos predecessores e pais; o consenso geral, por último, se, nesta mesma antiguidade, abraçamos as definições e as doutrinas de todos, ou de quase todos, os Bispos e Mestres.

Qual deverá ser a conduta de um cristão católico, se alguma pequena parte da Igreja se separa da comunhão na Fé universal? Não cabe dúvida de que deverá antepor a saúde do corpo inteiro a um membro podre e contagioso. Mas, e se for uma novidade herética que não está limitada a um pequeno grupo, mas que ameaça contagiar à Igreja toda? Em tal caso, o cristão deverá fazer todo o possível para agarrar-se à antiguidade, a qual não pode evidentemente ser alterada por nenhuma nova mentira. E se na antiguidade se descobre que um erro tem sido compartilhado por muitas pessoas, ou inclusive toda uma cidade, ou por uma região inteira? Neste caso porá o máximo cuidado em preferir os decretos – se os tiver – de um antigo Concílio Universal, à temeridade e à ignorância de todos aqueles. E se surge uma nova opinião acerca da qual nada tenha sido ainda definido? Então indagará e confrontará as opiniões de nossos maiores, mas somente daqueles que sempre permaneceram na comunhão e na fé da única Igreja Católica e vieram a ser mestres provados da mesma. Tudo o que ache que, não por um ou dois somente, mas por todos juntos de pleno acordo, tenha sido mantido, escrito e ensinado abertamente, frequente e constantemente, sabe que ele também pode crer sem vacilação alguma. (Commonitorium cap. II-III)

A regra de Vicente apela a três critérios: antiguidade (acreditado sempre), consenso (acreditado por todos) e abrangência (acreditado em todos os lugares). A pergunta que os católicos romanos precisam responder é – porque Vicente ignora o suposto magistério infalível liderado pelo bispo romano? Se existe um lugar em toda a biblioteca patrística em que a doutrina da infalibilidade papal deveria ser evidente é aqui. É simplesmente inexplicável essa ausência caso Vicente mantivesse a crença papista. Ele não tinha qualquer noção de uma autoridade infalível que iria determinar qual era a sã doutrina. A resposta que qualquer papista daria à questão levantada é: “siga o magistério da igreja liderado pelo papa”.

A tradição interpretativa da igreja a que alude Vicente não era determinada por algum bispo individualmente e infalivelmente, mas por um consenso abrangente e majoritário. A última instância de autoridade da igreja para resolver os conflitos não era o bispo romano, mas o concílio universal. E mesmo ao concílio, ele não atribui infalibilidade. A tradição vicentina não era formada por doutrinas preservadas somente fora da Escritura – ideia historicamente defendida pela igreja romana. Tratava-se de uma tradição interpretativa reconhecida pelo consenso não somente da igreja presente, mas pela igreja de todas as épocas. Além de demonstrar que não havia qualquer noção de doutrina papal em seu tempo, Vicente adota um conceito de tradição que torna as peculiares doutrinas de Roma inovações heréticas. Doutrinas como infalibilidade papal, imaculada conceição, purgatório, indulgências, assunção corpórea de Maria e muitas outras não passam nem perto de satisfazer os critérios do cânon vicentino.

Roma adota hoje a teoria do desenvolvimento da doutrina. Ela afirma que muitas de suas doutrinas só existiam na igreja primitiva na forma de semente. Somente depois de séculos e séculos é que tais doutrinas se desenvolveram e foram aceitas como dogmas pela igreja. O patrologista católico romano Boniface Ramsey reconhece:

Por vezes, então, os Pais falam e escrevem de uma forma que acabaria por ser vista como não ortodoxa. Mas isto não é a única dificuldade no que diz respeito ao critério de ortodoxia. O outro é que nós olhamos em vão em muitos dos Pais para encontrar referências ao que muitos cristãos acreditam hoje. Nós não encontramos, por exemplo, alguns ensinamentos sobre Maria ou o papado que foi desenvolvido em épocas medievais e modernas. (Beginning to Read the Fathers [London: Darton, Longman & Todd, 1986], p. 6)

Essa falta de consenso patrístico levou Roma a abraçar uma nova teoria no final do século XIX para explicar seus ensinamentos - a teoria iniciada por John Henry Newman conhecida como desenvolvimento da doutrina. À luz da realidade histórica, Newman tinha chegado à conclusão de que o princípio vicentino do consentimento unânime era impraticável, porque, para todos os efeitos práticos, era inexistente. Ele escreve:

Não parece possível, então, evitar a conclusão de que, qualquer que seja a chave apropriada para harmonizar os registros e documentos da Igreja Primitiva e da Igreja mais tardia e considerando como verdadeiro o ditado de Vicente, deve ser considerado em abstrato, e como possível a sua aplicação em sua própria época, quando ele quase poderia pedir aos séculos primitivos o seu testemunho. Isso dificilmente está disponível agora, ou efetivo para qualquer resultado satisfatório. A solução que ele oferece é tão difícil quanto o problema original. (An Essay on the Development of Christian Doctrine [New York: Longmans, Green and Co., reprinted 1927], p. 27)

Outra ilustração dessa realidade refere-se ao ensino da Assunção de Maria do historiador católico romano Joussard:

Nestas condições não vamos apelar ao pensamento patrístico - como alguns teólogos fazem ainda hoje sob uma forma ou outra - para transmitir, no que diz respeito à assunção, uma verdade recebida como tal no início e fielmente repassada às épocas subsequentes. Tal atitude não caberia aos fatos (...) o pensamento patrístico não tem, nesse caso, desempenhado o papel de um fiel instrumento de transmissão. (L'Assomption coropelle, pp. 115-116. Cited by Juniper B. Carol, O.F.M., ed., Mariology, Vol. I [Milwaukee: Bruce, 1955], p. 154)

Os editores do livro que fazem referência a essas declarações de Joussard oferecem os seguintes comentários:

Uma palavra de cautela não é impertinente aqui. A investigação dos documentos patrísticos pode muito bem levar o historiador à conclusão: nos primeiros sete ou oito séculos nenhuma tradição histórica confiável sobre a assunção corpórea de Maria é existente, especialmente no Ocidente. A conclusão é legítima; se o historiador parar por aí, alguns nervos teológicos serão tocados. O erro do historiador seria concluir: portanto, nenhuma prova da tradição pode ser apresentada. O método histórico não é o método teológico, nem tradição histórica é sinônimo de tradição dogmática. (Juniper B. Carol, O.F.M., ed., Mariology, Vol. I [Milwaukee: Bruce, 1955], p. 154)

O cardeal Yves Congar também escreve:

Esse exemplo [interpretação de Mateus 16:18] mostra também que não podemos, na doutrinária distinção do nível puramente histórico, tomar as testemunhas da tradição num sentido puramente material: elas devem ser pesadas e avaliadas. O fato material da concordância ou discordância, por mais que extensa, não nos permite falar de um Consensus Patrum ao nível corretamente dogmático, pois os autores estudados em teologia são apenas "Pais" no sentido teológico se eles têm de alguma forma originado a Igreja que os segue. Agora, pode ser que a semente que será mais frutífera no futuro não é tão explícita assim no presente, e que as linhas da vida e da fé podem não passar pelos grandes doutores em uma determinada instância. Documentação histórica está no nível concreto; ela deve deixar espaço ou um julgamento tomado não somente à luz das provas documentais, mas também da fé da Igreja. (Tradition and Traditions [New York: Macmillan Company, 1966], pp. 397-400)

O que todos esses conceituados autores católicos estão dizendo é que muitas das doutrinas ensinadas por Roma como dogmas de assentimento obrigatório não podem ser rastreadas pelo corredor da história. O dogma da assunção de Maria é um caso claríssimo. Não há qualquer evidência histórica confiável a favor, mas você deve acreditar somente porque a igreja romana ensina. Os ensinos de Roma e de Vicente estão a quilômetros de distância. O Cardeal Arcebispo de Westminster, Henry Edward Manning (1808-1892), que foi um dos principais defensores da infalibilidade papal no Concílio Vaticano, expressou o conceito claro de Sola Ecclesia:

Mas o apelo à antiguidade é tanto uma traição como uma heresia. É uma traição porque rejeita a voz divina da Igreja nesta hora, e uma heresia porque nega que a voz pode ser divina. Como podemos saber o que era a antiguidade, senão por intermédio da Igreja? (...) Eu posso dizer na verdade estrita que a Igreja não tem antiguidade. Ela repousa sobre sua própria consciência sobrenatural e perpétua (...) A única evidência divina para nós do que era primitivo é o testemunho e a voz da Igreja nesta hora. (The Temporal Mission of the Holy Ghost: Or Reason and Revelation [New York: J.P. Kenedy & Sons, originally written 1865, reprinted with no date], pp. 227-228)

O conceito de Sola Eclesia tem consequências inaceitáveis. É uma espécie de cheque em branco em que o magistério da igreja pode preencher o que quiser. Daqui a séculos, a igreja romana pode ensinar doutrinas que ninguém hoje acredita. C.S Lewis expressou com maestria a irracionalidade do romanismo e porque ele pessoalmente o rejeitava:

A verdadeira razão pela qual eu não posso estar em comunhão com você [católicos] não é o meu desacordo com esta ou aquela doutrina romana, mas ter que aceitar sua forma de Igreja, não aceitar um determinado corpo de doutrina, mas para aceitar com antecedência qualquer doutrina que sua Igreja produzir no futuro. É como ser solicitado a concordar não só com o que um homem tem dito, mas também como o que ele vai dizer. (Letter of C. S. Lewis to H. Lyman Stebbins, “The Boldness of a Stranger”)

Por todos esses motivos qualquer pessoa que adote o cânon vicentino deve necessariamente repudiar o romanismo. O critério de Vicente não estabelecia uma regra infalível de fé paralela à Escritura. Ele basicamente usava um argumento probabilístico que apelava a posição consensual ou majoritária. 

Foi por querer interpretar individualmente as escrituras, desconsiderando a tradição e a Igreja, é que surgiram todas essas heresias, como gnosticismo, montanhismo, sabelianismo, arianismo, pelagianismo, nestorianismo, monofisismo, catarismo, protestantismo, jansenismo, etc.

O apologista católico pressupõe que sua igreja é o juiz que determina o que é herético e ortodoxo. No entanto, a igreja romana é só mais um intérprete sequer uniforme das Sagradas Escrituras. O que ela afirma ser a verdadeira tradição é apenas mais uma entre tantas opiniões sobre o conteúdo da tradição. Outras igrejas que apelam aos mesmos critérios que Roma (tradição, sucessão apostólica, magistério) tomam direções totalmente opostas. Além disso, os grupos heréticos que ele citou, com exceção do protestantismo que foi um retorno ao evangelho, não adotavam a Sola Scriptura. Pelo contrário, muitos desses grupos apelavam a uma suposta tradição inspirada e ao seu próprio magistério. O exemplo mais conhecido que nos mostra como o paradigma romanista foi considerado herético na igreja antiga é o gnosticismo. Irineu escreveu:

Quando, porém, eles são refutados a partir das Escrituras, voltam atrás e acusam essas mesmas Escrituras, como se elas não fossem corretas e nem tivessem autoridade, e afirmam que elas são ambíguas, e que a verdade não pode ser extraída a partir delas (...) alegam que a verdade não foi entregue por meio de documentos escritos, mas a viva voz. (Contra as Heresias 3:2:1)

Os gnósticos extraiam suas inovações heréticas não de uma exegese sadia das Escrituras, mas justamente de uma tradição oral fantasmagórica. Isso nos lembra exatamente das doutrinas de Roma que são desconhecidas por séculos na igreja primitiva – algo admitido até pelos teólogos católicos romanos.

Por último, vamos tratar de um dos maiores problemas do paradigma romanista – a ineficácia do magistério em manter a unidade e uniformidade doutrinária. A igreja romana costuma superestimar as divisões no protestantismo e subestimar suas próprias divisões. A ideia de que o papado mantém a unidade na fé é algo inaceitável. Atualmente, existem diversos grupos dentro da igreja romana clamando guardar a verdadeira tradição. O site católico "catolicismo romano" admite tal realidade:

Como podem ver caros amigos, de una a Igreja passou a ser variada. Se você se identifica com um determinado grupo ou associação, procure conhecer, no entanto, o Corpo de Cristo vai ficando cada vez mais desfigurado e irreconhecível. E quem tem a mais árdua das missões para fazer este Corpo voltar a ser um só não é mais o Papa, e sim um colégio de Bispos, cada um com sua sentença.

Um dos casos mais sérios é o sedevacantismo. Esse grupo afirma que a cátedra de Pedro está vacante. Segundo eles, os últimos papas são usurpadores que introduziram ensinos heréticos contrários à tradição da igreja. O que eles fazem é basicamente agir segundo um paradigma protestante. Eles estudaram a tradição da igreja e chegaram à conclusão que o magistério presente contrariou o magistério mais antigo. Um desses ensinamentos seria a liberdade de consciência e de religião. Ao longo da história, a igreja romana condenou a liberdade religiosa – um país católico não deveria permitir que outras religiões estabelecessem igrejas em seu território. O Sílabo de Erros – um documento promulgado pelo papa Pio IX em 1864 – condena os seguintes “erros”:

15º É livre a qualquer um abraçar e professar aquela religião que ele, guiado pela luz da razão, julgar verdadeira.

24º A Igreja não tem poder de empregar a força nem poder algum temporal, direto ou indireto.

42º Em conflito entre os dois poderes deve prevalecer o poder civil.

55º A Igreja deve estar separada do Estado e o Estado da Igreja.

63º É lícito negar a obediência aos Príncipes legítimos e mesmo revoltar-se contra eles.

67º Pelo direito natural o vínculo matrimonial não é indissolúvel, e em muitos casos pode a autoridade sancionar o divórcio propriamente dito.

68º A Igreja não tem poder de estabelecer impedimentos dirimentes ao casamento; pertence isso à autoridade civil, pela quaI os impedimentos existentes têm de ser tirados.

77º Na nossa época já não é útil que a Religião Católica seja tida como a única Religião do Estado, com exclusão de quaisquer outros cultos.

78º Por isso louvavelmente determinaram as leis, em alguns países católicos, que aos que para aí emigram seja lícito o exercício público de qualquer culto próprio.

Esse documento condena claramente a liberdade religiosa e a separação entre a Igreja e o Estado. Já o Concílio Vaticano II emitiu a declaração Dignitatis humanae que diz:

Este Sínodo Vaticano declara que a pessoa tem direito à liberdade religiosa. Tal liberdade consiste em que nenhum ser humano deve estar sujeito à coerção, nem de outros indivíduos, nem da sociedade e ou de qualquer poder humano, de modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra sua consciência, em púbico ou de forma privada, sozinho ou associado a outros, dentro dos devidos limites. Além disso, declara que o direito à liberdade religiosa se baseia na mesma dignidade da pessoa humana, tal como é conhecida pela palavra de Deus revelada e pela própria razão. O direito da pessoa à liberdade religiosa deve ser reconhecido pelo ordenamento jurídico da sociedade, para que se torne um direito civil.

A despeito de todos os malabarismos no sentido de dizer o contrário, é nítido que num espaço de menos de 100 anos, a igreja romana ensinou ideias contraditórias. Outro exemplo bem conhecido de contradição é a possibilidade de salvação fora da igreja romana. O concílio de Florença afirmou:

A Igreja crê firmemente, professa e prega que todos aqueles que estão fora da Igreja Católica, não só pagãos, mas também judeus ou hereges e cismáticos, não podem compartilhar a vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos, a menos que eles estejam ligados à Igreja Católica antes do final de suas vidas, pois a unidade do corpo eclesiástico é de tal importância que somente aqueles que recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo jejuns, obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica. (Concílio de Florença, 1431-1445)

O concílio claramente definiu essa questão como artigo de fé. No entanto, a igreja romana atualmente ensina que até mesmo não cristãos podem ser salvos. O Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n. 171 afirma:

171. Que significa a afirmação: 'Fora da Igreja não há salvação'?  (846-848)

Significa que toda a salvação vem de Cristo-Cabeça por meio da Igreja, que é o seu corpo. Portanto não poderiam ser salvos os que, conhecendo a Igreja como fundada por Cristo e necessária à salvação, nela não entrassem e nela não perseverassem. Ao mesmo tempo, graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita.

É a chama ignorância invencível. O Concílio de Florença claramente não estabeleceu essa exceção ao afirmar que “ninguém pode ser salvo (...) a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica”.

Católicos costumam apontar as interpretações bíblicas divergentes que as igrejas protestantes possuem, todavia é bem claro que eles também interpretam de forma divergente os ensinos do magistério. Esse seria mais um argumento autodestrutivo, pois se a Escritura não é suficiente por causa de divergências interpretativas, o magistério romanista também não poderia ser. Aqui você pode ler o debate entre dois católicos a respeito de algumas dessas divergências. Os católicos inclusive discutem se um determinado teólogo católico é um intérprete confiável de um documento do magistério. Teólogos católicos como o reconhecido Hans Kung tem a décadas negado o dogma da infalibilidade papal e até hoje ele não foi oficialmente excomungado pela igreja romana. Um exemplo das divergências interpretativas em documentos papais é a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris laetitia do Papa Francisco. Sobre ela um site católico escreve:

Um mês após a publicação da Exortação pós-sinodal "Amoris Lætitia" é cada vez mais evidente que na interpretação e aplicação há uma crescente "incerteza e confusão, desde as conferências episcopais até as pequenas paróquias no meio do nada," na crítica contundente do eminente filósofo alemão Robert Spaemann, um amigo de longa data de Joseph Ratzinger. (Fonte)

Por esse estado de incerteza e confusão, muitos bispos estariam solicitando um segundo documento interpretando a Amoris laetitia. Essa é a clara demonstração de como os argumentos contra a Sola Scriptura acabam se voltando contra posição romanista. Todo esse mar de incertezas que rodeia o catolicismo romano se deve em grande parte a um fato impressionante – ninguém sabe ao certo quantas vezes o papa ensinou infalivelmente. Se existe um magistério infalível, uma resposta vital seria saber onde estão todos os ensinos infalíveis desse magistério. O que todos os teólogos católicos que trataram da questão concordam é que o papa falou infalivelmente pouquíssimas vezes. Os mais otimistas afirmam 12 vezes, os mais pessimistas apenas duas. O teólogo Klaus Schatz, bastante citado nesse blog, afirma que o papa ensinou infalivelmente apenas 7 vezes. O apologista católico Robert Sungenis afirma:

De fato, a maior parte do que os católicos acreditam e praticam hoje nunca foi declarado infalível. A maior parte de nossa fé e moral vem do Magistério ordinário e ele raramente ensina um dogma infalível. Houve apenas dois casos definitivos do exercício da infalibilidade papal. O primeiro foi em 1870, quando a doutrina da infalibilidade papal foi decretada como uma doutrina em si, e o segundo foi em 1950, quando a doutrina da Assunção de Maria foi decretada. Os outros ensinamentos feitos pelos papas, passados e presentes, nunca foram definido oficialmente como um ex-cathedra, infalível e irreformável ensino. É claro, a Igreja poderia ir para trás e analisar vários ensinamentos dos papas anteriores, a fim de decidir se um ou outro estava ensinando infalivelmente sobre um determinado assunto, mas ela nunca fez isso, e, portanto, não há nenhuma lista de ensinamentos papais infalíveis. (Fonte)

Podemos dizer então que o papa em mais de 99% das vezes não estava ensinando infalivelmente. Ele simplesmente pode ter errado. Até mesmo a infalibilidade conciliar – algo tão fundamental na teologia católica romana – é posta em dúvida. Alguém pode ter certeza que os 21 concílios ecumênicos e somente os 21 que a igreja romana aceita foram infalíveis? A resposta é um sonoro não. A infalibilidade de um concílio depende da infalibilidade papal. Em última instância é pela autoridade do papa que um concílio é válido ou não. Mas, até mesmo os ensinos papais sobre a infalibilidade dos concílios está entre as declarações sobre as quais se tem dúvida.

A situação é tão séria que os católicos defensores que a igreja retroceda no ensino da infalibilidade papal afirmam que como não há nenhuma declaração infalível sobre a infalibilidade dos concílios, o Concílio Vaticano I que promulgou o dogma deveria ser considerado como em erro. Apologistas católicos afirmam que a existência de um magistério infalível é uma necessidade lógica. No entanto, se ele existe, não poderia ser o magistério romanista, pois esse não é capaz de cumprir o que promete – preservar a igreja do erro. Em séculos de história, a igreja Romana nunca produziu uma tradução bíblica infalível. Na verdade, tentou produzir, mas falhou miseravelmente.

O papa Sisto V, encorajado pela decisão do Concílio de Trento, onde a "Vulgata" foi reconhecida como um artigo autêntico da Igreja católica romana, publicou e distribuiu uma nova edição, historicamente conhecida como a edição "sixtina". No decreto papal que anunciou a edição, Sisto V mencionou que o referido texto seria o único texto autêntico e que o considerava como tendo sido corrigido "pela mesma mão fundamentada na autoridade da abundância do poder apostólico." (Paul Fr. Ballester Convalier, My turn to Orthodoxy, Athens 1954, pg 33, 1-pg34)

Ele também determinou que todas as outras publicações das Sagradas Escrituras não tinham valor e que quem tentasse derrubar o novo texto seria automaticamente excomungados.

Dois anos mais tarde, o Papa Clemente VII (1592-1605) retratou a edição de Sisto V porque estava cheio de enganos e erros em "tradução, expressão e ensino." (Ibid., p. 34). Na verdade, o cardeal jesuíta Roberto Belarmino - um dos maiores teólogos papistas até aquela data, um santo para os católicos romanos e grande defensor do primado papal - caracterizou o artigo de Sisto V "como um labirinto de enganos de toda espécie." (Ibid., p. 34)

O mesmo Bellarminus na verdade menciona em sua autobiografia que pediu ao Papa Gregório XIV (1590-1591) para proteger a reputação de Sisto V do escárnio. Como? Através da republicação de sua edição de 1590 corrigida e com a adição de um prólogo de Belarmino em que ele iria explicar aos fiéis que Sisto V não foi culpado pelos erros, mas as "impressoras e outros." (Ibid., p. 34)

É comum alguém apontar o catecismo como o documento autorizado a afirmar o ensino da igreja, mas não existe um catecismo infalível. Da mesma forma o professor de catequese também é um intérprete falível do catecismo, não sendo incomum que hajam interpretações divergentes desse documento. Alguém poderia perguntar como fica a interpretação da Escritura. Os católicos nos acusam de não podermos ter certeza a respeito da interpretação textos bíblicos. Isso deveria pressupor que os católicos tem um comentário bíblico infalível. A realidade é o extremo oposto. Ninguém sabe ao certo quantos textos bíblicos teriam sido objeto de uma interpretação infalível. Mas todos igualmente concordam que são pouquíssimos. O número doze é a aposta de uma boa parte. Mas seriam doze livros da Escritura? Não, seriam apenas doze versículos.  Ou seja, em mais de 99% do texto bíblico, o católico depende do seu próprio livre exame ou do livre exame de algum outro intérprete falível. Até mesmo o texto de Mateus 16:18, usado em qualquer debate com um católico romano, não está livre de dúvidas. O efeito prático de tudo isso é que, na maior parte do tempo, mesmo o católico mais fundamentalista precisa agir sob o paradigma protestante do livre exame. No fim do dia, todos nós precisamos investigar a questão e seguindo nossa consciência chegar à verdade.

A grande questão é que certeza epistemológica é algo que Deus resolveu não conceder ao homem e se tivesse resolvido conceder, o magistério romanista não seria a sua criação para esse fim. Deus é perfeito, ele não criaria uma ferramenta que falharia em seus propósitos. Se Deus de fato quisesse nos dar certeza epistemológica, ele faria um trabalho perfeito – que seria conceder a cada crente o carisma da infalibilidade. Assim, todos os crentes necessariamente chegariam à verdade e professariam a mesma fé em tudo. Qualquer pessoa sensata sabe que isso não existe. Há um artigo do Sílabo de Erros especialmente importante para essa discussão:

22º A obrigação a que estão sujeitos os mestres e escritores católicos refere-se tão somente àquelas coisas que o juízo infalível da Igreja propõe como dogmas de fé para todos crerem.

Em outras palavras, mesmo um ensinamento falível deve ser obrigatoriamente seguido e acreditado por um mestre ou autor católico. Ou seja, mesmo que a igreja está expressamente errada e ela própria admita que possa estar errada, é obrigatório segui-la. Inácio de Loyola bem disse:

Acredito que o branco que eu vejo é negro, se a hierarquia da igreja assim o tiver determinado.

Encerramos aqui esta série de artigos concluindo que a Sola Scriptura é a posição genuinamente cristã por motivos bíblicos, lógicos e históricos. A posição romana é irracional e não deve ser adotada.