O período pré-niceno (anterior
ao Concílio de Niceia) abrange os três primeiros séculos da Igreja. Apologistas
católicos afirmam que a fé católica foi praticada desde o início. Obviamente
esta afirmação é feita apenas por apologistas de internet, mas não encontramos
o mesmo tom nos acadêmicos católicos, que admitem que muitas das práticas
atuais da Igreja romana não podem ser rastreadas até os primeiros séculos da
Igreja. Especificamente sobre o culto às relíquias já tratamos em artigo (aqui). Ao pesquisar na internet sobre
o assunto, deparei-me com as seguintes citações que supostamente endossariam a
doutrina romanista das relíquias. Orígenes de Alexandria teria escrito:
E
não é de admirar se um santo, santifique, pela palavra de Deus e pela
oração, a comida de que participamos, quando
até mesmo as próprias vestes com as quais ele está vestido são santas. Os
lenços e aventais de Paulo tinha muita santidade de sua pureza, que, quando
aplicado aos órgãos do doente, se afastavam doenças, e restaurava a saúde, e de
Pedro, o que devo dizer, a cuja própria sombra do corpo tinha tanta santidade,
que quem, não ele, mas a sua sombra apenas tocava, era ao mesmo tempo aliviado
de todos os males. [Atos 05, 15]” (Comentário sobre Epistola aos
Romanos, PG XIV)
Esta citação sem o contexto
expandido não apoia a crença católica a respeito dos milagres operados pelas
relíquias. A Igreja Romana ensina que as relíquias dos santos teriam poderes
milagrosos. Elas teriam uma graça especial que os restos mortais de um pagão
por exemplo não possuiriam. Ocorre que a citação acima menciona as vestes dos “santos”.
Mas quem seriam os tais santos? Logo em seguida, Orígenes menciona Pedro e
Paulo. Obviamente, os apóstolos tinham dons de operar milagres que os demais
cristãos não possuem. Deus também pode se utilizar de meio específicos para
operar milagres. Jesus por exemplo curou um cego utilizando-se do barro. Naamã
foi curado ao mergulhar no rio Jordão. O fato de Deus ter utilizado tais meios
não implica que o rio Jordão ou o barro sejam um canal especial de graça a ser
recorrido regularmente. O fato de Deus utilizar um meio específico para um
milagre não torna este meio em si possuidor de qualquer poder sobrenatural.
Além disso, não havia no tempo
de Orígenes qualquer processo formal de canonização. Isto só viria a acontecer
muitos séculos depois. O conceito de Orígenes sobre os santos não se refere a
um grupo de super crentes com poderes especiais. Ele se referia a todos os
cristãos como santos (de forma análoga ao que faz o Novo Testamento). Não é por
acaso que não se encontra em Orígenes qualquer relato de relíquias de cristãos
operando milagres. Ademais, conforme já demonstramos (aqui),
Orígenes se opunha a qualquer oração dirigida a pessoas falecidas ou até mesmo
anjos. Ele afirmou que toda oração deveria ser dirigida somente a Deus. Isto,
por si, demonstra que Orígenes não endossaria qualquer tipo de culto às
relíquias.
Contudo, desejo abordar aqui
outro problema – o uso disseminado de citações duvidosas ou fraudulentas em
sites apologéticos católicos. Esta citação não é encontrada na tradução inglesa
do comentário sobre romanos de Orígenes (aqui e aqui).
Observe que, entre as referências a Pedro, não encontramos a citação acima. Os
sites católicos geralmente traduzem as citações de sites apologéticos em
inglês. Ao procurar em inglês, achei apenas um site com esta citação:
And no wonder if a saint
sanctify, by the word of God and prayer, the food of which we partake, when
even the very garments with which he is clothed are holy. The handkerchiefs and
aprons of Paul derived so much holiness from his purity, that, when applied to
the bodies of the sick, they drove away diseases, and restored health: and of
Peter what shall I say, the very shadow of whose body bore with it so much
holiness, that whomsoever, not he, but his shadow only touched, was at once
relieved from every ailment." [Acts 5:15] (T. iv. L. ix. Comm. in Ep. ad
Rom. 666. The Faith of Catholics, Volume 3, Page 251-252)
Percebam que a fonte é de um
livro católico, ou seja, uma fonte secundária. Isso no mínimo é estranho, uma
vez que o comentário de Orígenes se encontra disponível em várias fontes online's e em nenhuma delas tal citação é encontrada. Dessa forma, é no mínimo duvidosa.
Outra citação usada pelos apologistas católicos é a seguinte:
Nesse
meio tempo um corpo astral de senadores daqueles que estão engajados no serviço
de transporte público, vendo o que havia acontecido, pois estavam perto do mar,
preparou um barco, e de repente
apoderaram-se das relíquias sagradas, eles colocaram nele, e escalando o
Pharos por trás, por um quartel que tem o nome de Leucado, eles vieram para a
igreja da Santíssima mãe de Deus e sempre Virgem Maria, que, como se começou a
dizer, ele tinha construído no quartel oeste, em um subúrbio, um cemitério dos
mártires. (Atos Originais de Pedro de Alexandria)
O apologista católico afirma:
Pedro
I de Alexandria foi o Arcebispo de Alexandria entre 300 a 311 d.C. Em seus atos genuínos nos conta a seguinte
história de como tinha posse das relíquias sagradas dos santos e como
colocaram na Igreja dedicada a virgem Maria.
Teríamos um Pai da Igreja
pré-niceno relatando com aprovação a veneração das relíquias? No entanto, a
obra “Atos de Pedro de Alexandria” (aqui)
jamais poderia ter sido escrita pelo próprio Pedro, uma vez que narra sua própria
vida e inclusive a sua morte. Pode um falecido relatar sua própria morte? As
relíquias em questão são os restos mortais de Pedro de Alexandria que foram,
segundo tal relato, disputadas pela população. Vejam o trecho inicial da obra:
Se
todos os membros do meu corpo fossem transformados em línguas, e todas as
articulações dos meus membros proferissem sons articulados, ainda assim não seria suficiente para
expressar quem, quão grande e quão bom foi o nosso mais abençoado Pai Pedro,
Arcebispo de Alexandria.
Ou seja, o narrador da
história não é o próprio Pedro. Isso demonstra a baixíssima qualidade desses
artigos apologéticos, que sequer se dão ao trabalho saber o básico sobre o
livro a que se referem. Não há em nenhuma das obras escritas pelo próprio Pedro
qualquer apoio a veneração de relíquias. Além do erro crasso de autoria, os
apologistas se utilizam de uma obra com baixo valor histórico. A Enciclopédia
Católica afirma:
Os atos do martírio de São
Pedro são tardios demais para ter qualquer valor histórico. Neles está a história de Cristo
aparecendo a São Pedro com seu traje de renda, prevendo o cisma ariano.
(Fonte)
Ou seja, é um relato lendário
e longe dos fatos. Outra obra utilizada pelos católicos é o martírio de Inácio
de Antioquia. Eu já tratei desta obra no meu artigo anterior sobre as
relíquias, mas é digno de nota o fato de que há controvérsias sobre autoria e período
em que a obra foi composta. Os tradutores da obra oferecem a seguinte nota
introdutória:
O
seguinte relato do martírio de Inácio professa, em várias passagens, ter sido
escrito por aqueles que o acompanharam em sua viagem a Roma e estavam presentes
por ocasião de sua morte (caps. V. Vi. Vii.). Se a autenticidade desta
narrativa, bem como das Epístolas Inacianas, for admitida, pode haver pouca
dúvida de que as pessoas em questão eram Filo e Agatopus, com Crocus talvez,
todos os quais são mencionados por Inácio (Epist. A Smyr , cap. x., para
Philad., cap. xi., para Rom., cap. x.) como tendo participado naquela viagem a
Roma que resultou em seu martírio. Mas dúvidas foram levantadas por Daille e
outros, quanto à data e autoria desse relato. Algumas delas se baseiam em
considerações internas, mas a maior
objeção é encontrada no fato de que nenhuma referência a essa narrativa pode
ser traçada durante os primeiros seis séculos de nossa era. (5) Esta é
certamente uma circunstância muito suspeita, e pode bem causar alguma hesitação
em atribuir a autoria aos companheiros e amigos imediatos de Inácio. Por outro
lado, no entanto, este relato da morte de Inácio está em perfeita harmonia com
os detalhes relatados por Eusébio e Crisóstomo em relação a ele. Sua simplicidade
comparativa também está em grande parte a seu favor. Não faz referência às
lendas que se conectam com o nome de Inácio. Como é sabido ele veio no decorrer
do tempo a ser identificado como a criança que Cristo (Mateus 18: 2) colocou
diante de seus discípulos como um padrão de humildade. Foi dito que o Salvador
o tomou em seus braços e que, portanto, Inácio derivou seu nome de Teóforo,
isto é, de acordo com a explicação que essa lenda dá da palavra - aquele que é
carregado por Deus. Mas no cap. ii. da seguinte narrativa encontramos o termo
explicado para significar "aquele que tem Cristo em seu peito" e esta
simples explicação, com todo o silêncio preservado quanto às maravilhas depois
conectadas com o nome de Inácio, é certamente um forte argumento em favor da
data antecipada e provável genuinidade da conta. Alguns críticos, como Usher e
Grabe, consideraram a última parte da narrativa como espúria, enquanto
aceitavam a primeira; mas parece haver uma unidade sobre o assunto que requer
que aceitemos isso ou o rejeitemos completamente. (Fonte)
O fato de tal obra não ter
sido citada durante cinco séculos de fato a coloca sob o status de duvidosa.
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