Orígenes (?-254)
J. B. Carol nos dá um bom resumo da visão de
Orígenes:
Há uma perspectiva bastante diferente entre Tertuliano e Orígenes sobre
a virgindade perpétua de Maria. Depois de examinar de perto estas divergências
e seus fundamentos, dificilmente se pode
evitar a impressão de que a resposta pode ser encontrada em práticas ascéticas
cristãs e na medida em que elas influenciaram esses dois autores. Tertuliano
foi, sem dúvida, um asceta, mas como em todas as outras coisas, de acordo
com suas próprias luzes e temperamento singular. (ibid)
Carol toca num ponto fundamental que nos
explica o principal fundamento do aparecimento e desenvolvimento da
virgindade perpétua na igreja. Esse ponto é o surgimento e ascensão do
ascetismo. Os ascetas acreditavam que para servir a Cristo idealmente era
necessário “sair do mundo”. Entre outras coisas, isso incluía viver uma vida
isolada de oração e celibato. Entre eles, era vigente a ideia de que a vida
celibatária era superior ao casamento. Uma pessoa atingiria maior santidade vivendo dessa forma. Dessa ideia errada é que surge a virgindade
perpétua. Ou seja, a ideia não surge como uma tradição independente e objetiva
em si, mas como uma implicação de outra ideia. Se o estado virginal era
superior, como poderia então a própria mãe de Jesus não ter sido sempre virgem?
Percebam a relação de causa e efeito. Não foi um suposto exemplo virginal de
Maria sempre ensinado pela igreja que inspirou o ascetismo. Foi o ascetismo que
projetou em Maria seus próprios ideias popularizando uma visão sem apoio bíblico
e histórico.
O problema é que se trata de anacronismo.
Maria não era uma cristã asceta do séc. I. Ela era uma mulher judia e casada.
Não havia no judaísmo do século I um ideal asceta. Pelo contrário, os filhos
eram vistos como uma bênção de Deus. Uma mulher casada não ter filhos era
motivo de tristeza e sinal de maldição. A Escritura relata o caso de Ana que
orou a Deus pedindo um filho que não podia ter por ser estéril. Deus a atendeu
e ela se tornaria a mãe de Samuel (1 Sm. 1:10). Então, além de Maria não viver
segundo um ideal asceta, ele ainda de fato se casou. Seria muito improvável que
ela não mantivesse uma vida conjugal normal com seu marido. Paulo chega a dizer
que é um direito do cônjuge ter relações sexuais com seu companheiro (1 Cor.
7:3). Não é de se estranhar que uma crença equivocada tenha gerado
outra crença equivocada. Carol ainda nos dá outra informação valiosa.
Ele afirma que Tertuliano também era um asceta. Isso coloca ainda mais peso em
seu testemunho, pois mostra que não tinha alguma pré-disposição para negar a
virgindade perpétua. Muito pelo contrário, a pré-disposição seria no sentido
oposto. Carol prossegue:
Quando Orígenes tratou a questão da virgindade perpétua de Maria após
o nascimento de Cristo, ao contrário de Tertuliano, ele não tinha considerações
polêmicas, mas enfrentou o problema de frente, objetivamente, e para seu
próprio bem. No entanto, em sua solução
ele foi inspirado, em sua própria admissão, pelos pontos de vista de certos
ascetas contemporâneos, dedicados a uma vida de virgindade consagrada; na
sua opinião, era impossível e inconcebível que Maria tivesse se submetido a
qualquer homem depois de ela ter sido ofuscada pelo poder do Altíssimo (...)
Será que Orígenes e os ascetas de sua época consideravam que a virgindade
perpétua de Maria excluía a perda dos sinais de integridade virginal em seu
corpo no momento de dar à luz Cristo? Esta questão não pode ser respondida com
certeza absoluta. Parece, no entanto,
que o próprio Orígenes não reconheceu a conexão entre o que hoje chamamos de
virgindade no parto e a virgindade pós-parto. A primeira não era
desconhecida para ele. Ele enfrentou o problema em seu comentário sobre a
Epístola a Tito e rejeitou o nascimento
virginal (141). Além disso, não encontramos nenhuma indicação contrária em
quaisquer textos de Orígenes que são certamente autênticos. Assim, ele se expressou em termos incompatíveis
com a virgindade de Maria no parto em suas Homilias sobre São Lucas, (142)
traduzidas por São Jerônimo. Do ponto de vista contrário expresso na tradução
Rufino das homilias de Orígenes sobre Levítico podemos concluir que Orígenes
vacilou sobre este assunto ou que ele mudou sua opinião definitivamente? G. Jouassard é da opinião que Rufino muito
provavelmente reescreveu o texto original de Orígenes para torná-lo conforme a
sua visão pessoal de que Maria permaneceu virgem no parto. (Ibid)
As duas referências onde Orígenes nega a
virgindade no parto são as seguintes:
(141) Texto preservado na Apologia para
Orígenes por Panfilo e Eusébio; PG, 17, 554, e reproduzido na PG, 12, 493 f.
(142) Homilia em Lucas, 14; PG, 13, 1834, 1836
f
Infelizmente, não encontrei nenhum recurso
online com essas obras em inglês. Resumidamente, nós temos Clemente defendendo
a virgindade no parto e Orígenes no pós-parto. Nenhum dos dois pode ser contado
como testemunha para virgindade perpétua. A questão é se algum deles
considerava essas ideias artigos de fé ou tradições apostólicas. Carol
responde:
O contraste entre a posição inflexível de Clemente e a posição
vacilante de Orígenes (e as próprias declarações de Clemente corroboram isso) mostram que os católicos no Egito
consideravam que a questão da virgindade de Maria no parto foi aberta à
discussão e de maneira nenhuma resolvida definitivamente. O mesmo era
verdade para virgindade pós-parto de Maria? Sem dúvida, pois apesar de Orígenes adotar a opinião de Clemente
aqui, ele nunca afirma ou mesmo implica
que havia qualquer obrigação para um católico fazê-lo. Em vez disso
expressa sua clara compreensão de que a virgindade
de Maria após o parto era a visão particular daqueles ascetas dedicados à
prática da virgindade e foi baseada em seu conceito de sua virgindade
completa e perpétua. (Ibid)
Ao defender um ou outo elemento da doutrina
romanista, Clemente e Orígenes definitivamente não estavam defendendo um artigo
de fé. Eles basicamente estavam adotando uma opinião
influenciados por ascetas cristãos ou narrativas de pouco valor histórico.
Carol ainda escreve:
Assim, temos o seguinte quadro de uma parte considerável do mundo
católico no final do segundo século e a primeira parte do terceiro, ou seja, a liberdade completa para
representar a virgindade de Maria como se quisesse, com exceção de sua
concepção virginal, que foi claramente considerada como um dogma além de toda
disputa. (Ibid)
Um último apontamento – boa parte dos
argumentos usados pelos católicos para dispensar Tertuliano também deveriam ser
usados para Orígenes. Ele foi visto como um herege por alguns pais da igreja
posteriores (Jerônimo por exemplo). Muitas de suas obras inclusive foram
queimadas como uma condenação às suas ideias. Por esse motivo, diferente de
outros autores do período, ele não foi canonizado pela igreja romana. Apesar de
tudo isso, quando o testemunho de Orígenes favorece a igreja romana num certo
ponto, eles não veem problema em usá-lo.
Vitorino de Pettau
(250-304)
No
famoso debate entre Jerônimo e Helvídio, o segundo apresentou Vitorino como testemunha
contra a virgindade perpétua. Jerônimo então respondeu:
Você, se sentindo uma
pessoa sem conhecimentos, usou
Tertuliano como sua testemunha e citou as palavras de Vitorino, bispo de
Perávio. De Tertuliano não direi
senão que não pertenceu à Igreja. Mas com respeito a Vitorino, afirmo que já ficou provado pelo Evangelho - que ele falou
dos irmãos de Nosso Senhor não como sendo filhos de Maria, mas irmãos no
sentido que expliquei, ou seja, irmãos sob o ponto de vista de parentesco, não
de natureza. Estamos, contudo, desperdiçando nosso percurso com ninharias e
deixando a fonte da verdade, estamos seguindo insignificantes pontos de
opinião. Não deveríamos arrolar contra você toda a série de escritores antigos?
Inácio, Policarpo, Irineu, Justino
Mártir e muitos outros homens apostólicos e eloquentes, que expuseram as
mesmas explicações contra Ebião, Theodoro de Bizâncio e Valentino, escreveram
volumes repletos de conhecimentos. Se você alguma vez lesse o que eles
escreveram, você se tornaria um homem sábio. Mas eu penso que é melhor refutar
brevemente cada ponto do que prolongar meu livro por uma extensão indevida. (Contra Helvídio cap.
19)
Jerônimo
aceita o testemunho de Tertuliano, mas não aceita o de Vitorino. Uma boa parte
das obras de Vitorino se perdeu, mas parece que ele fez declarações relevantes
sobre o tema. Quem estaria certo?
Infelizmente não conhecemos nada da obra de Helvídio sobre o assunto, a não ser pelo que
Jerônimo escreveu. Como ele era um oponente no debate, não é uma fonte muito
confiável. Mas, será que podemos descobrir qual lado estava certo? Entendemos
que o testemunho de Helvídio é mais credível pelos seguintes motivos:
(1)
Helvídio
é mais cuidadoso. Ele cita apenas dois autores em favor de sua opinião (embora
pudesse citar mais), enquanto Jerônimo cita vários pais da igreja e outros
homens apostólicos;
(2)
Jerônimo
cita quatros escritores antigos nos quais não há nenhuma afirmação da
virgindade perpétua em obras preservadas. Estariam então em obras não
preservadas? Muito improvável. Jerônimo não parece conhecer qualquer obra além
das que conhecemos hoje. Na verdade, em outros lugares ele menciona apenas os
oito documentos de Inácio e Policarpo que temos hoje, sugerindo que não tinha conhecimento
de quaisquer outras disponíveis em sua geração (Vidas dos Homens Ilustres 16-7).
Eusébio, escrevendo várias décadas mais cedo, confirma que esses oito
documentos eram tudo o que tinha sido preservado de Inácio e Policarpo
(História da Igreja 3:36 e 4:14). E como já vimos, em seus escritos que são
existentes, Irineu parece contradizer a virgindade perpétua de Maria. Não há
também em qualquer obra de Justino uma afirmação dessa doutrina. Pelo menos
Policarpo e Inácio foram deturpados por Jerônimo. O que esses autores fizeram
foi apenas afirmar a concepção virginal de Cristo;
(3)
Jerônimo
não diz que Vitorino afirmou explicitamente a virgindade perpétua. Ele se
limita a dizer que quando Vitorino se referiu aos irmãos de Jesus os entendia
como primos. Ou seja, ele não nega as palavras de Vitorino trazidas por
Helvídio, apenas dá a elas um significado diferente daquele aplicado pelo seu
oponente. Ocorre que a tese de Jerônimo não foi defendida por nenhum pai da
igreja anterior. Àqueles que afirmavam a virgindade perpétua defendiam que os
irmãos de Jesus eram filhos de outro casamento de José. Além disso, a
interpretação de Jerônimo estava errada, uma vez que os autores do Novo
Testamento escreveram em grego e tinham à disposição palavras específicas para
designar primos e irmãos. Como Jerônimo deturpou outros pais da igreja, não é
improvável que tivesse feito o mesmo com Vitorino.
O erudito patrístico
J.N.D Kelly sumariza os problemas da resposta de Jerônimo:
A evidência do Novo Testamento ainda está em discussão,
mas a grande maioria dos estudiosos críticos concordam que a sua [Helvídio] interpretação e não a de Jerônimo é a correta.
Os esforços de Jerônimo para contornar o significado óbvio dos textos são tidos
por pessoas hoje como apelo especial, o
subproduto de sua convicção prévia de que a relação sexual é impura. Sua
lista dos pais ortodoxos que o apoiavam era
uma desonesta cortina de fumaça típica de seu estilo de debate; é duvidoso
que ele tivesse qualquer familiaridade com os escritores que listou, mais duvidoso ainda que eles mantivessem os
pontos de vista que atribuiu a eles. (Jerome [Peabody, Massachusetts: Hendrickson
Publishers, 2000], 106-7)
Kelly também faz o
ponto de que a visão de Jerônimo mudou ao longo do tempo, ele teria inicialmente rejeitado a virgindade no parto, mas depois a
aceitou (p. 106). Esse desenvolvimento nos dá ainda mais razão para confiar
em Helvídio ao invés de Jerônimo. Além disso, essa mudança de opinião evidencia
a improcedência de um elemento central da defesa católica: a ideia de que essa
sempre foi a fé da igreja. Como temos demonstrado em nossos artigos, os católicos
costumam se agarrar a qualquer testemunho em favor de sua doutrina e
rapidamente concluir que ela sempre foi a fé da igreja e acreditada por todos
os autores ortodoxos. Ao fazer isso, eles “varrem para debaixo do tapete”
qualquer autor cristão contrário sob o argumento de que se trata apenas de uma
opinião privada. O fato de mesmo autores favoráveis a uma determinada doutrina
católica mudarem de posição ao longo da vida revela a falsidade desse
argumento. Se a virgindade no parto era algo sempre crido pela igreja, seria
esperado igualmente que Jerônimo sempre tivesse sempre crido nela. Mais a frente vamos discutir novamente a posição de Jerônimo sobre a virgindade no parto. Defendemos que na verdade ele nunca mudou de posição.
A virgindade perpétua no século IV
É no século IV que a ideia da virgindade
perpétua começa a se sedimentar na igreja. No entanto, isso não se deu sem resistência. Vamos dar uma boa olhada nos testemunhos patrísticos desse
período.
Eusébio de Cesareia (263-339)
Carol escreve:
Aqui [início do séc. IV] encontramos
a doutrina do nascimento virginal vista com uma certa inquietação nos círculos
católicos, por causa do medo do docetismo e maniqueísmo. Este fato não
deveria ser surpreendente, pois por volta da mesma época, Eusébio de Cesareia manifesta os mesmos sentimentos, embora ele negue
explicitamente que os "irmãos do Senhor" são filhos de Maria. (Ibid)
Eusébio não acreditava na virgindade no parto.
Embora ele afirme que os irmãos de Jesus são filhos de Maria, não há nele
afirmação da virgindade pós parto. Na nota de rodapé n. 157, Carol aponta as
referências a respeito da resistência de Eusébio à virgindade no parto:
Cf. Texto de Orígenes citado
com aprovação na Apologia reeditada em colaboração com Pânfilo, PG, 17,
554, e, especialmente, Demonstr. Evangel, 10; PG, 22, 773-776.
Lembremos que esse texto de Orígenes continha
uma negação explícita da virgindade no parto.
Atanásio de Alexandria (296-373)
Atanásio é frequentemente citado como
testemunha da virgindade perpétua, por outro lado, Carol escreve:
Santo Atanásio estava totalmente convencido dos pontos de vista de seu
mestre e antecessor relativos à vida de virgindade, no entanto, na medida em
que ele falou muito de Maria em seus escritos que chegaram até nós em grego, ele manifesta tal reserva em relação à
Maria que é difícil determinar se ele acreditou no nascimento virginal. Por
outro lado, em um trabalho que nos foi transmitido em copta, e muito
provavelmente verdadeiro, ele é muito menos reservado. O manuscrito deste
ensaio é incompleto e também textualmente imperfeito; no entanto, o suficiente pode ser lido para entender
que Atanásio defende vigorosamente contra seus adversários que Nossa Senhora
não tinha filhos, senão a Jesus (...) No Egito, encontramos Santo Atanásio
ensinando claramente virgindade pós-parto de Maria. No entanto, ele está ciente de que sua visão não é
universalmente aceita, mas é ainda atacada. Ele não revela surpresa com esta oposição, e de forma alguma propõe
seus próprios pontos de vista como um artigo da fé católica. Nada mais forte pode ser encontrado em seu
contemporâneo, São Cirilo de Jerusalém. Por uma questão de registro, nem
uma palavra pode ser encontrada sobre a virgindade pós-parto de Nossa Senhora
em suas famosas catequeses. Eusébio de
Cesaréia foi igualmente reservado. Se a Acta Archelai é um produto deste
meio palestino, eles confirmam a atitude
de reserva em relação a virgindade pós-parto de Maria, e mostram hostilidade
contra o nascimento virginal. (Ibid)
Atanásio era um asceta, logo é de se supor a
base sobre a qual afirmava a virgindade pós-parto de Maria, Todavia, embora não
haja uma declaração explícita, ele provavelmente não acreditava na virgindade
no parto. Carol levantou um ponto fundamental que é vital para o nosso estudo.
Mesmo no séc. IV, muitos defensores da ideia não a consideravam um artigo de
fé. Como esclarecido no início, a crença
na virgindade perpétua em si não é um problema para a teologia protestante. No
máximo, tratar-se-ia de um equívoco histórico. O verdadeiro problema é esse
equívoco ser elevado a condição de dogma. Vemos que pais da igreja
séculos depois dos apóstolos não consideravam a questão uma crença obrigatória.
Efrém o Sírio (306-373)
Carol prossegue:
Restringindo a nossa atenção para estes escritos apenas [escritos
autênticos], não podemos evitar a
conclusão de que ele também é bastante reservado, e que o que ele escreve
sobre Maria está longe de sempre ser à sua honra. Nós encontramos testemunho positivo à virgindade pós-parto de Maria
apenas em seu comentário sobre o Diatessaron, e isso por meio de uma
tradução armênia. Mesmo aqui, não há
questão de propor virgindade pós-parto de Maria como um objeto de crença
dogmática; um fato que deveria nos tornar menos surpresos ao encontrar no
Oriente, até mesmo no meio do quarto século, pessoas às vezes de considerável autoridade e prestígio, que atribuíram
a Jesus um verdadeiro cortejo de irmãos e irmãs.
Apologistas católicos costumam argumentar que
somente hereges afirmavam que Jesus tinha irmãos. Nada poderia estar mais longe
da realidade.
Basílio de Cesareia (330-379)
Tal é o fato inegável [muitas pessoas de
autoridade negavam a virgindade perpétua]; talvez não no caso de Apolinário, apesar do rumor bastante comum que ele
negou a virgindade pós-parto de Nossa Senhora. Santo Epifânio, que estava
ciente do rumor, achava difícil de acreditar. Qualquer que seja a verdade a
respeito das opiniões de Apolinário, não
pode haver absolutamente nenhuma dúvida sobre o famoso bispo Eunomio de
Cyzicum, que não hesitou em arejar a sua negação da virgindade pós-parto de
Maria, em uma catedral cristã, provavelmente em Constantinopla, e na presença do Patriarca Eudoxio.
Estes homens eram arianos, é verdade, e esse fato provavelmente explica a sua
autoconfiança em parte, mas apenas em
parte, uma vez que os arianos, bem como os católicos chamavam Maria de
"Virgem" ou mesmo "Santa Virgem".
Carol traz o testemunho do ariano Eunomio e um
possível testemunho de uma fonte ortodoxa (Apolinário). Os católicos obviamente
vão alegar que se trata de um ariano, mas o que é mais esclarecedor vem a
seguir na resposta dada por Basílio:
A resposta provocada pelo discurso Eunomius é típica do temperamento e
atitude dos tempos. A resposta veio de uma fonte católica, que temos fortes razões para acreditar que foi São Basílio, na
forma de um discurso sobre a festa da Teofania. Neste sermão, após breves
comentários sobre a geração eterna do Verbo, o autor retoma o seu ponto
principal, que é comentar o relato do nascimento temporal do Cristo dada por
São Mateus. O autor também concentra a sua atenção sobre a possibilidade de
relações conjugais entre Maria e St. José depois do nascimento de Cristo. Ele
rejeita essa possibilidade, mas não
apelando à crença dogmática. Ele não
tem consciência de qualquer obrigação sob este ângulo, e até mesmo
generosamente admite que não existe tal obrigação. A fé, ele candidamente
admite, exige apenas que se acredite na
permanência da virgindade de Maria até (e incluindo) a Encarnação. Após a
concepção virginal não há nenhuma obrigação imposta pela fé.
Essa é uma evidência claríssima de que a
virgindade pós-parto não era um artigo de fé mesmo no sec. IV. O ônus da
alegação romanista é não apenas mostrar a presença da ideia, mas sua elevação à
artigo de fé. Vejamos a citação diretamente de Basílio:
[A opinião de que Maria deu à luz várias crianças depois de Cristo]
(...) não é contrária à fé, pois a virgindade foi imposta à Maria como
uma necessidade, apenas até o tempo em que ela serviu como um instrumento para
a Encarnação, enquanto, por outro lado, a sua virgindade subsequente não
tinha grande importância no que diz respeito ao mistério da Encarnação. (Homilia in sanctum Christi generationem; PG, 31, 1457-1476)
O erudito J.N.D Kelly também escreve:
O interesse na virgem bendita aumentou consideravelmente no século que
se seguiu ao concílio de Nicéia, mas se o tratamento de alguns temas marianos
experimentava avanço significativos, em certos locais a abordagem de outros
permanecia estagnada. Tanto no Oriente
como no Ocidente, houve uma poderosa influência exercida pelo prestígio imenso,
e cada vez maior, alcançado pela virgindade nos círculos ascéticos (...)
mas devemos observar que, conquanto
Cirilo de Jerusalém tenha se calado a respeito, não apenas os antidicomarianos
atacados por Epifânio e o ariano Eunômio ensinavam abertamente que os “irmãos
do Senhor” eram filhos de Maria com José, mas também Basílio de Cesareia, ao criticar este último, deixou implícito que tal
ideia era amplamente aceita e, embora ele próprio não a aceitasse, não era
incompatível com a ortodoxia. (J.N.D Kelly,
Patrística, Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã
[Editora Vida Nova, 1994], p. 377-378)
Kelly adiciona que essa visão, além de não ser
contra a fé da igreja, era amplamente aceita naquele tempo. Apesar disso, o que
levava Basílio a defender a virgindade pós-parto? Carol diz:
Apesar deste aberto reconhecimento da liberdade de opinião, o autor
passa a enfatizar que muitos excelentes cristãos - ele os chama de
"Philochristoi" - recusariam admitir que Nossa Senhora teve relações
conjugais com St. José. Ele aceita e
defende seus pontos de vista e acrescenta como uma razão a narrativa de um
certo Zacarias, que morreu em defesa da honra de Maria. Podemos passar
sobre esta razão confirmatória, que não
é certamente adequada para provar a virgindade pós-parto de Maria, mas não
devemos encobrir a situação revelada por tal fábula sendo usada como prova.
Pois, é evidente a partir deste discurso que em uma região do mundo grego,
aparentemente, a Ásia Menor, um
importante homem da igreja, sem dúvida, o Arcebispo de Cesaréia, St. Basílio
nem suas Igrejas metropolitanas não detinham a virgindade perpétua de Maria
como uma verdade dogmática.
Basílio acreditava no apócrifo de
Zacarias. Tratava-se de uma lenda segundo o qual um judeu chamado Zacarias –
testemunha ocular dos fatos – teria morrido por defender que Jesus não teve um
pai terreno. Na nota de rodapé n. 173 se escreve:
A referência à fonte apócrifa concernente a um determinado Zacarias,
mencionada por Orígenes em seu comentário em Mat., Serm. 25; PG, 13, 1631 f. A
partir destas indicações em Orígenes e Basílio, parece claro que esta história foi pela primeira vez dada ao público
para conciliar em favor para Zacarias, como uma testemunha autorizada e, além
disso, um judeu, em apoio da virgindade pós-parto de Maria. Zacarias, então
a história prossegue, foi condenado à morte por ter considerado que Jesus não
nasceu de um pai terreno. Posteriormente,
a história foi utilizada para insinuar algo mais, ou seja, que Maria nunca teve
relações conjugais com o marido. O mesmo incidente e uso dela é encontrado
num discurso que pode vir de Gregório de Nissa; cf. PG, 46, 1136 f.
Epifânio de Salamina (320-403)
Os pontos de vista de Santo Epifânio estavam destinados a ter uma
influência cada vez maior no Oriente, e, finalmente, serem aceitos sem
questionamento. A grande autoridade desfrutada por ele como Bispo de Constância
é bem conhecida. Ele colocou no seu catálogo de heresias a visão que negou a
virgindade pós-parto de Nossa Senhora, sem,
no entanto, citar qualquer precedente eclesiástico; sua palavra era suficiente.
Embora o termo "heresia" naquela época não era muito preciso e de
maneira nenhuma tinha o significado técnico rigoroso dos nossos dias, é
bastante claro que, embora não em todos
os lugares, nem imediatamente, a doutrina atacada por Epifânio foi geralmente
considerada como oposta à ortodoxia (...) Foi este conceito que parece ter
sido o fundamento da sua [João Crisóstomo] segurança sobre a virgindade de
Maria, pois ele estava absolutamente convencido de sua virgindade perpétua, e especificou o nascimento virginal - uma
convicção não encontrada, como vimos, em Epifânio, nem em São Gregório
Nazianzeno, e apenas vagamente proposta por Anfilóquio.
Epifânio foi o primeiro a afirmar a virgindade
pós-parto como um artigo de fé. No entanto, como bem observou Carol, ele não
citou nenhuma tradição eclesiástica precedente, nem poderia porque não havia. O
próprio Epifânio, porém, negou a virgindade no parto. Kelly escreve:
Embora Epifânio ainda
sustentasse que “o Unigênito abriu o ventre virginal” (Haer 78:19), não nos
surpreendemos ao encontrar Crisóstomo proclamando em harmonia com Gregório de
Nissa a virgindade de Maria no nascimento de Jesus e também depois. (Op Cit, p.378)
No Oriente, serão Crisóstomo e Gregório de
Nissa os primeiros a defenderem a virgindade perpétua. São teólogos que escreveram na segunda metade
do século IV e início do século V. Carol prossegue:
Será que estamos justificados em afirmar que a virgindade perpétua de
Nossa Senhora foi universalmente aceita neste momento no Oriente? Temos todas
as razões para fazer a pergunta, porque no fim deste período, São Nilo escreveu contra determinadas
pessoas que afirmavam o contrário. Sua posição é apresentada em três cartas
endereçadas a um elevado homem da igreja chamado Cirilo, provavelmente Cirilo
de Alexandria. Naturalmente, se levanta a questão de saber os próprios
pontos de vista de Cirilo sobre o assunto, mas temos de nos contentar em dizer
que não há nada nos escritos de Cirilo antes de 428 contra a virgindade
perpétua de Maria, nem, é preciso confessar, a favor.
Apesar de não dispormos hoje das obras de
Cirilo a respeito da virgindade de Maria, Carol admite que era ele a quem
provavelmente Nilo respondia. De qualquer forma, é certo que se tratava de um
homem da igreja de posição elevada e não de alguém considerado herege. Isso
evidencia que mesmo no século V, a virgindade perpétua de Maria ainda não era
considerada um artigo de fé obrigatório no Oriente. Traçada a evolução histórica no
Oriente, passemos aos pais do ocidente.
Pais da igreja do Ocidente sobre a virgindade perpétua
Hilário (300-368) foi o primeiro defensor no
ocidente da virgindade pós-parto. Porém, negou a virgindade no parto. Kelly
escreve:
Hilário, por exemplo, atacou com violência as pessoas que afirmavam
que Maria não havia permanecido virgem depois do nascimento de Jesus e foi
enfático em dizer que os “irmãos de Jesus eram filhos que José teve num
casamento anterior”. Mas, ainda assim,
ele considerava que o nascimento teria acontecido naturalmente (De Trin 01.47). (Kelly, p. 379)
Sem dúvida, os principais responsáveis pela
aceitação da virgindade perpétua no Ocidente foram Ambrósio, Jerônimo e mais
tarde Agostinho. Kelly diz:
Mas foram Jerônimo, Ambrósio e Agostinho os que mais contribuíram para
a mariologia no Ocidente. Deve-se notar
que, durante muito tempo, Jerônimo rejeitou abertamente a virgindade no parto,
ao passo que defendia vigorosamente a virgindade pós-parto. Ele foi responsável
pela teoria, que mais tarde prevaleceria no Ocidente, de que os “irmãos” de
Jesus tinham sido, na verdade, seus primos, e que tanto Maria como José foram
virgens a vida inteira. Quanto a Ambrósio, apesar de
hesitações iniciais quanto à sua virgindade no parto [Exposição em Lucas 2:57],
ele se tornou um ferrenho defensor da virgindade perpétua de Maria (...) Agostinho reuniu e aprimorou os temas
mariológicos então estabelecidos. Ele
foi um eloquente defensor da virgindade perpétua de Maria, sustentando que,
se o Cristo ressuscitado podia entrar num ambiente passando por portas
fechadas, não havia razão que o impedisse de sair do ventre dela sem violá-lo.
(Ibid)
Na sua reposta a Helvídio (um oponente da virgindade
perpétua), Jerônimo diz:
Você pergunta: "São as virgens melhores do que Abraão, Isaac e
Jacó, que foram casados? Não são as crianças diariamente moldadas pelas mãos de
Deus no útero de suas mães? E se assim é, somos constrangidos a nos
ruborizarmos pelo pensamento de Maria tendo um marido depois do parto? Se julgam que há alguma desgraça nisto, não
deviam coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem por parto normal.
Porque de acordo com esses, há mais
desonra numa virgem dando à luz a Deus pelos órgãos geradores, do que numa
virgem que se juntou a seu próprio esposo depois que deu à luz".
Acrescente, se quiser,
Helvídio, as outras humilhações da natureza, o útero de nove meses se tornando
cada vez maior, a doença, o parto, o sangue, os cueiros. Imagine você mesmo o
menino envolto na placenta. Imagine a dura manjedoura, o choro do menino, a circuncisão no oitavo dia, o tempo de purificação, de modo que
possa ficar comprovado que tudo era impuro. Não enrubescemos, você não nos
impõe silêncio. Maior humilhação Ele
sofreu por mim, a maior que o atingiu. E quando você tiver dado todos os
detalhes, não estará apto a apontar nada
mais vergonhoso do que a cruz que confessamos, na qual acreditamos e pela
qual triunfamos sobre todos nossos inimigos. (Contra
Helvídio 18)
Helvídio afirma que por coerência, os
defensores da virgindade deveriam aceitar o parto normal. Em sua resposta,
Jerônimo não nega o parto normal, mas o confirma. Ele se defende afirmando que
nada disso era desonroso para Cristo, pois humilhação maior sofreu na cruz. No
cap. 12, ele é ainda mais claro. Ao responder o argumento de que Jesus foi
chamado de primogênito, ele o define não como necessariamente um filho único,
mas como o primeiro filho a “abrir o útero da mãe”:
A palavra de Deus define
"primogênito" como todo aquele que abriu o útero (...) À toda hora a
Escritura assim fala do Salvador: "E quando chegou o dia de sua
purificação, de acordo com a lei de Moisés, eles o levaram a Jerusalém para
apresentá-lo ao Senhor [como está prescrito
na lei do Senhor, todo macho que abre o útero deve ser consagrado ao Senhor]
e para oferecer em sacrifício de acordo com o que é prescrito na lei do Senhor,
um par de rolinhas ou duas pombas novas" (...) Mas visto que, como aquele
que não tem irmãos mais novos, é sujeito à lei do primogênito, deduzimos que é chamado primogênito aquele
que abre o útero da mãe (...)
Carol nos dá um relato da controvérsia causada
por Helvídio:
Além disso, desde o início do seu episcopado, Ambrósio foi um
fervoroso defensor da virgindade e das
práticas ascéticas do monaquismo egípcio, feito conhecido no Ocidente por
Santo Atanásio, que passou vários períodos de exílio em Treves, Roma e norte da
Itália. Estes ideais e práticas não eram
recebidos com favor universal. No ano 380, um certo Carterio entrou em Roma
para abraçar a causa da virgindade e práticas monásticas. Ele formulou o
argumento principal de sua afirmação a partir da virgindade absoluta e perpétua
de Maria. Na época havia hostilidade
acentuada em alguns círculos romanos contra essas práticas ascéticas, devido,
provavelmente, a uma reação contra priscilianismo e maniqueísmo. O próprio
Prisciliano visitou Roma e Milão nos anos 381-382, em uma tentativa de firmar
suas visões doutrinárias. Entre certos grupos parece ter tido uma forte
tentação para identificar e fixar em conjunto todos os defensores da vida
ascética e da prática da virgindade com a facção priscilianista.
Carterio logo encontrou um claro oponente em Helvídio. Apesar das
tentativas de St. Jerônimo para desacreditá-lo completamente, Helvídio era um homem de inteligência e de
nenhuma maneira desprovido de boa formação teológica e literária. Ele escreveu um ensaio bem construído com a
intenção de provar que Maria teve outros filhos além de Jesus, mas sem qualquer
desejo malicioso de denegrir a Mãe de Cristo. Pelo contrário, sua intenção
era exaltar o que ele considerava sua dupla grandeza - a virgindade admirável e
milagrosa até o nascimento de Cristo e sua maternidade exemplar ao dar à luz
aos irmãos e irmãs do Senhor mencionados nos Evangelhos. Seu propósito final
era provar contra Carterio que a
virgindade não é superior ao casamento, mas sim perfeitamente igual em
perfeição; os dois estados de vida foram vividos com igual perfeição pela Mãe
do Salvador.
Esse tratado de Helvídio
impressionou o meio Romano profundamente e de forma tão eficaz que até
converteu ao seu ponto de vista alguns dos principais promotores do ascetismo e
da prática da virgindade. Entre os que permaneceram firmes em sua convicção da superioridade
da virgindade havia grande ansiedade, mas
a hierarquia não tomou parte no conflito. Nesta conjuntura, St. Jerônimo
tomou a defesa contra Helvídio.
Esse relato nos os seguintes pontos importantes:
(1) Helvídio não era um herege, mas sim um cristão ortodoxo com boa formação teológica e gozava de prestígio em Roma;
(2) A questão central não era a pessoa de Maria, mas um embate de visões sobre a superioridade da virgindade ao casamento. Isso só reforça o argumento de que a igreja não recebeu nenhuma sólida tradição a respeito da virgindade de Maria. O estado virginal da mãe de Jesus era o efeito e não a causa das ideias ascéticas;
(3) A hierarquia da própria igreja romana não se envolveu na questão. Não poderia haver evidência mais clara de que a virgindade perpétua não era um artigo de fé mesmo em Roma nesse período.
A defesa de Jerônimo fez sucesso. Ele conseguiu suprimir Helvídio e
reanimar o ascetismo em Roma. Todavia, ainda restava oponentes. Carol
prossegue:
No entanto, os adversários não foram de modo algum
silenciados. Um pouco mais tarde, 389-390, eles renovaram o ataque mais uma vez em Roma. O papa São Dâmaso
tinha morrido e foi sucedido pelo papa Sírico que estava longe de ser contados
entre os amigos de Jerônimo. Na verdade,
antes da eleição eles haviam sido rivais. Daí a situação de Jerônimo em Roma
era completamente diferente dos dias de Dâmaso, e ele foi obrigado a fugir para
o Oriente, fulminando profecias terríveis contra a Babilônia [Roma]. O novo
ataque foi lançado por Joviniano que
tinha por um tempo seguido a vida ascética, mas tinha cansado e relaxado em
seus esforços. A partir deste momento, começou a zombar furtivamente de seus
antigos companheiros, em palavras e por escrito. Agora, no entanto, a Santa Sé
interveio prontamente.
A reação da igreja de Roma foi diferente contra Joviniano. Sírico
condenou suas teses e contou com a ajuda de Ambrósio de Milão:
Imediatamente após a
recepção do pedido do Papa, St. Ambrósio
trouxe toda a matéria diante de um sínodo composto pelos bispos do norte da
Itália. Este sínodo não só fez a sua própria condenação romana, mas mesmo a
ultrapassou, por sinalizar como errônea
a negação da virgindade de Maria no parto, que tinha passado em silêncio pela condenação de Roma a Joviniano.
Esta negação foi considerada pelos bispos do norte da Itália como sendo tão
grave quanto à negação da virgindade pós-parto de Nossa Senhora.
Toda essa questão gerou uma situação delicada. O sínodo de Milão
afirmou como necessário a crença na virgindade no parto, no entanto, o próprio
Jerônimo havia negado isso:
São Jerônimo, com a sua
autoridade inquestionável e prestígio, tinha tomado a defesa de Maria contra
Helvídio sem admitir que ela era virgem
no nascimento de Cristo. Na verdade, sua
descrição do nascimento de Cristo igualou-se ao realismo da descrição de
Tertuliano. Sem dúvida, Jerônimo foi
motivado por seu horror aos apócrifos e sua repulsa de aceitar a sua doutrina
sobre o nascimento virgem.
Percebe-se que Jerônimo, um asceta e advogado ferrenho da
virgindade pós-parto, não conseguia encontrar nenhum fundamento para a
virgindade no parto nas Escrituras. Os documentos mais antigos a que se podia
apelar era somente os apócrifos. Mas, pela delicadeza da questão, Jerônimo teve
que a contragosto escrever uma resposta:
Tudo isto deve ter sido profundamente embaraçoso para St. Jerônimo.
Sem dúvida, ele teria preferido declinar, mas as circunstâncias não lhe permitiria
permanecer em silêncio. Ele finalmente escreveu seu "Contra
Joviniano", um extenso trabalho em que ele passa a maior parte de seu
esforço na defesa dos advogados da virgindade e das práticas ascéticas. Por
outro lado, ele fala muito pouco da
Virgem. De fato, seu papel é tão pequeno que um leitor que não sabia nada
sobre as circunstâncias históricas nunca poderia suspeitar que a questão da sua virgindade no parto foi a única ocasião do
trabalho. A única indicação disso está contida em poucas linhas misturadas
a um desenvolvimento exegético.
Jerônimo claramente não estava convicto da virgindade no parto e não
poderia considera-la um artigo da fé católica. Obviamente a resposta a
Joviniano não satisfez os círculos ascéticos, mas Jerônimo não escreveu nenhum
esclarecimento adicional:
A questão da visão real de São Jerônimo sobre o nascimento virginal, e
do seu acordo ou desacordo com St. Ambrósio e o Sínodo de Milão, não foram
elucidados além deste ponto. St. Ambrósio teve a caridade, bem como tato para perceber e apreciar
a posição embaraçosa de St. Jerome (...)
Carol parece implicar que Jerônimo de fato nunca acreditou na virgindade
no parto. Se fosse o caso, ele teria dado uma resposta clara e enérgica como
fez contra Helvídio. Joviniano não seria o último
oponente ocidental da “sempre virgem”. Ambrósio teria que enfrentar outro:
Nesse meio tempo, St.
Ambrósio estava prestes a entrar em uma nova polêmica envolvendo Bonoso, o
Bispo de Sardica na Ilíria, que pertencia à zona de penumbra em que o latim e
línguas e culturas grega se misturavam. Por
volta do ano 390, Bonoso tomou e espalhou a ideia de que Nossa Senhora não
permaneceu virgem após o nascimento de Cristo. Nós já vimos que, durante este período, no Oriente, este ponto de vista
poderia ser apresentado sem provocar qualquer escândalo, mesmo entre os
católicos de Constantinopla. Não é, portanto, surpreendente que a mesma
doutrina tenha alcançado o interior da Ilíria, e tenha encontrado um defensor.
Mas a influência de Jerônimo, Ambrósio e dos sínodos de Roma e Milão eram muito
poderosas e generalizadas para permitir que tais pontos de vista passassem em
branco nesta fronteira do Leste. As alegações de Bonoso provocaram a reação
hostil dos bispos vizinhos, que remeteram o assunto para um sínodo convocado em
Capua durante o inverno de 391-392. Em vez de emitir uma decisão, este sínodo
preferiu enviar o caso de volta aos Bispos da Ilíria, que um pouco mais tarde
voltou-se para Milão em busca de orientação, como o próprio Bonoso tinha feito
anteriormente. St. Ambrósio se recusou a julgar o assunto, já que Bonoso não
estava sob sua jurisdição. No entanto, ele forneceu aos bispos de Ilíria as
diretivas e argumentos para uma solução da crise.
O principal argumento de St. Ambrósio derivava da maternidade divina e
suas exigências. Assim supridos com bem documentadas opiniões, os bispos da Ilíria
não tardaram em solenemente na excomunhão de Bonoso e na classificação de sua
doutrina como herética. Temos, assim, uma nova intervenção da autoridade
eclesiástica sobre a questão da virgindade pós-parto de Maria; ocorrida em uma
seção do mundo católico que tinha ligações naturais entre o Oriente e o
Ocidente, e, portanto, não podia deixar de exercer uma influência muito
superior ao que se poderia esperar de um sínodo puramente local. Pelo que vimos, a sua influência talvez não
fosse completamente decisiva para a Igreja Oriental. Já para o Ocidente,
limitava-se a enfatizar uma doutrina que já era totalmente aceita. (Ibid)
Somente no final do século IV é possível verificar a existência de
sínodos locais condenando opiniões contrárias à virgindade perpétua como
herética. Essa opinião se restringia a determinadas localidades da igreja. A
parte Oriental ainda seria tolerante a essas opiniões. Destaca-se que Bonoso
era bispo de uma importante igreja. Apesar de sua posterior condenação, ele não
poderia ser contado como participante de algum grupo herético. Tratava-se da
oposição de alguém da própria igreja. Agostinho por sua vez foi influenciado
por Ambrósio e defenderia opiniões exatamente iguais:
St. Agostinho, sem
hesitação, chamou tanto Helvídio como
Joviniano de hereges, e a virgindade perpétua de Maria foi colocada para
além de qualquer discussão ou dúvida no Ocidente.
No século V, a virgindade perpétua já estava solidificada no Ocidente.
Os protestantes corretamente observam que o desenvolvimento dessa doutrina se
deu sob uma base equivocada. Não foi por uma sólida exegese do texto bíblico ou
uma confiável tradição histórica. Carol esclarece os motivos:
Neste desenvolvimento, temos observado constantemente a influência
lenta, mas profunda dos ascetas sobre a doutrina da virgindade de Maria.
Esta influência começou muito cedo, em grande parte devido a Orígenes. Seu
efeito não pode ser devidamente avaliado, a menos que nós lembramos que a
questão da virgindade de Maria nunca foi dissociada da questão da sua santidade
pessoal na visão dos ascetas. Uma
implicava a outra necessariamente, e elas eram inseparáveis. O movimento ascético aumentou imensamente
no século IV.
O próprio Juniper Carol reconhece que sob uma base puramente
histórica, nenhuma igreja poderia exigir fé dogmática na virgindade perpétua. O
ponto de vista asceta era apenas um dentre outros vigentes historicamente na
igreja. Essa sequer era uma visão muito antiga. Vimos que a primeira defesa
explícita da virgindade perpétua só foi acontecer 300 anos depois dos apóstolos.
O especialista católico escreve:
Sob a orientação infalível do Espírito Santo, o Magistério finalmente
deu a sua decisão irrevogável em conformidade essencial com os pontos de vista primeiramente
expostos e desenvolvidos pela escola ascética. Esta decisão nunca teria sido
tomada, se a Igreja não tivesse reconhecido na sua doutrina uma verdadeira
expressão de fé.
Esse é o único motivo razoável para alguém acreditar não apenas nesse,
mas nos outros dogmas marianos. A evidência bíblica ou histórica não os
favorece. Apenas a crença numa igreja infalível os torna aceitáveis. Ou seja, é
preciso aderir a um equívoco para acreditar em outro equívoco. É importante
mencionar que a virgindade perpétua só seria afirmada pelo Sexto Concílio
Ecumênico em 680. Nenhum dos cinco concílios anteriores tratou da questão.
Ainda assim, mesmo no século V, não se poderia falar de um consenso da igreja:
Esta plena consciência
não se desenvolveu de forma consistente ou de forma uniforme em todas as partes
do mundo católico. O período que
acabamos de traçar revelou esta desigualdade, especialmente entre o Oriente e o
Ocidente. O Ocidente, pouco antes do Concílio de Éfeso (431), tinha
avançado muito além do Oriente e tinha chegado a uma convicção resolvida e
inabalável a respeito santidade pessoal de Maria e de sua virgindade perpétua. No Oriente, nada absolutamente decisivo
tinha sido aceito universalmente sobre estes dois pontos fundamentais da
teologia mariana. Ainda havia
adversários de sua virgindade, que não eram, por esta razão, considerados
hereges.
Conclusão
Após
esta longa viagem histórica, somos capazes de afirmar alguns pontos:
(1) A evidência histórica não favorece a virgindade perpétua de Maria;
(2) Apesar de se desenvolver rapidamente no século quarto e atingir um
virtual consenso no quinto, isso se deveu a bases frágeis como literatura
apócrifa de nenhum valor histórico ou preconceitos ascetas;
(3) Quando analisamos a evidência histórica mais
antiga (especialmente do século II), verificamos um claro direcionamento para
negação da virgindade perpétua.
Bruno, paz seja convosco. Sei que não tem a ver com o assunto desse artigo, mas um católico me mandou esse artigo em defesa dos livros apócrifos
ResponderExcluirhttp://matt1618.freeyellow.com/deut.html#But
Haveria a possibilidade de escrever uma resposta ao mesmo?
Grato, Deus te abençoe.
Graça e Paz Thiago,
ExcluirEu já conheço esses argumentos, principalmente a tentativa de apresentar pais da igreja que negaram o cânon romanista como advogados desse mesmo cânon. Eu pretendo sim escrever uma série de artigos sobre o cânon. Só vou necessitar de um pouco de tempo. No momento, estou escrevendo artigos sobre os dogmas marianos que pretendo publicar nas próximas semanas.
Acredito que em até um mês eu comece a publicar artigos sobre o cânon. Já existe algum material de qualidade em português que você pode conferir abaixo:
http://www.e-cristianismo.com.br/teologia/bibliologia/o-canon-dos-judeus.html (série de artigos excelente em relação ao cânon - é o melhor material disponível em português a respeito)
http://www.e-cristianismo.com.br/teologia/bibliologia/o-canon-do-velho-testamento-da-era-da-igreja-a-jeronimo.html (Parte 2 que trata do cânon entre os pais da igreja)
A parte 3 que trata do cânon na idade média ainda não foi traduzida para o português - pode ser vista em inglês aqui: http://www.christiantruth.com/articles/Apocrypha3.html.
Essa parte é especialmente interessante porque mostra que muitos teólogos na idade média seguiram o mesmo cânon de Jerônimo. Os católicos geralmente apontam o concílio de Hipona e Cartago como aquele que definiu autoritativamente o cânon para toda a igreja. Mas ninguém após esses concílios acreditava nisso. A questão continuou em aberto por séculos.
No site do Lucas tem alguns artigos que respondem os principais argumentos católicos:
http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/search/label/C%C3%A2non%20B%C3%ADblico?updated-max=2015-02-11T05:53:00-02:00&max-results=20&start=9&by-date=false
O site conhecereis a verdade também tem algum material:
http://conhecereis-a-verdade.blogspot.com.br/
Apesar de em português já termos material de boa qualidade, de fato ainda há muitos argumentos não tratados. Se você puder ler em inglês. Eu recomendo os seguintes sites que possuem material de muita profundidade:
http://triablogue.blogspot.com.br/
http://turretinfan.blogspot.com.br/
http://www.christiantruth.com/articles_roman_catholicism.php
http://beggarsallreformation.blogspot.com.br/
Prometo trazer algo detalhado e de qualidade dentro de algumas semanas.
Fique na PAZ!