Continuamos
aqui nossa resposta a algumas objeções católicas à Sola Scriptura. Nessa parte,
vamos tratar primariamente da questão histórica. Vimos na parte I que a
doutrina reformada é bíblica e lógica, mas e os pais da igreja? Será verdade
que a Sola Scriptura é uma “invenção de Lutero”? Os comentários do interlocutor
católico continuarão em vermelho.
Eusébio de Cesareia, 200 anos após a morte dos apóstolos, conta que
ainda naquela época não se sabia quais livros sagrados existentes. Ele coloca
em dúvida vários livros como 2º e 3º João, 2º Pedro, Hebreus que nem se sabia
quem era o autor, e o livro do Apocalipse que era um livro de difícil
entendimento. Como então poderia existir sola scriptura?
Primeiro,
a afirmação “não se sabia quais os livros sagrados existentes” é pouco precisa.
Nesse período (século IV), a igreja já tinha certeza sobre a maior parte do
cânon, sendo alguns livros ainda disputados. Eusébio escreve:
Chegando aqui, é hora
de recapitular os escritos do Novo Testamento já mencionados. Em primeiro lugar
temos que colocar a tétrade santa dos
Evangelhos, aos quais segue-se o escrito dos Atos dos Apóstolos. Depois deste há que se colocar a lista das Cartas de Paulo. Depois
deve-se dar por certa a chamada Primeira
de João, assim como a de Pedro.
Depois destas, se está bem, pode-se colocar Apocalipse de João, sobre o qual exporemos oportunamente o que dele
se pensa. Estes são os ditos admitidos.
Dos livros discutidos, por outro
lado, mas que são conhecidos da grande
maioria, temos a Carta dita de Tiago,
a de Judas e a segunda de Pedro, assim como as que se diz serem segunda e terceira de João, sejam do
próprio evangelista, seja de outro com o mesmo nome. (História
Eclesiástica 1:25:1-3)
O
comentarista católico também errou ao afirmar que Eusébio coloca em dúvida
Hebreus e Apocalipse. Percebam que ele
coloca os dois entre os “admitidos” em oposição aos livros “discutidos” (2
Pedro, 2 e 3 João, Tiago e Judas). Os quatro evangelhos, bem como o livro de
Atos (acompanhava o evangelho de Lucas), as cartas paulinas (a maioria incluía
Hebreus nessa categoria), 1 Pedro e 1 João foram reconhecidos como escritos
apostólicos bem cedo já no período pós-apostólico (séc. II). Lembremos que as
primeiras declarações canônicas estão dentro da própria Escritura. Pedro
considera os escritos de Paulo Escritura inspirada (2 Pedro 3:15-16) e Paulo
cita o Evangelho de Lucas e por implicação Atos como Escritura (1 Timóteo
5:18). Eusébio de fato expressa em sua obra que alguns duvidavam da
canonicidade de Hebreus e o Apocalipse e João, mas ficou claro que ele
pessoalmente não seguiu essa posição e os considerou livros “admitidos” pela igreja.
Um detalhe interessante é saber quem não aceitava o livro de Hebreus:
Por outro lado, é evidente e claro que as catorze cartas
são de Paulo. Contudo, não é justo ignorar que alguns rechaçaram a carta aos Hebreus, dizendo que a Igreja de Roma não
a admite por crer que não é de Paulo. O que foi dito sobre ela por aqueles
que me precederam será exposto a seu devido tempo. Naturalmente, também não
aceitei entre os escritos indiscutidos os Atos que se dizem ser dele. (Ibid., 3:3:5)
Vejam
que declaração interessante. Eusébio não tinha dúvida da canonicidade de
Hebreus e sua autoria paulina. Porém, alguns duvidavam e apelavam à opinião da
igreja romana. Nesse ponto, fica muito claro que o argumento do cânon é
prejudicial para o paradigma romanista e não para o paradigma protestante. O
que Eusébio fez? Ele simplesmente disse “a igreja romana que governa as demais
igrejas não aceita a carta de Hebreus, como eles são a autoridade suprema,
vamos acatá-los?” Justamente o contrário. Além de não seguir a opinião de Roma,
Eusébio ainda tinha certeza. Como fica o argumento católico de que ninguém
poderia saber o cânon sem uma declaração infalível da igreja (obviamente sob
autoridade de Roma)? Ele simplesmente não existia no pensamento dos pais da
igreja. Nenhum pai da igreja afirmou isso. Eles produziram suas próprias listas
canônicas e expressavam certeza sobre elas sem a necessidade de uma declaração
“infalível”. Os pais da igreja antes e depois de Eusébio já tratavam um
conjunto de livros como Escritura inspirada sem estarem alicerçados sobre uma
declaração infalível. Esse foi o caso de Clemente, Justino, Irineu, Orígenes,
Eusébio, Atanásio, Agostinho e todos os outros que trataram da questão.
Os
católicos podem objetar que a igreja romana estava certa – Hebreus não foi
escrito por Paulo (algo discutível até hoje). O ponto não é esse. Quem estava
certo ou errado é irrelevante. O ponto é que Eusébio não pensava segundo o
paradigma romanista. Além do mais, Roma estava errada em não admitir Hebreus.
Apesar de o motivo ser verdadeiro, a implicação é falsa. Por isso, a carta de
Hebreus está na bíblia católica, e isso se deu graças ao esforço da igreja
oriental.
O
católico argumenta que como esses pais tinham um cânon diferente do atual, eles
não poderiam ser adeptos da Sola Scriptura. Para que um grupo de pessoas seja
adepta da doutrina reformada, elas precisariam supostamente acreditar
rigorosamente no mesmo cânon. Trata-se de uma falácia. A premissa está correta,
mas conclusão é errada. Os pais já possuíam um conjunto de livros que
consideravam inspirados e atribuíam a eles autoridade máxima. Eles não
precisariam ter o mesmo cânon que o nosso para considerar que havia livros
inspirados que formavam a única regra infalível de fé. O mesmo se aplica à
tradição. Romanistas e ortodoxos apelam a uma tradição como regra infalível de
fé. No entanto, eles possuem ideias diferentes sobre qual é o conteúdo da
tradição. Isso implicaria que ambos não consideram a tradição uma regra
infalível de fé? Obviamente não. Até mesmo dentro do romanismo, os teólogos
divergem sobre quantas vezes os papas ensinaram infalivelmente, isso então
implicaria que esses teólogos não acreditam da mesma forma na autoridade do
magistério? Obviamente não.
É
comum ver católicos irem até mais longe. Eles dizem que como a igreja não tinha
um cânon idêntico ao nosso, eles sequer tinham Escritura, por isso a igreja
seria guiada pelo magistério e tradição somente. Esse argumento é falso porque
os pais já tinham Escritura. O fato de um pai da igreja ter um cânon mais curto
não o impedia de considerar um conjunto livros como a única regra infalível de
fé. Outro problema é quando a igreja definiu “infalivelmente” o cânon da
Escritura? Se essa decisão era uma necessidade lógica, se esperaria que
acontecesse o quanto antes. O problema é que tal declaração só aconteceu no
concílio de Trento (séc. XVI). Apena nesse concílio o cânon se tornou um artigo
de fé na igreja romana. Alguém em sã consciência acreditaria que só depois
disso (14 séculos após os apóstolos) é que a igreja pode ter certeza do cânon?
Ninguém antes saberia quais os livros canônicos? Com certeza não seria caso.
Até mesmo os teólogos medievais apelaram à autoridade da Escritura para
formular doutrinas sem necessitarem de uma declaração “infalível” sobre o cânon.
Católicos
costumam apelar aos concílios de Hipona e Cartago como definidores da questão.
Ocorre que esses concílios eram regionais e, portanto, não poderiam vincular
toda a igreja, muito menos definir “infalivelmente” a questão. Isso é tão claro
que teólogos medievais defenderam um cânon do A.T diferente de Hipona e
Cartago. Além do mais, o cânon desses concílios era diferente do declarado pelo
concílio de Trento.
Não existe insubordinação entre a tradição e as escrituras, pois
ambas se completam, ambas são palavras de Deus.
Essa
não era a posição de Agostinho e dos pais da igreja. Eles não colocavam o que
entendiam como tradição no mesmo patamar das Escrituras. Católicos citam com
frequência qualquer trecho que tenha a palavra tradição. Partem do pressuposto
que ao se apelar a alguma tradição, exclui-se a possibilidade da Sola
Scriptura. Isso é um engano. Como já vimos, a posição reformada não exclui a
autoridade da tradição ou da igreja. O que se afirma é a autoridade suprema da
Escritura. A tradição e a igreja podem errar, somente na Escritura a voz
infalível de Deus pode ser encontrada. Vejamos o que Agostinho disse:
Quem é que se submete
a divina Escritura, senão aquele que a lê ou ouve piamente, submetendo a ela como a autoridade suprema? (Do
Sermão do Monte, Livro I, 11)
Este mediador, tendo
falado o que Ele julgou suficiente primeiramente pelos profetas, em seguida por
Seus próprios lábios, e depois pelos apóstolos, também produziu a Escritura
canônica, que tem autoridade suprema, e
à qual nos submetemos assentimento em todos os assuntos. (A Cidade de Deus,
Livro XI, 3)
Em tais termos,
poderíamos nos divertir sem medo de ofender um ao outro no campo da Escritura,
mas eu poderia muito bem perguntar se a diversão não foi à minha custa. Eu
confesso a sua bondade de que eu aprendi a
render este respeito e honra apenas aos livros canônicos da Escritura: Desses somente eu mais firmemente tenho
acreditado que os autores foram completamente livre de erro. E se nesses
escritos eu esteja confuso por qualquer coisa que me parece oposta à verdade,
não hesitaria em supor que o manuscrito seja defeituoso, ou o tradutor não
pegou o significado do que foi dito, ou eu mesmo tenho falhado em entender
isso.
(Carta 82 a Jerônimo)
A
Escritura não era uma autoridade no mesmo patamar da tradição. Na sua carta a
Jerônimo ele deixa bem claro onde a voz inerrante de Deus poderia ser
encontrada – somente nos livros canônicos. Ou seja, implicitamente Agostinho
afirmou que as outras autoridades (igreja e tradição) poderiam errar. Os
católicos estão sempre falando de uma tradição que suplementa ou explica a
Escritura. Porém, não fazem nenhum esforço para provar a validade dessa
tradição. Os pais da igreja tinham basicamente quatro conceitos de tradição:
(1) Interpretação das
Escrituras: sim eles apelavam ao ensino histórico da igreja sobre uma
determinada doutrina. Porém, como Agostinho bem expressou, esses não
constituíam uma autoridade infalível. Eles poderiam estar errados. Esse
conceito de tradição não invalida a doutrina reformada;
(2) Dados históricos:
muitas vezes o conteúdo da tradição era de natureza histórica. Por exemplo – a
morte do apóstolo Pedro. Obviamente, isso também não contraria a doutrina
protestante. É óbvio que há verdades históricas fora da Escritura quem podem
ser cridas na medida em que há evidências confiáveis que as sustente;
(3) Práticas ou costumes:
A tradição poderia se referir a certas práticas ou costumes que as igrejas
mantinham. A doutrina reformada não afirma que todos os costumes ou práticas da
igreja devem estar na Escritura. Por exemplo, muitas regras atinentes ao culto
das igrejas protestantes não estão na Escritura. Não há um versículo afirmando
que deve existir uma escola bíblica todos os domingos pela manhã. A Escritura
suficientemente traz princípios que devem ser aplicados ao culto sem dizer cada
parâmetro e cada passo que deve ser seguido. Desde que se adote uma liturgia
que siga esses princípios não há problema.
Se
os católicos desejam ir além de apenas citar a tradição como uma desculpa para
estabelecer as inovações romanistas, eles precisam provar que a tradição em
questão era uma interpretação infalível da Escritura (parte da revelação
divina) ou era uma segunda fonte de doutrinas que o cristão deve
necessariamente crer (também parte da revelação divina). Nós não encontramos
esses casos na patrística.
É totalmente impossível entender integralmente as escrituras sem
conhecer a tradição cristã, sendo que a bíblia não é auto explicativa, ou seja,
não basta ler pra entender.
Se
tomarmos a tradição cristã como o ensino histórico da igreja sobre as diversas
doutrinas (excluído o ensino da própria Escritura), ele está errado. A tradição
cristã é útil e nos ajuda a entender a Escritura, mas não pode ser considerada
indispensável. Uma pessoa pode sim entender as Escrituras e ganhar o
conhecimento salvífico do evangelho. Os autores bíblicos acreditavam que os
crentes poderiam ganhar o conhecimento salvador através da leitura de seus
escritos. Toda a Escritura pressupõe sua própria suficiência formal.
Ele
também erra ao definir autoexplicativo como um texto que basta ser lido para
ser entendido. Autoexplicativo é a qualidade de algo que não exige
conhecimentos externos para trazer a luz o seu próprio significado. Por exemplo
– se um texto diz: “Maria foi sempre virgem” – seria necessário entender o
conceito de virgindade para entende-lo corretamente, no entanto, essa
explicação não está no próprio texto. Por mais simples que essa afirmação possa
ser e muitos apenas a lerão e entenderão, não se trata de um texto
autoexplicativo. Aqui entra uma explicação crucial de como os católicos criam
um espantalho da posição protestante e acabam usando argumentos de que minam a
própria posição católica.
Quando
os protestantes afirmam a suficiência formal da Escritura, não estão dizendo
que a Escritura é autoexplicativa no sentido de que todo o conhecimento
necessário está na própria Escritura. Eu inclusive dei o exemplo do conhecimento
de grego na parte 1. Ocorre que nenhum texto do mundo é autoexplicativo. Nenhum
texto pode conter a sua própria interpretação. Isso se aplica a qualquer forma
de comunicação. O receptor de uma mensagem sempre precisará de algum
conhecimento externo à própria mensagem que está recebendo. Quando os católicos
argumentam que a Escritura é insuficiente porque não contém sua própria
interpretação, eles estão sem perceber afirmando que o magistério romanista é
insuficiente. O ensino do magistério não é autoexplicativo e não contém sua
própria interpretação. Qualquer apelo ao magistério é também um apelo a uma
interpretação do que o magistério diz. O mesmo se aplica à tradição. Você pode
até afirmar que um texto é mais claro do que outro, mas mesmo o texto mais simples
exige conhecimentos além do que o próprio texto diz. Se a posição católica for
levada a sério, teríamos uma cadeia infinita de interpretações. Você precisaria
de um intérprete infalível do magistério “infalível”, e depois do intérprete do
intérprete e assim sucessivamente. O máximo que poderia ser efeito é diminuir a
probabilidade de as pessoas entenderem errado, mas afastar totalmente é algo
impossível.
A
doutrina da suficiência formal afirma que o evangelho está contido na Escritura
de uma forma clara. Em outras palavras, os crentes iluminados pelo Espírito
Santo são capazes de aprenderem essas verdades salvadoras e viverem em Cristo.
Quando Cristo diz: “Amem ao seu próximo como a vocês mesmo”, Ele não está
afirmando algo difícil de entender. Quando ele diz “Aquele que crer em mim terá
a vida eterna”, ele está afirmando algo que pode sim ser compreendido. Essas
duas declarações exigem que você saiba algo além do que está escrito, mas ainda
assim elas podem ser compreendidas. Por isso, na primeira parte fizemos questão
de esclarecer que a Sola Scriptura não afirma que todo o conhecimento
necessário e toda a verdade está na própria Escritura, mas toda a verdade
doutrinária necessária para o cristão está exposta de forma clara na Escritura.
A ideia de que a Escritura interpreta a própria Escritura (a analogia da fé),
ideia muito propagada no meio protestante, não contraria nada do que foi dito.
Isso simplesmente quer dizer que uma ideia que é de forma obscura tratada numa
parte da Escritura pode ser de forma mais clara tratada em outra parte. Nesse
sentido, a Escritura interpreta (clarifica) a própria Escritura.
Pela tradição, que a igreja explica o que foi escrito.
Aqui
precisamos lidar com outro problema do paradigma católico. Qual tradição? E qual
igreja? O problema é que existem igrejas diferentes alegando terem preservados
tradições diferentes. Existem várias igrejas (católica romana, ortodoxa,
vetero-católica e outras) alegando terem a verdadeira tradição católica e serem
a verdadeira igreja. O problema é que elas ensinam doutrinas fundamentais que
são substancialmente distintas. O romanista pressupõe que ele segue a tradição
e a igreja verdadeira. A questão é como ele pode ter certeza infalível disso?
Ele simplesmente não pode. Se precisamos de uma igreja infalível para nos dizer
o cânon, mas importante então é saber qual igreja é de fato a correta. Ocorre
que não há nenhuma autoridade infalível para decidir a questão. Ou ele apela a
um argumento circular (a igreja romana é a certa porque ela diz que é) ou então
ele precisará examinar a história, a tradição e a Escritura e tomar uma decisão
falível. Em outras palavras, ele terá que agir como um bom protestante que
examina e investiga para chegar a verdade. Se o livre exame pode ser suficiente
para decidir qual é a igreja certa, e para isso ele precisou examinar a
Escritura e decidir entre as diferentes interpretações, porque então ele não
poderia continuar interpretando a Escritura corretamente?
Agostinho já dizia: “Eu não creria no Evangelho, se a isso não me
levasse A AUTORIDADE DA IGREJA CATÓLICA.” (Contra a Carta de Mani 5,6)”. Veja
que o próprio Agostinho fala, que crer nas escrituras devido autoridade
infalível que recebeu a igreja, pois só a igreja é que distingui “palavra de
Deus” de “heresia”.
A
Sola Scriptura não elimina a autoridade da igreja. Na citação trazida, em
nenhum momento Agostinho afirma que a igreja é uma autoridade infalível. Ele
nunca atribuiu infalibilidade a qualquer outra regra de fé além da Escritura.
Nós explicamos essa citação em detalhes aqui. Resumidamente, Agostinho estava
afirmando que foi graças a autoridade da igreja que tem como missão propagar o
evangelho que ele passou a crer. Um exemplo bíblico análogo seria de Felipe e o
Eunuco. Foi graças à autoridade de Felipe que o eunuco creu no evangelho. Isso
não implica que autoridade de Felipe esteja acima da mensagem do evangelho que
tem Deus como seu autor. Eu poderia afirmar que foi graças a autoridade de um
pastor da Assembleia de Deus que minha mãe passou a crer no evangelho, pois foi
ao ouvi-lo pregar que ela se converteu a cristão. Isso jamais implicaria na
infalibilidade desse pastor, pois o mensageiro não é maior do que a mensagem.
Agostinho também não estava se referindo à igreja romana. O que ele concebia
como autoridade da igreja é bem diferente do que Roma ensina. Para ele, o
concílio ecumênico era a autoridade máxima na igreja e não o papa. E mesmo o
concílio era uma autoridade falível. Robert Eno – um católico romano
especialista em Agostinho – escreve:
Na visão de
Agostinho, havia uma hierarquia definida de autoridades. À Sagrada Escritura foi atribuída a mais alta autoridade para a
determinação do ensino. Depois da Escritura vinha a tradição e a prática da Igreja universal. Finalmente, havia os órgãos de autoridade dentro da
Igreja que possuía poderes de decisão. O mais notável desses órgãos era o "concílio plenário da Igreja
universal". Além disso, dentro de qualquer processo teológico, a razão
desempenhou um papel importante, embora subordinado (...) Concílios também estão subordinados à Escritura (...) Em outros
lugares, o bispo de Hipona observou que tanto católicos como donatistas estavam de acordo sobre a supremacia da
Escritura (...) Mas Agostinho, recorde-se,
subordina tudo às Escrituras, não só os escritos de bispos influentes como
Cipriano, mas também costumes da igreja universal. (Doctrinal Authority
In Saint Augustine, Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 133-134, 138-139,
141, 144-145, 149, 158)
Quão
longe isso está da igreja romana. Mesmo dentro da igreja, o bispo de Roma não
era a autoridade máxima. Toda a hierarquia de autoridades estava subordinada em
última instância à Escritura Sagrada. Ainda em Agostinho o comentarista
católico continua:
Como que Agostinho não fala de um magistério? Mais uma vez vc
demonstra não conhecer suas obras, mas apenas citações isoladas. Agostinho está
sempre falando da autoridade da igreja Católica, de que não podemos desprezar
autoridade da igreja em relação ao batismo infantil, a autoridade da igreja que
ensina oração pelos mortos, a autoridade da igreja que o levou a crer nos
evangelhos. Não somente Agostinho, mas os pais da igreja sempre recorreram a
Roma para resolver questões. Agostinho faz diversos apelos a Roma, vc pode ler
por exemplo a carta 209 ao Papa Celestino.
Ele
com certeza falou da autoridade da igreja católica, mas sua compreensão era
distinta o ensino da igreja romana. A autoridade da igreja não era infalível e
estava subordinada às Escrituras. Isso ficou muito claro em sua obra “Unidade
da Igreja” escrita contra os donatistas. Nessa obra, ele em nenhum momento
disse que os donatistas estavam fora da igreja por não estarem em comunhão com
o bispo romano (um argumento inevitável se ele fosse um católico romano). Ele
deixa bem claro que é a Escritura que autentica a igreja e não o contrário:
A questão entre nós e
os donatistas é onde a Igreja é
encontrada? O que faremos então? Vamos procurá-la em nossas palavras ou nas palavras de seu chefe, nosso Senhor
Jesus Cristo? Eu concebo que devemos procurá-la em Suas palavras, Ele que é
a verdade e conhece melhor seu próprio corpo. (A Unidade da Igreja, cap. 2, §2)
Devemos encontrar a
Igreja assim como a Cabeça da Igreja nas
santas canônicas Escrituras, não investiguem por ela nos diversos relatos, opiniões,
ações, palavras e visões de homens. (Ibid., cap. 19, §49)
Se eles [os
donatistas] se mantêm na Igreja, eles
devem mostrar pelos livros canônicos das divinas Escrituras somente, pois
nós não dizemos que deve ser crido porque estamos na Igreja de Cristo ou porque
Optato de Milevi ou Ambrósio de Milão ou inúmeros outros bispos da nossa
comunhão recomendaram esta Igreja a que pertencemos, ou porque é exaltada pelos
concílios dos nossos colegas. (Ibid., cap. 19, §50)
Aqui
fica bem claro qual era o critério final para decidir quem era a verdadeira
igreja – A Escritura.
Não deixe que estas
palavras sejam ouvidas entre nós "eu digo" ou "você diz",
mas vamos ouvir "Assim diz o Senhor"; pois há certos livros de nosso Senhor em cuja autoridade ambos os lados
concordam; lá vamos procurar nossa Igreja, lá vamos julgar a nossa causa.
Deixemos que sejam removidas de nosso meio as coisas que citamos uns contra os
outros, não com apoio nos livros
canônicos divinos, mas de outras fontes quaisquer. Talvez alguém possa
perguntar: Por que desejais remover essas coisas do vosso meio? Porque não
queremos a santa igreja aprovada por
documentos humanos, mas sim pelos oráculos divinos. (Ibid., cap. 3, §5)
Se
Agostinho fosse católico romano, ele diria: “vocês não estão em comunhão com
Roma, logo estão fora”. Felizmente o bispo de Hipona se baseava nos oráculos
divinos e não em opiniões de homens.
O
fato de Agostinho apelar ao bispo de Roma não prova nada além. Ele considerava
sua opinião importante, mas não era final e suprema. Isso ficou claro na
controvérsia pelagiana em que Roma retrocedeu da condenação ao pelagianismo,
ainda assim os norte-africanos se mantiveram firmes em sua posição e a posição
romana não os demoveu. Além do mais, ele não apelava apenas ao bispo de Roma,
mas também a outros bispos que os católicos não considerariam papas. Mais
detalhes sobre Agostinho e o papado aqui.
O fato de Agostinho e os pais da Igreja considerarem as escrituras
sublimes, não tem nada haver com sola scriptura. Agostinho nunca disse que
todas práticas cristãs estão somente na bíblia.
Eles
não diziam que a Escritura era apenas sublime, mas suprema e isso os leva para
bem perto da Sola Scriptura. Nem Agostinho nem nós dizemos que todas as
práticas cristãs estão somente na Escritura. Algumas nem estão na Escritura,
mas são compatveis com os princípios que ela enuncia. Outro detalhe – a Sola
Scriptura não afirma que uma doutrina tem que estar somente na Bíblia. Ele pode estar na Escritura e na tradição e isso
é ótimo. É um sinal de que a igreja preservou a doutrina bíblica. O apologista
católico tenta mostrar então que Agostinho não cria na Sola Scriptura:
“Acredito que esta prática venha da TRADIÇÃO APOSTÓLICA, ASSIM COMO
TANTAS OUTRAS PRÁTICAS NÃO ENCONTRADAS NOS ESCRITOS DELES NEM NOS CONCÍLIOS DE
SEUS SUCESSORES,...” (Santo Agostinho, Batismo 5,23-31)
Qual parte vc não entendeu de "TANTAS OUTRAS PRÁTICAS FORA DOS
ESCRITOS DOS APÓSTOLOS?"
O próprio Agostinho como vc sabe, ensinava batismo de crianças com
base na tradição. Ensinava oração pelos mortos, como já lhe provei no outro
artigo, ensinava sobre a primazia de Pedro, entre tantas outras coisas que para
o protestantismo não está na bíblia.
Como
já dissemos, nem todas as práticas precisam estar na Escritura. Isso por si só
já refuta o católico. Como ele não estava se referindo a doutrinas, não é
incompatível com a doutrina reformada. A Confissão de Westminster se refere a práticas
dessa natureza da seguinte forma:
...que há algumas
circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações
e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela
prudência cristã, segundo as regras
gerais da palavra, que sempre devem ser observadas.
Agostinho
acreditava que se uma prática ou costume era generalizado na igreja de seu
tempo, ele provavelmente tinha origem apostólica. A prática em questão era a
prática de não rebatizar os heréticos. Ele escreveu contra os donatistas. Os donatistas
eram um grupo cismático defensor de que a validade do sacramento dependia da
dignidade do sacerdote. Um sacerdote pecaminoso não poderia ministrar um
sacramento válido. Eles estavam usando o testemunho de Cipriano (que viveu no
séc. III) em seu favor. Cipriano defendeu contra a posição do bispo de Roma
Estevão o rebatismo dos hereges. Para ele, àqueles que aderiram a grupos
heréticos precisariam ser rebatizados caso desejassem retornar à igreja. Nessa
questão, Agostinho defendia o não rebatismo dos hereges e acreditava que essa
era uma prática generalizada na igreja que deveria ter origens apostólicas.
Vejamos em contexto:
Cipriano escreve
também para Pompeu sobre esse mesmo assunto, e mostra claramente nessa carta
que Estevão, como nós aprendemos, era então bispo da Igreja Romana, não só não
concordo com ele sobre esses pontos antes de nós, mas escreveu e ensinou pontos
de vista opostos. Mas Estevão certamente não se "comunicou com os
hereges", simplesmente porque ele não se atreveu em contestar o batismo de
Cristo, que ele sabia que permaneceu perfeito no meio de sua [dos hereges]
perversidade. Pois, se ninguém tem o batismo de quem acolhe falsas sobre Deus,
tem sido provado suficientemente, em minha opinião, que isso pode acontecer
mesmo dentro da Igreja. "Os
apóstolos," de fato, "não deram instruções sobre o ponto"; mas o
costume, que se opõe a Cipriano, pode ser suposto ter tido sua origem na
tradição apostólica, assim como há muitas coisas que são observadas por toda a
Igreja e, portanto, são razoavelmente realizadas por terem sido ordenadas pelos
Apóstolos, ainda que não sejam mencionados em seus escritos.
Que
mesmo nessa questão de costumes, a Escritura ainda era a autoridade suprema
fica claro a seguir:
Com que autoridade da Sagrada Escritura é que foi
mostrado que "é contra o mandamento de Deus que as pessoas que vem da
comunidade dos hereges, se eles já receberam o batismo de Cristo, não são
batizados de novamente?" Mas é claramente demonstrado que muitos pretensos cristãos, embora
eles não estejam unidos no mesmo vínculo da caridade com os santos, sem o qual
nada santo que eles possam ter sido capazes de possuir é de algum lucro para
eles, ainda têm o batismo em comum com os santos, como já foi suficientemente
provado com a maior plenitude.
Antes
de recorrer ao consenso da igreja universal sobre o costume, Agostinho analisou
a questão à luz da Escritura. No capítulo 24, o bispo de Hipona discute
diversos argumentos bíblicos a respeito. Apesar do costume de não rebatizar não
estar explícito nas Escrituras, Agostinho cria que a prática era amparada pelos
princípios bíblicos:
E deixe qualquer um,
que é liderado pelo costume passado da Igreja, e pela autoridade subsequente de
um Conselho plenário e por tantas provas
poderosas da Sagrada Escritura, e por muita evidência do próprio Cipriano,
e pelo raciocínio claro da verdade, entender que o batismo de Cristo, consagrado nas palavras do evangelho, não pode
ser pervertido pelo erro de qualquer homem na terra. (Ibid., 5:24)
O
costume generalizado da igreja e as decisões do concílio plenário só reforçavam
sua interpretação da Escritura. Mas, a autoridade final para dirimir a questão
era a própria Escritura. Enquanto a prática em si não estava prevista na
Escritura, o princípio por traz da prática estava. Vamos nos valer um exemplo
protestante: algumas igrejas protestantes praticam o batismo infantil e muitos
teólogos pedobatistas afirmam que de fato essa prática não está declarada na
própria Escritura, mas afirmam que a prática é bíblica porque está alicerçada
sobre a doutrina do batismo contida nos livros sagrados.
Esse
era o caso de Agostinho. Ele acreditava que batismo limpava o homem do pecado
original (doutrina que Agostinho extraiu de sua interpretação bíblica). Por
esse motivo, o batismo infantil deveria ser praticado. Vejam que a prática não
está na Escritura, mas a doutrina que dá suporte a ela era crida como um ensino
bíblico. O comentarista romanista também falou da oração pelos mortos.
Lembremos que para Agostinho I e II Macabeus eram canônicos, então ele teria um
precedente bíblico para acreditar em oração pelos mortos. Quanto à primazia de
Pedro, Agostinho concedeu a ele um primado de honra e não de natureza jurídica.
Dessa forma, ele não era a favor da doutrina católica do papado.
O
apologista católico parece pressupor que se Agostinho manteve uma interpretação
diferente do protestantismo, ele não poderia defender a doutrina reformada da
Escritura. Isso é falacioso. Duas pessoas não precisam ter exatamente as mesmas
interpretações para considerarem a Escritura a autoridade suprema. Eles podem
discordar em outros pontos, mas concordar nesse em específico. Presbiterianos e
batistas podem interpretar algumas passagens da Escritura de forma divergente,
no entanto, ambos concordam com a Sola Scriptura.
Acho que para qualquer pessoa de mediana inteligência, já é o
suficiente para entender que a tradição apostólica é indispensável para o
entendimento da Palavra de Deus.
Concordamos
inteiramente que a tradição apostólica (aqui entendida como a pregação dos
apóstolos) é indispensável para entender a palavra de Deus, afinal ela é a
própria palavra de Deus. Por isso, damos a Escritura um status elevando, pois
se trata da pregação apostólica escriturada. O que nós não concordamos é que
com as inovações heréticas que se inventam sob o título de tradição apostólica.
Assim como Cipriano dizemos:
De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do
Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos?
Pois que aquelas coisas que estão escritas devem ser feitas, Deus testemunha e admoesta, dizendo a Josué o filho de
Num: “O livro desta lei não deve se afastar de tua boca; mas tu deves meditar
nele dia e noite, para que tu possas observar para fazer de acordo com tudo que
está escrito ali”.
(Epístola 74)
Assim
como Jerônimo dizemos:
Se vós quereis
clarificar as coisas em dúvida, ide à
lei e ao testemunho da Escritura; fora
dali estais na noite do erro. Nós admitimos tudo o que está escrito, e rejeitamos tudo o que não está. As
coisas que se inventam sob o nome de tradição
apostólica sem a autoridade da Escritura são feridas pela espada de Deus. (Jerónimo, In
Isaiam, VII; In Agg., I)
E
principalmente fazemos como Jesus. Quando os fariseus alegaram ter ensino oral
não escrito que teria saído da pena de Moisés (uma tradição supostamente
válida), nosso mestre usou as Escrituras (Marcos 7:13). Ele ensinou que a forma
de se distinguir a tradição válida da heresia é apelando a autoridade da
Escritura. Por isso rejeitamos as tradições de Roma que não se sustentam nem
biblicamente nem historicamente. Quando uma tradição é elevada ao status da
Escritura, passa ser a impossível distinguir uma tradição verdadeira de uma
falsa.
E que essa tradição foi preservada pela hierarquia da igreja de
maneira intacta juntamente com as escrituras.
Não
concordamos. Obviamente ele está se referindo à igreja romana aqui. Essa igreja
infelizmente não prevaleceu na genuína tradição apostólica, mas acabou aderindo
às tradições de homens.
Além
de existirem várias igrejas diferentes ensinando que preservaram tradições
diferentes, existem outros problemas com conceito romanista de tradição. Nós
tratamos desses problemas aqui. Até hoje Roma nunca definiu o conteúdo exato
das tradições orais apostólicas preservadas. Não existe um cânon da tradição. A
tradição funciona como um saco, Roma põe nele o que for conveniente colocar. E
isso se reflete na apologética católica. Os apologistas apelam seletivamente
aos pais da igreja – eles apontam um autor que supostamente (geralmente de
forma distorcida) os beneficia, e “varrem para debaixo do tapete” aqueles que
os prejudicam. Ou seja, no máximo seria o meu da igreja vs o seu pai da igreja.
Quem decide qual deles está com a verdadeira tradição? Católicos costumam
ignorar isso, mas o consenso nos pais da igreja existia apenas em questões
muito básicas. Quando um pouco detalhe é requerido, o consenso desaparece.
Uma
das razões do porque a tradição não pode ser uma regra infalível de fé é
justamente porque os pais da igreja são autores falíveis. Suponhamos que um pai
da igreja receba uma genuína tradição apostólica e vá repassá-la adiante. Você
precisa pressupor que esse homem vai interpretar essa tradição sem nenhum erro
e vai repassá-la a outro homem que também não cometerá nenhum erro. Ocorre que
esses homens são falíveis e até a tradição se tornar acessível por Escrito, ela
poderá ter sido distorcida no processo. Os próprios pais se consideravam homens
falíveis e até a igreja romana os vê assim. Um exemplo entre muitos é de
Papias. Eusébio escreve sobre ele:
O próprio Papias
acrescenta outras coisas que teriam
chegado a ele por meio da tradição oral, além de certas parábolas estranhas do Salvador, bem como o ensinamento
dele e outras coisas que parecem ainda mais fabulosas. Entre essas coisas,
diz que haverá mil anos após a ressurreição dos mortos e que então o reino de
Cristo se estabelecerá fisicamente nesta nossa terra. Suponho que tenha essa
opinião por ter interpretado mal as
explicações dos apóstolos e que ele não compreendeu as coisas que eles diziam
de maneira figurada e simbólica. O fato é que, segundo o que se pode
deduzir de seus próprios discursos, Papias parece
homem de inteligência curta. Todavia, ele
é culpado pelo fato de muitos escritores eclesiásticos que lhe sucederam
adotarem a opinião dele, pois confiavam na antiguidade desse homem. Foi o que aconteceu com Irineu e outros que
pensaram as mesmas coisas que ele. (Eusébio de Cesaréia, HE, III, 39, 11-14a)
Papias
escreveu cinco obras intituladas “Explicações das Sentenças do Senhor”. Delas,
sobreviveram apenas fragmentos. Irineu cria que Papias foi discípulo do
apóstolo João. No entanto, o próprio Papias menciona que apenas conheceu
pessoas que foram íntimas dos apóstolos. Estamos falando de um homem numa ótima
posição para receber uma genuína tradição apostólica. Ele conheceu pessoas que
andaram com os apóstolos e nos conta que era ávido em entrevista-los. Em
virtude de sua antiguidade, disseminou uma doutrina que a Igreja Romana rejeita
– o milenarismo, e fez com que outros pais seguissem o mesmo ensino. Eusébio
rejeitou essa doutrina alegando que Papias interpretou errado as explicações
dos apóstolos e passou adiante uma falsa tradição. O que aconteceu com Papias é
passível de acontecer com qualquer testemunha patrística, pois eram intérpretes
falíveis da tradição. Irineu também é responsável por passar uma falsa tradição
apostólica:
Todos estão de acordo
que trinta anos é a idade de homem ainda jovem, idade que se estende até aos
quarenta; dos quarenta aos cinquenta
declina na senilidade. Era nesta
idade que nosso Senhor ensinava, como o atesta o Evangelho e todos os
presbíteros da Ásia que se reuniram em volta de João, o discípulo do
Senhor, que ficou com eles até os tempos de Trajano, afirmam que João lhes transmitiu esta tradição. Alguns destes
presbíteros que viram não somente João, mas também outros apóstolos e os
ouviram dizer as mesmas coisas, testemunham isso tudo. Em quero mais devemos
acreditar: nestes presbíteros ou em Ptolomeu,
que nunca viu os apóstolos e sequer em sonhos seguiu algum deles? (Ireneu, Contra
Heresias, 2:22:5)
Irineu
não estava se referindo a doutrinas, mas o ponto é que ele estava errado. Jesus
não morreu já velho e essa com certeza não era uma tradição apostólica. O ponto
aqui não é rebaixar os pais da igreja, mas apenas afirmar a falibilidade deles.
Da mesma forma que eram veículos falíveis da tradição, também eram intérpretes
falíveis da Escritura. Quem afirma que a Escritura é obscura e que a tradição
(o ensino dos pais) interpreta a Escritura está propondo uma solução mais
difícil do que o problema. A Escritura possui uma unidade e coesão que atesta a
sua autoria divina, o mesmo não pode ser dito do ensino dos pais. Você pode ver aqui uma pequena amostra da diversidade de posição dos pais da igreja. O
cardeal católico romano Yves Congar escreve:
Em relação aos textos individuais das Escrituras, total
consenso patrístico é raro. Na verdade, um
consenso completo é desnecessário: muitas vezes, aquilo que é objeto de recurso
como suficiente para pontos dogmáticos não vai além do que é encontrado na
interpretação de muitos textos. Mas às vezes acontece de alguns Padres terem
entendido uma passagem de uma maneira que não vai estar de acordo com o ensinamento
da Igreja mais tarde. Um exemplo: a
interpretação da confissão de Pedro em Mateus 16: 16-18. Exceto em Roma, esta
passagem não foi aplicada pelos Padres ao primado papal (...) (Tradition and Traditions [New York: Macmillan Company, 1966], pp.
397-400)
Congar
ainda cita o texto basilar de todo o romanismo – Mateus 16:16-18. Somente em
Roma, esse texto foi aplicado ao primado papal. Além dos pais oporem-se uns aos
outros, eles também eram inconsistentes. Não é raro um pai ao longo da vida
sustentar posições opostas ou incompatíveis. Estudiosos patrísticos são
unânimes em afirmar a dificuldade de interpretar muitos pais da igreja. Isso se
dá por vários motivos. Principalmente em relação aos pais mais antigos, apenas
uma pequena porção de suas obras foi preservada, a maioria se perdeu. Somem-se
a isso as dúvidas sobre a autenticidade de muitos textos. O número de
falsificações é bastante elevado. Tomás de Aquino, por exemplo, acreditava que
as obras de pseudo-Dionísio foram escritas por Dionísio o aeropagita mencionado
no N.T. A igreja romana se beneficiou especialmente das falsificações. As
pretensões papais foram em larga medida construídas em cima de documentos
falsos como “a doação de Constantino” e os “falsos decretos de Dionísio”.
Já
a Escritura possui uma unidade divina e o seu estado de preservação é o melhor
entre os documentos do mundo antigo. Sem contar que a Escritura, sendo o
registro da pregação apostólica em primeira mão, é mais confiável do que uma
tradição de séculos ou milênios depois dos apóstolos. Se você quer sabe o que
alguém de fato escreveu, aquilo que o próprio indivíduo escreveu tem mais valor
do que o que alguém diz que ele escreveu. A precedência da Escritura sobre a
tradição é uma simples questão lógica. O autor católico comenta:
A própria escritura nos fala que nela há coisas difíceis de
entender, que podem levar o homem a ruína se forem interpretadas de maneira
errada (2PD 3,16). Este versículo já é o suficiente para colocar abaixo o livre
exame, e a necessidade de uma autoridade extra bíblica infalível, pois todos
nós sabemos que a bíblia é realmente um conjunto de livros complexos, escrito
por autores diferentes, em épocas e culturas diferentes e em 3 idiomas
diferentes, e que não pode ser entendida apenas lendo.
É
a velha tática gnóstica de obscurecer a Escritura para afirmar sua própria
autoridade. Vejamos o que diz 2 Pedro 3:16:
Tenham em mente que a
paciência de nosso Senhor significa salvação, como também o nosso amado irmão
Paulo lhes escreveu, com a sabedoria que Deus lhe deu. Ele escreve da mesma
forma em todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas
contêm algumas coisas difíceis de
entender, as quais os ignorantes e
instáveis torcem, como também o fazem com as demais Escrituras, para a própria
destruição deles.
(2 Pedro 3:15-16)
Pedro
diz que algumas coisas das epístolas de Paulo são difíceis de entender. Isso em
nada contraria a posição protestante da Suficiência Formal. Nem tudo nas
Escrituras é fácil de entender, mas todas as verdades necessárias para a
salvação estão dispostas de forma compreensível na Escritura. Partes difíceis
podem ser clarificadas por outras mais fáceis que tratam do mesmo assunto. Ele
não diz que alguma verdade fundamental do evangelho é de difícil compreensão
nas cartas de Paulo, nem diz que todo o conteúdo de suas cartas é difícil,
portanto. E por necessidade lógica, se algumas partes eram difíceis, as outras
seriam fáceis. Agostinho escreveu:
O Espírito Santo
dispôs a Escritura Sagrada de uma forma tão magnificente e proveitosa que, por meio das claras passagens, ele sacia a
fome, e por meio das passagens obscuras ele evita a aversão. Porque dificilmente alguma coisa provém das
passagens obscuras, mas o que é afirmado em outra parte é mais claro. (Agostinho, citado
em Pieper, Christian Dogmatics, p. 324)
Destaca-se
que as pessoas que distorciam as epístolas paulinas foram qualificadas como:
ignorantes e instáveis. Elas não distorciam apenas as partes difíceis das
cartas, mas também as demais Escrituras. Isso mostra que a incapacidade de
entender corretamente dá-se pelos pecados dos próprios leitores, e não por uma
característica intrínseca das cartas de Paulo. Católicos costumam argumentar
que pessoas interpretam a Escritura errado, logo ela não pode ser suficiente.
Trata-se de mais um argumento autodestrutivo. Qualquer texto (incluído os do
magistério e da tradição) pode ser mal interpretado. Se um texto não é
suficiente, porque as pessoas podem interpretá-lo errado, nenhum texto no mundo
poderia ser suficiente. A qualidade de uma interpretação não depende apenas das
características da própria Escritura, mas também do próprio intérprete. Os
católicos são um bom exemplo. A Bíblia poderia ser tão simples quanto um gibi,
ainda assim eles interpretariam errado. Os católicos estão comprometidos com a
interpretação distorcida do magistério de sua igreja, e por mais claro que uma
passagem seja, eles precisam abrir mão do significado claro em prol da interpretação da sua própria igreja.
É
muito comum que os homens assumam suas próprias tradições ao invés de tentar
apreender o claro significado das Escrituras. Eles simplesmente empurram sua
tradição para dentro da Escritura. Essa é uma prática constante e comum na
apologética católica.
Continuamos
aqui nossa resposta a algumas objeções católicas à Sola Scriptura. Nessa parte,
vamos tratar primariamente da questão histórica. Vimos na parte I que a
doutrina reformada é bíblica e lógica, mas e os pais da igreja? Será verdade
que a Sola Scriptura é uma “invenção de Lutero”? Os comentários do interlocutor
católico continuarão em vermelho.
Eusébio de Cesareia, 200 anos após a morte dos apóstolos, conta que
ainda naquela época não se sabia quais livros sagrados existentes. Ele coloca
em dúvida vários livros como 2º e 3º João, 2º Pedro, Hebreus que nem se sabia
quem era o autor, e o livro do Apocalipse que era um livro de difícil
entendimento. Como então poderia existir sola scriptura?
Primeiro,
a afirmação “não se sabia quais os livros sagrados existentes” é pouco precisa.
Nesse período (século IV), a igreja já tinha certeza sobre a maior parte do
cânon, sendo alguns livros ainda disputados. Eusébio escreve:
Chegando aqui, é hora
de recapitular os escritos do Novo Testamento já mencionados. Em primeiro lugar
temos que colocar a tétrade santa dos
Evangelhos, aos quais segue-se o escrito dos Atos dos Apóstolos. Depois deste há que se colocar a lista das Cartas de Paulo. Depois
deve-se dar por certa a chamada Primeira
de João, assim como a de Pedro.
Depois destas, se está bem, pode-se colocar Apocalipse de João, sobre o qual exporemos oportunamente o que dele
se pensa. Estes são os ditos admitidos.
Dos livros discutidos, por outro
lado, mas que são conhecidos da grande
maioria, temos a Carta dita de Tiago,
a de Judas e a segunda de Pedro, assim como as que se diz serem segunda e terceira de João, sejam do
próprio evangelista, seja de outro com o mesmo nome. (História
Eclesiástica 1:25:1-3)
O
comentarista católico também errou ao afirmar que Eusébio coloca em dúvida
Hebreus e Apocalipse. Percebam que ele
coloca os dois entre os “admitidos” em oposição aos livros “discutidos” (2
Pedro, 2 e 3 João, Tiago e Judas). Os quatro evangelhos, bem como o livro de
Atos (acompanhava o evangelho de Lucas), as cartas paulinas (a maioria incluía
Hebreus nessa categoria), 1 Pedro e 1 João foram reconhecidos como escritos
apostólicos bem cedo já no período pós-apostólico (séc. II). Lembremos que as
primeiras declarações canônicas estão dentro da própria Escritura. Pedro
considera os escritos de Paulo Escritura inspirada (2 Pedro 3:15-16) e Paulo
cita o Evangelho de Lucas e por implicação Atos como Escritura (1 Timóteo
5:18). Eusébio de fato expressa em sua obra que alguns duvidavam da
canonicidade de Hebreus e o Apocalipse e João, mas ficou claro que ele
pessoalmente não seguiu essa posição e os considerou livros “admitidos” pela igreja.
Um detalhe interessante é saber quem não aceitava o livro de Hebreus:
Por outro lado, é evidente e claro que as catorze cartas
são de Paulo. Contudo, não é justo ignorar que alguns rechaçaram a carta aos Hebreus, dizendo que a Igreja de Roma não
a admite por crer que não é de Paulo. O que foi dito sobre ela por aqueles
que me precederam será exposto a seu devido tempo. Naturalmente, também não
aceitei entre os escritos indiscutidos os Atos que se dizem ser dele. (Ibid., 3:3:5)
Vejam
que declaração interessante. Eusébio não tinha dúvida da canonicidade de
Hebreus e sua autoria paulina. Porém, alguns duvidavam e apelavam à opinião da
igreja romana. Nesse ponto, fica muito claro que o argumento do cânon é
prejudicial para o paradigma romanista e não para o paradigma protestante. O
que Eusébio fez? Ele simplesmente disse “a igreja romana que governa as demais
igrejas não aceita a carta de Hebreus, como eles são a autoridade suprema,
vamos acatá-los?” Justamente o contrário. Além de não seguir a opinião de Roma,
Eusébio ainda tinha certeza. Como fica o argumento católico de que ninguém
poderia saber o cânon sem uma declaração infalível da igreja (obviamente sob
autoridade de Roma)? Ele simplesmente não existia no pensamento dos pais da
igreja. Nenhum pai da igreja afirmou isso. Eles produziram suas próprias listas
canônicas e expressavam certeza sobre elas sem a necessidade de uma declaração
“infalível”. Os pais da igreja antes e depois de Eusébio já tratavam um
conjunto de livros como Escritura inspirada sem estarem alicerçados sobre uma
declaração infalível. Esse foi o caso de Clemente, Justino, Irineu, Orígenes,
Eusébio, Atanásio, Agostinho e todos os outros que trataram da questão.
Os
católicos podem objetar que a igreja romana estava certa – Hebreus não foi
escrito por Paulo (algo discutível até hoje). O ponto não é esse. Quem estava
certo ou errado é irrelevante. O ponto é que Eusébio não pensava segundo o
paradigma romanista. Além do mais, Roma estava errada em não admitir Hebreus.
Apesar de o motivo ser verdadeiro, a implicação é falsa. Por isso, a carta de
Hebreus está na bíblia católica, e isso se deu graças ao esforço da igreja
oriental.
O
católico argumenta que como esses pais tinham um cânon diferente do atual, eles
não poderiam ser adeptos da Sola Scriptura. Para que um grupo de pessoas seja
adepta da doutrina reformada, elas precisariam supostamente acreditar
rigorosamente no mesmo cânon. Trata-se de uma falácia. A premissa está correta,
mas conclusão é errada. Os pais já possuíam um conjunto de livros que
consideravam inspirados e atribuíam a eles autoridade máxima. Eles não
precisariam ter o mesmo cânon que o nosso para considerar que havia livros
inspirados que formavam a única regra infalível de fé. O mesmo se aplica à
tradição. Romanistas e ortodoxos apelam a uma tradição como regra infalível de
fé. No entanto, eles possuem ideias diferentes sobre qual é o conteúdo da
tradição. Isso implicaria que ambos não consideram a tradição uma regra
infalível de fé? Obviamente não. Até mesmo dentro do romanismo, os teólogos
divergem sobre quantas vezes os papas ensinaram infalivelmente, isso então
implicaria que esses teólogos não acreditam da mesma forma na autoridade do
magistério? Obviamente não.
É
comum ver católicos irem até mais longe. Eles dizem que como a igreja não tinha
um cânon idêntico ao nosso, eles sequer tinham Escritura, por isso a igreja
seria guiada pelo magistério e tradição somente. Esse argumento é falso porque
os pais já tinham Escritura. O fato de um pai da igreja ter um cânon mais curto
não o impedia de considerar um conjunto livros como a única regra infalível de
fé. Outro problema é quando a igreja definiu “infalivelmente” o cânon da
Escritura? Se essa decisão era uma necessidade lógica, se esperaria que
acontecesse o quanto antes. O problema é que tal declaração só aconteceu no
concílio de Trento (séc. XVI). Apena nesse concílio o cânon se tornou um artigo
de fé na igreja romana. Alguém em sã consciência acreditaria que só depois
disso (14 séculos após os apóstolos) é que a igreja pode ter certeza do cânon?
Ninguém antes saberia quais os livros canônicos? Com certeza não seria caso.
Até mesmo os teólogos medievais apelaram à autoridade da Escritura para
formular doutrinas sem necessitarem de uma declaração “infalível” sobre o cânon.
Católicos
costumam apelar aos concílios de Hipona e Cartago como definidores da questão.
Ocorre que esses concílios eram regionais e, portanto, não poderiam vincular
toda a igreja, muito menos definir “infalivelmente” a questão. Isso é tão claro
que teólogos medievais defenderam um cânon do A.T diferente de Hipona e
Cartago. Além do mais, o cânon desses concílios era diferente do declarado pelo
concílio de Trento.
Não existe insubordinação entre a tradição e as escrituras, pois
ambas se completam, ambas são palavras de Deus.
Essa
não era a posição de Agostinho e dos pais da igreja. Eles não colocavam o que
entendiam como tradição no mesmo patamar das Escrituras. Católicos citam com
frequência qualquer trecho que tenha a palavra tradição. Partem do pressuposto
que ao se apelar a alguma tradição, exclui-se a possibilidade da Sola
Scriptura. Isso é um engano. Como já vimos, a posição reformada não exclui a
autoridade da tradição ou da igreja. O que se afirma é a autoridade suprema da
Escritura. A tradição e a igreja podem errar, somente na Escritura a voz
infalível de Deus pode ser encontrada. Vejamos o que Agostinho disse:
Quem é que se submete
a divina Escritura, senão aquele que a lê ou ouve piamente, submetendo a ela como a autoridade suprema? (Do
Sermão do Monte, Livro I, 11)
Este mediador, tendo
falado o que Ele julgou suficiente primeiramente pelos profetas, em seguida por
Seus próprios lábios, e depois pelos apóstolos, também produziu a Escritura
canônica, que tem autoridade suprema, e
à qual nos submetemos assentimento em todos os assuntos. (A Cidade de Deus,
Livro XI, 3)
Em tais termos,
poderíamos nos divertir sem medo de ofender um ao outro no campo da Escritura,
mas eu poderia muito bem perguntar se a diversão não foi à minha custa. Eu
confesso a sua bondade de que eu aprendi a
render este respeito e honra apenas aos livros canônicos da Escritura: Desses somente eu mais firmemente tenho
acreditado que os autores foram completamente livre de erro. E se nesses
escritos eu esteja confuso por qualquer coisa que me parece oposta à verdade,
não hesitaria em supor que o manuscrito seja defeituoso, ou o tradutor não
pegou o significado do que foi dito, ou eu mesmo tenho falhado em entender
isso.
(Carta 82 a Jerônimo)
A
Escritura não era uma autoridade no mesmo patamar da tradição. Na sua carta a
Jerônimo ele deixa bem claro onde a voz inerrante de Deus poderia ser
encontrada – somente nos livros canônicos. Ou seja, implicitamente Agostinho
afirmou que as outras autoridades (igreja e tradição) poderiam errar. Os
católicos estão sempre falando de uma tradição que suplementa ou explica a
Escritura. Porém, não fazem nenhum esforço para provar a validade dessa
tradição. Os pais da igreja tinham basicamente quatro conceitos de tradição:
(1) Interpretação das
Escrituras: sim eles apelavam ao ensino histórico da igreja sobre uma
determinada doutrina. Porém, como Agostinho bem expressou, esses não
constituíam uma autoridade infalível. Eles poderiam estar errados. Esse
conceito de tradição não invalida a doutrina reformada;
(2) Dados históricos:
muitas vezes o conteúdo da tradição era de natureza histórica. Por exemplo – a
morte do apóstolo Pedro. Obviamente, isso também não contraria a doutrina
protestante. É óbvio que há verdades históricas fora da Escritura quem podem
ser cridas na medida em que há evidências confiáveis que as sustente;
(3) Práticas ou costumes:
A tradição poderia se referir a certas práticas ou costumes que as igrejas
mantinham. A doutrina reformada não afirma que todos os costumes ou práticas da
igreja devem estar na Escritura. Por exemplo, muitas regras atinentes ao culto
das igrejas protestantes não estão na Escritura. Não há um versículo afirmando
que deve existir uma escola bíblica todos os domingos pela manhã. A Escritura
suficientemente traz princípios que devem ser aplicados ao culto sem dizer cada
parâmetro e cada passo que deve ser seguido. Desde que se adote uma liturgia
que siga esses princípios não há problema.
Se
os católicos desejam ir além de apenas citar a tradição como uma desculpa para
estabelecer as inovações romanistas, eles precisam provar que a tradição em
questão era uma interpretação infalível da Escritura (parte da revelação
divina) ou era uma segunda fonte de doutrinas que o cristão deve
necessariamente crer (também parte da revelação divina). Nós não encontramos
esses casos na patrística.
É totalmente impossível entender integralmente as escrituras sem
conhecer a tradição cristã, sendo que a bíblia não é auto explicativa, ou seja,
não basta ler pra entender.
Se
tomarmos a tradição cristã como o ensino histórico da igreja sobre as diversas
doutrinas (excluído o ensino da própria Escritura), ele está errado. A tradição
cristã é útil e nos ajuda a entender a Escritura, mas não pode ser considerada
indispensável. Uma pessoa pode sim entender as Escrituras e ganhar o
conhecimento salvífico do evangelho. Os autores bíblicos acreditavam que os
crentes poderiam ganhar o conhecimento salvador através da leitura de seus
escritos. Toda a Escritura pressupõe sua própria suficiência formal.
Ele
também erra ao definir autoexplicativo como um texto que basta ser lido para
ser entendido. Autoexplicativo é a qualidade de algo que não exige
conhecimentos externos para trazer a luz o seu próprio significado. Por exemplo
– se um texto diz: “Maria foi sempre virgem” – seria necessário entender o
conceito de virgindade para entende-lo corretamente, no entanto, essa
explicação não está no próprio texto. Por mais simples que essa afirmação possa
ser e muitos apenas a lerão e entenderão, não se trata de um texto
autoexplicativo. Aqui entra uma explicação crucial de como os católicos criam
um espantalho da posição protestante e acabam usando argumentos de que minam a
própria posição católica.
Quando
os protestantes afirmam a suficiência formal da Escritura, não estão dizendo
que a Escritura é autoexplicativa no sentido de que todo o conhecimento
necessário está na própria Escritura. Eu inclusive dei o exemplo do conhecimento
de grego na parte 1. Ocorre que nenhum texto do mundo é autoexplicativo. Nenhum
texto pode conter a sua própria interpretação. Isso se aplica a qualquer forma
de comunicação. O receptor de uma mensagem sempre precisará de algum
conhecimento externo à própria mensagem que está recebendo. Quando os católicos
argumentam que a Escritura é insuficiente porque não contém sua própria
interpretação, eles estão sem perceber afirmando que o magistério romanista é
insuficiente. O ensino do magistério não é autoexplicativo e não contém sua
própria interpretação. Qualquer apelo ao magistério é também um apelo a uma
interpretação do que o magistério diz. O mesmo se aplica à tradição. Você pode
até afirmar que um texto é mais claro do que outro, mas mesmo o texto mais simples
exige conhecimentos além do que o próprio texto diz. Se a posição católica for
levada a sério, teríamos uma cadeia infinita de interpretações. Você precisaria
de um intérprete infalível do magistério “infalível”, e depois do intérprete do
intérprete e assim sucessivamente. O máximo que poderia ser efeito é diminuir a
probabilidade de as pessoas entenderem errado, mas afastar totalmente é algo
impossível.
A
doutrina da suficiência formal afirma que o evangelho está contido na Escritura
de uma forma clara. Em outras palavras, os crentes iluminados pelo Espírito
Santo são capazes de aprenderem essas verdades salvadoras e viverem em Cristo.
Quando Cristo diz: “Amem ao seu próximo como a vocês mesmo”, Ele não está
afirmando algo difícil de entender. Quando ele diz “Aquele que crer em mim terá
a vida eterna”, ele está afirmando algo que pode sim ser compreendido. Essas
duas declarações exigem que você saiba algo além do que está escrito, mas ainda
assim elas podem ser compreendidas. Por isso, na primeira parte fizemos questão
de esclarecer que a Sola Scriptura não afirma que todo o conhecimento
necessário e toda a verdade está na própria Escritura, mas toda a verdade
doutrinária necessária para o cristão está exposta de forma clara na Escritura.
A ideia de que a Escritura interpreta a própria Escritura (a analogia da fé),
ideia muito propagada no meio protestante, não contraria nada do que foi dito.
Isso simplesmente quer dizer que uma ideia que é de forma obscura tratada numa
parte da Escritura pode ser de forma mais clara tratada em outra parte. Nesse
sentido, a Escritura interpreta (clarifica) a própria Escritura.
Pela tradição, que a igreja explica o que foi escrito.
Aqui
precisamos lidar com outro problema do paradigma católico. Qual tradição? E qual
igreja? O problema é que existem igrejas diferentes alegando terem preservados
tradições diferentes. Existem várias igrejas (católica romana, ortodoxa,
vetero-católica e outras) alegando terem a verdadeira tradição católica e serem
a verdadeira igreja. O problema é que elas ensinam doutrinas fundamentais que
são substancialmente distintas. O romanista pressupõe que ele segue a tradição
e a igreja verdadeira. A questão é como ele pode ter certeza infalível disso?
Ele simplesmente não pode. Se precisamos de uma igreja infalível para nos dizer
o cânon, mas importante então é saber qual igreja é de fato a correta. Ocorre
que não há nenhuma autoridade infalível para decidir a questão. Ou ele apela a
um argumento circular (a igreja romana é a certa porque ela diz que é) ou então
ele precisará examinar a história, a tradição e a Escritura e tomar uma decisão
falível. Em outras palavras, ele terá que agir como um bom protestante que
examina e investiga para chegar a verdade. Se o livre exame pode ser suficiente
para decidir qual é a igreja certa, e para isso ele precisou examinar a
Escritura e decidir entre as diferentes interpretações, porque então ele não
poderia continuar interpretando a Escritura corretamente?
Agostinho já dizia: “Eu não creria no Evangelho, se a isso não me
levasse A AUTORIDADE DA IGREJA CATÓLICA.” (Contra a Carta de Mani 5,6)”. Veja
que o próprio Agostinho fala, que crer nas escrituras devido autoridade
infalível que recebeu a igreja, pois só a igreja é que distingui “palavra de
Deus” de “heresia”.
A
Sola Scriptura não elimina a autoridade da igreja. Na citação trazida, em
nenhum momento Agostinho afirma que a igreja é uma autoridade infalível. Ele
nunca atribuiu infalibilidade a qualquer outra regra de fé além da Escritura.
Nós explicamos essa citação em detalhes aqui. Resumidamente, Agostinho estava
afirmando que foi graças a autoridade da igreja que tem como missão propagar o
evangelho que ele passou a crer. Um exemplo bíblico análogo seria de Felipe e o
Eunuco. Foi graças à autoridade de Felipe que o eunuco creu no evangelho. Isso
não implica que autoridade de Felipe esteja acima da mensagem do evangelho que
tem Deus como seu autor. Eu poderia afirmar que foi graças a autoridade de um
pastor da Assembleia de Deus que minha mãe passou a crer no evangelho, pois foi
ao ouvi-lo pregar que ela se converteu a cristão. Isso jamais implicaria na
infalibilidade desse pastor, pois o mensageiro não é maior do que a mensagem.
Agostinho também não estava se referindo à igreja romana. O que ele concebia
como autoridade da igreja é bem diferente do que Roma ensina. Para ele, o
concílio ecumênico era a autoridade máxima na igreja e não o papa. E mesmo o
concílio era uma autoridade falível. Robert Eno – um católico romano
especialista em Agostinho – escreve:
Na visão de
Agostinho, havia uma hierarquia definida de autoridades. À Sagrada Escritura foi atribuída a mais alta autoridade para a
determinação do ensino. Depois da Escritura vinha a tradição e a prática da Igreja universal. Finalmente, havia os órgãos de autoridade dentro da
Igreja que possuía poderes de decisão. O mais notável desses órgãos era o "concílio plenário da Igreja
universal". Além disso, dentro de qualquer processo teológico, a razão
desempenhou um papel importante, embora subordinado (...) Concílios também estão subordinados à Escritura (...) Em outros
lugares, o bispo de Hipona observou que tanto católicos como donatistas estavam de acordo sobre a supremacia da
Escritura (...) Mas Agostinho, recorde-se,
subordina tudo às Escrituras, não só os escritos de bispos influentes como
Cipriano, mas também costumes da igreja universal. (Doctrinal Authority
In Saint Augustine, Augustinian Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 133-134, 138-139,
141, 144-145, 149, 158)
Quão
longe isso está da igreja romana. Mesmo dentro da igreja, o bispo de Roma não
era a autoridade máxima. Toda a hierarquia de autoridades estava subordinada em
última instância à Escritura Sagrada. Ainda em Agostinho o comentarista
católico continua:
Como que Agostinho não fala de um magistério? Mais uma vez vc
demonstra não conhecer suas obras, mas apenas citações isoladas. Agostinho está
sempre falando da autoridade da igreja Católica, de que não podemos desprezar
autoridade da igreja em relação ao batismo infantil, a autoridade da igreja que
ensina oração pelos mortos, a autoridade da igreja que o levou a crer nos
evangelhos. Não somente Agostinho, mas os pais da igreja sempre recorreram a
Roma para resolver questões. Agostinho faz diversos apelos a Roma, vc pode ler
por exemplo a carta 209 ao Papa Celestino.
Ele
com certeza falou da autoridade da igreja católica, mas sua compreensão era
distinta o ensino da igreja romana. A autoridade da igreja não era infalível e
estava subordinada às Escrituras. Isso ficou muito claro em sua obra “Unidade
da Igreja” escrita contra os donatistas. Nessa obra, ele em nenhum momento
disse que os donatistas estavam fora da igreja por não estarem em comunhão com
o bispo romano (um argumento inevitável se ele fosse um católico romano). Ele
deixa bem claro que é a Escritura que autentica a igreja e não o contrário:
A questão entre nós e
os donatistas é onde a Igreja é
encontrada? O que faremos então? Vamos procurá-la em nossas palavras ou nas palavras de seu chefe, nosso Senhor
Jesus Cristo? Eu concebo que devemos procurá-la em Suas palavras, Ele que é
a verdade e conhece melhor seu próprio corpo. (A Unidade da Igreja, cap. 2, §2)
Devemos encontrar a
Igreja assim como a Cabeça da Igreja nas
santas canônicas Escrituras, não investiguem por ela nos diversos relatos, opiniões,
ações, palavras e visões de homens. (Ibid., cap. 19, §49)
Se eles [os
donatistas] se mantêm na Igreja, eles
devem mostrar pelos livros canônicos das divinas Escrituras somente, pois
nós não dizemos que deve ser crido porque estamos na Igreja de Cristo ou porque
Optato de Milevi ou Ambrósio de Milão ou inúmeros outros bispos da nossa
comunhão recomendaram esta Igreja a que pertencemos, ou porque é exaltada pelos
concílios dos nossos colegas. (Ibid., cap. 19, §50)
Aqui
fica bem claro qual era o critério final para decidir quem era a verdadeira
igreja – A Escritura.
Não deixe que estas
palavras sejam ouvidas entre nós "eu digo" ou "você diz",
mas vamos ouvir "Assim diz o Senhor"; pois há certos livros de nosso Senhor em cuja autoridade ambos os lados
concordam; lá vamos procurar nossa Igreja, lá vamos julgar a nossa causa.
Deixemos que sejam removidas de nosso meio as coisas que citamos uns contra os
outros, não com apoio nos livros
canônicos divinos, mas de outras fontes quaisquer. Talvez alguém possa
perguntar: Por que desejais remover essas coisas do vosso meio? Porque não
queremos a santa igreja aprovada por
documentos humanos, mas sim pelos oráculos divinos. (Ibid., cap. 3, §5)
Se
Agostinho fosse católico romano, ele diria: “vocês não estão em comunhão com
Roma, logo estão fora”. Felizmente o bispo de Hipona se baseava nos oráculos
divinos e não em opiniões de homens.
O
fato de Agostinho apelar ao bispo de Roma não prova nada além. Ele considerava
sua opinião importante, mas não era final e suprema. Isso ficou claro na
controvérsia pelagiana em que Roma retrocedeu da condenação ao pelagianismo,
ainda assim os norte-africanos se mantiveram firmes em sua posição e a posição
romana não os demoveu. Além do mais, ele não apelava apenas ao bispo de Roma,
mas também a outros bispos que os católicos não considerariam papas. Mais
detalhes sobre Agostinho e o papado aqui.
O fato de Agostinho e os pais da Igreja considerarem as escrituras
sublimes, não tem nada haver com sola scriptura. Agostinho nunca disse que
todas práticas cristãs estão somente na bíblia.
Eles
não diziam que a Escritura era apenas sublime, mas suprema e isso os leva para
bem perto da Sola Scriptura. Nem Agostinho nem nós dizemos que todas as
práticas cristãs estão somente na Escritura. Algumas nem estão na Escritura,
mas são compatveis com os princípios que ela enuncia. Outro detalhe – a Sola
Scriptura não afirma que uma doutrina tem que estar somente na Bíblia. Ele pode estar na Escritura e na tradição e isso
é ótimo. É um sinal de que a igreja preservou a doutrina bíblica. O apologista
católico tenta mostrar então que Agostinho não cria na Sola Scriptura:
“Acredito que esta prática venha da TRADIÇÃO APOSTÓLICA, ASSIM COMO
TANTAS OUTRAS PRÁTICAS NÃO ENCONTRADAS NOS ESCRITOS DELES NEM NOS CONCÍLIOS DE
SEUS SUCESSORES,...” (Santo Agostinho, Batismo 5,23-31)
Qual parte vc não entendeu de "TANTAS OUTRAS PRÁTICAS FORA DOS
ESCRITOS DOS APÓSTOLOS?"
O próprio Agostinho como vc sabe, ensinava batismo de crianças com
base na tradição. Ensinava oração pelos mortos, como já lhe provei no outro
artigo, ensinava sobre a primazia de Pedro, entre tantas outras coisas que para
o protestantismo não está na bíblia.
Como
já dissemos, nem todas as práticas precisam estar na Escritura. Isso por si só
já refuta o católico. Como ele não estava se referindo a doutrinas, não é
incompatível com a doutrina reformada. A Confissão de Westminster se refere a práticas
dessa natureza da seguinte forma:
...que há algumas
circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações
e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela
prudência cristã, segundo as regras
gerais da palavra, que sempre devem ser observadas.
Agostinho
acreditava que se uma prática ou costume era generalizado na igreja de seu
tempo, ele provavelmente tinha origem apostólica. A prática em questão era a
prática de não rebatizar os heréticos. Ele escreveu contra os donatistas. Os donatistas
eram um grupo cismático defensor de que a validade do sacramento dependia da
dignidade do sacerdote. Um sacerdote pecaminoso não poderia ministrar um
sacramento válido. Eles estavam usando o testemunho de Cipriano (que viveu no
séc. III) em seu favor. Cipriano defendeu contra a posição do bispo de Roma
Estevão o rebatismo dos hereges. Para ele, àqueles que aderiram a grupos
heréticos precisariam ser rebatizados caso desejassem retornar à igreja. Nessa
questão, Agostinho defendia o não rebatismo dos hereges e acreditava que essa
era uma prática generalizada na igreja que deveria ter origens apostólicas.
Vejamos em contexto:
Cipriano escreve
também para Pompeu sobre esse mesmo assunto, e mostra claramente nessa carta
que Estevão, como nós aprendemos, era então bispo da Igreja Romana, não só não
concordo com ele sobre esses pontos antes de nós, mas escreveu e ensinou pontos
de vista opostos. Mas Estevão certamente não se "comunicou com os
hereges", simplesmente porque ele não se atreveu em contestar o batismo de
Cristo, que ele sabia que permaneceu perfeito no meio de sua [dos hereges]
perversidade. Pois, se ninguém tem o batismo de quem acolhe falsas sobre Deus,
tem sido provado suficientemente, em minha opinião, que isso pode acontecer
mesmo dentro da Igreja. "Os
apóstolos," de fato, "não deram instruções sobre o ponto"; mas o
costume, que se opõe a Cipriano, pode ser suposto ter tido sua origem na
tradição apostólica, assim como há muitas coisas que são observadas por toda a
Igreja e, portanto, são razoavelmente realizadas por terem sido ordenadas pelos
Apóstolos, ainda que não sejam mencionados em seus escritos.
Que
mesmo nessa questão de costumes, a Escritura ainda era a autoridade suprema
fica claro a seguir:
Com que autoridade da Sagrada Escritura é que foi
mostrado que "é contra o mandamento de Deus que as pessoas que vem da
comunidade dos hereges, se eles já receberam o batismo de Cristo, não são
batizados de novamente?" Mas é claramente demonstrado que muitos pretensos cristãos, embora
eles não estejam unidos no mesmo vínculo da caridade com os santos, sem o qual
nada santo que eles possam ter sido capazes de possuir é de algum lucro para
eles, ainda têm o batismo em comum com os santos, como já foi suficientemente
provado com a maior plenitude.
Antes
de recorrer ao consenso da igreja universal sobre o costume, Agostinho analisou
a questão à luz da Escritura. No capítulo 24, o bispo de Hipona discute
diversos argumentos bíblicos a respeito. Apesar do costume de não rebatizar não
estar explícito nas Escrituras, Agostinho cria que a prática era amparada pelos
princípios bíblicos:
E deixe qualquer um,
que é liderado pelo costume passado da Igreja, e pela autoridade subsequente de
um Conselho plenário e por tantas provas
poderosas da Sagrada Escritura, e por muita evidência do próprio Cipriano,
e pelo raciocínio claro da verdade, entender que o batismo de Cristo, consagrado nas palavras do evangelho, não pode
ser pervertido pelo erro de qualquer homem na terra. (Ibid., 5:24)
O
costume generalizado da igreja e as decisões do concílio plenário só reforçavam
sua interpretação da Escritura. Mas, a autoridade final para dirimir a questão
era a própria Escritura. Enquanto a prática em si não estava prevista na
Escritura, o princípio por traz da prática estava. Vamos nos valer um exemplo
protestante: algumas igrejas protestantes praticam o batismo infantil e muitos
teólogos pedobatistas afirmam que de fato essa prática não está declarada na
própria Escritura, mas afirmam que a prática é bíblica porque está alicerçada
sobre a doutrina do batismo contida nos livros sagrados.
Esse
era o caso de Agostinho. Ele acreditava que batismo limpava o homem do pecado
original (doutrina que Agostinho extraiu de sua interpretação bíblica). Por
esse motivo, o batismo infantil deveria ser praticado. Vejam que a prática não
está na Escritura, mas a doutrina que dá suporte a ela era crida como um ensino
bíblico. O comentarista romanista também falou da oração pelos mortos.
Lembremos que para Agostinho I e II Macabeus eram canônicos, então ele teria um
precedente bíblico para acreditar em oração pelos mortos. Quanto à primazia de
Pedro, Agostinho concedeu a ele um primado de honra e não de natureza jurídica.
Dessa forma, ele não era a favor da doutrina católica do papado.
O
apologista católico parece pressupor que se Agostinho manteve uma interpretação
diferente do protestantismo, ele não poderia defender a doutrina reformada da
Escritura. Isso é falacioso. Duas pessoas não precisam ter exatamente as mesmas
interpretações para considerarem a Escritura a autoridade suprema. Eles podem
discordar em outros pontos, mas concordar nesse em específico. Presbiterianos e
batistas podem interpretar algumas passagens da Escritura de forma divergente,
no entanto, ambos concordam com a Sola Scriptura.
Acho que para qualquer pessoa de mediana inteligência, já é o
suficiente para entender que a tradição apostólica é indispensável para o
entendimento da Palavra de Deus.
Concordamos
inteiramente que a tradição apostólica (aqui entendida como a pregação dos
apóstolos) é indispensável para entender a palavra de Deus, afinal ela é a
própria palavra de Deus. Por isso, damos a Escritura um status elevando, pois
se trata da pregação apostólica escriturada. O que nós não concordamos é que
com as inovações heréticas que se inventam sob o título de tradição apostólica.
Assim como Cipriano dizemos:
De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do
Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos?
Pois que aquelas coisas que estão escritas devem ser feitas, Deus testemunha e admoesta, dizendo a Josué o filho de
Num: “O livro desta lei não deve se afastar de tua boca; mas tu deves meditar
nele dia e noite, para que tu possas observar para fazer de acordo com tudo que
está escrito ali”.
(Epístola 74)
Assim
como Jerônimo dizemos:
Se vós quereis
clarificar as coisas em dúvida, ide à
lei e ao testemunho da Escritura; fora
dali estais na noite do erro. Nós admitimos tudo o que está escrito, e rejeitamos tudo o que não está. As
coisas que se inventam sob o nome de tradição
apostólica sem a autoridade da Escritura são feridas pela espada de Deus. (Jerónimo, In
Isaiam, VII; In Agg., I)
E
principalmente fazemos como Jesus. Quando os fariseus alegaram ter ensino oral
não escrito que teria saído da pena de Moisés (uma tradição supostamente
válida), nosso mestre usou as Escrituras (Marcos 7:13). Ele ensinou que a forma
de se distinguir a tradição válida da heresia é apelando a autoridade da
Escritura. Por isso rejeitamos as tradições de Roma que não se sustentam nem
biblicamente nem historicamente. Quando uma tradição é elevada ao status da
Escritura, passa ser a impossível distinguir uma tradição verdadeira de uma
falsa.
E que essa tradição foi preservada pela hierarquia da igreja de
maneira intacta juntamente com as escrituras.
Não
concordamos. Obviamente ele está se referindo à igreja romana aqui. Essa igreja
infelizmente não prevaleceu na genuína tradição apostólica, mas acabou aderindo
às tradições de homens.
Além
de existirem várias igrejas diferentes ensinando que preservaram tradições
diferentes, existem outros problemas com conceito romanista de tradição. Nós
tratamos desses problemas aqui. Até hoje Roma nunca definiu o conteúdo exato
das tradições orais apostólicas preservadas. Não existe um cânon da tradição. A
tradição funciona como um saco, Roma põe nele o que for conveniente colocar. E
isso se reflete na apologética católica. Os apologistas apelam seletivamente
aos pais da igreja – eles apontam um autor que supostamente (geralmente de
forma distorcida) os beneficia, e “varrem para debaixo do tapete” aqueles que
os prejudicam. Ou seja, no máximo seria o meu da igreja vs o seu pai da igreja.
Quem decide qual deles está com a verdadeira tradição? Católicos costumam
ignorar isso, mas o consenso nos pais da igreja existia apenas em questões
muito básicas. Quando um pouco detalhe é requerido, o consenso desaparece.
Uma
das razões do porque a tradição não pode ser uma regra infalível de fé é
justamente porque os pais da igreja são autores falíveis. Suponhamos que um pai
da igreja receba uma genuína tradição apostólica e vá repassá-la adiante. Você
precisa pressupor que esse homem vai interpretar essa tradição sem nenhum erro
e vai repassá-la a outro homem que também não cometerá nenhum erro. Ocorre que
esses homens são falíveis e até a tradição se tornar acessível por Escrito, ela
poderá ter sido distorcida no processo. Os próprios pais se consideravam homens
falíveis e até a igreja romana os vê assim. Um exemplo entre muitos é de
Papias. Eusébio escreve sobre ele:
O próprio Papias
acrescenta outras coisas que teriam
chegado a ele por meio da tradição oral, além de certas parábolas estranhas do Salvador, bem como o ensinamento
dele e outras coisas que parecem ainda mais fabulosas. Entre essas coisas,
diz que haverá mil anos após a ressurreição dos mortos e que então o reino de
Cristo se estabelecerá fisicamente nesta nossa terra. Suponho que tenha essa
opinião por ter interpretado mal as
explicações dos apóstolos e que ele não compreendeu as coisas que eles diziam
de maneira figurada e simbólica. O fato é que, segundo o que se pode
deduzir de seus próprios discursos, Papias parece
homem de inteligência curta. Todavia, ele
é culpado pelo fato de muitos escritores eclesiásticos que lhe sucederam
adotarem a opinião dele, pois confiavam na antiguidade desse homem. Foi o que aconteceu com Irineu e outros que
pensaram as mesmas coisas que ele. (Eusébio de Cesaréia, HE, III, 39, 11-14a)
Papias
escreveu cinco obras intituladas “Explicações das Sentenças do Senhor”. Delas,
sobreviveram apenas fragmentos. Irineu cria que Papias foi discípulo do
apóstolo João. No entanto, o próprio Papias menciona que apenas conheceu
pessoas que foram íntimas dos apóstolos. Estamos falando de um homem numa ótima
posição para receber uma genuína tradição apostólica. Ele conheceu pessoas que
andaram com os apóstolos e nos conta que era ávido em entrevista-los. Em
virtude de sua antiguidade, disseminou uma doutrina que a Igreja Romana rejeita
– o milenarismo, e fez com que outros pais seguissem o mesmo ensino. Eusébio
rejeitou essa doutrina alegando que Papias interpretou errado as explicações
dos apóstolos e passou adiante uma falsa tradição. O que aconteceu com Papias é
passível de acontecer com qualquer testemunha patrística, pois eram intérpretes
falíveis da tradição. Irineu também é responsável por passar uma falsa tradição
apostólica:
Todos estão de acordo
que trinta anos é a idade de homem ainda jovem, idade que se estende até aos
quarenta; dos quarenta aos cinquenta
declina na senilidade. Era nesta
idade que nosso Senhor ensinava, como o atesta o Evangelho e todos os
presbíteros da Ásia que se reuniram em volta de João, o discípulo do
Senhor, que ficou com eles até os tempos de Trajano, afirmam que João lhes transmitiu esta tradição. Alguns destes
presbíteros que viram não somente João, mas também outros apóstolos e os
ouviram dizer as mesmas coisas, testemunham isso tudo. Em quero mais devemos
acreditar: nestes presbíteros ou em Ptolomeu,
que nunca viu os apóstolos e sequer em sonhos seguiu algum deles? (Ireneu, Contra
Heresias, 2:22:5)
Irineu
não estava se referindo a doutrinas, mas o ponto é que ele estava errado. Jesus
não morreu já velho e essa com certeza não era uma tradição apostólica. O ponto
aqui não é rebaixar os pais da igreja, mas apenas afirmar a falibilidade deles.
Da mesma forma que eram veículos falíveis da tradição, também eram intérpretes
falíveis da Escritura. Quem afirma que a Escritura é obscura e que a tradição
(o ensino dos pais) interpreta a Escritura está propondo uma solução mais
difícil do que o problema. A Escritura possui uma unidade e coesão que atesta a
sua autoria divina, o mesmo não pode ser dito do ensino dos pais. Você pode ver aqui uma pequena amostra da diversidade de posição dos pais da igreja. O
cardeal católico romano Yves Congar escreve:
Em relação aos textos individuais das Escrituras, total
consenso patrístico é raro. Na verdade, um
consenso completo é desnecessário: muitas vezes, aquilo que é objeto de recurso
como suficiente para pontos dogmáticos não vai além do que é encontrado na
interpretação de muitos textos. Mas às vezes acontece de alguns Padres terem
entendido uma passagem de uma maneira que não vai estar de acordo com o ensinamento
da Igreja mais tarde. Um exemplo: a
interpretação da confissão de Pedro em Mateus 16: 16-18. Exceto em Roma, esta
passagem não foi aplicada pelos Padres ao primado papal (...) (Tradition and Traditions [New York: Macmillan Company, 1966], pp.
397-400)
Congar
ainda cita o texto basilar de todo o romanismo – Mateus 16:16-18. Somente em
Roma, esse texto foi aplicado ao primado papal. Além dos pais oporem-se uns aos
outros, eles também eram inconsistentes. Não é raro um pai ao longo da vida
sustentar posições opostas ou incompatíveis. Estudiosos patrísticos são
unânimes em afirmar a dificuldade de interpretar muitos pais da igreja. Isso se
dá por vários motivos. Principalmente em relação aos pais mais antigos, apenas
uma pequena porção de suas obras foi preservada, a maioria se perdeu. Somem-se
a isso as dúvidas sobre a autenticidade de muitos textos. O número de
falsificações é bastante elevado. Tomás de Aquino, por exemplo, acreditava que
as obras de pseudo-Dionísio foram escritas por Dionísio o aeropagita mencionado
no N.T. A igreja romana se beneficiou especialmente das falsificações. As
pretensões papais foram em larga medida construídas em cima de documentos
falsos como “a doação de Constantino” e os “falsos decretos de Dionísio”.
Já
a Escritura possui uma unidade divina e o seu estado de preservação é o melhor
entre os documentos do mundo antigo. Sem contar que a Escritura, sendo o
registro da pregação apostólica em primeira mão, é mais confiável do que uma
tradição de séculos ou milênios depois dos apóstolos. Se você quer sabe o que
alguém de fato escreveu, aquilo que o próprio indivíduo escreveu tem mais valor
do que o que alguém diz que ele escreveu. A precedência da Escritura sobre a
tradição é uma simples questão lógica. O autor católico comenta:
A própria escritura nos fala que nela há coisas difíceis de
entender, que podem levar o homem a ruína se forem interpretadas de maneira
errada (2PD 3,16). Este versículo já é o suficiente para colocar abaixo o livre
exame, e a necessidade de uma autoridade extra bíblica infalível, pois todos
nós sabemos que a bíblia é realmente um conjunto de livros complexos, escrito
por autores diferentes, em épocas e culturas diferentes e em 3 idiomas
diferentes, e que não pode ser entendida apenas lendo.
É
a velha tática gnóstica de obscurecer a Escritura para afirmar sua própria
autoridade. Vejamos o que diz 2 Pedro 3:16:
Tenham em mente que a
paciência de nosso Senhor significa salvação, como também o nosso amado irmão
Paulo lhes escreveu, com a sabedoria que Deus lhe deu. Ele escreve da mesma
forma em todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas
contêm algumas coisas difíceis de
entender, as quais os ignorantes e
instáveis torcem, como também o fazem com as demais Escrituras, para a própria
destruição deles.
(2 Pedro 3:15-16)
Pedro
diz que algumas coisas das epístolas de Paulo são difíceis de entender. Isso em
nada contraria a posição protestante da Suficiência Formal. Nem tudo nas
Escrituras é fácil de entender, mas todas as verdades necessárias para a
salvação estão dispostas de forma compreensível na Escritura. Partes difíceis
podem ser clarificadas por outras mais fáceis que tratam do mesmo assunto. Ele
não diz que alguma verdade fundamental do evangelho é de difícil compreensão
nas cartas de Paulo, nem diz que todo o conteúdo de suas cartas é difícil,
portanto. E por necessidade lógica, se algumas partes eram difíceis, as outras
seriam fáceis. Agostinho escreveu:
O Espírito Santo
dispôs a Escritura Sagrada de uma forma tão magnificente e proveitosa que, por meio das claras passagens, ele sacia a
fome, e por meio das passagens obscuras ele evita a aversão. Porque dificilmente alguma coisa provém das
passagens obscuras, mas o que é afirmado em outra parte é mais claro. (Agostinho, citado
em Pieper, Christian Dogmatics, p. 324)
Destaca-se
que as pessoas que distorciam as epístolas paulinas foram qualificadas como:
ignorantes e instáveis. Elas não distorciam apenas as partes difíceis das
cartas, mas também as demais Escrituras. Isso mostra que a incapacidade de
entender corretamente dá-se pelos pecados dos próprios leitores, e não por uma
característica intrínseca das cartas de Paulo. Católicos costumam argumentar
que pessoas interpretam a Escritura errado, logo ela não pode ser suficiente.
Trata-se de mais um argumento autodestrutivo. Qualquer texto (incluído os do
magistério e da tradição) pode ser mal interpretado. Se um texto não é
suficiente, porque as pessoas podem interpretá-lo errado, nenhum texto no mundo
poderia ser suficiente. A qualidade de uma interpretação não depende apenas das
características da própria Escritura, mas também do próprio intérprete. Os
católicos são um bom exemplo. A Bíblia poderia ser tão simples quanto um gibi,
ainda assim eles interpretariam errado. Os católicos estão comprometidos com a
interpretação distorcida do magistério de sua igreja, e por mais claro que uma
passagem seja, eles precisam abrir mão do significado claro em prol da interpretação da sua própria igreja.
É
muito comum que os homens assumam suas próprias tradições ao invés de tentar
apreender o claro significado das Escrituras. Eles simplesmente empurram sua
tradição para dentro da Escritura. Essa é uma prática constante e comum na
apologética católica.
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