Neste artigo, faremos uma
análise bíblica e histórica da doutrina católica romana do purgatório, com base
predominante em duas fontes: a obra de
Jacques Le Goff (O nascimento do purgatório, Ed. Vozes) e o artigo da Enciclopédia de
Teologia da Universidade Católica St. Andrew (aqui).
Sempre que nos referimos a este artigo, vamos dizer “o artigo da enciclopédia
teológica”. Já temos uma série de artigos sobre o purgatório e os Pais da
Igreja, que pode ser visto aqui, aqui e aqui.
O purgatório foi
tradicionalmente entendido na teológica católica como um lugar ou processo que
ocorre entre a morte e o juízo final. Ele seria acessível aos que morreram em estado
de graça, o que significa basicamente não morrer em estado de pecado mortal. Os
que morrem tendo cometido este tipo de pecado grave vão para o inferno, sem
qualquer chance de redenção. Somente os que morreram com pecados veniais
(leves) ou que não satisfizeram a penitência devida pelos pecados cometidos em
vida irão para o purgatório. Desta forma, o purgatório tem o aspecto
santificatório, no qual as almas terão que completar o processo de santificação
para irem ao céu e também o aspecto penal, na qual as penas temporais não pagas
em vida deverão ser após a morte. De fato, no imaginário medieval, havia pouca
diferença entre o purgatório e o inferno. O fogo era por muitos visto como
real, o sofrimento também. A duração desse processo poderia levar até milhares
de anos. Definido o objeto do nosso estudo, vamos falar de um elemento
associado ao purgatório: a oração pelos mortos.
Oração
pelos mortos não implica em Purgatório
Uma questão preliminar é
reconhecer que a crença na oração pelos mortos não implica necessariamente na
doutrina do purgatório. Apologistas católicos tentam provar o purgatório de
forma indireta trazendo evidências favoráveis a oração pelos mortos, mas,
veremos que diversos pais da Igreja que defendiam esta prática tinham uma visão
sobre o além que não comportava nada parecido com o purgatório (ex. Tertuliano).
Além disso, há diversas Igrejas Orientais que possuem a prática de orar pelos
mortos, sem defender a doutrina romana. Le Goff comenta:
“O vasto dossiê epigráfico e
litúrgico sobre as preces pelos mortos de que dispomos para os primeiros
séculos do cristianismo foi muitas vezes explorado para provar a antiguidade da
crença cristã no purgatório. Estas interpretações me parecem abusivas. As graças que a
Deus se suplica conceder aos mortos evocam essencialmente a felicidade paradisíaca,
em todo caso um estado definido pela paz (pax) e pela luz (lux). Será preciso
esperar pelo fim do século V (ou o começo do VI) para encontrar uma inscrição
que fala da redenção da alma de um defunto. Trata-se de uma
inscrição galo-romana de Briord cujo epitáfio traz a fórmula pro redemptionem animae suae. Por outro
lado, estas
inscrições e estas preces não se referem a um lugar de redenção ou de espera —
outro que o tradicional — a partir do Evangelho “seio de Abraão”.
(Le Goff, p. 64-65)
Le Goff desfaz o vínculo entre
a oração e o purgatório, inclusive, trazendo a importante documentação de que a
primeira inscrição funerária que traz a ideia de redenção de um defunto só
ocorre no fim do século V ou começo do século VI. Observem também como a
parábola do homem rico e Lázaro (Lucas 16?19-31) exerceu profunda influência
sobre os cristãos mais antigos no que concerne ao pós-morte. Eles acreditavam
que os mortos em Cristo estavam neste lugar de paz e refrigério identificado
como o seio de Abraão mencionado na passagem de Lucas. Não há espaço algum para
o purgatório aqui. Le Goff também afirma o mesmo em outra página:
“Esta confiança dos cristãos
na eficácia dos sufrágios só
tardiamente se uniu à crença na existência de uma purificação depois da morte”. (Le
Goff, p. 22)
Oração
pelos mortos: uma prática estranha ao judaísmo e ao cristianismo primitivos
Os estudiosos do judaísmo
antigo e do cristianismo primitivo concordam que não há evidências favoráveis a
oração pelos mortos até o primeiro século. A notável exceção é o texto de 2
Macabeus 12:42-45, mas a maioria dos especialistas concorda que este livro não
expressa o que seria uma prática do judaísmo do período, sendo provavelmente
resultante de influência helenista pagã. Le Goff afirma:
“O mais importante é que os
cristãos adquiriram, e parece que bem cedo, o hábito de rezar pelos seus mortos
(...) a
intervenção dos vivos em favor de seus mortos que sofrem no além se encontra em
certos meios pagãos, sobretudo no nível popular (...) Estas práticas
se desenvolveram por volta da era cristã e ainda se trata de um fenômeno de
época particularmente sensível no Egito, lugar de encontro por excelência das
nações e das religiões. Diodoro da Sicília, que para ali viajou por volta do ano 50
a.C., surpreende-se com os costumes funerários dos egípcios (...) Deve-se sem dúvida
recolocar nesse contexto a passagem do Segundo Livro dos Macabeus composto por
um judeu de Alexandria durante o meio século que precedeu a viagem de Diodoro.
Ela testemunha a
ausência de um costume de rezar pelos mortos na época de Judas Macabeus (por volta
de 170 a.C.)”. (Le Goff, p. 64)
Allen & Jordaan (2018),
num artigo sobre o livro de Macabeus (AQUI chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.scielo.org.za/pdf/hts/v74n3/34.pdf)
afirmam que a teologia exposta é estranha ao judaísmo daquele período:
“2 Macabeus emprega, de modo
evidente, uma
retórica e uma teologia de base helenística, que são nitidamente não-judaicas,
embora tomando emprestado de maneira mais liberal da tradição judaica, porque a
transgressão da idolatria é facilmente superada por meros meios monetários
e não por um processo de teshuvá”.
“(...) o sentido do texto não parece estar de
acordo com o judaísmo dominante nem com a prática judaica normal…”
“(...) contêm uma teologia
cujo teor é nitidamente
não judaico”.
“Embora a expiação continue
sendo o motivo principal de ambos os textos, em contraste marcante, entre
outros, com Êxodo 30,11–16, 2 Macabeus 12,43–46 já não requer remorso individual
e sincera teshuvá, mas aparentemente um acerto financeiro pelas iniquidades
cometidas”.
Ou seja, sabendo-se que a
origem de 2 Macabeus é helenista, o que temos aqui é provavelmente a
assimilação de uma prática do helenismo pagão e não do judaísmo considerado
ortodoxo. Não há evidência epigráfica ou entre autores judeus (Josefo, Filon,
literatura rabínica, inscrições funerárias) qualquer apoio a oração pelos
mortos. A primeira prática judaica de oferecer oração pelos mortos remonta ao
segundo milênio (Kadish dos enlutados). Mesmo nos manuscritos de Qumran, onde
há descrição detalhada das práticas litúrgicas e de oração daquela comunidade,
não encontramos nenhuma evidência do tipo.
Já no cristianismo, o primeiro
registro de um teólogo defendendo a prática ocorre em Tertuliano (início do
século III). No fim do século II (data provável de 180-192), temos no epitáfio de Abércio a evidência
epigráfica mais antiga. Contudo, ainda se trata de um período distante dos
apóstolos, o que enfraquece o argumento usado por Tertuliano de que se tratava
de uma prática apostólica. Alguns
apontam 2 Timóteo 1:16-18 (“Conceda o Senhor misericórdia à casa de Onesíforo…
Conceda o Senhor a ele que encontre misericórdia diante do Senhor naquele Dia”)
como evidência de oração por um falecido, mas a exegese contemporânea tende a
afirmar que o texto é ambíguo, não se podendo afirmar que com alguma segurança
que Onesíforo havia de fato falecido. Além disso, há quem questione se Paulo
estava de fato fazendo uma oração.
A
evidência bíblica
O já mencionado artigo da enciclopédia teológica traz:
“Embora o purgatório não fosse mencionado
diretamente nas Escrituras cristãs, aqueles que buscavam traços
escriturísticos da doutrina acreditavam que a existência do purgatório poderia
ser inferida por meio de uma interpretação proposital de certos textos
cristãos. Três principais passagens escriturísticas orientaram a discussão em
fontes patrísticas e além: 2 Mac 12:41–46; Mt 12:31–32; e 1 Cor 3:11–15. Estas duas últimas
foram centrais para a declaração papal oficial sobre o Purgatório no Primeiro
Concílio de Lyon (1245)”.
Segue análise de cada um dos textos.
A
passagem de 2 Macabeus 12:42-45 não é sobre o purgatório
Embora a passagem apoie a
oração e o sacrifício pelos mortos, não há em vista um lugar intermediário
(purgatório). A esperança de Macabeus é a ressurreição daqueles homens que
morreram com amuletos pagãos (pecado de idolatria). Judas Macabeus entendeu que
os soldados haviam sido mortos por castigo divino em virtude do pecado de
idolatria (guardaram amuletos pagãos). Exegetas como Goldstein, Doran, Schwartz
entendem que o autor vê aqui idolatria/sincretismo praticado por alguns
combatentes. Ou seja, trata-se de um pecado grave (mortal) que na teologia
católica eliminaria a possibilidade do purgatório, pois os que morrem em pecado
mortal iriam para o castigo eterno. A conferência dos bispos católicos dos EUA
interpreta da seguinte forma:
“[12:42–45] Esta é a
declaração mais antiga da doutrina de que as orações (v. 42) e os sacrifícios
(v. 43) pelos mortos são eficazes. Judas provavelmente tinha a intenção de que
sua oferta de purificação afastasse o castigo dos vivos. O autor, porém, usa a história
para demonstrar a crença na ressurreição dos justos (7:9, 14, 23,
36) e na possibilidade de expiação pelos pecados de pessoas, de outra forma
boas, que morreram. Essa crença é semelhante, mas não exatamente idêntica, à
doutrina católica do purgatório”.
O artigo da enciclopédia teológica
também admite que não há como afirmar que os soldados idólatras estavam num
purgatório:
“Mas se isso era um resgate do
Purgatório ou do
inferno não está claro”.
De fato, a exegese dominante é
de que na perspectiva do autor de Macabeus, os soldados estavam no inferno.
1
Coríntios 3:15 e o purgatório
O novo comentário bíblico São Jerônimo (um comentário
católico) afirma sobre o principal texto utilizado pelos defensores do
purgatório:
“10. A imagem do edifício leva Paulo a uma digressão
sobre a qualidade das contribuições ministeriais, que ele espera que
os outros façam. 11. Uma alusão parentética a uma reivindicação do partido de
Cefas de que a igreja deveria ser fundada sobre Pedro (Mt 16:18);
veja comentário em 1:12. 13. o Dia: O fogo é um elemento constante (Is 26:11;
Dn 7:9–11; Ml 4:1) no cenário do Dia escatológico de Javé (Is 2:12;
Jr 46:10; Am 5:18), que Paulo aqui usa para designar a segunda vinda de Cristo
(4:5; 5:5). 14. uma recompensa: A aprovação de Deus pelo uso pleno dos talentos
de alguém em contribuições apropriadas à natureza da igreja. 15. Errar (por
exemplo, a tentativa do partido de Cefas de impor costumes judaicos à igreja)
ou usar inadequadamente os talentos de alguém acarretará salvação — mas apenas
como alguém que escapa de uma casa em chamas. Não há referência ao purgatório
(veja S. Cipriani, RivB 1 [1959] 25–43; J. Gnilka, 1 Kor 3:10–15 ein
Schriftzeugnis für das Fegefeuer? Düsseldorf, 1955; J. Michl, SPC 1 395–401)”.
O consenso é que a passagem
tem em vista os ministros da Igreja (os construtores), não todos os crentes.
Além disso, esse julgamento é escatológico (ocorre no juízo final e não entre
entre a morte e o juízo final). Além disso, o que vai ser julgado é obra de
cada ministro e não a própria pessoa. Não há processo de purificação em vista.
O "sofrer perda" se refere ao galardão/recompensa. Le Goff também
afirma que a provação mencionada no texto parece se situar no juízo final, o
que eliminaria o purgatório, que se situaria entre a morte e o juízo final:
“(...) o momento dessa provação parece situado durante
o juízo final. O pensamento de Paulo permanece aqui muito próximo do
judaísmo”. (Le Goff, p. 62)
Mateus
12:31-32 (nem neste século, nem no futuro)
O argumento apologético
católico é que a passagem afirma que a blasfêmia contra o Espírito Santo não
seria perdoada nem nesta vida nem na próxima, o que implicaria que há pecados
que são perdoados após a morte. O artigo da enciclopédia teológica traz o
consenso exegético atual:
“Entre os exegetas modernos de
referência, a leitura de Mt 12,31–32 como indício de perdão pós-morte não é a
dominante. O
consenso atual é que a frase “nem neste século nem no que há de vir” é um
hebraísmo de negação enfática, isto é, um modo de dizer “nunca”, dentro do
esquema judaico dos “dois séculos” (o presente e o vindouro)”.
Sem
base bíblica para o purgatório
O artigo da enciclopédia
teológica também diz:
“O purgatório não é diretamente
mencionado na Escritura cristã. Se ele é referido indiretamente é
uma questão de julgamento pessoal e, portanto, existe uma grande variedade de
interpretações a respeito. A teologia católica vê o Purgatório como um elemento
essencial da jornada da alma para Deus e destinado à purificação cristã, mesmo que não seja
devidamente assinalado nas fontes antigas”.
O mesmo artigo menciona como a
fragilidade da evidência da Escritura levou os reformadores a negarem o
purgatório:
“A fragilidade das evidências escriturísticas em
favor do Purgatório tornou-se evidente,
e esse processo
de reavaliação foi facilitado pelas traduções das Escrituras para as línguas
vernáculas (...) Um novo e intenso foco na primazia das Escrituras, aliado à ausência
do Purgatório em qualquer forma explícita nelas, levou muitos a concluir que o
Purgatório havia sido uma invenção de clérigos e do papado (...) Os
protestantes não foram os primeiros a questionar ou rejeitar os ensinamentos
sobre o Purgatório, mas grupos anteriores, como os albigenses, valdenses e
hussitas, não haviam conseguido promover uma revolução duradoura a partir de
dentro”.
Textos
paulinos (partir e estar com Cristo)
É necessário explorar também
os textos em que Paulo expressa a esperança de estar com Cristo logo após a
morte. Estas passagens são relevantes pois oferecem um contexto em que a menção
ao purgatório seria esperada, caso fosse crida pelo Apóstolo. Lembremos que
Paulo se via como um homem falho, logo, se ele acreditasse em tal doutrina, sua
ausência de menção é relevante, principalmente nas passagens em que ele disserta
sobre o pós morte.
“Tenho o desejo de partir e estar com Cristo,
o que é incomparavelmente melhor; mas por causa de vós é mais necessário
permanecer na carne”. (Filipenses 1:21-24)
A coordenação “partir e estar
com Cristo” sugere passagem imediata do morrer para a comunhão consciente com
Cristo, sem menção a intervalo purgativo. Ideia semelhante é expressa 2
Coríntios 5:8:
“Temos confiança e preferimos deixar o corpo e
habitar com o Senhor”.
Outra passagem importante é 1
Tessalonicenses 4:14:
“Se cremos que Jesus morreu e
ressuscitou, assim também Deus trará, mediante Jesus, juntamente com ele, os que
dormiram”.
O texto pressupõe comunhão
atual dos falecidos “em Cristo” com o próprio Cristo, antecipando a reunião
corporal na vinda. De novo, não há uma etapa penal intermediária explicitada.
No contexto da teologia católica, a maior parte destes que “dormiram” estaria
num estado purgatorial.
A
necessidade de santificação não implica no purgatório (teoria do estalo)
Um dos argumentos mais
populares em prol de uma versão minimalista do purgatório, que mantivesse ao
menos uma santificação pós-morte, é a necessidade da santidade para estar com
Cristo. A resposta protestante tradicional tem sido a chamada teoria do estalo
que afirma que a completude da santificação do salvo é operada por um ato
soberano de Deus no momento da morte. Há, de fato, diversos textos que apoiam
esta teoria. O mais importante seria 1 Coríntios 15:52:
“Num momento, num abrir e fechar de olhos,
ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão
incorruptíveis, e
nós seremos transformados”.
A passagem está se referindo
aos vivos, no momento da ressureição geral dos mortos. Não haveria mais tempo
para qualquer processo purgatorial, e num “abrir e fechar de olhos”, todos
seremos transformados. Embora não se aplique diretamente àqueles que morrem
antes da parousia, é possível entender por analogia que o mesmo processo
poderia ser aplicado aos que falecem na graça de Deus. 1 João 3:2 também
afirma:
“Quando ele se manifestar, seremos semelhantes
a ele, porque o veremos como ele é.”
A visão (beatífica) é o meio
pelo qual nos tornamos como Ele. Este é um ato instantâneo de Deus. Judas 24
também diz:
“Ora, àquele que é poderoso
para vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos irrepreensíveis, com alegria,
perante a sua glória”.
É Cristo que nos apresenta de
forma irrepreensível. Quando se atribui esse aperfeiçoamento ao purgatório, há
uma diminuição do papel ativo de Cristo em nossa santificação. Por último, Romanos
8:30 é outro texto relevante que resume todo o processo de aperfeiçoamento do
cristão, em que Deus exerce um papel ativo, sem qualquer menção a uma etapa
purgativa:
“E aos que predestinou a estes
também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou”.
Outros textos bíblicos trazem
a mesma ideia de um ato divino que apresenta os salvos como irrepreensíveis e
imaculados, sem qualquer menção a qualquer lugar/processo purgatorial (1Ts
5:23–24; 1Co 1:8; Cl 1:12–14; Ap 14:13).
A
análise histórica
Na parte histórica, faremos um
resumo do estado da evidência, uma vez que já tratamos da evidência patrística em outros artigos do blog . Assim como
nas seções anteriores, continuaremos a fazer uso da obra “O Nascimento do
Purgatório (Editora vozes)” e do artigo da Enciclopédia teológica da Universidade
Católica St. Andrew. Sempre que nos referimos a este artigo, vamos dizer “o
artigo da enciclopédia teológica”. Contudo, o artigo de outra enciclopédia
católica afirma:
"Na análise final, a
doutrina católica do purgatório é baseada na tradição e não na sagrada
escritura". (Fonte)
Desta forma, vamos analisar se
a tradição de fato oferece apoio a esta doutrina. Já tendo determinado a
ausência do purgatório em fontes apostólicas, é conveniente trazermos o estado
da evidência entre autores cristãos do século II: os chamados pais apostólicos
e apologistas.
Pais
apostólicos e apologistas (séc. II)
Eles falam de forma detalhada
sobre a esperança cristã no pós-morte, mas nunca mencionam qualquer lugar
intermediário de purificação ou pagamento de penas no pós-morte. Quando
mencionam o pós morte, sempre mantém uma estrutura binária (condenados e
salvos) sem qualquer terceira via em vista. Os casos de Inácio de Antioquia e
Policarpo de Esmirna são especialmente importantes, pois eles estavam prestes a enfrentar o martírio e deixam claro que acreditavam que, logo após o martírio, já
estariam com Cristo e não num purgatório. Eles também mencionavam outros
cristãos já desfrutando do paraíso. É importante destacar que estes homens não
se viam como perfeitos, mas, como falhos. O
apologista Justino Mártir deixa claro essa divisão binária do além:
“Digo, então, que as almas dos
justos permanecem num lugar melhor e as injustas e más ficam em outro lugar,
esperando o tempo do julgamento”. (Diálogo com Trifão, cap. 5)
Atenágoras de Atenas também
expressa essa divisão binária:
“(...) estamos convencidos de
que quando formos retirados da vida presente vamos viver outra vida, melhor do que a
presente, e celestial, não terrena (já que habitaremos junto de
Deus, e com Deus, livres de todas as alterações ou sofrimento na alma, não como
carne, apesar de termos carne, mas como espírito celestial), ou, caindo com o
resto, uma pior e no fogo”. (Apelo em favor dos Cristãos 31)
Irineu
de Lyon (século II)
Ainda no século II, Irineu de
Lyon diz que as almas dos justos irão para o paraíso, onde aguardarão a
ressurreição do corpo, só após isso entrarão na presença de Deus. Esse paraíso
é, segundo Irineu, o lugar onde Paulo foi (2 Coríntios 12:2-4). Trata-se de um
lugar substancialmente diferente do purgatório. Cabe mencionar também que
enquanto alguns católicos citam Lucas 16:19-31 como prova do purgatório, ele
pensava que o homem rico estava no Inferno (Contra as Heresias, 2:24:4,
4:2:4-5). O texto mais importante de Irineu diz:
“Por isso também os
presbíteros, discípulos dos apóstolos, nos dizem que aqueles que foram trasladados foram
transferidos para esse lugar [o Paraíso]. Pois o Paraíso foi preparado para os justos,
aqueles que possuem o Espírito. Nesse mesmo lugar também o apóstolo Paulo,
quando foi arrebatado, ouviu palavras que não é lícito ao homem repetir em
nossa condição atual. E ali devem permanecer os que foram trasladados até a
consumação de todas as coisas, como um prelúdio da imortalidade. (…)
Pois assim como o Senhor foi ao meio da sombra da morte, onde as almas dos
mortos estavam, mas depois ressuscitou em seu corpo, e após a ressurreição, foi
elevado ao céu,
é manifesto que também as almas de seus discípulos, por causa dos quais o
Senhor suportou essas coisas, irão para o lugar invisível que lhes foi designado
por Deus e ali permanecerão até a ressurreição, aguardando-a. Então,
recebendo novamente os seus corpos, e ressurgindo na sua totalidade, isto é,
corporalmente, assim como o Senhor ressuscitou, assim também terão a visão de
Deus”. (Contra as Heresias 5:5:1)
Tertuliano
(século III) – um lugar de paz e refrigério
Embora muitos apologistas
católicos apontem Tertuliano como testemunha do purgatório, uma vez que ele é o
primeiro Pai da Igreja a defender a oração pelos mortos, nada poderia estar
mais longe da verdade. Le Goff dedica toda uma seção a este autor demonstrando
tal equívoco:
“Este refrigerium já se encontra em Tertuliano, onde designa tanto a
felicidade provisória das almas que esperam, segundo uma concepção
pessoal de Tertuliano, o retorno de Cristo ao seio de Abraão, quanto a
felicidade definitiva no paraíso, de que desfrutam depois da morte os mártires
e que é prometida aos eleitos após o último veredito divino (...) O refrigerium
só ocupa na pré-história do purgatório um lugar particular por causa da
concepção pessoal de Tertuliano à qual Christine Mohrmann faz alusão. Com
efeito, o
refrigerium designa, como vimos, um estado de felicidade quase paradisíaco e
não representa um lugar. Mas Tertuliano imaginou uma variedade particular de
refrigerium, o refrigerium interim, descanso intermediário destinado aos mortos
que, entre a morte individual e o julgamento definitivo, são julgados por Deus
dignos de espera privilegiada. O africano Tertuliano (morte em 220)
escrevera um pequeno tratado, que se perdeu, onde sustentava “que toda alma
estava enclausurada nos infernos até o dia [do julgamento] do Senhor” (De
anima, LV, 5). Era
a retomada da concepção veterotestamentária do sheol. Esses infernos
são subterrâneos e foi lá que Cristo desceu durante três dias (De anima, LIV,
4). Em sua obra
Contra Marcião e em seu tratado Sobre a monogamia, Tertuliano deixou claro seu
pensamento sobre o além e expressou sua concepção do refrigerium.
Marcião pretendia que não apenas os mártires, mas também os simples justos eram
admitidos no céu, no paraíso, logo após a morte. Tertuliano, apoiando-se na história do pobre
Lázaro e do rico mau, estima que a residência dos justos que esperam a
ressurreição não é o céu, mas um refrigerium interim, um descanso
intermediário, o seio de Abraão: “Esse lugar, quero dizer, o seio de
Abraão, ainda que não seja celeste, mas superior aos infernos, oferece às almas
dos justos um descanso intermediário, até que a consumação das coisas determine
a ressurreição geral e a realização da recompensa...” (Contra
Marcião, IV, 34). Até lá, o seio de Abraão será “o receptáculo temporário das almas
fiéis”. (Le Goff, p. 65-66)
Ou seja, o refrigério interim
de Tertuliano é o seio de Abraão, um lugar de descanso e paz. Le Goff
prossegue:
“Na verdade, o pensamento de
Tertuliano permanece muito dualista. Para ele há dois destinos opostos, um de
castigo expresso pelos termos de tormento (tormentum), suplício (supplicium),
tortura (cruciatus), o outro de recompensa, designada pela palavra descanso
(refrigerium). Dois textos até mesmo esclarecem que cada um destes
destinos é eterno (Contra Marcião 4:34, Sobre a alma 33:11 e Sobre a alma
48:1). Em contrapartida, Tertuliano insiste vigorosamente sobre as oferendas para os
defuntos, feitas no aniversário da morte deles (...) A inovação,
caso exista uma, de Tertuliano, em relação à pré-história do purgatório, é que
os justos, antes de conhecerem o refrigerium eterno, passam por um descanso
intermediário. Mas
esse lugar de descanso não é verdadeiramente novo, é o seio de Abraão. Entre o
refrigerium interim de Tertuliano e o purgatório há uma diferença não apenas de
natureza — aqui uma espera repousante, ali uma provação purificante porque
punitiva e expiatória -—, mas de duração: o refrigerium acolhe até a
ressurreição, o purgatório apenas até o fim da expiação”. (Le Goff,
p. 66)
O artigo da enciclopédia
teológica traz sobre Tertuliano:
“Descrições cristãs antigas do
destino dos mortos supunham que as almas dos salvos estavam em estado de estase ou sono,
no túmulo, até a ressurreição no último dia. Tertuliano descreveu as almas dos mortos
habitando um cubicum, um lugar de refrigério, até o último dia”.
A
visão da mártir Perpétua (século III) – salvação mesmo para os que morreram
condenados
Perpétua foi uma mártir cristã
juntamente com sua serva Felicidade. Seu martírio é narrado na obra Paixão de
Perpétua e Felicidade. Apologistas citam esta obra pois ela narra um episódio
em que Perpétua tem uma visão do seu irmão Dinócrates que já havia falecido aos
sete anos idade em virtude de uma doença. Ela o vê numa condição de sofrimento
e então passar a orar por ele. Tempos depois, ela tem uma nova visão, em que
Dinócrates está num lugar de paz e felicidade. O problema para a leitura
purgatorial é que todas as evidências sugerem que Dinócrates estava no inferno
e não no purgatório. De fato, não há evidência alguma de que ele era cristão.
O mais provável é que Perpetua
tenha orado pela salvação do seu irmão. No cristianismo primitivo, havia uma
corrente razoavelmente popular que cria na salvação após a morte, assim, muitos
oravam pelos parentes falecidos (mesmo os considerados “perdidos”).
Provavelmente, há também influência da obra “Atos de Paulo e Tecla” que narra
um fato semelhante. Essa obra apócrifa era popular em Cartago, onde se passou o
martírio, sendo inclusive citada por Tertuliano em sua obra “Do Batismo (XVIII,
5)”. O artigo da enciclopédia teológica comenta:
“Os primeiros cristãos concebiam os corpos e as
almas dos mortos em um estado semelhante ao sono, aguardando um iminente Dia do
Juízo, enquanto os mártires eram admitidos direta e indoloramente no céu.
A oração pelos mortos, uma prática que transcendeu todos os grupos religiosos,
era considerada um ato de piedade benéfico para a paz dos falecidos. A crença da mártir
Perpétua de que ela poderia melhorar a condição de seu irmão pagão falecido,
Dinócrates, tocava em antigas concepções sobre o resgate de entes queridos dos
tormentos da morte e do inferno (Bernstein 1993; Trumbower 2001;
Merkt 2005).
Le Goff também comenta:
“Não se deve nem exagerar nem
minimizar a importância da Paixão de Perpétua e Felicidade na pré-história do
purgatório. Não
se trata aqui, propriamente falando, de purgatório e nenhuma das imagens dos
mortos destas duas visões serão encontradas no purgatório medieval. O jardim onde se
encontra Dinócrates é quase paradisíaco, não é nem um vale, nem uma
planície, nem uma montanha. A sede e a impotência de que sofre são designadas
como um mal mais psicológico do que moral. Trata-se de tormento
psicofisiológico, labor e não de pena/punição, poena, como em todos os textos
relativos às prefigurações do purgatório e do próprio purgatório. Não há aqui nem
julgamento nem castigo”. (Le Goff, p. 68-69)
Hipólito
de Roma (séc. III) – uma descrição detalhada do além
O seguinte testemunho
atribuído a Hipólito (há controvérsia quanto à autoria) é importante pois se
trata de um autor latino que fez uma descrição detalhada do além sem deixar espaço
para o purgatório:
“Mas agora devemos falar do
Hades, onde as
almas tanto dos justos quanto dos injustos estão detidas (...) Os
justos, porém, hão de obter o reino incorruptível e imutável. Eles, de fato,
estão atualmente detidos no Hades, mas não no mesmo lugar que os injustos (...)
pois os justos,
sendo guiados para a direita e recebidos com hinos pelos anjos designados para
aquele lugar, são levados a uma região cheia de luz. Ali habitam os
justos desde o princípio, não governados por qualquer necessidade, mas sempre
fruindo a contemplação das bênçãos que têm diante dos olhos, e deliciando-se na
expectativa de outros bens ainda novos, sem se julgarem superiores
aos demais. Aquele
lugar não lhes traz fadigas: ali não há calor abrasador, nem frio cortante, nem
agitação; mas o semblante dos patriarcas e dos justos é visto sempre
sorridente, enquanto aguardam o descanso e o renascimento eterno nos céus que
sucede a esse lugar. E a esse lugar damos o nome de “seio de Abraão”.
Os injustos, por sua vez, são arrastados para a esquerda pelos anjos ministros
do castigo; não vão por iniciativa própria, mas são levados à força como
prisioneiros”. (Contra Platão — Sobre a Causa do Universo, §§1–2)
Ou seja, os justos estarão no
seio de Abraão: um lugar de gozo e felicidade, uma espécie de antessala do céu.
Não há aqui as imagens típicas do purgatório medieval e nenhum processo de
purificação ou pagamento de penas em vista.
Cipriano
de Cartago – uma testemunha do purgatório?
A seguinte citação de Cipriano
é apresentada de forma descontextualizada em sites católicos:
“Uma coisa é apresentar-se
para obter perdão; outra, alcançar a glória. Uma coisa é ficar detido, sem
poder sair, até pagar o último centavo; outra, receber de pronto o prêmio e o
salário da fé. Uma coisa é ser atormentado com longo sofrimento por causa dos
pecados, para ser limpo e totalmente purificado pelo fogo; outra, ter purgado
todos os pecados pelo sofrimento [do martírio]. Uma coisa é permanecer em
suspenso até que sobrevenha a sentença de Deus no Dia do Juízo; outra, ser
coroado imediatamente pelo Senhor”. (Epístola 51:20)
A carta (251–253 d.C., durante
a controvérsia com os novacianistas) contrasta o perdão aos lapsi com a glória
do martírio. Cipriano usa imagens bíblicas como “prisão… até pagar o último
centavo” (Mt 5:26) e “purificado pelo fogo” (eco de 1Co 3:13–15). O trecho é
frequentemente citado em debates sobre purgatório, mas no contexto imediato é
uma exortação pastoral sobre penitência e recompensa, não um tratado
sistemático sobre o além. Ou seja, Cipriano não se refere ao além, mas sim
àqueles que renunciaram a fé em períodos de perseguição e desejavam ser
readmitidos à Igreja, em contraste aos mártires. Le Goff comenta:
“Aprecio a pertinente opinião
de P. Jay, que
refutou a pseudodoutrina do purgatório em São Cipriano. O que está
em questão na carta a Antoniano é uma comparação entre os cristãos que cederam nas perseguições
(os lapsi e os apóstatas) e os mártires. Não se trata de
“purgatório” no além, mas de penitência neste mundo. A prisão evocada não é aquela de um
purgatório, que ainda nem existe, mas a disciplina penitencial eclesiástica”.
(Le Goff, p. 75)
Cipriano também menciona, em
termos bem paulinos, a esperança cristã de partir e já estar com Cristo, sem
menção ao purgatório (Tratado sobre a Mortalidade 7:6-7).
O
fim do mundo iminente e o milenarismo como antídoto ao purgatório
É
importante notar este aspecto: a ideia de um fim do mundo iminente. O
purgatório só iria surgir entre os latinos quando se passou a crer que o fim do
mundo não era iminente. Ocorre que tanto os Apóstolos como os Pais da Igreja
dos primeiros séculos detinham a crença de que a volta de Cristo estava
próxima, era algo a acontecer em seu tempo ainda. Isto tornava muito improvável
que eles tivessem qualquer consciência de um estágio purgatorial, uma vez que o
juízo escatológico batia à porta. Além disso, temos o milenarismo, que foi
especialmente forte entre os Pais da Igreja do século II e III (Papias, Irineu
e Tertuliano) que também funcionou como um antídoto ao purgatório. Le Goff atesta que o milenarismo foi a crença
dominante no século II:
“A onda do milenarismo entre os cristãos parece ter
conhecido seu apogeu no século II e ter recuado depois”. (Le Goff, p.
88)
O artigo da enciclopédia teológica documenta
que a reação ao milenarismo cristão toma força no século IV e V.
Coincidentemente, é no século V que surge o primeiro teólogo especulando sobre
o purgatório (Agostinho):
“À medida que se tornou claro que o fim dos tempos não era
necessariamente iminente, teólogos proeminentes como Ambrósio de
Milão (†397), Jerônimo de Estridão (c.342/347–420) e Agostinho de Hipona
(354–430) reagiram contra os elementos mais grosseiros do milenarismo cristão; agora, o tempo
entre a morte mortal e o juízo final se tornava mais longo no imaginário
religioso”.
Clemente
e Orígenes de Alexandria (séc. III): são gregos os pais do purgatório?
Estes dois autores talvez
sejam os mais equivocadamente citados em defesa do purgatório. Alguns até os
nomearam “pais” desta doutrina. Eles, de fato, defenderam uma purificação pelo
fogo no pós-morte, mas, este processo era substancialmente distinto do
purgatório católico romano. Le Goff elucida as visões de Orígenes, que são mais
precisas:
“As concepções de Orígenes são
mais precisas e vão mais longe. Para ele, como vimos, todos os homens devem passar pelo fogo, mesmo
os justos, pois não há homem absolutamente puro. Pelo simples fato
de sua união com o corpo, toda alma está conspurcada. (Le Goff, p.
72)
Ou seja, todos teriam que
passar por esse fogo purificador, o que já o distancia do purgatório católico, mas há outro detalhe muito importante sobre
Orígenes:
“A concepção particular de Orígenes – e que faz dele um herege – é
que não há pecador tão mau, tão inveterado, tão incorrigível em princípio, que
finalmente não se purifique completamente e não vá ao paraíso. E o próprio
inferno é temporário. Como bem disse G. Anrich: “Orígenes concebe o próprio
inferno como um purgatório”. Leva, com efeito, ao limite a
Teoria da Purificação (κάθαρσις), que lhe vem de Platão, dos órficos e dos
pitagóricos. Como não pode admitir a ideia pagã grega da metempsicose, de
reencarnações sucessivas, demasiado incompatível com o cristianismo, ele crê em
uma variante, que considera poder ser cristã, dessa teoria, a noção de um
progresso contínuo, de um aperfeiçoamento ininterrupto da alma depois da morte,
que lhe permite,
por mais pecadora que possa ter sido no início, retornar à contemplação eterna
de Deus: é a apocatástase (ἀποκατάστασις)”. (Le Goff, p. 72)
Apocatástase é a restauração
final de todas as coisas (uma forma de universalismo que nutre a esperança de que
todos serão salvos). Tanto Orígenes quanto Clemente entendem que se trata de um
fogo que não é material, nem metafórico, mas espiritual. Outro ponto de
discordância de Orígenes com a doutrina católica é sobre quando ocorreria este
fogo:
“Quando ocorrem essas
purificações pelo fogo? Orígenes é muito claro sobre isso: após a ressurreição, no
momento do juízo final (In Jeremiam, homilia 2. • In Leviticum,
homilia 8. • In Exodum, homilia 6. • In Lucam, 14 etc). Este fogo,
definitivamente, é apenas o fogo do fim do mundo”. (Le Goff, p. 72)
Após este resumo do pensamento
de Orígenes, Le Goff demonstra como ele não pode ser contado entre os
defensores do purgatório medieval. A novidade em Orígenes é a ideia de um
purificação pós-morte pelo fogo:
“Dissipa-se assim o futuro purgatório entrevisto por Orígenes, bloqueado entre sua
escatologia e sua concepção de um inferno temporário. A ideia, no entanto,
precisa, de uma purificação no além após a morte, é expressa pela primeira vez.
Surgiu a distinção entre pecados leves e pecados mortais. Há até mesmo um
esboço de três categorias: os justos que apenas atravessam o fogo de julgamento e vão
diretamente ao paraíso, os pecadores leves que fazem apenas uma estada no fogo
de combustão, os pecadores “mortais” que nele permanecem por mais tempo”.
(Le Goff, p. 73-74)
Ele traz então os elementos
que faltam nesses pais gregos para caracterizar um verdadeiro purgatório:
“Mas faltam vários elementos essenciais à concepção de um verdadeiro
purgatório. O tempo do purgatório é mal definido, pois se confunde
com o tempo do juízo final, confusão tão pouco satisfatória que
Orígenes deve ao mesmo tempo concentrar e dilatar o fim do mundo, e aproximá-lo
ao extremo. Nenhum
purgatório se distingue do inferno, e o caráter temporário,
provisório que fará sua originalidade não se sobressai. Apenas os mortos, com sua bagagem de faltas
mais ou menos leve ou pesada, e Deus em sua benevolência de juiz salutar têm
uma responsabilidade nessa purificação após a morte. Os vivos não
intervêm nela. Por fim, não há lugar purgatório. E ao fazer do fogo
purificador um fogo não apenas “espiritual”, mas “invisível”, Orígenes bloqueou
o imaginário do purgatório”. (Le Goff, p. 74)
Ou seja, não há nenhuma diferença ente o purgatório e o inferno. E para
piorar, não há nenhuma ajuda dos vivos
para os mortos neste processo. Orígenes e Clemente não defendem aqui a
oração pelos mortos. É notório que ambos foram muito influenciados pelo
platonismo e tentaram “cristianizar” esta herança platônica. Este flerte
cristão com a salvação universal pode ser visto como herético nos dias atuais,
mas, contou com defensores importantes. Além de Orígenes, temos o autor do
século IV: Gregório de Nyssa.
Gregório
de Nyssa e Gregório Nazianzeno (séc. IV) – a restauração de todas as coisas
Dentre as várias passagens em
que Gregório afirma a salvação universal, a seguinte é a mais clara:
“Quando todo o reino tiver
sido reunido a si, Cristo o entrega ao Pai, que une tudo a si. Pois o reino
será entregue ao Pai, isto é, todas as pessoas se renderão a Deus por meio de
Cristo. Quando todos os inimigos se tiverem tornado o escabelo de
Deus, receberão
em si um traço de divindade”. (Tratado sobre 1Cor 15:28)
Ou seja, Gregório interpreta 1
Coríntios 15:28 como a rendição de todas as pessoas a Deus por meio de Cristo.
Esta rendição fará que todos recebam um traço da divindade. Ele também expressa
em outra obra o aperfeiçoamento de todos os homens:
“O fim [de Deus] é um, e
somente um: é este, quando a totalidade da nossa raça tiver sido aperfeiçoada,
do primeiro ao
último homem — alguns tendo sido de pronto, nesta vida, purificados
do mal; outros,
depois, nos períodos necessários, curados pelo Fogo; outros tendo
aqui vivido alheios tanto ao bem quanto ao mal — para oferecer a cada um de nós a participação
nas bênçãos que estão n’Ele” (Sobre a Alma e a Ressurreição).
Alguns atingirão esta
perfeição mais rápido (até mesmo nesta vida), outros após “cura pelo fogo”,
mas, no fim, todos serão santificados. Estudiosos patrísticos que escreveram
sobre a teologia de Gregório de Nyssa confirmam tal interpretação. Ilaria L. E.
Ramelli afirma:
“São Gregório de Nissa sustentou a
doutrina da apokatástasis (restauração universal), fundada em Cristo
e em defesa da ortodoxia contra tendências arianas.” (Why Was St Gregory of
Nyssa Never Condemned for His Doctrine of Apokatastasis?)
John R. Sachs, S.J. também
afirma:
“Gregório de Nissa […] compartilha a
esperança de Orígenes pela salvação universal”. (Apocatastasis in
Patristic Theology, 1993).
Sachs também conclui que
Clemente, Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa “apresentaram razões para
esperar que todos sejam salvos”.
Esta citação é importante pois
elucida que Gregório Nazianzeno foi outro pai grego do século IV que, pelo menos,
expressou algum tipo de esperança de salvação universal. Na seguinte citação,
Gregório faz uma pergunta retórica que deixa em aberto esta possibilidade:
“Se Ele desce ao Hades, desce
com Ele. Aprende ali também os mistérios de Cristo: qual é o propósito
providencial dessa dupla descida — salvar a todos os homens absolutamente pela sua manifestação,
ou também ali apenas os que creem?” (Oração 45 – Sobre a Páscoa,
§25)
Ou seja, ele ao menos admite a
possibilidade de “salvar a todos os homens absolutamente”.
Os
Pais da Igreja latinos do séc. IV
Vamos trazer as contribuições
de Le Goff sobre os Pais da Igreja latinos do século IV:
“Lactâncio
(† depois de 317) pensa que todos os mortos, inclusive os justos, sofrerão a
provação do fogo, mas coloca essa provação no momento do juízo final:
‘Quando Deus examinará os justos, e o fará também por meio do fogo. Aqueles
cujos pecados prevalecerem por seu peso ou seu número serão envolvidos pelo
fogo e purificados; aqueles que, ao contrário, uma justiça perfeita ou a
maturidade da virtude estiver estabelecida não sentirão essa chama, neles
existe de fato alguma coisa que recua e rejeita esse fogo’ (Institutas, VII,
21, PL, VI, 800)”. (Le Goff, p.
76)
Ele fala também sobre Hilário de Poitiers:
“Para Hilário de Poitiers, enquanto aguardam o
juízo final, os justos vão descansar no seio de Abraão, enquanto os pecadores
são atormentados pelo fogo. No julgamento final os justos vão
diretamente para o paraíso, os infiéis e os ímpios para o inferno, todos os
outros, o conjunto dos pecadores, serão julgados e os pecadores impenitentes
sofrerão pesadas penas no inferno. Hilário fala em seu comentário do Sl 54 da ‘purificação que
nos queima pelo fogo do julgamento’ (PL, IX, 519 A), mas esse fogo
purifica todos os pecados ou apenas alguns deles? Hilário não dá nenhuma
precisão a este respeito”. (Le Goff, p. 77)
Ele fala também sobre Ambrósio:
“Santo Ambrósio é ainda mais ambíguo, mesmo sendo
mais preciso sobre certos pontos. Primeiro, ele pensa, como vimos, que as almas
aguardam o julgamento em habitáculos diferentes segundo a concepção do Quarto Livro de Esdras. Em seguida, estima que na
ressurreição os justos irão diretamente para o paraíso e os ímpios diretamente
para o inferno. Somente os pecadores serão examinados, julgados. E o
serão através da passagem pelo fogo definido como o batismo de fogo anunciado
por João Batista segundo Mt 2,11: “Um fogo está diante dos ressuscitados, que absolutamente
todos devem atravessar. É o batismo de fogo anunciado por João
Batista, no Espírito Santo, e o fogo é a espada ardente do querubim que guarda
o paraíso e através do qual se deve passar: todos serão examinados pelo fogo; pois todos
aqueles que desejam retornar ao paraíso devem ser provados pelo fogo”
(In: In Psalmum CXVIII, sermo 20, PL, 15, 1487-1488. Cf. tb., sobre a prova do
fogo: In Psalmum CXVIII, sermo 3, PL, 15, 1227-1228. • In Psalmum XXVI, 26, PL,
14, 980-981). Ambrósio
esclarece que mesmo Jesus, os apóstolos e os santos só entraram no paraíso
depois de terem passado pelo fogo. Como conciliar esta afirmação com
aquela segundo a qual os justos vão ao paraíso sem serem julgados? Ambrósio hesitou e
não tinha ideias muito claras. Parece também que para ele havia três
espécies de fogo. Para os justos que são prata pura, esse fogo será um
refrigério, como um orvalho que refresca (encontramos aqui a ideia
da pérola, síntese do frio e do quente, e símbolo de Cristo); para os ímpios, os
apóstatas, os sacrílegos que não passam de chumbo, esse fogo será um castigo e
uma tortura; para os pecadores, em que a prata e o chumbo se misturam,
será um fogo purificador, cujo efeito doloroso durará um tempo proporcional ao
peso de suas faltas, à quantidade de chumbo que for preciso derreter.
Quanto à natureza desse fogo, ele é “espiritual” ou “real”? Ambrósio, ainda que
influenciado por Orígenes, hesitou aqui também e mudou. Ele, definitivamente,
ainda mais paulino que origeniano, pensa que todos os pecadores serão salvos através do fogo
porque, apesar de suas faltas, tiveram fé: “E se o Senhor salva seus
servos, seremos
salvos pela fé, mas o seremos como através do fogo” (Explanatio
Psalmi XXXVI, n. 26)”. (Le
Goff, p. 78)
Ambrósio acreditava que todos os pecadores que
tiveram fé em Cristo seriam salvos. Isto o coloca em oposição a doutrina
católica romana, na qual, mesmo os que tiveram fé, mas morreram em pecado
mortal, irão para o inferno.
Sobre Jerônimo:
“São Jerônimo, no entanto inimigo de Orígenes,
é, em relação à salvação, o mais origeniano. Com exceção de satanás, dos negadores de Deus e
dos ímpios, todos os seres mortais, todos os pecadores serão salvos: “Assim como acreditamos que os tormentos do diabo,
de todos os negadores e de todos os ímpios que disseram em seu coração que Deus
não existe serão eternos; assim também, em contrapartida, pensamos que a
sentença do juiz para os pecadores cristãos, cujas obras serão examinadas e
purgadas no fogo, será moderada e mesclada de clemência” (In Isaiam, LXVI, 24.
PL, 24, 704 B). E ainda: “Aquele que de todo seu espírito colocou sua fé em Cristo,
mesmo que morra como homem pecador, por sua fé tem a vida eterna”. (Le
Goff, p. 79)
Tanto para Jerônimo como para Ambrósio,
aqueles que tem fé em Cristo serão salvos. Mesmo os que morreram em pecado grave serão salvos.
Sobre Ambrosiastro:
“O Ambrosiastro, se não traz muita novidade em
relação a Ambrósio, tem a particularidade e a importância de ser o autor da
primeira verdadeira exegese do texto paulino de 1Cor 3,10-15. Por
esta razão, teve
uma grande influência nos comentaristas medievais deste texto essencial para a
gênese do purgatório, em particular nos primeiros escolásticos do século XII.
Como Hilário e Ambrósio, ele distingue três categorias: os santos e os justos que irão diretamente ao paraíso na ressurreição;
os ímpios, apóstatas, infiéis, ateus, que irão diretamente para os tormentos do
fogo do inferno;
e os simples cristãos, que, mesmo pecadores, depois de terem sido purificados
por um certo tempo pelo fogo e de terem saldado sua dívida, irão para o paraíso
porque tiveram fé. Ao comentar São Paulo, escreve: “Ele [Paulo]
disse: ‘mas como através do fogo’, porque esta salvação não existe sem
tormento; pois não disse: ‘Será salvo pelo fogo’, e quando diz: ‘mas como
através do fogo’, quer mostrar que esta salvação ainda vai acontecer, mas que deve sofrer os
tormentos do fogo; para que, purgado pelo fogo, seja salvo e não,
como os infiéis (perfide), atormentado pelo fogo eterno para sempre; se ele tem algum
valor por uma parte de sua obra, é porque acreditou em Cristo”. (Le
Goff, p. 79-80)
Ou seja, Ambrosiastro é importante por ser o
primeiro a interpretar o texto de Coríntios que tanto seria usado para defender
o purgatório. Contudo, ele se associa a Ambrósio e Jerônimo, ao defender que
todos os que tiveram fé serão salvos, mesmos aqueles que morrem em pecado grave.
Desta forma, não temos em nenhum destes autores a doutrina católica romana do
purgatório. É então que surgirá o primeiro autor cristão a defender o
purgatório em termos parecidos com o catolicismo romano: Agostinho de Hipona.
Agostinho
de Hipona: especulações sobre o além
Nós já tratamos neste blog de forma bastante
detalhada sobre as visões de Agostinho a respeito do purgatório (aqui e aqui).
Embora, o bispo de Hipona tenha sido o primeiro teólogo cristão a afirmar algo
similar a doutrina romana, e se tornaria uma grande influência para o surgimento
da doutrina nos séculos posteriores, ele reconheceu que estava especulando sobre o tema. Desta forma,
Agostinho se torna mais uma testemunha contrária do que favorável para aqueles
que alegam ser o purgatório parte de uma tradição apostólica. De fato, o norte africano nunca apelou a qualquer
tradição da Igreja em favor desta ideia e, em diversos momentos, expressou
dúvida sobre a questão. Agostinho nunca ensinou o purgatório como uma
doutrina ou artigo de fé com o qual os cristãos devem necessariamente
concordar. Le Goff afirma em vários momentos essa atitude vacilante de
Agostinho:
“Coube a Agostinho, que deixou uma marca
profunda no cristianismo e que foi
provavelmente a maior “autoridade” da Idade Média, trazer os elementos capitais ao dossiê do
futuro purgatório. Em seu excelente
estudo sobre a Évolution de la doctrine du Purgatoire chez Saint Augustin
(1966), Joseph Ntedika recenseou o conjunto dos inúmeros textos agostinianos
que compõem o dossiê do problema. Revelou, quase sempre corretamente, o lugar
de Agostinho na pré-história do purgatório e mostrou o fato essencial: sua posição não somente
evoluiu, o que é normal, mas mudou consideravelmente a partir de um momento que
Ntedika situa em 413 e cuja causa atribui à luta contra os laxistas do além, os
“misericordiosos” (misericordes), na qual a partir dessa data Agostinho se engaja
apaixonadamente”. (Le Goff, p. 81)
O primeiro fato importante é que a posição de
Agostinho evoluiu e mudou abruptamente ao longo da vida. Ele não estava
reafirmando uma tradição sempre crida pela Igreja. Le Goff documenta esta
indecisão de Agostinho sobre o tema, o que reforça a tese de que ele estava
especulando:
“Para mim, as indecisões de Agostinho parecem vir em parte
deste relativo desinteresse pelo destino dos homens entre a morte e o juízo
final. Também se explicam por razões mais profundas. Sendo as mais
importantes as que vigoram nessa época. A sociedade romana devia enfrentar os
enormes problemas da grande crise do mundo romano, do desafio dos bárbaros, do
estabelecimento de uma nova ideologia dominante, cuja importante afirmação no que diz respeito
ao além era a ressurreição e a escolha entre a danação e a salvação eternas.
Totalmente
impregnada de milenarismo e pensando de uma forma mais ou menos confusa que o
juízo final ocorreria no dia seguinte, essa sociedade estava pouco inclinada a se
deter longa e profundamente no refinamento de pensamento que a reflexão sobre o
intervalo entre a morte e a eternidade supõe”. (Le Goff, p. 81-82)
Le Goff deixa bem claro aqui que Agostinho era
indeciso sobre a questão do purgatório. Ele atribuiu isto ao milenarismo e a
ideia de que o fim do mundo era iminente. Ele reafirma a indecisão de Agostinho
e traz outro fator (a falta de clareza
da Escritura):
Mas
me parece que Agostinho tinha também outras razões pessoais que o estimularam a
expressar sua incerteza sobre certos aspectos deste problema então marginal. Elas aparecerão nos textos que vou citar.
Primeiramente, a
constatação das imprecisões, até mesmo das contradições dos textos
escriturários a este respeito. Agostinho é um admirável exegeta, mas não esconde as
obscuridades, as dificuldades do livro. Ainda não se deu a devida
atenção ao fato de que, quando Abelardo, no século XII, no Sic et non, emprega
um método julgado revolucionário, ele simplesmente retorna a Santo Agostinho. E como padre,
bispo, intelectual cristão, Agostinho está persuadido de que o fundamento (esta
palavra que tanto lhe agrada e que encontrará em 1Cor 3,10- 15) da religião, do
ensino que deve oferecer, é a Escritura. Ali onde esta não é clara, mesmo tentando lhe
trazer o máximo de clareza (também uma de suas tendências profundas), deve-se
reconhecer que nada se pode afirmar de forma precisa. Tanto mais que
– é sua segunda motivação – em uma questão que toca a salvação, é preciso
respeitar o segredo, o mistério que envolve certos aspectos, ou melhor, deixar
a Deus o cuidado de tomar decisões no interior de um contexto onde indicou as
grandes linhas pela Bíblia e pelo ensinamento de Jesus, mas onde se reservou – mesmo fora do milagre –
um espaço de livre-decisão. (Le Goff, p. 82)
Aqui vemos que Le Goff aponta Agostinho como
um defensor da primazia da Escritura, principalmente quando se diz que nada
claro poderia ser dito quando a Escritura se cala. Ou seja, a indecisão de
Agostinho sobre o tema se devia ao fato de ele não se interessar tanto pelo
tema e também pela obscuridade da própria Escritura. De fato, a Bíblia não é um
tratado exaustivo sobre o pós-morte, embora, muitas pessoas sejam tentadas a
especular a respeito. Aqui também fica claro que Agostinho não acreditava haver
qualquer tradição na Igreja que esclarecia a questão. Le Goff explora então o
texto em que Agostinho aborda a morte de sua mãe (Mônica), ocorrida em 397-398,
registrada na obra Confissões (IX, XIII, 34-37). Neste período, ainda não havia
surgido em Agostinho a ideia do purgatório:
O que também não é dito, mas é verossímil, é
que, como não
existe purgatório (em nenhum texto de Agostinho haverá uma única frase que estabeleça
um vínculo entre os sufrágios e o fogo purgatório), esta pressão
feita para a salvação dos mortos pecadores, mas merecedores, acontecerá logo
depois da morte ou, em todo caso, sem que tenha decorrido um tempo
suficientemente longo para que seja necessário definir um prazo e ainda menos um lugar onde
essa espera possa ocorrer. (Le Goff, p. 84)
Ou seja, nós temos oração pelos mortos em
Agostinho num período em que ainda não há a ideia do purgatório desenvolvida em
sua mente (397-398). Interessa notar que
não há qualquer passagem ligando oração pelos mortos com o purgatório em
Agostinho neste período anterior a 413, o que só reforça que ele especulava
sobre o tema. Le Goff expressa abaixo a evolução de Agostinho no tema, passando
de uma exegese mais tradicional no qual afirmava o Seio de Abraão e passando
depois a especular sobre um fogo purgatorial:
“Até 413, Agostinho contenta-se em contribuir com
algumas notas pessoais ao ensinamento dos Pais dos séculos III e IV sobre o
fogo do julgamento e sobre os receptáculos depois da morte, em particular sobre
o seio de Abraão para os justos, essencialmente apoiado na exegese
da história do rico mau e do pobre Lázaro (Lc 16,19-31) e de 1Cor 3,10-15 (...)
Em seus comentários dos Salmos, provavelmente escritos entre 400 e 414, insiste sobretudo
nas dificuldades levantadas pela existência de um fogo purgatório depois da
morte: é uma “questão obscura” (obscura quaestio), declara.
Em seu Comentário do Sl 37, no entanto, avança uma afirmação sobre o purgatório
que conhecerá um grande êxito na Idade Média: “Ainda que alguns sejam salvos pelo fogo, esse
fogo será mais terrível do que tudo o que um homem pode sofrer nesta vida”
(Enarratio in Ps. XXXVII, 3. • CCL, 38, p. 384)”. (Le Goff, p. 85)
Contudo, Agostinho passa a defender o fogo
purgatorial com mais veemência a partir de 413. O ponto de virada teria sido a
oposição de Agostinho aos “misericordiosos”, que eram seguidores de Orígenes:
“Que diziam esses “misericordiosos” de quem
pouco se sabe a não ser do que Agostinho os criticava? Agostinho os considera
como descendentes de Orígenes, que pensava que no fim do processo de apocatástase todos
seriam salvos, inclusive satanás e os anjos maus. Ressalta, todavia,
que os misericordiosos só se ocupam dos homens. Mas, ainda que haja nuances
entre eles, todos
eles mais ou menos creem que os pecadores inveterados serão salvos ou em
totalidade ou em parte”. (Le Goff, p. 86)
A resposta de Agostinho a este grupo
continuará expressando dúvida:
“Em reação, Agostinho vai afirmar que existem
sim dois fogos, um fogo eterno destinado aos danados, para os quais todo
sufrágio é inútil; fogo sobre o qual insiste vigorosamente, e um fogo
purgatório sobre o qual é mais hesitante. Portanto, o que interessa a Agostinho, caso se
possa dizer, não é o futuro purgatório, é o inferno”. (Le Goff, p.
86)
Mesmo após este embate com os misericordiosos,
Agostinho traz uma geografia do além sem espaço para o purgatório:
“Nesse ínterim trouxera alguns esclarecimentos
a pedido de amigos. Na Carta a Dardanus, em 417, esboçava uma geografia do além
na qual não havia lugar para o purgatório”. (Le Goff, p. 88)
Os textos mais claros de Agostinho a favor do
purgatório sairão da obra Enchiridion e Cidade Deus (biógrafos afirmam que se
trata da fase mais mística da vida de Agostinho). Ainda assim, Le Goff continua
afirmando que ele não estava muito certo:
“Neste caso a remissão poderá ser terminada
depois desta vida (post ignem quemdam purgatorium) graças a “um certo fogo
purgatório” (per ignem quemdam purgatorium) sobre o qual Agostinho não parece muito
convicto, mas que é diferente do fogo eterno, do fogo do inferno”.
(p. 89)
Le Goff reafirma as reticências de Agostinho a
respeito do tema:
“Agostinho, apesar de suas incertezas e de suas
reticências, admitira o fogo purgatório: o que é também uma de suas
importantes contribuições para a pré-história do purgatório, pois esse fogo
purgatório permanece, sob a autoridade de Santo Agostinho, a realidade do
pré-purgatório até o fim do século XII, e permanecerá um elemento essencial do
novo lugar. Foi porque a desconfiança em relação às crenças e às imagens
populares recuou em certa medida entre 1150 e 1250 que o purgatório pôde nascer como lugar”. (p. 91-92)
O artigo da enciclopédia teológica também
confirma os comentários de Le Goff:
“Teólogos posteriores citaram Agostinho como
uma autoridade sobre o purgatório, embora Agostinho fosse cauteloso a respeito do assunto”.
Depois de Agostinho, Gregório Magno (séculos VI-VII) seria outro autor a afirmar o
purgatório e exercer grande influência sobre a mente medieval. Apesar da
influência desses dois autores latinos, Le Goff defende que o purgatório somente nasceria de fato no século XII.
O artigo da enciclopédia teológica
atesta que, apesar da influência de Agostinho e Gregório Magno, o purgatório
ainda levaria séculos para penetrar na religiosidade popular:
“O benefício de orações,
missas e ofertas pelos mortos foi cada vez mais promovido nas obras de autores
do início da Idade Média, incluindo o papa Gregório I (540–604), Isidoro de
Sevilha (†636), Julião de Toledo (642–690) e Beda, o “Venerável” (†735). Ao
lado de Agostinho, esses primeiros escritos forneceram declarações autoritativas
que sustentaram elementos-chave do Purgatório. Beda forneceu a primeira descrição detalhada do
Purgatório como um lugar geográfico com uma finalidade claramente
articulada em sua História Eclesiástica, pregou sua existência em homilias e
abordou sua validade teológica em seus Provérbios sobre Salomão, mas ainda levou
muito tempo até que tais crenças penetrassem profundamente na religiosidade
popular”.
Purgatório
como um lento desenvolvimento
Interessa notar que Le Goff
fala de forma crítica da visão evolucionista do purgatório, na qual o dogma
estava em lento desenvolvimento, mas fadado necessariamente a surgir nos
séculos seguintes:
“Esta interpretação [de
Cipriano favorável ao purgatório] é representativa de uma concepção
evolucionista do purgatório, que vê na doutrina do cristianismo uma marcha
lenta, mas certa, para a explicação de uma crença que desde a origem teria
existido em germe no dogma cristão. Nada me parece menos conforme à realidade
histórica. Diante dos acessos de milenarismo, de crença em um apocalipse fulminante que
salvaria ou destruiria mais ou menos arbitrariamente, a Igreja, em
função das condições históricas, da estrutura da sociedade e de uma tradição
que pouco a pouco ela transformava em ortodoxia, estabeleceu um certo número de
elementos que, no século XII, resultaram em um sistema do além de que o
purgatório foi uma peça mestra, mas que podia muito bem abortar, que conheceu acelerações, no
início do século V, entre o fim do VI e o início do VIII, ao século XII, enfim,
mas com longas estagnações que poderiam ter sido definitivas”. (Le
Goff, p. 75)
O
processo de surgimento do purgatório e a influência do paganismo
"Para existir, o purgatório deverá substituir os pré paraísos do
refrigerium, lugar de descanso imaginado nos primeiros tempos do cristianismo,
e do seio de Abraão, caracterizado pela história de Lázaro e do rico
mau no Novo Testamento (Lc 16,19-26)”. (Le Goff, pp.
19–20)
Aqui nosso autor deixa claro que os cristãos dos primeiros séculos
desconheciam o purgatório.
"O purgatório é uma ideia nova do cristianismo, mas que tomou
emprestado das religiões anteriores uma parte de seus principais acessórios".
(p. 24)
Vimos como a assimilação de elementos pagãos foi importante no processo
de desenvolvimento desta doutrina, uma vez que é estranho ao judaísmo ou
cristianismo primitivo. Le Goff explica melhor esse processo de assimilação:
“A
influência do orfismo sobre o cristianismo foi frequentemente enfatizada.
Como não se
encontra no judaísmo antigo a crença em um estado intermediário entre a
felicidade celeste e os tormentos infernais, e como o prenúncio do purgatório apareceu no
cristianismo grego, avançou-se que a ideia cristã de um
‘purgatório’, onde acabam de se purificar as almas que não são suficientemente
culpadas para merecerem penas eternas, viria do helenismo pagão e particularmente das doutrinas
órficas (...) Mas, na Palestina, no Egito, esses meios judaicos, e depois
cristãos, banham de fato em um entorno grego onde as religiões de mistérios
tiveram um grande desenvolvimento” (p. 40-41)
Ou seja, o purgatório, além de não ser parte do cristianismo mais
primitivo, é também fruto de influências pagãs sobre o pensamento cristão.
O purgatório só
nasce de fato no século XII como um lugar de tormento
Le Goff também afirma o purgatório como um produto medieval:
“[…] o
século XII é também o do nascimento do purgatório, que só se
compreende/‘se explica’ no interior do sistema feudal já então estabelecido”.
(Le Goff, p. 27).
O já mencionado artigo da enciclopédia teológica também afirma:
“Historicamente, a maioria dos elementos básicos do Purgatório foi forjada na
Idade Média”.
“A partir da Idade Média
tardia, o
Purgatório foi entendido como uma forma alternativa e final de penitência para
aqueles que não haviam feito plena reparação nesta vida. Para os
vivos, o Purgatório oferecia uma última chance de ajudar os entes queridos. Sempre houve um
elemento de justiça retributiva na noção de purificação pós-morte,
levando a imaginação a reinos mais sombrios de tormento e medo, como se vê especialmente em textos
moralizantes, como visões do além”.
O purgatório se
tornaria fonte de lucro e poder para a Igreja
“E para a Igreja que instrumento de poder! Ela afirma seu direito
(parcial) sobre as almas do purgatório como membros da Igreja militante,
priorizando o foro eclesiástico em detrimento do foro divino, detentor da
justiça no além, no entanto. Poder espiritual, mas também muito simplesmente, como se
verá, lucro financeiro de que se beneficiarão mais do que outros os irmãos das
ordens mendicantes, propagandistas ardentes da nova crença. O “infernal”
sistema das indulgências encontrará nelas finalmente um poderoso alimento”.
(Le Goff, p. 23)
O purgatório se transformaria em fonte de lucro e poder e alimentaria o
famigerado comércio de indulgências. Não é difícil imaginar a quantidade de
abusos e exploração que esta doutrina gerou. As massas, sem qualquer acesso à
Escritura, seriam presas fáceis de pregadores que afirmavam pode aliviar o
sofrimento de entes queridos que estavam num lugar pouco distinto do inferno. O
purgatório também se tornaria um meio de exercer poder sobre reis e
imperadores:
“A visão dos grandes leigos – imperadores e reis – no além foi
uma arma política da Igreja, como se verá para com Teodorico, Carlos
Martel, Carlos Magno. E Dante não se esquecerá deles. Quer meio melhor para a Igreja tornar dóceis às
suas instruções – espirituais ou temporais – os soberanos do que evocar as
punições que os aguardam no além em caso de desobediência, e o peso
dos sufrágios eclesiásticos para sua libertação e salvação?”. (Le Goff, p. 78)
O
purgatório foi influenciado pela visão de místicos
Um ponto comum no desenvolvimento de doutrinas
católicas é a influência de místicos. No caso do purgatório, não faltam
supostos relatos de visões do além. O período medieval foi bastante rico neste
sentido e os místicos tiveram papel importante no desenvolvimento desta
doutrina. O artigo da enciclopédia teológica afirma:
“Embora
teólogos e concílios tenham sido as vozes mais autoritativas para solidificar o
lugar do Purgatório no ensino católico, as experiências do além descritas por santos, pecadores e
místicos tiveram profunda influência e frequentemente refletiam os ensinamentos
teológicos da época. Os místicos da Baixa Idade Média
concentravam-se muitas vezes nas almas do Purgatório, e seus relatos foram
registrados. Desde a mística Catarina de Gênova (†1510), que escreveu sobre o
Purgatório e deixou relatos de suas experiências que imaginavam a grande
alegria ali existente, até Maria Simma (†2004), que relatava ser frequentemente
visitada por almas do Purgatório, o foco em libertar almas do Purgatório e
aprender sobre elas tornou-se uma profunda tarefa espiritual (Simma 1997)”.
Os Orientais contra o purgatório
Outro
fato digno de nota é que o purgatório é uma doutrina da Igreja latina. Embora
seja possível encontrar em teólogos orientais a noção de uma purificação
pós-morte, não se encontra o aspecto penal da doutrina romana, e há pouca
definição sobre como este processo de purificação se processaria. Além disso,
nem todas as Igrejas Orientais dogmatizam uma purificação pós-morte. O artigo
da enciclopédia teológica diz:
“Os
ensinamentos da Igreja Ocidental sobre o Purgatório desenvolveram-se em grande
parte de forma independente e isolada das concepções cristãs sobre o além em
outras partes do mundo cristão. Isso significava que, quando foram feitas tentativas, na Baixa Idade
Média, de reconciliar as igrejas do Oriente e do Ocidente, os ensinamentos
sobre o Purgatório tornaram-se um ponto teológico de impasse. As visões bizantinas sobre o além foram profundamente
influenciadas por teólogos como Gregório de Nissa (†395), cujas concepções
sobre a purificação da alma após a morte se assemelhavam, em certo sentido, às
de Orígenes e, em geral, refletiam as opiniões dos primeiros autores
patrísticos do mundo mediterrâneo. As
concepções bizantinas sobre a purificação pós-morte eram mais positivas, menos
gráficas, menos punitivas e, em geral, de duração mais curta do que aquelas que
se desenvolveram no Ocidente ao longo da Idade Média. Os gregos bizantinos (e, posteriormente, as
igrejas russa e armênia) mostravam-se mais abertos à noção de que Deus e os
sufrágios pelos mortos poderiam, em circunstâncias excepcionais, libertar até
mesmo almas ímpias do inferno. Em
contraste, as concepções oficiais da Igreja Ocidental mantinham-se firmes em
uma visão intransigente, impermeável e eterna do inferno, claramente
diferenciada do “inferno temporário” do Purgatório. Isso se devia, ao menos em
parte, à firme postura anti-origenista da Igreja Ocidental, que ensinava que os
ímpios jamais seriam libertos do inferno e que, de fato, a própria existência
do Purgatório como lugar de misericórdia dependia da irrevogabilidade da
condenação no inferno”.
Este
trecho é muito importante, pois expressa a visão Oriental da questão, que foi
muito mais influenciada por Orígenes e Gregório de Nyssa – dois autores que
aceitavam a possibilidade de uma salvação pós-morte. Ou seja, eles estariam
mais próximos do universalismo. É importante lembrar que o purgatório foi um
ponto de impasse para reunião das Igrejas no Concílio de Lyon em 1275. O artigo
prossegue demonstrando esta diferença de visão:
“As
diferenças entre as concepções das igrejas latina e grega sobre o Purgatório
foram debatidas no Primeiro e no Segundo Concílios de Lyon, em 1245 e 1274. No
contexto de uma possível reaproximação entre as igrejas, a preocupação do papado girava em torno de
relatos de que os gregos não acreditavam no Purgatório e sustentavam que, em
sua visão, os mortos aguardavam o juízo no último dia. Essa era, essencialmente,
a visão da Igreja cristã antiga, que aguardava a ressurreição no último dia em
vez de um julgamento imediato após a morte” (...) No fim, a
reaproximação em torno do Purgatório não foi decisiva e, embora alguns tenham
aderido à visão católica, ao longo dos séculos teólogos ortodoxos gregos e russos
defenderam posições variadas sobre a purificação das almas, resistindo em sua
maioria à ideia de um terceiro lugar de purgação”.
Conclusão
Chegamos ao fim de um longo artigo que lidou com os principais textos bíblicos e com a evidência histórica a respeito do purgatório. Acredito ser razoável afirmar que o purgatório é uma doutrina que carece de fundamento bíblico e histórico. Trata-se de um ensino estranho ao depósito de fé legado pelos apóstolos, que os reformadores bem fizeram em rejeitar.
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