quarta-feira, 30 de março de 2016

Eusébio de Cesareia e o Papado


Já tratamos do testemunho dos pais da igreja até o séc. III sobre o papado aqui, e também de Agostinho e Jerônimo que são autores dos séculos IV e V muito citados pelos católicos. Dessa vez, falaremos sobre outros pais da igreja desse período em ordem cronológica.

Os católicos geralmente apelam a Eusébio para provar a lista dos bispos de Roma. O que eles não percebem é que isso não é suficiente para provar o papado. Mesmo que Pedro tivesse sido bispo de Roma e deixado ai uma sucessão de bispos, algumas premissas papistas precisariam ainda ser provadas. Seria necessário provar que o pescador era um papa. E mesmo sendo um papa, restaria demonstrar que todas as suas prerrogativas papais foram transferidas exclusivamente aos bispos de Roma. Eusébio afirma em sua história eclesiástica que Inácio, bispo de Antioquia, era sucessor de Pedro, mas isso não é suficiente para afirmar o papado de Inácio, porque então com os bispos de Roma deveria ser diferente?

Um dos maiores problemas para quem deseja apresentar Eusébio como testemunha do papado é que na sua história eclesiástica, o bispo de Roma nunca é mencionado como o chefe de toda a igreja. Ele escreveu sobre o propósito de sua obra:

É meu propósito consignar as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador até nós; o número e a magnitude dos feitos registrados pela história eclesiástica e o número dos que nela se sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim como o número daqueles que em cada geração, de viva voz ou por escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus. (História Eclesiástica 1:1)

A questão da autoridade era objeto dessa obra. Portanto, o fato de não haver nenhuma menção ao ofício papal é revelador. Como ele iria ignorar doutrina tão importante. Perceba que Eusébio fala sobre as “igrejas mais ilustres”, grupo da qual Roma com certeza fazia parte, mas nunca coloca Roma como igreja chefe. Ainda mais reveladora é sua exegese de Mateus 16:18:

Contudo, não cometerás qualquer erro do âmbito da verdade se supores que “o mundo” é na realidade a Igreja de Deus, e que o seu “fundamento” é em primeiro lugar aquela inefável sólida pedra sobre a qual está fundada, como diz a Escritura: “Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”; e em outro lado: “E a pedra era Cristo”. Pois, como o Apóstolo indica com estas palavras: “Ninguém pode pôr outro fundamento senão o que está posto, o qual é Cristo Jesus”. Então, também, depois do próprio Salvador, podes retamente julgar que os fundamentos da Igreja são as palavras dos profetas e dos apóstolos, de acordo com a afirmação do Apóstolo: “Edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio Cristo Jesus a pedra angular”. (Comentário sobre os Salmos - PG 23:173, 176)

Eusébio usa as passagens de 1 Coríntios 3:11 e 10:4 como pano de fundo para interpretar Mateus 16:18 como sendo Cristo a rocha referida. Só que ele também diz “depois do próprio Salvador, podes retamente julgar que os fundamentos da Igreja são as palavras dos profetas e dos apóstolos”. Após o fundamento que era Cristo, estava a mensagem dos profetas e apóstolos. Perceba que não eram as pessoas dos apóstolos e profetas, mas a sua mensagem que era o fundamento da igreja. Essa mensagem era um fundamento porque tinha origem na única pessoa que é a rocha da igreja – Cristo.  Era a mensagem de todos os apóstolos e não apenas de Pedro. Eusébio não defendia uma exegese papista desse texto. Católicos então citam a passagem abaixo:

E Pedro, sobre quem se edifica a Igreja de Cristo, contra a qual não prevalecerão as portas do Hades, deixou só uma carta por todos reconhecida. Talvez também uma segunda, pois é posta em dúvida. (HE 6:25)

Será que Eusébio se contradisse ou mudou de ideia? Provavelmente não. Ele considerava os apóstolos o fundamento da igreja por causa da mensagem que pregaram. Nesse aspecto, a igreja estaria edificada sobre Pedro por causa de sua mensagem, assim como sobre Paulo pelo mesmo motivo. Mas a única pessoa que era a rocha da igreja era Cristo. O teólogo católico romano Michael Winter escreve:

Na História Eclesiástica ele diz sem qualquer explicação ou qualificação: "Pedro sobre a qual a igreja de Cristo é edificada, contra a qual as portas do inferno não prevalecerão..." Em outro lugar, ele fala de Cristo como o fundamento da igreja de tal forma a excluir St. Pedro. Por exemplo, em seu comentário sobre os Salmos, a referência ao fundamento da terra no Salmo 17 o leva a considerá-lo o fundamento da igreja. Usando Mateus 16, ele declara que esse fundamento é uma rocha, que é então identificada como Cristo na autoridade do 1Cor. 10:4. Essa interpretação do texto de Mateus, que parece tão estranha ao leitor moderno indica um problema que confundiu um bom número dos primeiros pais. Sua teologia da igreja era, graças a Paulo, tão completamente cristocêntrica que era difícil para eles imaginar uma fundação além de Cristo (...) A terceira opinião que Eusébio apresentou foi uma interpretação de Mateus 16, que via a rocha da igreja nem como Cristo nem precisamente o próprio Pedro, mas como a fé que ele manifesta em seu reconhecimento do Cristo. Este último ponto de vista de Eusébio, em conjunto com outra inovação, ou seja, que a rocha era Cristo, teve uma influência considerável sobre a exegese posterior do texto em questão, tanto na igreja oriental como ocidental. (St. Peter and the Popes (Baltimore: Helikon, 1960), p. 53)

A interpretação de Eusébio era cristocêntrica. O fato de ele apontar Pedro ou sua fé não contraria isso. A citação anterior deixou claro que a pessoa de Cristo era a rocha, mas sobre ela estava a mensagem (ai incluso a fé) dos apóstolos. Uma vez que não encontramos em Eusébio a tese que o bispo de Roma era o chefe de toda a igreja e que a pessoa de Pedro era o fundamento da igreja, qualquer tentativa de coloca-lo como testemunha do papado resta prejudica. Porém, ainda existe um ponto que tem suscitado muitos debates – Eusébio teria dito que Pedro foi o primeiro bispo de Roma? Apologistas católicos costumam citá-lo como testemunha dos 25 anos do episcopado de Pedro em Roma. Independente disso, essa tradição católica é largamente desacreditada pelos historiadores atualmente, inclusive católicos romanos. Eles têm duvidado não somente do período de 25 anos, mas também do fato em si – Pedro não teria sido bispo dessa cidade. A evidência mais antiga a respeito foi tratada aqui. Raymond Brown, um dos maiores eruditos bíblicos do catolicismo no séc. XX, sintetiza essa visão:

Obviamente, os cristãos do primeiro século não teriam pensado em termos de jurisdição ou de muitas outras características que têm sido associadas ao papado ao longo dos séculos. Nem os cristãos que viveram no tempo de Pedro teriam totalmente associado Pedro com Roma, uma vez que foi, provavelmente, só nos últimos anos de sua vida que ele veio a Roma. (Responses to 101 Questions on the Bible [Mahwah, New Jersey: Paulist Press, 1990], p. 134)

É muito improvável que Clemente fosse chamado de o bispo de Roma, ele seria numa moderna terminologia o secretário executivo da Igreja. No entanto, desde que ele foi lembrado como o mais proeminente dos presbíteros de seu tempo, seu nome aparece na lista como bispo de Roma. (Ibid., p. 132-133)

O que eu estou dizendo é que essas listas de bispos foram preservadas para nós como as mais importantes figuras na história de uma Igreja particular, mesmo antes da terminologia de somente um bispo ser utilizada. Então, eu não estou tirando a importância de Pedro, ou sua estadia em Roma, quando eu apontei que é anacrônico pensar nele como um bispo local. De fato, uma vez que a função do bispo era administrar uma pequena congregação e viver entre eles. (Ibid., p. 132-133)

Os dados do Novo Testamento tornam impossível o bispado de 25 anos. Entre as muitas evidências, podemos citar a ausência de menção a Pedro na carta aos romanos escrita entre 54 e 56 D.C ou na segunda prisão de Paulo em Roma após o ano 60. Por isso, até mesmo o erudito católico reconhece que Pedro deve ter chegado a Roma somente no fim da vida. Voltemos então ao testemunho de Eusébio. Os apologistas católicos apresentam a seguinte citação:

Pedro, de nacionalidade galileia, o primeiro pontífice dos cristãos, tendo inicialmente fundado a Igreja de Antioquia, se dirige a Roma, onde, pregando o Evangelho, continua vinte e cinco anos Bispo da mesma cidade.

Muitos sites apresentam essa citação como sendo da História Eclesiástica, mas ela na verdade está na tabela cronológica das crônicas de Eusébio. O problema é que não temos acesso ao texto grego dessa crônica e dependemos de uma versão latina traduzida por Jerônimo ou da versão armena. A versão latina traz a citação acima e a armena afirma que o bispado de Pedro foi de apenas 20 anos. Até mesmo a versão latina a que temos acesso é de data bem posterior à tradução de Jerônimo e nela já foram identificadas muitas adições e interpolações. Há também diversas informações que constam da tradução latina, mas não constam da armena. Algumas dessas diferenças podem ser verificadas aqui com a versão armena destacada em verde. Trata-se, portanto, de uma citação no mínimo suspeita, tendo em vista depender de uma obra retalhada, cuja confiabilidade da versão que temos acesso é baixa.

A Crônica foi escrita antes da História Eclesiástica. Dessa forma, se Eusébio defendia o bispado de Pedro em Roma, tal informação deveria constar na História Eclesiástica. Lembremos que essa obra foi escrita para mostrar a sucessão de bispos das igrejas mais proeminentes. O problema é que Pedro não é colocado como bispo de Roma apesar da sucessão dessa igreja ser um tema tratado na obra:

Depois do martírio de Paulo e de Pedro, Lino foi designado como primeiro bispo de Roma. Ele é mencionado por Paulo quando escreve de Roma a Timóteo, na despedida ao final da carta. (HE 3:2:1)

Neste tempo os romanos eram ainda regidos por Clemente, que também ocupava o terceiro lugar dos que ali foram bispos depois de Paulo e Pedro. O primeiro foi Lino, e depois dele, Anacleto. (HE 3:21:1)

Os bem-aventurados apóstolos [Pedro e Paulo], depois de haverem fundado e edificado a Igreja, puseram o ministério do episcopado em mãos de Lino. Este Lino é mencionado por Paulo em sua carta a Timóteo. (HE 4:6:1)

A este Clemente sucede Evaristo, e a Evaristo, Alexandre; depois é instituído Sixto, o sexto portanto a partir dos apóstolos; e depois deste, Telésforo, que também sofreu gloriosamente o martírio; logo Higinio; depois Pio, e depois deste, Aniceto; havendo Sotero sucedido a Aniceto, agora é Eleutério que ocupa o cargo do episcopado, em décimo segundo lugar a partir dos apóstolos. (HE 4:6:4)

Eusébio não conta Pedro como bispo de Roma. O primeiro seria Lino, o segundo Anacleto, o terceiro Clemente e assim por diante. Além disso, ele sempre conta essa sucessão a partir dos apóstolos Pedro e Paulo. Ambos são colocados igualmente como organizadores da igreja romana. Se os católicos quiserem salvar o testemunho de Eusébio, teriam que atribuir a Paulo o bispado. Dessa forma, a igreja romana teria dois bispos simultâneos – algo que nenhum historiador aceita, muito menos a igreja romana. É interessante contrastar a situação de Roma com Antioquia:

Ao mesmo tempo adquiriram notoriedade Papias, bispo da igreja de Hierápolis, e Inácio, o homem mais célebre para muitos ainda hoje, segundo a obter a sucessão de Pedro no episcopado de Antioquia. (HE 3:36:2)

Eusébio não afirma que Pedro foi bispo em Antioquia, mas atribui a ele a sucessão dessa igreja. É notório que nesse caso, ele coloca Pedro somente. Suponhamos então que Eusébio queira dizer que Pedro foi bispo de Antioquia e também de Roma ao afirmar que deixou ai uma lista de sucessores. Isso só reforçaria a conclusão de que Paulo também seria bispo de Roma, o que contraria toda narrativa católica. A hipótese mais provável é que tanto Paulo e Pedro estiveram pregando em Roma e, segundo Eusébio, teriam deixado ai essa sucessão de bispos, sem que tivessem sido bispos dessa igreja. Isso fica patente a seguir:

Clemente, no livro VI das Hypotyposeis, adiciona o seguinte: "Porque dizem - depois da ascensão do Salvador, Pedro, Tiago e João, mesmo tendo sido os preferidos do Salvador, não tomaram para si esta honra, mas elegeram como bispo de Jerusalém Tiago o Justo." E o mesmo autor, no livro VII da mesma obra, diz ainda sobre ele o que segue: "O Senhor, depois de sua ascensão, fez entrega do conhecimento a Tiago o Justo, a João e a Pedro, e estes o transmitiram aos demais apóstolos, e os apóstolos aos setenta, um dos quais era Barnabé”. (HE 2:1:3-4)

Pedro, Tiago e João escolheram o bispo de Jerusalém sem terem sido bispos dessa cidade. Isso reforça a percepção de que Eusébio não está colocando os apóstolos como bispos ao afirmar que eles deixaram sucessões de bispos nas igrejas. Nota-se também que os três apóstolos são colocados em pé de igualdade. Jesus teria preferido os três e não apenas Pedro e feito a entrega do conhecimento igualmente aos três. Eusébio traz ainda testemunhos de outros pais da igreja que são incompatíveis com o bispado de 25 anos:

Que ambos sofreram martírio na mesma ocasião é afirmado por Dionísio, bispo de Corinto, em sua correspondência escrita com os romanos, nos seguintes termos: "Nisto também vós, por meio de semelhante admoestação, fundistes as searas de Pedro e de Paulo, a dos romanos e a dos Coríntios, porque depois de ambos plantarem em nossa Corinto, ambos nos instruíram, e depois de ensinarem também na Itália no mesmo lugar, os dois sofreram martírio na mesma ocasião." Sirva também isto para maior confirmação dos fatos narrados. (HE 2:25:8)

Dionísio coloca a ida de Pedro a Roma no mesmo período que Paulo. Ocorre que o apóstolo dos gentios só chegou a Roma após o ano 60. Os 25 anos do bispado colocariam Pedro em Roma no ano 42. Ele também traz o testemunho de Orígenes:

Pedro, segundo parece, pregou no Ponto, na Galácia e na Bitínia, na Capadócia e na Ásia, aos judeus da diáspora; por fim chegou a Roma e foi crucificado com a cabeça para baixo, como ele mesmo pediu para sofrer. E o que dizer de Paulo, que desde Jerusalém até o Ilírico cumpriu com a pregação do Evangelho de Cristo e finalmente sofreu martírio em Roma sob Nero? Isto é dito por Orígenes literalmente no tomo III de seus Comentários ao Gênesis. (HE 3:1:2-3)

Orígenes parece dizer que Pedro chegou a Roma no fim da sua vida. O mesmo é dito sobre Paulo.

Pelas palavras de Pedro em sua Carta, da qual já dissemos que é aceita, e que escreve aos hebreus da diáspora, moradores do Ponto, da Galácia, da Capadócia, da Ásia e da Bitínia, percebe-se claramente em que províncias ele pregou a Cristo e transmitiu a doutrina do Novo Testamento aos que procediam da circuncisão. (HE 3:4:2)

Algumas informações valiosas são apresentadas: (1) O ministério de Pedro era voltado aos da circuncisão, o que contradiz uma suposta jurisdição universal. Como um papa que lidera sobre toda a igreja poderia ter um ministério limitado a um grupo étnico? (2) Os lugares em que Pedro principalmente pregou não inclui Roma. Segundo os católicos, a maior parte do ministério de Pedro (25 de 32 anos) teria sido em Roma. Como Eusébio poderia ignorar tal fato destacando outros lugares como recebedores de sua pregação? Uma citação é comumente utilizada para provar o contrário:

Dizem mesmo que todos os primeiros, inclusive os próprios apóstolos, receberam e ensinaram isto que agora eles estão dizendo, e que se conservou a verdade da pregação até os tempos de Victor, que era o décimo terceiro bispo de Roma desde Pedro, mas que, a partir de seu sucessor, Zeferino, falsificou-se a verdade. (HE 4:28:3)

Eusébio continua não colocando Pedro como bispo. Victor foi o 13º, estando de acordo com a contagem em que Lino é o 1º. Porém, dessa vez, ele coloca “desde” Pedro sem mencionar Paulo. Já vimos em diversas outras citações da mesma obra que Paulo também era considerado originador dessa sucessão. O fato de Eusébio não mencioná-lo aqui é irrelevante. Eusébio está se referindo a uma sucessão temporal e não epsicopal. Uma vez que Pedro junto com Paulo foi organizador da igreja de Roma, seria correto dizer que após o tempo de Pedro, Victor foi o 13º. Isso não implica no bispado petrino. Católicos costumam usar as citações abaixo que merecem especial análise:

[Simão Mago] Chegou à cidade de Roma, e com a grande ajuda do poder que nela se assenta, em pouco tempo alcançou tamanho êxito em seu empreendimento, que os habitantes do lugar chegaram a honrá-lo como a um Deus, dedicando-lhe uma estátua. Não chegaria muito longe esta prosperidade. De fato, pisando em seus calcanhares, durante o próprio império de Cláudio, a providência universal, santíssima e amantíssima dos homens, levava sua mão em direção a Roma, como contra um tão grande flagelo da vida, o firme e grande apóstolo Pedro, porta-voz de todos os outros devido a sua virtude. Como nobre capitão de Deus, equipado com as armas divinas, Pedro levava do oriente aos homens do ocidente a apreciadíssima mercadoria da luz espiritual, anunciando a boa nova da própria luz, da doutrina que salva as almas: a proclamação do reino dos céus. (HE 1:14)

Um documento diz que Fílon, nos tempos de Cláudio, chegou a Roma para conversar com Pedro, que então estava pregando aos dali. Isto na verdade pode não ser inverossímil, já que a própria obra de que falo - composta por ele mais tarde, passado muito tempo - contém claramente as regras da Igreja, observadas ainda em nossos dias. (HE 1:17:1)

Esses dois relatos são importantes porque colocam Pedro pregando em Roma no tempo do imperador Cláudio. O reinado de Cláudio foi de 41 a 54. Lembre-se que os católicos alegam que Pedro foi bispo a partir do ano 42. Obviamente nada do relato implica que Pedro era bispo dessa cidade, mas apenas que esteve lá em algum período entre os anos 41 e 54. Além disso, o relato não implica que Pedro permaneceu em Roma até o seu martírio. Sua primeira ida a Roma foi motivada pela presença de Simão Mago lá – supostamente o mesmo Simão de Atos 8:9-24. Nós vimos que Eusébio traz outros relatos que colocam Pedro indo para Roma apenas no fim da vida, próximo ao seu martírio. Dessa forma, a hipótese mais provável é que para ele, o apóstolo esteve em Roma nos tempos de Cláudio, não tendo permanecido lá, e voltando apenas próximo a data de seu martírio.

Independente da opinião de Eusébio, outra questão precisa ser discutida: os relatos de Eusébio são confiáveis? Pedro de fato enfrentou Simão Mago em Roma ou conheceu o judeu alexandrino Filo? O consenso dos historiadores é que ambos os relatos são baseados em lendas. São o que o historiador católico Eamon Duffy chamaria de “ficções piedosas”. Vejamos o que a própria Enciclopédia Católica fala a respeito de Simão o Mago:

Simão não é mencionado novamente nos escritos do Novo Testamento. O relato nos Atos dos Apóstolos é a única informação oficial que temos sobre ele. As declarações dos escritores do século II que lhe digam respeito são em grande parte lendárias, sendo difícil ou praticamente impossível extrair deles qualquer fato histórico cujos detalhes são estabelecidos com certeza. São Justino de Roma (Primeira Apologia XXVI, LVI; Diálogo com Trifo CXX) descreve Simão como um homem que, por instigação dos demônios, afirmou ser um deus. Justino diz ainda que Simão chegou a Roma durante o reinado do imperador Cláudio e pelas suas artes mágicas ganhou muitos seguidores que ergueram na ilha do rio Tibre uma estátua a ele como uma divindade com a inscrição "Simão o Deus Santo". A estátua, no entanto, que Justino acreditou ser dedicada a Simão era sem dúvida uma das antigas Sabina divindade Semo Sancus. Estátuas deste antigo deus com inscrições semelhantes foram encontrados na ilha no rio Tibre e em outros lugares em Roma (...) Se a opinião de Justino que Simão Mago veio a Roma repousa apenas no fato por ele crido de que seguidores romanos tinham erguido esta estátua a ele, ou se ele tinha outras informações sobre este ponto, agora não pode ser determinado de forma positiva. Seu testemunho não pode, portanto, ser verificado e assim permanece duvidoso. Os escritores anti-heréticos posteriores que se reportam a residência de Simão em Roma, apresentam Justino e o apócrifo Atos de Pedro como sua autoridade, de modo que o seu testemunho é de nenhum valor. Simão desempenha um papel importante nas "Pseudo-Clementinas". Ele aparece nelas como o principal antagonista do apóstolo Pedro, por quem ele está em todos os lugares seguido e antagonizado. As supostas artes mágicas do mago e os esforços de Pedro contra ele são descritos de uma maneira que é absolutamente imaginária (...) Todas estas narrativas pertencem naturalmente ao domínio da lenda. (Fonte)

Eusébio basicamente misturou o relato de Justino com fontes apócrifas pouco confiáveis como as Pseudo-Clementinas e Atos de Pedro. O relato de Justino era baseado num engano. A estátua que ele acreditava ser de Simão Mago na verdade era de um antigo deus pagão. Destaca-se que Justino não relata que Pedro foi a Roma enfrentar o mago. Essa informação encontra-se apenas nas lendas apócrifas.

O relato de que Filo conheceu Pedro em Roma também é baseado em lendas improváveis. No cap. 17 do Livro I, Eusébio traz o relato de Fílon sobre judeus ascetas que viviam no Egito chamados de “terapeutas”. Eusébio os representa como ascetas cristãos – uma ideia sem fundamento histórico algum. O próprio Fílon é representado como um cristão, sendo sabido que ele viveu e morreu como um judeu helenista. David T. Runia escreve em seu livro sobre Fílon na literatura cristã primitiva:

A partir desta breve visão é claro que a lenda do Fílon cristão teve uma grande circulação e continha uma série de itens curiosos de informações (...) Especificamente as interações de Fílon com o cristianismo primitivo são lendárias em caráter, e partem do desejo de apologistas cristãos relacionarem os primórdios de seu movimento a representantes importantes e ilustres da sociedade greco-romana, incluindo membros famosos das comunidades judaicas da época. (Philo in Early Christian Literature, Ed. Fortress Press, Mineápolis 1993, pp. 7-8)

O fato de Eusébio colocar Pedro em Roma nos tempos de Cláudio não implica em bispado ali. Contudo, tais relatos são lendas piedosas, portanto, inúteis para a causa papal. Eusébio também relata a controvérsia pascoal que demonstra que a opinião do bispo romano Victor não era final na questão. Ele menciona como outros bispos (ex. Irineu) repreenderam o bispo romano com veemência:

Mas esta medida não agradou a todos os bispos, que por sua parte exortavam-no a ter em conta a paz e a união e a caridade para com o próximo. Conservam-se inclusive as palavras destes, que repreendem Victor com bastante energia. Entre eles está Irineu, na carta escrita em nome dos irmãos da Gália, dos quais era o chefe. (HE 5:10-11)

Eusébio também chama o bispo de Antioquia de papa, o que demonstra que no mínimo esse título não era exclusivo do bispo de Roma. Obviamente, tal título não implica me nenhum tipo de primazia jurídica, mas era apenas a forma carinhosa de tratar alguns bispos. É de se destacar que ele não se referiu ao bispo romano de igual forma, o que no mínimo levantaria suspeita sobre a primazia desse bispo sobre toda a igreja:

Logo, depois de dizer algumas coisas sobre todas as heresias, acrescenta: ‘Eu recebi esta regra e este modelo de nosso bem-aventurado papa Heraclas. (HE 5:7:4)

Ele ainda diz:

Além disso, a tradição nos faz saber igualmente que também alguns profetas foram convertidos em Cristos, figuradamente, por meio da unção com o óleo, de forma que todos estes fazem referência ao verdadeiro Cristo, o Verbo divino e celestial, único sumo Sacerdote do universo, único rei de toda a criação e, entre os profetas, único sumo Profeta do Pai. (HE 1:3:8)

Eusébio expressou bem a crença da igreja primitiva numa comunhão que dispensava um líder supremo humano, pois a chefia de Cristo era suficiente. Diante tudo isso, podemos concluir que Eusébio não é uma testemunha do papado, pelo contrário, a ideia de um bispo sendo chefe supremo da igreja é estranha aos seus escritos.

2 comentários:

  1. Perfeito Bruno! Sucinto e esclarecedor. Eu também escrevi um artigo sobre Eusébio de Cesaréia, mostrando algumas incongruências nos relatos do historiador, inclusive me vali da obra Chronicle que você citou aqui, o texto da Patrologia Latina afirma que Pedro foi bispo de ANTIOQUIA por 25 anos.

    Ademais, Eusébio é um historiador contraditório, pois tenta colocar Pedro em Roma a despeito da falta de evidências favoráveis à isso, uma hora dizendo que ele fundou a igreja de ROMA, outra hora dizendo que ele só chegou lá antes de morrer.

    Portanto, se perguntarem se podemos confiar em Eusébio de Cesaréia, a resposta será um grande e enfático NÃO.

    PAZ SEJA CONTIGO BRUNO.

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    1. De fato Thiago. Eusébio que algumas lendas fossem fatos históricos. Ele coloca Pedro em Roma no reinado de Cláudio com base nas lendas de Simão o Mago e do Fílon cristão. Todavia, o máximo que os católicos poderiam encontrar em Eusébio é um possível bispado de Pedro em Roma, o que é insuficiente para provar a doutrina papal. Essa seria apenas umas das premissas, outras como a primazia jurídica de Pedro e primazia jurídica do bispo de Roma não se encontram em Eusébio.

      Mas, mesmo o bispado de Pedro em Roma provavelmente não foi defendido por Eusébio. A ausência desse fato na obra História Eclesiástica é inexplicável caso ele detivesse essa ideia. A evidência da obra Crônicas de Eusébio é pouco confiável pelos motivos que eu citei no artigo.

      Embora ele coloque Pedro em Roma bom base em lendas, em nenhum momento ele afirma que o apóstolo foi bispo de lá. Ele também, seguindo Irineu, coloca não somente Pedro, mas também Paulo como fundador e organizador da igreja romana. Hoje é indisputável que nenhum dos dois fundou essa igreja. Roma provavelmente foi fundada por judeus convertidos no dia de pentecostes.

      Fique na PAZ!

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