sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Os Pais da Igreja e a Eucaristia (Inácio, Didaquê, Justino, Teófilo e Atenágoras) - Parte 1

Esta será uma série de cinco artigos:

Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5

A Igreja Romana ensina que após as palavras do sacerdote, o pão e o vinho se transformam literalmente no corpo e sangue de Cristo, há uma mudança na natureza dos elementos, por isso o termo transubstanciação. Ao comer o pão e tomar o vinho, acredita-se estar consumido literalmente a carne e o sangue de Cristo. Assim declarou o Concílio de Trento:

Se alguém negar que no Santíssimo Sacramento da Eucaristia está contido verdadeira, real e substancialmente o corpo e sangue juntamente com a alma e divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, e por conseguinte o Cristo todo, e disser que somente está nele como sinal, figura ou virtude — seja excomungado. (Concílio de Trento, Cânones Sobre a Santíssima Eucaristia)

A Igreja Romana ensina também que na Missa, Cristo é oferecido a Deus como sacrifício propiciatório. Trata-se de um sacrifício não cruento (sem sangue). Portanto, a doutrina eucarística romana tem dois aspectos: a transubstanciação e o sacrifício da missa.

Os católicos adoram a eucaristia. Se Cristo está ali presente, estará sendo adorado, caso contrário, é um exemplo clássico de idolatria, em que a criação é adorada ao invés do criador. Um detalhe importante: os Pais da Igreja não ensinaram a adoração aos elementos da eucaristia, esta prática não fazia parte da Igreja dos primeiros séculos, tendo ganhado força no segundo milênio. Só por esse fato, já podemos suspeitar que não sustentavam a posição romana.

Para efeitos apologéticos, vou usar o termo eucaristia, que neste caso é sinônimo de Santa Ceia ou Ceia do Senhor. No meio protestante, há basicamente três visões:

a)     Consubstanciação: é a visão luterana, segundo a qual Cristo está fisicamente e espiritualmente presente na eucaristia, estando juntamente com o pão e o vinho. Diferentemente da visão romana, não se acredita que as substâncias pão e vinho deixam de existir e transformam-se no corpo e sangue de Cristo. O pão e o vinho continuam sendo pão e vinho.
b)     Presença espiritual: Cristo não está fisicamente presente, mas há uma presença espiritual especial na eucaristia. Assim, não se trata de mero simbolismo, os crentes comungantes alimentam-se espiritualmente da eucaristia. Essa era a posição de Calvino.
c)     Memorialista: Essa posição, que é adotada pela maioria dos evangélicos, afirma que a presença de Cristo é apenas simbólica. A Eucaristia nos lembra do único e definitivo sacrifício de Cristo realizado na cruz. As palavras de Cristo devem ser tomadas de forma metafórica.

Como de costume, o romanista alega que sua visão da eucaristia sempre foi a crença da Igreja. Neste artigo, veremos que não procede. Os pais da Igreja tinham diferentes visões da presença de Jesus na Eucaristia, e por vezes, contrariavam a posição romanista. Não por acaso, a doutrina da transubstanciação somente foi oficialmente definida no século XIII, não sem controvérsia. Mesmo na Idade Média, no século IX, a eucaristia era objeto de debate, cujo exemplo mais notável foi a controvérsia entre Radbertus e Ratramnus.

Faremos então uma longa análise história que mostra o testemunho de vários pais da Igreja. Antes de tudo é preciso evitar um equívoco muito comum – afirmar que presença real é sinônimo de transubstanciação. Os defensores da presença real usam esse termo em oposição à visão meramente simbólica da Ceia, sendo que existem outras posições além da transubstanciação que defendem a presença real: consubstanciação e presença espiritual. Desta forma, o papista não deve apenas demonstrar que determinado autor cria na presença real, ele precisa provar que a natureza desta presença era conforme a transubstanciação.

Inácio de Antioquia (35 – 100)

A seguinte citação de Inácio é a mais utilizada pelos apologistas católicos:

Eles se afastam da eucaristia e da oração, porque não professam que a eucaristia é a carne de nosso Salvador Jesus Cristo, que sofreu por nossos pecados e que, na sua bondade, o Pai ressuscitou. Desse modo, aqueles que recusam o dom de Deus, morrem nas suas disputas. Seria melhor para eles praticarem o amor, a fim de ressuscitarem também. (Aos Esmirniotas 7:1)

Quem são esses que se afastam da eucaristia e da oração? Nos capítulos 2 e 5 da mesma carta temos a resposta:

Ele sofreu tudo isso por nós, para que sejamos salvos. E ele sofreu realmente, assim como ressuscitou verdadeiramente. Não sofreu, apenas na aparência, como dizem alguns incrédulos. São eles que existem apenas na aparência.  Assim como pensam, para eles acontecerá serem sem corpos e semelhantes a espíritos.

De fato, o que adianta alguém me louvar, se ele blasfema contra o meu Senhor, confessando que ele não se encarnou? Aquele que assim diz, o renega completamente, tornando-se portador de morte.

Inácio está combatendo o ensino dos docetistas. Eles diziam que Jesus não tinha um corpo físico, apenas aparentava tê-lo. Para eles, Cristo era apenas espírito e, portanto, não havia encarnado de fato. Os docetistas negavam o sofrimento real e a ressurreição de Cristo.

Por que Inácio os considerava hereges infiéis? Por que eles negavam a encarnação, o sofrimento e a ressurreição. Exatamente por isso, eles se afastavam da Eucaristia, pois essa representa a paixão de Cristo, o sacrifício verdadeiro que nos traz salvação. Não seria preciso que os cristãos cressem numa transubstanciação para os hereges se afastarem da Eucaristia, pois mesmo na perspectiva simbólica, os hereges também negariam a eucaristia, uma vez que não creriam na realidade ali simbolizada.

Inácio não os repreende por que supostamente negavam que o pão era literalmente o corpo de Cristo, mas por negarem as realidades as quais a eucaristia representa. Não há nada no contexto desta carta que sugira transubstanciação. O bispo de Antioquia a escreveu para exortar a Igreja a permanecer na unidade e na verdade do evangelho, e combater heresias como o docetismo.

Esforçai-vos para vos reunir mais frequentemente, para agradecer e louvar a Deus. Quando vos reunis com frequência, as forças de satanás são abatidas e sua obra de ruína é dissolvida pela concórdia de vossa fé. Não há nada mais precioso do que a paz, que põe abaixo toda a guerra das potências aéreas e terrestres. (Aos Efésios 13)

Inácio deixa claro o objetivo principal de se reunir: agradecer e louvar a Deus. Como já dito, não há nada nas sete cartas de Inácio que remeta ao sacrifício da missa. Aqui isso fica bem óbvio, se ele acreditasse numa missa como a reapresentação do sacrifício propiciatório de Cristo, exortaria a Igreja a se reunir com frequência para esta finalidade, pois este é o motivo principal pelo qual o católico considera pecado mortal faltar deliberadamente a missa aos domingos. Mas Inácio, não sendo um católico romano, dá uma resposta mais parecida com a de um evangélico – reunir em culto para agradecer e louvar a Deus e não para comer literalmente sua carne.

Vemos em outras partes de suas cartas que Inácio utiliza bastante a linguagem simbólica:
Não me dignei escrever o nome deles, pois são infiéis. Não os recordarei, enquanto não se converterem à paixão, que é a nossa ressurreição. (Aos Esmirniotas 5:3)

Refugiando-me no evangelho como na carne de Jesus e nos apóstolos, como também nos presbíteros da Igreja. (Aos Filipenses 5:1)

Portanto, armai-vos com doce paciência e recriai-vos na fé, que é a carne do Senhor. (Aos Tralianos 8:1)

Deveríamos interpretar que a nossa ressurreição se transubstancia de alguma forma na paixão de Cristo? O evangelho é literalmente a carne de Cristo? A fé é literalmente a carne do Senhor? Obviamente não, percebe-se o uso de metáforas e simbologias.

Nada do que é visível é bom. De fato, nosso Deus Jesus Cristo, estando agora com o seu Pai, torna-se manifesto ainda mais. (Aos Tralianos 3:3)

Essa é uma afirmação que não se esperaria vir de alguém que acredita na presença física de Jesus Cristo na Eucaristia. Inácio parece compreender que Jesus não está fisicamente na terra, mas apenas junto do Pai no Céu.

Permiti-me ser pasto das feras, pelas quais me é dado alcançar Deus. Sou trigo de Deus, e pelos dentes das feras hei de ser moído, a fim de ser apresentado como limpo pão de Cristo. (Aos Romanos 4:1)

Mais linguagem simbólica. Inácio faz eco ao ensinamento bíblico de 1 Coríntios 10:17: “Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão”. O pão eucarístico não representa apenas o corpo de Cristo sacrificado por nós, mas também a nossa unidade com ele. Jesus também disse que iremos sofrer perseguição por nos unirmos a ele, assim como o mundo nos odiaria por que também odiava a ele. Desta forma, Inácio enxergava no martírio uma forma de se unir a Cristo, de ser participante da paixão de Cristo. Essa é a chave para entender a seguinte citação:

Mesmo se eu estiver junto de vós e vos implorar, não vos deixeis persuadir. Persuada-vos aquilo que vos escrevo. É vivo que eu vos escrevo, mas com anseio de morrer. Meu desejo terrestre foi crucificado, e não há mais em mim fogo para amar a matéria. Dentro de mim, há uma água viva, que murmura e diz: “Vem para o Pai.” Não sinto prazer pela comida corruptível, nem me atraem os prazeres desta vida. Desejo o pão de Deus, que é a carne de Jesus Cristo, da linhagem de Davi, e por bebida desejo o sangue dele, que é o amor incorruptível. (Aos Romanos 7:2-3)

Ele escreveu a carta aos romanos para desencoraja-los da ideia de tentar evitar seu martírio. Desejava ardentemente o martírio, quando afirma “Desejo o pão de Deus, que é a carne de Jesus Cristo”. Ele não está se referindo ao pão eucarístico, mas a participar da paixão de Cristo através do martírio. Ele ainda termina recorrendo a mais simbolismo comparando o sangue de Cristo não ao vinho caso se referisse à eucaristia, mas ao amor incorruptível de Deus.

Concluir transubstanciação nos escritos de Inácio é inadequado. A visão da presença espiritual seria tão ou mais compatível que a transubstanciação. Isso explicaria porque chamou o pão eucarístico de “remédio da imortalidade” (Aos Efésios 20), uma vez que a eucaristia seria um meio de graça e vigor espiritual.

Didaquê (100?)

A Didaquê é um documento cristão bem antigo. Não sabe-se ao certo a sua data, alguns a colocam no final do século I, outros mais para metade do segundo século.

Celebre a Eucaristia assim:
Diga primeiro sobre o cálice: “Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da santa vinha do teu servo Davi, que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre”.
Depois diga sobre o pão partido: “Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre.
Da mesma forma como este pão partido havia sido semeado sobre as colinas e depois foi recolhido para se tornar um, assim também seja reunida a tua Igreja desde os confins da terra no teu Reino, porque teu é o poder e a glória, por Jesus Cristo, para sempre”.
Que ninguém coma nem beba da Eucaristia sem antes ter sido batizado em nome do Senhor pois sobre isso o Senhor disse: “Não dêem as coisas santas aos cães”. (Cap. 9)

A Didaquê continha instruções sobre a Eucaristia. Sendo uma instrução de como deve se proceder nesta ordenança, era de se esperar alguma menção a transformação dos elementos, ou ao sacrifício de Cristo acontecendo naquele momento e instruiria os cristãos a adorarem os elementos transubstanciados. Mas não há nada disso. Imagine que alguém pedisse a um sacerdote romano para elaborar uma breve instrução sobre a eucaristia, inevitavelmente faria menção a todos os elementos supracitados, seria inexplicável não mencionar nada sobre. O autor ainda emprega linguagem simbólica ao referir o pão como símbolo de unidade na Igreja.

Reúna-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer após ter confessado seus pecados, para que o sacrifício seja puro.
Aquele que está brigado com seu companheiro não pode juntar-se antes de se reconciliar, para que o sacrifício oferecido não seja profanado.
Esse é o sacrifício do qual o Senhor disse: "Em todo lugar e em todo tempo, seja oferecido um sacrifício puro porque sou um grande rei - diz o Senhor - e o meu nome é admirável entre as nações". (Cap. 14)

O autor se refere à eucaristia como um sacrifício, citando Malaquias 1:11. Seria esperado que mencionasse o sacrifício de Cristo, caso pensasse como um romanista. Pelo contrário, a Didaquê fala sobre o sacrifício como uma oferta de louvor oferecida a Deus, não há nada referente ao sacrifício de Cristo ou uma reapresentação deste sacrifício.

O Novo Testamento ensina os crentes a se apresentarem a Deus como um sacrifício de louvor, ensina também a comungar com espírito de santidade e apresentarmos nossos corpos a Deus como sacrifício santo e puro. A leitura correta de Malaquias seria interpretar o sacrifício como algo que o cristão oferece de si mesmo em louvor a Deus. A leitura romanista de que a oferta é o próprio Deus sacrificado sendo oferecido a Deus não faz sentido. 

Portanto, irmãos, rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este é o culto racional de vocês. (Romanos 12:1)

Por meio de Jesus, portanto, ofereçamos continuamente a Deus um sacrifício de louvor, que é fruto de lábios que confessam o seu nome.
Não se esqueçam de fazer o bem e de repartir com os outros o que vocês têm, pois de tais sacrifícios Deus se agrada. (Hebreus 13:15,16)

Justino Mártir (100 – 165)

Em sua primeira apologia, Justino dá uma descrição detalhada da celebração da eucaristia, fazendo um contraste com práticas pagãs que distorciam a verdade:

Depois àquele que preside aos irmãos é oferecido pão e uma vasilha com água e vinho; pegando-os, ele louva e glorifica ao Pai do universo através do nome de seu Filho e do Espírito Santo, e pronuncia uma longa ação de graças, por ter-nos concedido esses dons que dele provêm. Quando o presidente termina as orações e a ação de graças, todo o povo presente aclama, dizendo: "Amém." Amém, em hebraico, significa "assim seja". Depois que o presidente deu ação de graças e todo o povo aclamou, os que entre nós se chamam ministros ou diáconos dão a cada um dos presentes parte do pão, do vinho e da água sobre os quais se pronunciou a ação de graças e os levam aos ausentes.  Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo nos ensinou.  De fato, não tomamos essas coisas como pão comum ou bebida ordinária, mas da maneira como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do Verbo de Deus, teve carne e sangue por nossa salvação, assim nos ensinou que, por virtude da oração ao Verbo que procede de Deus, o alimento sobre o qual foi dita a ação de graças - alimento com o qual, por transformação, se nutrem nosso sangue e nossa carne - é a carne e o sangue daquele mesmo Jesus encarnado. (I Apologia 65-66)

No início de sua apologia, ele defende os cristãos da acusação de comerem e beberem carne e sangue humanos. Nessa citação, ele está esclarecendo que os cristãos não fazem isso, mas usam pão, vinho e água. Era esse o alimento, e não carne ou sangue humano. É comum católicos alegarem que Justino não se defendia das acusações de canibalismo aos cristãos, portanto, criam na transubstanciação. Isso é falso, nesta citação, e em outras, veremos o contrário.

Alguns podem alegar que Justino diz que não se trata de “pão comum ou bebida ordinária”, o que indicaria uma presença física. Até alguém que acredita na presença simbólica diria a mesma coisa. O fato de o símbolo representar algo importante ou sagrado faz com que respeitemos o símbolo de forma especial, diferentemente do que faríamos com o mesmo elemento em situação normal.

Outro argumento é que Justino diz que por “transformação nutrem nosso sangue e nossa carne”. Ele se refere à transformação que sofrem em nosso organismo o nutrindo. A intenção é mostrar que os Cristãos não eram canibais.

No capítulo 26 da mesma obra, Justino cita vários hereges como Simão e Marcião, que eram chamados de Cristãos pelos pagãos. Eles, porém, não eram condenados nem perseguidos como os cristãos:

Ora, se também eles praticam todas essas vergonhosas obras que se propalam contra nós, isto é, jogar por terra o castiçal, unirmo-nos promiscuamente e alimentarmo-nos de carnes humanas, não o sabemos. Todavia, estamos certos de que não são perseguidos, nem condenados por vós, ao menos por causa de suas doutrinas. Além disso, nós mesmos compusemos uma obra contra todas as heresias que existiram até o presente. Se quiserdes lê-Ia, nós a colocaremos em vossas mãos. (Ibid., 26:7-8)

Justino classifica alimentar-se de carne humana como “obra vergonhosa”. Seria inexplicável essa opinião se sustentasse a doutrina da transubstanciação, em que se consome a carne de Cristo. Mais a frente, em conformidade com essa defesa, mostrará que a eucaristia não é um ritual canibal.

Em sua Segunda Apologia, Justino prossegue demonstrando que se alimentar de carne humana não é uma prática cristã:

Eu mesmo, quando seguia a doutrina de Platão, ouvia as calúnias contra os cristãos. Contudo, ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que é considerado espantoso, comecei a refletir que era impossível que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres. Com efeito, que homem amante do prazer, intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas, poderia abraçar alegremente a morte, que vai privá-lo de seus bens, e que não procuraria antes, de todos os modos, prolongar indefinidamente a sua vida presente e esconder-se dos governantes, e menos ainda sonharia em delatar a si mesmo para ser morto? (II Apologia 12:1-2)

Em um debate com Trifão, Justino lida diretamente com a Eucaristia. Ele escreveu sobre muitos tipos do Antigo Testamento e como eles apontavam para Cristo e Sua Igreja. Com relação à Eucaristia, ele disse:

E a oferta de farinha, senhores, eu disse, que foi prescrito para ser apresentado em favor daqueles purificado da lepra, era um tipo do pão da eucaristia, a celebração que nosso Senhor Jesus Cristo prescreveu, em lembrança do sofrimento que Ele suportou em nome daqueles que são purificados na alma de toda a iniquidade, a fim de que possamos, ao mesmo tempo agradecer a Deus por ter criado o mundo, com todas as coisas, por causa do homem, e por livrar-nos do mal em que estávamos, e para derrubar completamente os principados e potestades por Aquele que sofreu de acordo com Sua vontade. (Diálogo com Trifão 41)

A tipologia estabelecida é incompatível com a doutrina romanista. Da mesma forma que o leproso oferecia a farinha em agradecimento por ter sido purificado da lepra, na eucaristia, lembramos do sofrimento de Cristo que nos purificou. Também diz que a eucaristia, assim como a oferta do leproso, é um agradecimento pelo que Deus fez. Na visão de Justino, Jesus não está sendo sacrificado, mas o seu sacrifício é recordado e ao mesmo tempo louvado e agradecido. É incoerente lembrar-se de algo que está acontecendo no presente, lembra-se é uma ação sempre referente a fatos passados que não persistem no presente. Justino continua a apontar tipologias do Antigo Testamento:

‘Pão deve ser dado a ele, e sua água [será] segura. Vereis o Rei de glória, e teus olhos o verão longe. Sua alma deve buscar diligentemente o temor do Senhor. Onde está o escriba? onde estão os conselheiros? (...) Agora, é evidente que nesta profecia [alusão é feita] para o pão que nosso Cristo nos deu para comer, em memória dele que foi feito carne para o bem dos que Nele creem, por quem também sofreu; e para o cálice que Ele nos deu para beber, em memória de seu próprio sangue, com ações de graças. (Ibid., 70)

Ele não afirma que Cristo deu seu corpo para literalmente ser comido, mas deu o pão para ser comido em memória dele. Nem afirma que Cristo deu literalmente seu sangue para ser bebido, mas o cálice para ser bebido em memória do seu sangue. Como Justino poderia afirmar “cálice em memória do seu sangue” se ele acreditasse que o vinho se transforma no próprio sangue de Cristo?

Ainda define claramente qual é o verdadeiro sacrifício cristão:

Ezequiel diz: "Não haverá outro príncipe na casa, mas Ele". Porque Ele é o escolhido Sacerdote e Rei eterno, o Cristo, na medida em que Ele é o Filho de Deus; e não creio que Isaías ou os outros profetas falavam de sacrifícios de sangue ou libações sendo apresentadas no altar até sua segunda vinda, mas de verdadeiros e espirituais louvores e ações de graças. (ibid 118)

Ações de graças, quando oferecido por homens dignos, são os únicos sacrifícios perfeitos e agradáveis a Deus.  (Ibid 117)

Em Diálogo com Trifão, Justino diz várias vezes que a Eucaristia é um sacrifício, mas qual é a natureza deste sacrifício? Nada pode ser mais claro do que essas últimas citações. Tais sacrifícios eram o oferecimento da eucaristia em agradecimento e louvor a Deus por sua obra, eram ofertas espirituais, que não envolvia sangue ou libações.

Esse autor definitivamente não acreditava na missa romana. Diferente desta, a oferta não era o próprio Cristo sacrificado pelos pecados, não havia menção a uma expiação presente de pecados. O caráter era espiritual, envolvendo louvor e agradecimento. A ideia da eucaristia como uma oferta propiciatória pelos pecados apareceria somente alguns séculos depois. Os Pais ante nicenos não sustentavam essa visão.

Teófilo de Antioquia (? – 186)

Teófilo foi Bispo de Antioquia no final do segundo século. Ele nos dá um importante testemunho de como os cristãos respondiam a acusação de que comiam carne humana. Os pagãos, ao os verem dizendo que comiam o corpo de Cristo e bebiam o seu sangue, entendiam assim como os católicos romanos de forma literal. O Bispo respondeu:

Eu nem deveria estar refutando essas coisas, se não fosse porque te vejo agora duvidando sobre a doutrina da verdade. Mesmo sendo sensato, suportas de boa vontade os ignorantes. De outra forma, não terias deixado desviar-te pelos vãos discursos de homens insensatos, nem acreditado nesse boato preconceituoso de bocas ímpias, que mentirosamente caluniam a nós, que adoramos a Deus e nos chamamos cristãos, espalhando que temos mulheres em comum e que não nos importamos com quem nos unimos; além disso, dizem que mantemos relação carnal com nossas próprias irmãs e, o que é mais ímpio e cruel, que nos alimentamos de carnes humanas. (Teófilo para Autólico 3:4)

Imagine um católico romano sofrendo esta acusação. Ele diria que não come qualquer carne, mas o corpo de Cristo e com certeza faria alguma defesa de sua crença na transubstanciação. Não é o que Teófilo faz, simplesmente diz que os cristãos não se alimentam de carne humana, sem fazer maiores esclarecimentos.

Atenágoras (133 – 190)

 Atenágoras foi um apologista cristão do século II. Assim como outros Pais da Igreja, se defendeu da acusação de os cristãos comerem carne e sangue humanos. Ele não excetua, nem dá maiores explicações sobre a eucaristia. Seria uma resposta estranha vinda de alguém que acredita que o pão e o vinho são de fato corpo e sangue:

Para que falar dos corpos que não são destinados a ser alimento de nenhum animal e aos quais resta apenas a sepultura na terra, para honra da natureza, se o Criador não destinou nenhum animal como alimento dos de sua própria espécie, embora possam transformar-se em alimento natural para outros de espécie diferente?
Ora, se se pode demonstrar que as carnes humanas estão destinadas a servir de alimento para os homens, nada se oporá a que a antropofagia esteja de acordo com a natureza, como qualquer outra das coisas que a natureza permite, e os que se atrevem a dizer tais atrocidades poderão saciar-se com os corpos de seus mais queridos, como mais apropriados para si, ou dar seus banquetes com estes para seus melhores amigos. Todavia, se apenas falar isso é uma impiedade e os homens comerem os homens é coisa horrorosa e abominável, e não há comida ou ação contra a lei e a natureza mais sacrílega do que esta; e como o que é contra a natureza não pode se transformar em alimento para as partes que dele necessitam, e se não se transforma em alimento também não pode se assimilar ao que naturalmente não pode alimentar, segue-se de tudo isso que os corpos dos homens jamais podem assimilar corpos de sua mesma espécie, por ser alimento contra a natureza, embora passasse muitas vezes por seu ventre para uma amarga desgraça; ao contrário, separados da força nutritiva e espalhados entre aqueles elementos, dos quais receberam sua primeira composição, identificam-se com estes pelo tempo que tocar a cada um. (Da Ressurreição dos Mortos 8)

Um comentário:

  1. No didaque, a Eucaristia era mesmo a ceia do Senhor? Eu li num local que o termo eucaristia significa apenas ação de graças.
    Digo isso, pq a ceia dos evangelhos, a primeira benção era feita sobre o pão e a segunda sobre o vinho. Ai está invertido, primeiro sobre o vinho, podendo ser uma benção de qdo estivessem fazendo uma refeição comunal e não a ceia instituida na Páscoa.

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