Já existem excelentes artigos em português demonstrando que esse ditado
é uma distorção do pensamento de Agostinho a respeito da autoridade na Igreja: Aqui e Aqui.
Abaixo,
segue a explicação do teólogo católico romano Klaus Schatz:
No caso do Norte de África é
interessante observar a atitude de uma igreja autoconfiante e organizacionalmente
intacta em relação a Roma. A declaração do Bispo Agostinho de
Hipona (396-430), Roma locuta, causa finita ("Roma falou, o assunto está
resolvido") foi citada repetidamente. No
entanto, a citação é realmente uma ousada reformulação das palavras do pai da
igreja tomadas completamente fora de contexto.
Concretamente
a questão era o ensinamento de Pelágio, um asceta da Grã-Bretanha, que viveu em
Roma. Pelágio tomou uma posição contra o cristianismo permissivo e minimalista
que recuava da seriedade moral do discipulado cristão e usava a incapacidade
humana e confiança somente na graça para desculpar a preguiça pessoal. Ele,
portanto, enfatizou um cristianismo ético de obras e desafio moral no qual a
graça era principalmente um incentivo para a ação; os seres humanos continuam a
ser capazes de escolher entre o bem e o mal por sua própria capacidade. Esse
ensinamento foi condenado por dois concílios do Norte da África em Cartago e
Mileve em 416. Mas como Pelágio viveu em Roma, e Roma foi o centro do movimento
pelagiano, pareceu apropriado informar ao Papa Inocêncio I da decisão. Em
última análise, a luta contra pelagianismo só poderia ser realizada com a cooperação
de Roma. O Papa respondeu finalmente em 417, aceitando as decisões dos dois
Concílios. Agostinho, em seguida, escreveu: "Já sobre esta causa dois
concílios foram enviados à Sé Apostólica, donde também rescritos chegaram. A
causa está terminada. Que o erro possa igualmente terminar".
Tanto o contexto dessa
declaração e sua continuidade com o resto do pensamento de Agostinho não
permite outra interpretação que não seja a de que o veredicto de Roma somente
não é decisivo; em vez disso, dispõe de todas as dúvidas depois
de tudo que a precedeu. Isso é porque não restava nenhuma outra autoridade
eclesiástica de qualquer consequência para quem os pelagianos poderiam apelar,
e em particular a própria autoridade da qual eles poderiam mais facilmente ter
esperado uma decisão favorável, ou seja, Roma, tem claramente decidido contra
eles!
Em
geral, Agostinho atribui um peso relativamente importante de autoridade para a
igreja romana em questões de fé, mas não
considera que ela tenha um ofício superior de ensino. Tem auctoritas, mas não potestas sobre a Igreja no Norte da África.
Os próprios concílios acima mencionados dão uma imagem clara da forma como os
africanos, incluindo Agostinho, consideravam a autoridade de ensino de Roma. Eles enviaram seus registros a Roma não
para obter a confirmação formal, mas porque reconheciam que a Igreja Romana,
com a sua tradição, tinha um auctoritas recebido em questões de fé; portanto,
eles desejavam ter uma decisão Romana junta com a sua própria. Isso é
especialmente evidente em uma carta de Agostinho escrita para cinco bispos: “não estamos, disse ele, derramando nossa
pequena gota de volta para sua ampla fonte para aumenta-la, mas (...) nós
desejamos ser reafirmados por vocês a respeito destas nossas gotas, que
escassas todavia, fluem a partir da mesma fonte que seu córrego abundante, e
nós desejamos o consolo de seus escritos, tirados de nossa comum partilha da
mesma graça”. Toda a Palavra desta deve ser observada: a igreja romana não é a fonte da igreja africana, pois ambos, em fluxos
paralelos, fluem do rio da mesma tradição, mesmo que o rio seja mais completo
na igreja romana. Roma tem, assim, uma autoridade relativamente maior e
mais importante, sendo por isso que a Igreja Africana procura um veredicto de
Roma.
Papal Primacy (Minnesota: The
Liturgical Press, 1996, p. 34-35)
Klaus
Schatz usou as expressões “Auctoritas” para se referir à autoridade da Igreja
Romana e mencionou que não tinha “potestas”. Essas expressões são do direito
romano. Autorictas envolve a autoridade de alguém que possui excelência moral
ou notório saber em algo. Eu mesmo fiz uso dessa ao citar Klaus Schatz. Ele
possui “autorictas” porque é um estudioso no assunto, portanto, sua opinião tem
maior peso, ainda mais quando vai contra a opinião de muitos de sua própria denominação.
Potestas seria a autoridade institucionalmente e vinculantemente constituída.
Um juiz tem este tipo de autoridade, sua autoridade nasce do poder legal, sendo
obrigatória. Ao citar Klaus, não estou lhe concedendo este tipo de autoridade,
pois apesar de reconhecer que ele tem notório saber no assunto, não considero
sua opinião obrigatória, infalível ou inerrante.
Esta
distinção é fundamental para entender a autoridade exercida pela Igreja Romana
nos tempos de Agostinho. Ela era a
Igreja mais importante do ocidente e detinha grande prestígio juntamente com as
outras sedes apostólicas (Alexandria, Antioquia, Constantinopla e Jerusalém).
Sua posição tinha peso, mas não era considerada infalível ou vinculativa por si
mesma. Por isso, nas controvérsias, era
comum que a Igreja Romana e as outras Sedes Apostólicas fossem consultadas.
Assim foi no caso do arianismo, pelagianismo, monofissimo e outras heresias.
Porém, caso a Igreja consultada decidisse de forma contrária à posição apoiada pela
Igreja apelante, essa não necessariamente mudaria sua posição, pois não
considerava a decisão da Sede Apostólica infalível ou vinculativa. Esse foi o
caso da Igreja Norte Africana. Quando o Bispo Romano Zózimo voltou atrás na
condenação ao Pelagianismo, os norte africanos não mudaram sua posição e se
mantiveram firmes na condenação à heresia.
Desta
forma, quando um apologista papal tentar provar que a Igreja Romana tinha
supremacia jurisdicional sobre as demais a partir dos casos em que outras
Igrejas a consultavam sobre controvérsias doutrinárias, é preciso demonstrar
que a parte apelante considerava essa opinião vinculante e infalível. Isso
nunca ocorreu. As partes de uma controvérsia muitas vezes apelavam a outras
Sedes Apostólicas, cujas decisões os romanistas não considerariam vinculantes e
infalíveis por si mesmas. E também, em diversas ocasiões, a parte apelante não
seguiu a opinião da Sé Apostólica consultada.
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