O ensino de que os apóstolos transmitiram sua autoridade a sucessores que por sua vez transmitiriam a outros homens pelos séculos do séculos é compartilhado por várias Igrejas: Romana, Ortodoxa, Não-Calcedonianas, Vetero-Católica e algumas comunhões Luteranas. Uma Igreja apostólica necessariamente deveria estar dentro de uma sucessão histórica de bispos ordenados cujo primeiro elo seria os apóstolos. Já discutimos a falta de apoio histórico a essa reivindicação aqui. Agora, iremos analisar se a Escritura dá apoio a essa alegação.
A
Igreja romana faz um apelo incoerente à doutrina da sucessão. Embora reconheça
que a Igreja Ortodoxa tem sucessão apostólica, essa não seria uma verdadeira
Igreja porque não está em comunhão com o sucessor de Pedro, ou seja, ainda que
a sucessão se refira a todos os apóstolos, apenas o sucessor de Pedro pode
garantir a pureza doutrinária da Igreja. Por isso, discussões sobre sucessão
sempre envolvem o papado. Existem bons artigos em português tratando da
incompatibilidade do papado com o ensino bíblico: aqui (estudo exegético de Mateus 16:18), aqui (provas bíblicas contra o papado), aqui (extensa lista de artigos sobre papado e escritura).
Assim,
nesse artigo não trataremos sobre o papado especificamente, mas a noção de
sucessão apostólica em geral. Ainda que os católicos provassem que Pedro foi um
papa, restaria provar que ele transmitiu sua autoridade a outros (no caso o
bispo de Roma). A Escritura não menciona a autoridade de Pedro sendo transmitida
a outro, tampouco fala sobre o bispo de Roma.
A
autoridade dos apóstolos
Os
primeiros cristãos acreditavam que Deus tinha se tornado homem, entregado uma
nova revelação, estabelecido um reino e comissionado os apóstolos (Mateus
28:18-20, João 1:1-14 e Atos 1:8). Eles iriam julgar as doze tribos de Israel
(Lucas 22:30). Os apóstolos eram fundamento da igreja (1 Coríntios 12:28,
Efésios 2:20 e 4:11, 2 Pedro 3:2, Apocalipse 21:14). Eles foram comparáveis aos
profetas do Antigo Testamento (2 Pedro 3: 2).
Na
carta que alguns consideram o mais antigo documento cristão que temos hoje, o
apóstolo Paulo referiu-se a mensagem dos apóstolos como "a palavra de
Deus" (1 Tessalonicenses 2:13). Em outro lugar, refere-se ao que ele está
escrevendo como "o mandamento do Senhor" (1 Coríntios 14:37). Ele
espera que os seus ensinamentos, oral e escrito sejam seguidos (2
Tessalonicenses 2:15) e espera que os cristãos se separem de quem não segue
esses ensinamentos (2 Tessalonicenses 3:6, 03:14). Lee Macdonalds observa:
É também claro que as cartas
de Paulo foram lidas publicamente nas Igrejas, e isso implica que eram vistas
em algum sentido como Escritura. Observe, por exemplo, o tom autoritário em muitas passagens sugerindo que Paulo também viu os
seus escritos como autorizadas e até proféticos (1 Cor 5:3-5; 6:1-6;
7:10-11, 7:17-20, 40; 11:23-34; Gl 5:1-4). (TCD, n. 9 on 419)
Aqui
se vê a primeira inconsistência do ensinamento da Igreja Romana. Todos os
apóstolos, cujo exemplo mais notável é Paulo, tinham o ensinamento correto e
vinculavam a Igreja, porque então apenas o suposto sucessor de Pedro vincula a
Igreja atualmente? Muitas das Igrejas fundadas por Paulo não estão mais em
comunhão com Roma, logo, seus sucessores teriam naufragado da fé. Qual o valor
de uma sucessão que não pode garantir a preservação da doutrina?
O
evangelho de João refere-se à forma como os apóstolos seriam guiados pelo
Espírito Santo em "todas as coisas" e iram lembrar tudo que Jesus
ensinou (João 14:26, 15: 26-27). Católicos costumam citá-la aplicando aos
“sucessores” dos apóstolos. Esses não podiam ensinar heresias, mas como a
Igreja Romana admite, um bispo sucessor de um apóstolo pode ensinar heresia,
portanto, essa passagem não pode ser aplicada à sucessão.
O
papista pode aplicar essa promessa exclusivamente ao bispo de Roma como uma
evidência da infalibilidade. O problema é que a promessa é para todos os
apóstolos e não somente Pedro. Um apelo consistente teria que admitir a
infalibilidade de todos os bispos, inclusive ortodoxos orientais, algo que
nenhuma Igreja admite. A única interpretação viável é que a promessa de Jesus
aplica-se exclusivamente aos apóstolos, não incluindo gerações posteriores de
líderes cristãos, afinal somente eles ouviram Jesus diretamente e poderiam ser
lembrados do que foi ensinado.
A
partir disso, todos os apelos à Escritura para fundamentar a sucessão
apostólica se tornam problemáticos. O
mesmo apelo é feito em Lucas 10:16:
Aquele que lhes dá ouvidos,
está me dando ouvidos; aquele que os rejeita, está me rejeitando; mas aquele
que me rejeita, está rejeitando aquele que me enviou.
Roma
diz que ao rejeitarmos sua hierarquia, estamos rejeitando Jesus. Mais uma vez,
o mesmo problema persiste – e os supostos sucessores de outras Igrejas? Como
podemos aceitar o que os bispos ortodoxos e romanos dizem, se eles ensinam doutrinas
diametralmente opostas? Não há nada nesse versículo que implique que milênios
depois deveríamos nos submeter a um papa ou patriarca, ainda mais quando eles
não perseveraram na sã doutrina. Essa afirmação de Jesus não se aplica somente
aos apóstolos, mas aos setenta. Jesus os enviou para pregar o evangelho,
expulsar demônios e curar os enfermos. Como eles portavam a mensagem do
evangelho, rejeita-lo seria rejeitar a Cristo e sua oferta de salvação. A
questão não era quem era rejeitado, mas o que. Da mesma forma, nos dias de
hoje, rejeitar o evangelho equivale a rejeitar a Cristo. Em todo o Novo
Testamento, a missão de pregar não é exclusiva de uma hierarquia, mas de todos
os crentes. Em Lucas 9 é mencionado que milagres e expulsão de demônios faziam
parte do ministério dos discípulos. Os atuais supostos sucessores não realizam isso.
Pais
da Igreja como Jerônimo e Atanásio testemunham que no séc. IV, a maior parte
dos bispos eram arianos. O que um crente deveria ter feito? Aceitar o arianismo,
já que um suposto sucessor dos apóstolos assim pregava? Obviamente não. Ele
deveria se manter firme na fé e rejeitar a autoridade do bispo ariano. Por
isso, Paulo disse que se até mesmo ele ou um anjo pregasse outro evangelho,
deveria ser rejeitado (Gal 1:8). A atitude dos bereanos é elogiada por testar o
ensino apostólico pela Escritura (At 17:11). Isso corrobora que a
apostolicidade de uma Igreja é comprovada pela sua fidelidade ao evangelho e
não uma suposta sucessão histórica.
Os
mesmos problemas são visto no apelo a Mateus 28:19-20. Cristo comissiona seus
discípulos a fazerem novos discípulos e promete estar com eles até a consumação
dos séculos. Eles deveriam batizá-los e ensiná-los a guardar todo o ensino
Jesus. A ideia de que os apóstolos fizeram discípulos que deveriam continuar
propagando o evangelho é perfeitamente compatível com o protestantismo. Mas
esse conceito é distinto do católico romano. Vejamos os problemas:
a) A
Igreja Romana diz que os bispos receberam a função de ensinar, governar e
santificar (ex: consagrar a eucaristia). A única função aludida na passagem é
ensinar. Não é dito nada sobre governo, eucaristia ou confissão de pecados.
Aliás, em todo o Novo Testamento, não é dito que somente um membro ordenado
poderia consagrar a Eucaristia ou em regra poderia batizar. As funções mais
importantes eram de ensino e pregação (1 Timóteo 5:14 e Atos 6:2);
b) Quem
eram os discípulos a serem feitos pelos apóstolos? Apenas os membros do clero
sacramentalmente ordenados? A evidência do N.T sugere que não. Os discípulos
seriam aqueles que creriam na mensagem apostólica. O versículo não limita a
promessa de “estar convosco até a consumação dos séculos” a membros ordenados,
mas a todos os crentes. Todo cristão em regra deve fazer novos discípulos de
Cristo.
Por
não ter em vista uma sucessão sacramental de ordenações, esse texto não é uma
prova do ensino papista.
Pedro e Paulo não apontam para
sucessores como garantidores da doutrina
Analisemos
Atos 20: 17-36. Paulo está se despedindo dos presbíteros da Igreja de Éfeso.
Ele diz que pregou todo o conselho de Deus e adianta que provavelmente não os
veria mais. Temos aqui um homem preocupado com o futuro do rebanho, ele
pessoalmente não poderia mais supervisionar aquela Igreja e como em outras
cartas, os exorta a respeito de falsos mestres. Paulo não diz para os
presbíteros ordenarem outros presbíteros e assim manter uma sucessão que
preservaria a Igreja de falsas doutrinas, também não diz “olhem para os
sucessores de Pedro, eles irão guia-los infalivelmente na fé”. Ele diz:
Sei que, depois da minha
partida, lobos ferozes penetrarão no
meio de vocês e não pouparão o rebanho. E dentre vocês mesmos se levantarão homens que torcerão a verdade,
a fim de atrair os discípulos. Por isso, vigiem! Lembrem-se de que durante três anos jamais cessei de advertir a cada
um de vocês disso, noite e dia, com lágrimas. Agora, eu os entrego a Deus e à palavra da sua graça, que pode edificá-los
e dar-lhes herança entre todos os que são santificados.
(Atos 20:29-32)
Ele
antevê que entre os próprios presbíteros surgiriam falsos mestres. Paulo está
falando de homens que conhecia, que poderiam ter sido escolhidos por ele, mas
esses homens não só não garantem a preservação da doutrina, como poderiam ser
eles próprios os falsos mestres. A atitude do apóstolo é lembra-los do que foi
pregado e exortá-los a manter a fé recebida. O que interessa não é quem passa,
mas o que é passado. A ênfase de Paulo é sobre o conteúdo da doutrina e não
sobre quem a veicula.
Exortação
semelhante é vista em 2 Timóteo. Paulo exorta-o a respeito dos falsos mestres.
Por que ele não disse para Timóteo olhar para os sucessores de Pedro? Seria a
recomendação mais sábia a fazer caso existisse um papa infalível que
preservaria a Igreja do erro. Ele previa a proximidade de sua morte e o
conselho dado a seu discípulo Timóteo foi:
Quanto a você, porém, permaneça nas coisas que aprendeu e das
quais tem convicção, pois você sabe
de quem o aprendeu. Porque desde criança você conhece as sagradas letras, que são capazes de torná-lo sábio
para a salvação mediante a fé em Cristo Jesus.
Toda a Escritura é inspirada por
Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a
instrução na justiça, para que o homem
de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra. (2
Timóteo 3:14-17)
Paulo
não tinha em mente a existência de alguém após os apóstolos que preservaria a
Igreja do erro, caso contrário, teria apelado a essa autoridade nesses
momentos. Ele apela à Escritura Sagrada. É nela que Timóteo estaria seguro
porque é “inspirada” por Deus. Os protestantes estão certos em rejeitar as
reivindicações de Roma, uma vez que ela não tem guardado as sagradas letras. Pedro, ninguém menos do que ele, age da mesma
forma:
Por isso, sempre terei o cuidado de lembrar-lhes
estas coisas, se bem que vocês já as sabem e estão solidamente firmados na
verdade que receberam. Considero importante, enquanto estiver no tabernáculo
deste corpo, despertar a memória de
vocês, porque sei que em breve deixarei este tabernáculo, como o nosso Senhor
Jesus Cristo já me revelou. Eu me empenharei para que, também depois da minha partida, vocês sejam sempre capazes de
lembrar-se destas coisas. De fato, não seguimos fábulas engenhosamente
inventadas, quando lhes falamos a respeito do poder e da vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo; pelo contrário, nós fomos testemunhas
oculares da sua majestade.
(2 Pedro 1:12-16)
(2 Pedro 1:12-16)
Porque Pedro não menciona seus sucessores
nesse momento? Bastaria apontar àqueles que garantiriam a vitória da Igreja
contra os falsos ensinos. A preocupação
de Pedro é fazê-los lembrar de tudo o que foi ensinado após a sua partida. Não
seria tão simples apontar os bispos de Roma como os guardiões dessa doutrina?
Toda a questão seria mais facilmente resolvida assim. Ele apela à autoridade
dos apóstolos ao dizer “fomos testemunhas oculares”. Ou seja, seus ouvintes
poderiam estar seguros, pois ele estava falando do que viu.
Em Tito 1:10-16, Paulo menciona líderes, em
especial do grupo da circuncisão, que estavam ensinando falsas doutrinas e
perturbando a paz das Igrejas. O apóstolo insta Tito a resistir a esses homens.
Ou seja, num período bem cedo, já havia falsos mestres dentro das Igrejas
cristãs. É possível que alguns deles foram apontados por apóstolos. Paulo
menciona homens que caminharam com ele e o abandonaram, alguns aderindo a
falsas doutrinas (2 Timóteo 4:10-15). Se homens escolhidos pelos próprios
apóstolos apostataram, porque deveríamos confiar irrestritamente num suposto
sucessor que viveu séculos depois?
O fato dos apóstolos Paulo e Pedro não
apontarem para nenhuma sucessão garantidora do ensino correto no momento da
morte iminente é inexplicável caso esses homens detivessem a doutrina católica
romana.
A substituição de Judas
Católicos costumam citar a escolha de Matias
como exemplo de sucessão (Atos 1:16-26). A questão é que não há transmissão da
autoridade de Judas para Matias, mas mera substituição. Pedro diz que a traição
de Judas era o cumprimento de uma profecia, e era necessário que o número de 12
apóstolos fosse mantido. Esse número tinha um simbolismo relacionado às doze
tribos de Israel (Mateus 19:28; Lucas 22:29-30). O substituto deveria ser uma
testemunha ocular do ministério de Jesus, condição que ninguém das gerações
seguintes poderia cumprir. Quando Tiago é morto (Atos 12:2), nenhum substituto
é escolhido, isso mostra que o colégio apostólico era único e não seria
replicado nas gerações seguintes. Se o argumento católico fosse verdadeiro,
sempre que um apóstolo morria, um substituto deveria ser escolhido. Os cristãos
são ensinados a lembrar do que Jesus e os apóstolos pregaram (Atos 20:28-35; 2
Pedro 1:13-15 e 3:1-2), e não a esperar que todo o ensino apostólico fosse
infalívelmente mantido em sucessão ininterrupta ao longo da história. Francis
Sullivan, proeminente teólogo jesuíta, escreve:
O papel dos doze como simbolizando
os doze patriarcas de Israel significava que eles tinham um papel único a
desempenhar, justamente como um grupo de doze, na própria origem da Igreja.
Essa chamada a escolha de um décimo segundo homem para tomar o lugar de Judas,
antes de Pentecostes, no dia que Pedro "levantou-se com os onze"
(Atos 2:14), quando ele deu seu primeiro testemunho do Cristo ressuscitado. Por outro lado, alguns anos depois, quando
Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João, foi condenado à morte por Herodes
(Atos 12: 2), não havia dúvida sobre completar novamente o número dos doze,
pois o "tempo inicial de fundação" havia sido concluído. (Sullivan F.A. From Apostles to
Bishops: the development of the episcopacy in the early church. Newman Press, Mahwah (NJ), 2001, pp. 16)
Os líderes das Igrejas fundadas pelos
apóstolos
Um ponto nevrálgico da sucessão apostólica é
quem escolheu os primeiros líderes das Igrejas fundadas por eles.
Primeiramente, é preciso destacar que Igrejas bem antigas sequer foram fundadas
por apóstolos. A Igreja de Roma já existia antes de Paulo chegar lá, evidenciado
por sua carta aos romanos. Provavelmente, judeus conversos na pregação de
pentecostes fundaram essa Igreja. Em
segundo, há evidência que os líderes das Igrejas eram sempre escolhido por
apóstolos? A resposta é não. Paulo, por exemplo, parece ter escolhido seus
ajudantes imediatos como Timóteo e Tito, porém não é dito que ele pessoalmente
escolheu os presbíteros de todas as Igrejas que fundou. Cabe mencionar que
Timóteo e Tito não eram bispos, eles também desempenhavam atividade missionária
e ajudavam a fundar e organizar Igrejas, mas não há evidência de que tenham se
estabelecido como bispos de alguma igreja local.
Além disso, há evidência de que algumas
Igrejas foram inicialmente lideradas por mestres e profetas como na Igreja de
Antioquia (Atos 13:1-2). Há motivos para acreditar que os líderes eram
apontados de acordo com os seus dons e não pela ordenação de algum apóstolo. Paulo
menciona vários dons concedidos pelo Espírito Santo, entre eles de governar (1
Cor. 12:28) e presidir (Rom. 12:8). Portanto, é razoável crer que a liderança
emergia naturalmente baseado nos dons que eram distribuídos pelo Espírito.
Paulo menciona repetidas vezes que Deus concede uma variedade de dons aos
crentes para que cada um exerça uma função no corpo de Cristo.
A relação de Paulo com as Igrejas também
revela pouca hierarquização. Ele geralmente se dirige a toda a Igreja e não aos
líderes, dando instruções a toda a comunidade, como no caso do homem
excomungado da Igreja de Corinto (1 Cor. 5:1-5). Em Efésio 4:11-12, Paulo
menciona cinco ofícios: apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres.
É provável que as funções de pastor e mestre se refiram ao mesmo cargo, no caso
o líder da igreja local. Observa-se que coloca os líderes (pastores e mestres) depois
dos outros três. O mesmo ocorre em 1 Coríntios 12:28. Se os líderes de fato
herdassem a autoridade dos apóstolos, seria de se estranhar Paulo os nomeando
por último. O fato de Paulo se dirigir diretamente a Igreja nas cartas e nomear
os líderes por último evidencia que ele não os via como herdeiros de sua
autoridade apostólica. A ausência do papado nessa passagem é também relevante.
O apóstolo nomeia todos os ofícios dados por Deus para edificação da Igreja e
trata de incluir “apóstolos” no plural, mas nada diz sobre o que seria mais
importante – o papa.
Supondo então que a hipótese não provada de
que os apóstolos apontaram diretamente os líderes fosse verdadeira, não estaria
provada a sucessão apostólica. Como dito, protestantes concordam que os
apóstolos poderiam estabelecer líderes que deveriam manter a doutrina e as
Igrejas devem ter líderes responsáveis pelo governo e pregação. O que não é
ensinado é que esses líderes estavam recebendo a mesma autoridade que os
apóstolos e que algum deles garantiria infalivelmente a pureza doutrinária de uma
Igreja local. Também não é dito ou implicado que uma Igreja somente seria
apostólica caso seus líderes estivessem dentro de uma sucessão de ordenações
com origem em algum apóstolo.
As epístolas a Timóteo mostram a preocupação
de Paulo com seu discípulo. Ele o exorta a guardar a doutrina e viver uma vida
santa, sendo exemplo para os ouvintes. O apóstolo constantemente o exorta a ter
cuidado com os falsos mestres, não pressupondo em nenhum momento que Timóteo
tinha algum carisma que o tornaria imune aos falsos ensinos. Em nenhum momento,
o apóstolo apela a algum sucessor de Pedro a quem Timóteo deveria se reportar.
1 Tim 4:14 e 2 Tim 1:6 mencionam o dom de
Deus recebido por Timóteo. Católicos
tendem a identifica-lo como a graça transmitida no sacramento da ordenação. O
dom em questão é as qualidades e capacidades conferidas a Timóteo para o
exercício do ministério. Deus escolhe pessoas para o ministério e confere
qualidades para exercê-lo, isso não implica em sucessão sacramental. Os presbíteros
ordenaram Timóteo sancionando o ministério que já havia sido revelado por
profecia. Isso em nada difere da prática de Igrejas Protestantes que ordenam
pastores. Um ministro sempre deve receber a sanção da Igreja para exercer seu
ofício. Observa-se que um grupo de presbíteros impôs as mãos e não um único
bispo. Isso se dá porque a liderança da Igreja Primitiva era exercida por um
colégio de anciãos.
A necessidade da vida santa aos que almejam o
episcopado
Os apelos católicos às cartas paulinas são inconsistentes
porque não levam em conta os critérios para o exercício do ministério (1
Timóteo 3:1-7; 4:16 e Tito 1:6-9). Não seria exagero dizer que boa parte dos
papas e outros membros do clero passaram longe de cumprir esses critérios.
Católicos apelam seletivamente às cartas pastorais para estabelecer a
autoridade dos bispos, mas não seguem o mesmo raciocínio quando se trata de
suas responsabilidades. O N.T também relata a atitude da Igreja com aqueles que
persistem em seus pecados de forma cínica – disciplina eclesiástica culminando
na excomunhão (Mateus 18.15-20).
Quem não é contra nós e a nosso favor (Marcos
9:38-40)
Um dos aspectos da autoridade concedida por
Jesus aos discípulos era fazer milagres e expulsar demônios. O evangelho de
Marcos narra que João proibiu um homem que não fazia parte do grupo dos
discípulos de expulsar demônios. Ele não teria autoridade dada por Jesus para
fazê-lo. A resposta de Cristo foi: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu
nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor”.
Admitindo vários dos pressupostos que sustentam a noção de sucessão apostólica,
ainda assim, dever-se-ia explicar porque pessoas fora da sucessão histórica não
poderiam também fazer a obra de Deus? Esse é o caso tratado aqui. Se alguém faz
a obra de Deus como pregar o evangelho, curar enfermos e expulsar demônios,
pouco importa se ele pertence a uma sucessão histórica, pois, só poderia fazer
tais obras quem está em Cristo. No fim, persiste o mesmo princípio – a mensagem
é mais importante que o mensageiro. A verdadeira Igreja está onde as obras de
Cristo são praticadas.
A forma de governo na Igreja Primitiva
Um dos muitos problemas da sucessão
apostólica é que não havia um bispo singularmente governando as Igrejas locais no
início. O modelo do bispo monárquico hoje adotado pela Igreja de Roma se
desenvolveu ao longo da história. A evidência do N.T aponta para uma
pluralidade de anciãos (presbíteros) governando as Igrejas locais (Atos 11:30;
14:23; 15:2; 20:17). É dito para Tito “estabelecer anciãos em cada cidade”
(Tito 1:5).
A palavra grega ἐπι,σκoπος (bispo ou
supervisor) é também utilizada para se referir ao mesmo ofício (Filipenses 1:1).
É notável que a referência ao bispo se dê no plural. Não há no N.T a estrutura
tríplice bispo – presbíteros – diáconos. Quando são mencionadas as
características daqueles que desejam o ministério, Paulo cita apenas dois
cargos: bispos e diáconos (1 Timóteo 3). A conclusão óbvia é que presbítero e
bispo eram termos designando o mesmo cargo. Isso fica claro em Atos 20:28 quando
Paulo, dirigindo-se aos "anciãos" (πρεσβυτέρους) de Éfeso, declara
que “O Espírito Santo vos constituiu supervisores (ἐπισκόπους)”. Jerônimo testemunha:
O presbítero é o mesmo que o bispo, e antes
dos partidos terem sido levantados na religião pelas provocações de Satanás, as igrejas eram governadas pelo Senado dos
presbíteros. Mas como cada um procurou apropriar-se daqueles que haviam
batizado, em vez de levá-los a Cristo, foi
designado que um dos presbíteros, eleito pelos seus colegas, devia ser
estabelecido sobre todos os outros, e ter a supervisão principal sobre o
bem-estar geral da comunidade... Sem dúvida é dever dos presbíteros ter em
mente que pela disciplina da Igreja estão subordinados a ele que lhes foi dado
como sua cabeça, mas é conveniente que os bispos, por seu lado, não se esqueçam que se eles estão
estabelecidos sobre os presbíteros, é resultado da tradição, e não pelo fato de
uma instituição particular do Senhor (Comm.Tit. 1.7).
O teólogo católico Hans Küng escreve:
Uma investigação cuidadosa das fontes do Novo Testamento nos últimos cem
anos tem mostrado que a constituição da
Igreja, centrada no bispo, não foi ordenada diretamente por Deus ou mesmo por
Cristo, mas é o resultado de um desenvolvimento histórico longo e problemático.
É uma obra humana, portanto, em
princípio, pode ser alterada (...) No entanto, Paulo estava convencido de
que suas Igrejas cristãs gentílicas estavam de sua maneira completas e bem
equipadas, que não falta nada essencial. As não-episcopais, Igrejas
congregacionalistas de um período posterior iriam recorrer a isso. As igrejas paulinas foram em grande parte
comunidades com ministérios carismáticos livres. De acordo com Paulo, todos os
cristãos têm sua chamada pessoal, o seu próprio dom do Espírito, seu especial
'carisma' para serviço à comunidade. Assim, em suas Igrejas, houve uma
série de diferentes ministérios e funções: pregação, socorro e liderança da
comunidade (...) Em sua primeira carta à comunidade de Corinto, Paulo pensa que normalmente a Eucaristia é
celebrada lá sem ele ou qualquer um que foi nomeado para um ofício, embora
ao mesmo tempo é dado como certo que certa ordem deve ser observada. De acordo
com a mais antiga ordem na comunidade, a Didaquê ("ensino" dos
apóstolos, por volta de 100 dC), acima
de todos os outros, profetas e mestres celebram a Eucaristia e só depois deles
bispos eleitos e diáconos. A
comunidade de Antioquia não era liderada por episkopi (bispos) e presbíteros,
mas por profetas e mestres. Em Roma,
também, no momento em que Paulo escreveu sua carta aos romanos, não havia ainda
nenhuma comunidade liderada por um episkopi. (...) Após a morte do apóstolo
Paulo, um grau de institucionalização era inevitável, mesmo em suas
comunidades. Na tradição palestina começou em um estágio inicial, com a adopção
do colégio dos anciãos e o rito da imposição das mãos. Mas no final do período
do Novo Testamento havia ainda uma grande diversidade de constituições das
comunidades e formas de ministérios. Em
cada comunidade, todos os membros tinham que estar na "sucessão
apostólica" - de acordo com a mensagem e a ação dos apóstolos. Não só
apenas algumas pessoas, mas toda a Igreja era uma "Igreja apostólica",
como seria chamado no credo. Não pode
ser verificado que os bispos são "sucessores dos apóstolos" no
sentido direto e exclusivo. É historicamente impossível encontrar na fase inicial
do cristianismo uma cadeia ininterrupta de "imposição das mãos" dos
apóstolos aos bispos atuais. Historicamente, em vez disso, pode ser
demonstrado que, em uma primeira fase pós-apostólica, presbítero-bispos locais
se estabeleceram ao lado profetas, mestres e outros ministérios como os únicos
líderes do cristianismo (...) Assim a
constituição presbiteral-episcopal da Igreja não se baseia em qualquer
instituição por Jesus Cristo e não pode de forma alguma ser visto como
absolutamente intrínseco ao cristianismo, usando como medida as palavras do
próprio Jesus, a comunidade mais antiga e a constituição carismática das
igrejas paulinas. (The
Catholic Church - A Short History (2002), pp. 26-29)
Küng propiciou um bom resumo histórico da
questão e demonstrou como o Novo Testamento não apoia a reivindicação católica
romana.
Conclusão
Concluo esse artigo, trazendo as palavras
de Sullivan, cuja obra balizou os artigos sobre sucessão apostólica desse blog:
Uma conclusão parece óbvia: Nem o Novo Testamento nem a história cristã
primitiva oferece suporte para a noção
de sucessão apostólica como "uma linha ininterrupta de ordenação episcopal
de Cristo através dos apóstolos ao longo dos séculos para os bispos de hoje".
(Op. Cit., pp. 16)
Devemos concluir que o novo
testamento não fornece nenhuma base para a noção de que antes a morte dos
apóstolos, eles ordenaram um homem como bispo para cada uma das igrejas que
fundaram. A única pessoa no novo testamento, cujo papel se assemelha a de
um bispo é Tiago o "irmão do Senhor", que provavelmente foi designado
para a sua posição de liderança na igreja de Jerusalém por seu relacionamento
com Jesus e participação especial com a qual ele foi favorecido pelo Cristo
ressuscitado. Parece extremamente
improvável que ele foi "ordenado" como bispo de Jerusalém por São
Pedro. Nem a evidência do novo testamento apoia a ideia de que Pedro, Paulo
ou qualquer outro apóstolo tornou-se o
bispo de qualquer igreja local ou ordenou algum homem como bispo de uma igreja
local. É inútil procurar no novo
testamento uma base para a ideia de "uma linha ininterrupta de ordenação
episcopal de Cristo através dos apóstolos ao longo dos séculos para os bispos
de hoje”. (Op. Cit.,
pp. 81)
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