Esta
será uma série de cinco artigos que teve como base o trabalho do apologista
protestante Turrentinfan contido aqui. Porém, não se trata de uma tradução
integral dos artigos. Algumas citações foram adicionadas e outros argumentos e citações bíblicas foram incluídos.
A posição reformada
A
principal diferença entre a teologia protestante e católica é a questão da
autoridade. Os protestantes acreditam que a Escritura é a única regra infalível
de fé para a Igreja. A Escritura tem algumas qualidades que a tornam única e
superior a qualquer outra autoridade ou regra de fé. Elas são inspiradas por
Deus, infalíveis e suficientes, sendo a autoridade final em qualquer
controvérsia doutrinária.
A
Igreja Romana concorda que a Escritura é inspirada e infalível, mas não
concorda que seja a única regra infalível de Fé (há também a tradição e o
magistério) ou que seja suficiente. Mas em que sentido a Bíblia é insuficiente
para os católicos? Essa é uma pergunta que o suposto magistério infalível ainda
não respondeu. Muitos católicos, ao debaterem com protestantes, alegam que nem
todas as doutrinas podem ser extraídas da Bíblia, mas chegaram à Igreja através
da tradição oral. Sob esse ponto de vista, a Escritura não é materialmente
suficiente, ou seja, não possui todas as doutrinas ensinadas pelos apóstolos. Outra
posição tem emergido nos últimos tempos, a Bíblia seria suficiente
materialmente, mas não formalmente. Todas as doutrinas estariam lá, mas apenas
conseguiríamos obter a correta interpretação do texto por meio do magistério
infalível. Nesta série de artigos, vamos demonstrar que a Escritura se
considera suficiente e que assim também testemunharam os pais da Igreja.
A
Confissão de Westminster dá visão da posição reformada da suficiência das
Escrituras:
VI.
Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória
dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na
Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em
tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos
homens; reconhecemos, entretanto, ser
necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão
das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao
culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as
quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã,
segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas.
II Tim. 3:15-17; Gal. 1:8;
II Tess. 2:2; João 6:45; I Cor. 2:9, 10, l2; I Cor. 11:13-14.
VII. Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do
mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser
obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um ou outro passo da
Escritura são tão claramente expostas e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios
ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas.
IX. A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura;
portanto, quando houver questão sobre o
verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não
é múltiplo, mas único), esse texto pode
ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente.
At. 15: 15; João 5:46; II
Ped. 1:20-21.
Cinco
apontamentos devem ser feitos:
(1)
A confissão não diz que todas as doutrinas
estão declaradas expressamente na Escritura. Algumas doutrinas podem ser
obtidas por dedução;
(2)
A iluminação do Espírito Santo é necessária
para a compreensão dessas verdades salvadoras;
(3)
Nem todas as passagens da Escritura são
claras. Porém, tudo o que é necessário
para ser salvo é suficientemente claro;
(4)
Um texto obscuro pode ser esclarecido por
outro texto mais claro;
(5)
Os cristãos, mesmos indoutos, podem fazer uso
de meios ordinários para compreensão das Escrituras.
O
teólogo protestante Francis Turretin assim tratou a questão:
A questão então é esta - se as Escrituras são tão claras em coisas
essenciais para a salvação (não para as coisas entregues, mas quanto ao
modo de entrega; não quanto ao assunto, mas ao objeto) que, sem a ajuda externa da tradição ou o juízo infalível da igreja,
elas podem ser lidas e compreendidas proveitosamente pelos crentes. Os
romanistas negam isso; nós afirmamos isso. (Francis Turretin, Institutos de
Teologia Elenctic, trans. George Musgrave Giger, ed. James T. Dennison, Jr.,
Vol. 1 (Phillipsburg: P & R Publishing, 1992), 2.XVII.vii, p. 144.)
Richard
Bauckham diz:
A
noção de suficiência formal das Escrituras não significa que a Escritura não
requer nenhuma interpretação -
uma ideia que os escritores antiprotestante têm refutado com frequência e
facilidade, perdendo assim o verdadeiro ponto, mas que ela não exige nenhuma interpretação normativa. A interpretação protestante da Escritura
emprega todos os meios ordinários para interpretar um texto, especialmente as
ferramentas que a erudição humanista tinha desenvolvido para interpretar textos
antigos e respeita os pontos de vista dos teólogos e exegetas do passado como
útil, mas não como guias normativos para a compreensão das Escrituras. A
verdadeira diferença entre o Protestante clássico e o Católico Romano reside na rejeição protestante da opinião
de que a tradição, expressa no ensinamento do Magistério, possui uma autoridade
contra o qual não pode haver recurso à Escritura. Por trás dessa diferença
reside, por um lado, a experiência da Reforma originária de uma redescoberta do
Evangelho na Escritura para além de e em contradição com o ensinamento da
Igreja contemporânea, e, por outro lado, a confiança católica romana na
promessa de Deus para manter sua igreja na verdade. (See
Richard Bauckham’s chapter, “Tradition In Relation To Scripture and Reason,” in
Benjamin Drewery and Richard J. Bauckham, eds., Scripture, Tradition, and
Reason, A Study in the Criteria of Christian Doctrine, Essays in Honour of
Richard P. C. Hanson (Edinburgh: T & T Clark, 1988), p. 123.)
Ou
como Bavinck manifestou-se:
A doutrina da clareza da Sagrada
Escritura tem sido frequentemente mal compreendida e mal representada, tanto
por protestantes como católicos. Isso não significa que as questões e assuntos
tratados na Escritura não são mistérios que excedem em muito o alcance do
intelecto humano. Nem afirma que a
Escritura é clara em todas as suas partes, de modo que nenhuma exegese
científica é necessária, ou que, também em sua doutrina da salvação, a
Escritura é simples e clara para todas as pessoas, sem distinção. Significa
apenas que a verdade, o conhecimento do
que é necessário a todos para a salvação, embora não explicitado com igual
clareza em todas as páginas da Escritura, é, no entanto, apresentado por toda a
Escritura, de forma simples e inteligível que uma pessoa preocupada com a
salvação de sua alma pode facilmente, por leitura pessoal e estudo, aprender e
conhecer a verdade das Escrituras, sem a assistência e orientação da Igreja e
do sacerdote. O caminho da salvação, não como se trata do assunto em si,
mas como se trata do modo de transmissão, foi claramente estabelecido lá para o
leitor desejoso de salvação. Enquanto leitor pode não entender o
"como" (πῶς), o
"que" (ὅτι) é
claro. (Herman Bavinck, Reformada Dogmatics, Vol. 1,
Prolegomena (Grand Rapids: Baker Academic, 2003), p. 477.)
O
Ensino Bíblico
Jesus, pois, operou também
em presença de seus discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste
livro. Estes, porém, foram escritos para
que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais
vida em seu nome. (João
20:30-31)
Essa
é uma passagem usada pelos romanistas para tentar refutar a Sola Scriptura. Ao
invés de refutá-la, reforça o ensino reformado. João diz que nem todos os
sinais foram escritos. Ele não se refere a doutrinas necessárias para a
salvação. Nem tudo foi escrito no evangelho de João. Assim, esses sinais
poderiam ser encontrados em outros evangelhos.
Portanto, esse texto não aponta a insuficiência formal ou material da
Escritura. O autor diz no vs. 31 o objetivo do livro – crer em Cristo e ter
vida em seu nome. Temos um apóstolo afirmando que os leitores daquele evangelho
poderiam através de sua mensagem crer em Cristo e ter vida em seu nome, o que
implica na salvação de suas almas. A questão é como João poderia cumprir seu
objetivo se seus leitores não pudessem entender seu evangelho ou se não tivesse
algum ensino necessário à salvação? Se o Evangelho de João fosse materialmente
incompleto ou tão obscuro que apenas um magistério infalível poderia dar-lhe a
correta interpretação, o objetivo do apóstolo seria frustrado. João parte do
pressuposto que seu escrito poderá ser corretamente entendido por seus leitores
e que através da fé em sua mensagem, eles serão salvos.
O
católico poderia responder dizendo que João se refere apenas ao seu Evangelho e
não a toda a Bíblia. Primeiro, os cristãos já tinham as Escrituras hebraicas
para ser lida a luz desse escrito. O Evangelho de Jesus já era pregado no
Antigo Testamento pelos profetas. Obviamente, todos os outros livros do N.T não
são meros acréscimos, eles ensinam a mesma mensagem de João com ênfases e
clarificações diferentes. O ponto é que se somente o escrito de João era
suficiente para fazer crer e ter vida em Cristo, então todo o Novo Testamento
seria mais que suficiente.
Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de
que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido,
E
que desde a tua meninice sabes as sagradas Escrituras, que
podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há em Cristo Jesus.
Toda a Escritura é
divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redargüir, para
corrigir, para instruir em justiça;
Para
que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa
obra. (2
Timóteo 3:14-17)
Essa
é sem dúvidas a mais clara passagem a ensinar suficiência das Escrituras. Paulo diz que as Escrituras tornam o homem
sábio para a salvação e perfeito, instruído para toda boa obra. Não há como
concluir outra coisa que não seja a suficiência da Bíblia. Caso contrário, ela
não tornaria o homem sábio para salvação e não poderia torna-lo apto a toda boa
obra. Não há como a Escritura ser insuficiente e prover todos os benefícios
citados por Paulo. Os católicos têm apresentado algumas objeções que serão
respondidas abaixo:
(1)
“Paulo se refere apenas ao Antigo
Testamento”. Isso não refutaria a suficiência bíblica, pois se o apóstolo
considera que apenas o A.T seria suficiente, imagine então o A.T + N.T. Já nos
tempos de Paulo, escritos do Novo Testamento eram considerados Escritura. Pedro
já considerava as cartas de Paulo como Escritura (2Pe.3:16). Paulo citou o
Evangelho de Lucas como Escritura (1Tm.5:18). Portanto, a referência no mínimo
incluiria A.T + Evangelho de Lucas + Epístolas Paulinas. Devemos considerar
também que Paulo não tem em mente uma lista de livros (cânon), mas a natureza
da Escritura. Como a Escritura é inspirada por Deus (theopneustos), ela
necessariamente terá todas estas qualificações. Por isso, a passagem aludida
pode ser aplicada a todos os escritos inspirados, e por resultado, a todo o
Novo Testamento. O próprio Paulo coloca os apóstolos em pé de igualdade aos
Profetas do A.T (Efésios 2:20), assim como considera seus próprios escritos
inspirados por Deus (1Ts. 2:13), (1Ts.4:2), (Gl.1:11,12).
(2)
“Útil não é suficiente”. Essa objeção isola o
vs. 16 dos demais. Qualquer dicionário trará a definição que útil é algo que
serve, que pode ser usado para alguma coisa. Então vamos ler esta definição junto
com o vs. 17. A Escritura serve para que o homem de Deus seja perfeito e
perfeitamente habilitado para toda boa obra. Em outas palavras, ao fazer uso da
Escritura, o homem de Deus pode ser tornar perfeito, portanto, necessariamente
é suficiente. Não nos esqueçamos do vs. 15 que é anterior ao adjetivo útil ou
proveitoso. Nele, Paulo diz que a Escritura tornaria Timóteo sábio para
salvação, afirmação que não está ligada ao adjetivo útil, e também implica
suficiência.
(3) “A passagem em questão pode ser usada
para defender a suficiência material, mas não a formal. O cristão ainda
precisaria da interpretação do magistério”. Já ouvi um apologista católico
dizer que o homem de Deus pode estar equipado para toda boa obra, mas ele
precisaria de instrução adicional para usar o equipamento, que seria fornecida
pelo Magistério. Nessa analogia, a Escritura é o equipamento, e o magistério
ensinaria a usá-lo. Para responder, precisamos observar o vs. 15 que geralmente
é ignorado. Desde quanto Timóteo sabia as sagradas letras que o tornariam sábio
para salvação? Desde criança. Timóteo fora ensinado por sua mãe. Uma vez que
não havia nenhum magistério infalível no tempo de sua infância e obviamente sua
mãe Eunice era uma intérprete falível das Sagradas Letras, Timóteo foi capaz de
compreender a Escritura sem uma autoridade normativa infalível, o que comprova
a suficiência formal. Sem contar que nada nesta passagem faria sentido a luz da
interpretação católica. Paulo jamais orientaria Timóteo a ir direto às
Escrituras, ele com certeza ensinaria a existência dos intérpretes infalíveis a
quem Timóteo deveria recorrer. O contexto da carta é o cuidado com os falsos
mestres, e Paulo já estava no fim de sua vida. Como Timóteo poderia proceder
sem ter a presença do apóstolo? Se Paulo fosse católico romano, ele diria “ouça
os sucessores de Pedro”, mas não, ele aponta as Escrituras.
Jesus
e aos autores bíblicos sempre entenderam que os ouvintes e leitores poderiam
compreender corretamente seus ensinamentos orais ou escritos, inclusive as
Escrituras do Antigo Testamento. Há uma quantidade enorme de passagens bíblicas
que atestam isso:
Quando
deres ouvidos à voz do Senhor teu Deus,
guardando os seus mandamentos e os seus estatutos, escritos neste livro da lei, quando te converteres ao Senhor teu
Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma. Porque este mandamento, que hoje te ordeno, não te é encoberto, e tampouco está longe de ti. (Deuteronômio
30:10-11)
Os preceitos do Senhor são
retos e alegram o coração; o mandamento
do Senhor é puro, e ilumina os olhos. (Salmos 19:8)
Lâmpada para os meus pés é
tua palavra, e luz para o meu caminho. (Salmos 119:5)
À lei e ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, é
porque não há luz neles. (Isaías 8:20)
Pois nada lhes escrevemos que vocês não sejam capazes de ler ou
entender. E espero que, assim como vocês nos entenderam em parte, venham a
entender plenamente que podem orgulhar-se de nós, assim como nos orgulharemos
de vocês no dia do Senhor Jesus. (2 Coríntios 1:13-14)
Pois tudo o que foi escrito
no passado, foi escrito para nos ensinar,
de forma que, por meio da perseverança e do bom ânimo procedentes das
Escrituras, mantenhamos a nossa esperança. (Romanos 15:4)
Deus
deu sua palavra para ensinar, consolar, exortar. Se a Escritura não pode ser
compreendida, a palavra de Deus seria ineficaz e o seu objetivo frustrado. Ao
alegarem insuficiência formal, os católicos não estão apenas minando a
autoridade da Escritura, estão também minando a autoridade e capacidade do
próprio Deus. Dizer que a palavra de
Deus é tão obscura que só pode ser entendida com ajuda do magistério implica
dizer que Deus não fez um bom trabalho e não conseguiu cumprir seu propósito ao
inspirar os livros canônicos.
Escrevo-lhes estas coisas a respeito daqueles que os querem enganar.
(1 João 2:26)
Escrevi-lhes estas coisas, a
vocês que crêem no nome do Filho de Deus, para
que vocês saibam que têm a vida eterna. (1 João 5:13)
João
escreveu cartas para prevenir os crentes de falsos mestres. Se seu escrito não
era claro, como poderia prevenir os cristãos da heresia?
Assim, quando vocês virem ‘o
sacrilégio terrível’, do qual falou o profeta Daniel, no lugar santo — quem lê, entenda. (Mateus 24:15)
Pelo que, quando ledes, podeis entender a minha compreensão do
mistério de Cristo. (Efésios 3:4)
Examinais
as Escrituras,
porque julgais ter nelas a vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim.
(João 5:39)
Os bereanos eram mais nobres
do que os tessalonicenses, pois
receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos os dias as
Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo. (Atos 17:11)
O
exemplo dos bereanos não poderia ser mais óbvio. Eles investigaram nas
Escrituras a veracidade da pregação apostólica, e tal atitude foi elogiada. Se
a Bíblia não era perspicaz, e não pudesse ser compreendida sem o magistério
infalível, como eles poderiam chegar à verdade examinando livremente as
Escrituras? Qual católico pode submeter os ensinos dogmáticos da sua Igreja ao
crivo das Escrituras? Ele não pode, sob pena de estar agindo como um
protestante. Jesus também pressupunha que seus ouvintes pudessem entender o
Antigo Testamento, caso contrário não o apontaria repetidamente como sua
testemunha.
Eu mesmo investiguei tudo
cuidadosamente, desde o começo, e decidi
escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te
foram ensinadas. (Lucas 1:3-4)
Lucas
não escreveu um relato obscuro ou desconexo, mas escreveu um relato ordenado
que pudesse dar a Teófilo a certeza das coisas que aprendeu. Ou seja, Teófilo
poderia compreender corretamente o relato sem a necessidade de interpretações
adicionais.
Católicos
argumentam que o magistério infalível é algo necessário, ele deve existir. Esse
pressuposto não resiste à análise bíblica pelos seguintes motivos:
(1)
Não havia magistério infalível na antiga aliança. Jesus responsabilizou os
judeus por conhecerem, examinarem e praticarem as Escrituras (Mt 22:29). Como
poderiam fazê-lo sem uma autoridade infalível que ensinasse a verdadeira
interpretação das Escrituras hebraicas. Como um Judeu que viveu antes de Cristo
poderia praticar as Escrituras sob o paradigma católico? Impossível. A única
explicação é que as Escrituras eram autoritativas e compreensíveis independente
da existência de um magistério infalível permanente.
(2)
Como já demonstrado, a Escritura nos ensina a testar os mestres, incluindo ai
até os próprios apóstolos, pelo critério da Escritura. Isso é algo impossível
de ser feito quando há um magistério infalível estabelecido, não há instância
de recurso, uma vez que o magistério define o conteúdo e interpretação da
Escritura e Tradição. Se a Escritura fosse obscura como alegam os romanistas,
os bereanos não seriam elogiados em sua atitude, mas repreendidos, pois estavam
confiando em sua consciência privada para julgar a pregação apostólica.
(3)
Não há nenhuma menção na Escritura a sucessores infalíveis dos apóstolos. Os
próprios líderes que vieram após não reclamavam infalibilidade e viam o colégio
apostólico como possuindo prerrogativas únicas que não poderiam ser passadas
adiante, entre elas, a infalibilidade. Obviamente, os apóstolos escolheram
presbíteros para cuidarem das Igrejas e pregarem a doutrina apostólica, mas
nunca disseram que a Igreja estaria protegida do erro, que não haveria
apostasia. Pelo contrário, o quadro futuro descrito era de apostasia crescente,
e nenhum privilégio especial é dado à Igreja de Roma ou seu bispo. No capítulo
20 de Atos, é dito que Paulo reuniu os líderes da Igreja de Éfeso para se
despedir. Vejamos os vs. 27-30:
Pois não deixei de
proclamar-lhes toda a vontade de Deus. Cuidem
de vocês mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo os colocou
como bispos, para pastorearem a igreja de Deus, que ele comprou com o seu
próprio sangue. Sei que, depois da minha
partida, lobos ferozes penetrarão no meio de vocês e não pouparão o
rebanho. E dentre vocês mesmos se
levantarão homens que torcerão a verdade, a fim de atrair os discípulos.
(Atos 20:27-30)
O
apóstolo estava consciente que dentre os próprios homens escolhidos diretamente
por ele, surgiriam lobos ferozes que não poupariam o rebanho. Não há nenhuma
promessa de imunidade à apostasia ou erros doutrinários.
A
iluminação do Espírito Santo
A
teologia protestante não afirma que qualquer homem tem a capacidade inata de
compreender o evangelho, é necessária a ação iluminadora do Espírito Santo,
pois o pecado cega o entendimento dos homens:
Eu o livrarei do seu próprio
povo e dos gentios, aos quais eu o envio
para abrir-lhes os olhos e convertê-los das trevas para a luz, e do poder
de Satanás para Deus, a fim de que recebam o perdão dos pecados e herança entre
os que são santificados pela fé em mim. (Atos 26:17-18)
O
deus desta era cegou o entendimento dos descrentes, para que não vejam a luz do evangelho
da glória de Cristo, que é a imagem de Deus. (2 Coríntios 4:4)
Na
verdade as mentes deles se fecharam,
pois até hoje o mesmo véu permanece quando é lida a antiga aliança. Não foi
retirado, porque é somente em Cristo que ele é removido. (2 Coríntios 3:14)
Uma das que ouviam era uma
mulher temente a Deus chamada Lídia, vendedora de tecido de púrpura, da cidade
de Tiatira. O Senhor abriu seu coração
para atender à mensagem de Paulo. (Atos 16:14)
Pois
a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo
salvos, é o poder de Deus. (1
Coríntios 1:18)
Os judeus pedem sinais
miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos a Cristo
crucificado, o qual, de fato, é
escândalo para os judeus e loucura para os gentios mas para os que foram
chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de
Deus. (1 Coríntios 1:22-24)
Os
católicos também acreditam na iluminação do Espírito Santo para compreender as
Escrituras, porém é restrita à hierarquia de sua Igreja. Vimos que isso vai
contra a Bíblia, que mostra crentes comuns sendo iluminados e compreendendo a
mensagem do Evangelho.
Passagens
bíblicas utilizadas pelos Católicos
Diante
de tantas passagens que apoiam a suficiência formal, os católicos apontam 3 citações
que supostamente provariam o contrário:
Antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura
provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na
vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito
Santo. (2 Pedro 1:20-21)
Católicos
a usam para rechaçar o livre exame. Segundo eles, Pedro está dizendo que as
profecias da Escritura não podem ser interpretadas individualmente, mas apenas
pelo magistério instituído por Cristo cujo herdeiro é o magistério da Igreja de
Roma.
(1)
Seria contraditório ao resto das Escrituras. Os bereanos interpretaram
privadamente as Escrituras para julgar a pregação dos apóstolos e foram
elogiados. Se partirmos do paradigma católico, deveriam ser reprendidos.
(2)
Não há nada nesta passagem ou no contexto das epístolas petrinas que apontem
para um suposto magistério com a prerrogativa exclusiva de interpretar
infalivelmente a palavra de Deus. Pelo contrário, na iminência de sua morte, o
apóstolo não aponta para nenhum sucessor infalível, mas a mensagem por ele
pregada.
(3)
Pedro não está discorrendo sobre a interpretação da profecia pelo seu ouvinte.
Ele fala da origem da profecia que “não PROVÉM de interpretação pessoal”. Desta
forma, a “interpretação pessoal” se refere à pessoa do profeta, ou seja, a
profecia não surgiu da própria interpretação ou imaginação do profeta, mas do
Espírito Santo. Tanto é que a passagem
continua discorrendo sobre a origem da profecia que é divina e não humana. O contexto
do capítulo corrobora essa interpretação:
De fato, não seguimos fábulas engenhosamente
inventadas, quando lhes falamos a respeito do poder e da vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo; pelo contrário, nós fomos testemunhas oculares da sua
majestade. Ele recebeu honra e glória da parte de Deus Pai, quando da suprema
glória lhe foi dirigida a voz que disse: "Este é o meu filho amado, em
quem me agrado". Nós mesmos ouvimos essa voz vinda do céu, quando
estávamos com ele no monte santo. Assim,
temos ainda mais firme a palavra dos profetas, e vocês farão bem se a ela
prestarem atenção, como a uma candeia que brilha em lugar escuro, até que o
dia clareie e a estrela da alva nasça em seus corações. (2 Pedro 1:16-19)
O
Apóstolo fala sobre a origem da fé cristã. Eles não ouviram alguém falar, mas
viram, foram testemunhas direta dos fatos. Por isso, eles podiam “ter ainda mais firme a palavra dos
profetas”, pois aquilo que foi anunciado se cumprira diante dos olhos dos apóstolos.
A intenção de Pedro é asseverar a veracidade da profecia, não há nada sobre
interpretação da profecia pelo cristão aqui. Há um paralelismo entre esta
passagem e a seguinte:
Foi a respeito dessa
salvação que os profetas que falaram da graça destinada a vocês investigaram e
examinaram, procurando saber o tempo e
as circunstâncias para os quais apontava o Espírito de Cristo que neles estava, quando lhes predisse os sofrimentos de
Cristo e as glórias que se seguiriam àqueles sofrimentos. A eles foi revelado que estavam ministrando,
não para si próprios, mas para vocês, quando falaram das coisas que agora
lhes foram anunciadas por meio daqueles que lhes pregaram o evangelho pelo
Espírito Santo enviado do céu; coisas que até os anjos anseiam observar. (1
Pedro 1:10-12)
Na
primeira epístola, o apóstolo também se preocupou em demonstrar que o evangelho
foi pregado pelos profetas e que eles falaram da parte de Deus e não dos
homens. Façamos então uma concessão para o bem do debate. Suponhamos que se
referia a interpretação das profecias e não sua origem. Qual magistério
interpretou essas profecias? O magistério dos apóstolos. E onde nós encontramos
as palavras deles? Na Escritura. Assim, faríamos o que todo protestante faz –
utilizar o novo testamento como um intérprete das profecias do antigo.
Portanto, não há como estabelecer o magistério romano a partir dessa de Pedro. Pelo
contrário, essa passagem só reforça a suficiência da Escritura.
Tenham em mente que a
paciência de nosso Senhor significa salvação, como também o nosso amado irmão Paulo
lhes escreveu, com a sabedoria que Deus lhe deu. Ele escreve da mesma forma em
todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas contêm algumas coisas difíceis de entender, as quais os ignorantes e instáveis torcem,
como também o fazem com as demais Escrituras, para a própria destruição deles.
(2 Pedro 3:15-16)
Pedro
diz que algumas coisas das epístolas de Paulo são difíceis de entender. Quem
viu a introdução sobre a posição protestante da suficiência formal percebe que
isso não a contraria. Nem tudo nas Escrituras é fácil de entender, mas todas as
verdades necessárias para a salvação são. Partes difíceis podem ser
clarificadas por outras mais fáceis que tratam do mesmo assunto. Ele não diz
que alguma verdade fundamental do evangelho é de difícil compreensão nas cartas
de Paulo, nem diz que todo o conteúdo de suas cartas é difícil, portanto, este
versículo em nada contraria a posição reformada. E mais, por necessidade
lógica, se algumas partes eram difíceis, outros seriam fáceis.
Destaca-se
que as pessoas que distorciam as epístolas paulinas foram qualificadas como:
ignorantes e instáveis. Elas não distorciam apenas as partes difíceis das
cartas, mas também as demais Escrituras. Isso mostra que a incapacidade de
entender corretamente dá-se pelos pecados dos próprios leitores, e não por uma
característica intrínseca das cartas de Paulo. Por isso, a posição reformada
ensina a importância da iluminação do crente.
E, correndo Filipe, ouviu
que lia o profeta Isaías, e disse: Entendes tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, se alguém não me
ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. (Atos
8:30-31)
O Eunuco nunca tinha
ouvido falar de Cristo, tudo que ele tinha em mãos era a Escritura hebraica,
nem sabemos se a tinha em totalidade. Os apóstolos sempre procuraram demonstrar
que o evangelho já vinha sendo pregado pelos profetas, e que Cristo cumpriu as
profecias. O novo testamento clarifica o antigo dando o real significado da
profecia. Assim, vemos que esta passagem em nada contraria a suficiência
formal, pois o Eunuco não tinha acesso à mensagem da nova aliança que
explicaria essa passagem. A posição reformada afirma que há partes da bíblia
difíceis de entender, mas muitas delas ou são esclarecidas por outras partes – como
o novo testamento faz em relação ao antigo – ou não afetam nossa salvação. Foi
justamente o que aconteceu, o Espírito Santo usou Felipe para trazer a mensagem
da nova aliança que hoje está escriturada, e com esta mensagem, o Eunuco ouviu
o evangelho, creu e foi salvo. Como a posição protestante defende a suficiência
formal a luz de toda a revelação bíblica (A.T + N.T), não há como provar o
contrário por essa passagem. Pelo contrário, ela mostra que a mensagem do A.T
foi compreensível pela revelação da nova aliança o que possibilitou a salvação
do Eunuco.
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