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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Os Pais da Igreja e o Purgatório - Parte 2

Epitáfio de Abércio (final do século II – início do século III)

O único documento que temos de Abércio é o seu epitáfio. Acredita-se que foi bispo de Hierápolis, embora haja dúvidas sobre isso:

Eu, Abércio, ditei este texto. E o fiz gravar na minha presença Aos setenta e dois anos.
O irmão que o ler por acaso, Ore por Abércio. E ninguém erga outro túmulo sobre o meu, sob pena de multa: Duas mil peças de ouro para o fisco romano e mil para Hierápolis, minha pátria ilustre! (Epitáfio de Abércio)

Não há nem sombra de purgatório ai, no máximo provaria que Abércio acreditava na oração pelos mortos, mas até mesmo essa conclusão estaria sob suspeita. O bispo estava vivo quando ditou o texto, então as orações pedidas poderiam ser para ele enquanto estava vivo e não morto. O argumento de que orar pelos mortos implica em purgatório é uma falácia da apologética católica.


Perpétua (? – 203)

Perpétua foi uma mártir cristã juntamente com sua serva Felicidade. Seu martírio é narrado na obra Paixão de Perpétua e Felicidade:

Imediatamente, nessa mesma noite, isto me foi mostrado em uma visão: eu vi Dinocrate saindo de um lugar sombrio, onde se encontravam também outras pessoas; e ele estava magro e com muita sede, com uma aparência suja e pálida, com o ferimento de seu rosto quando havia morrido. Dinocrate foi meu irmão de carne, tendo falecido há 7 anos de uma terrível enfermidade... Porém, eu confiei que a minha oração haveria de ajudá-lo em seu sofrimento e orei por ele todo dia, até irmos para o campo de prisioneiros... Fiz minha oração por meu irmão dia e noite, gemendo e lamentando para que [tal graça] me fosse concedida. Então, certo dia, estando ainda prisioneira, isto me foi mostrado: vi que o lugar sombrio que eu tinha observado antes estava agora iluminado e Dinocrate, com um corpo limpo e bem vestido, procurava algo para se refrescar [refrigerium]; e onde havia a ferida, vi agora uma cicatriz; e essa piscina que havia visto antes, vi que seus níveis haviam descido até o umbigo do rapaz. E alguém incessantemente extraía água da tina e próximo da orla havia uma taça cheia de água; e Dinocrate se aproximou e começou a beber dela e a taça não reduziu [o seu nível]; e quando ele ficou saciado, saiu pulando da água, feliz, como fazem as crianças; e então acordei. Assim, entendi que ele havia sido levado do lugar do castigo. (Paixão de Perpétua e Felicidade 2,3-4)

Nesta citação, Perpétua tem uma visão do seu irmão Dinocrate, que morreu ainda criança de alguma doença. A questão é se Perpétua acredita que ele estava no purgatório – muito provavelmente não. Não há evidência alguma de que seu irmão fosse um cristão. O lugar descrito por Perpétua nas duas visões (antes e após a oração) é o mesmo. A condição de Dinocrate é melhor, não apresentando mais a ferida, agora ele está num lugar de refrigério – uma clara referência ao seio de Abraão, lugar de consolo para onde as almas dos justos iriam. Não há também nenhuma qualificação que aponta para a doutrina romana, não há menção ao passado cristão de Dinocrate, nem descrição do lugar como de purificação de pecados.

Jacques Le Goff afirma:

Aqui não se trata de purgatório propriamente dito (...) a sede e a impossibilidade de seu alívio do sofrimento são mais um mal psicológico do que moral. O que se trata é uma pena psicofisiológica e não de punição como se sucederá em todos os textos concernentes às prefigurações do purgatório e ao purgatório mesmo. Não há tampouco juízo ou castigo (...) ele se salva graças à súplica de alguém que é digno de obter para ele o perdão. (Le Goff, op. cit., pp. 21)

O mais provável é que Perpetua tenha orado pela salvação do seu irmão. No cristianismo primitivo, havia uma corrente razoavelmente popular que cria na salvação após a morte, assim, muitos oravam pelos parentes falecidos. Provavelmente, há também influência da obra “Atos de Paulo e Tecla” que narra um fato semelhante. Essa obra apócrifa era popular em Cartago, onde se passou o martírio, sendo inclusive citada por Tertuliano em sua obra “Do Batismo (XVIII, 5)”.

Tertuliano de Cartago (160 – 220)

Há um determinado lugar chamado Seio de Abraão, que foi criado para a recepção das almas dos filhos de Abraão, até mesmo dentre os gentios (desde que ele é "o pai de muitas nações", que devem ser classificadas entre sua família) e da mesma fé daqueles que tem crido em Deus, sem o jugo da lei e o sinal da circuncisão. Esta região, portanto, eu chamo Seio de Abraão. Embora não esteja no céu, é ainda mais alta do que o inferno, sendo designada para proporcionar um intervalo de descanso para as almas dos justos, até a consumação de todas as coisas, que deve ser completada com ressurreição de todos os homens com a plena recompensa de seus méritos. (Contra Marcião 04:34)

Seguem-se os comentários de Le Goff em consonância com a citação acima:

Um africano que morreu algum tempo depois de 220, Tertuliano escreveu um breve tratado, hoje perdido, no qual afirmava "que toda a alma estava confinada no Inferno até o dia [do Julgamento] do Senhor" (De anima 55,5). Essa foi uma adaptação da ideia de sheol do Antigo Testamento. Este outro mundo encontrava-se localizado debaixo da terra, e foi aqui que Cristo desceu por três dias (De anima 54,4).

Em “Contra Marcião” e “Sobre a Monogamia”, Tertuliano entra em detalhes sobre o outro mundo e apresenta o seu conceito de refrigerium. Marcião argumentou que não apenas mártires, mas pessoas comuns justas eram admitidas no céu ou paraíso imediatamente depois da sua morte. Tertuliano, por outro lado, baseando a sua discussão na história de Lázaro e do homem rico, mantém que, enquanto aguardam a ressurreição, almas justas comuns residem não no céu, mas num refrigerium interim, o seio de Abraão. Este lugar, o seio de Abraão, embora não no céu, e acima do inferno, oferece às almas dos justos um ínterim refrigério [refrigerium interim] até que o fim de todas as coisas traga a ressurreição geral e a recompensa final (Adversus Marcionem 4.34). Até o fim dos tempos o seio de Abraão deve servir como "o receptáculo temporário das almas fiéis".

O pensamento de Tertuliano, de fato, permanece altamente dualista. Em sua opinião existem dois destinos contrastantes: a punição, que é expressa por palavras tais como tormento (tormentum), agonia (supplicum) e tortura (cruciatus), e recompensa, expressa pelo termo refrigério (refrigerium). Em dois lugares é afirmado que esses destinos são eternos.

Em relação à pré-história do Purgatório, a inovação de Tertuliano, se é que foi uma inovação, foi o justo ter que passar um período de tempo no refrigerium interim antes de ir habitar no eterno refrigerium. Mas não há nada realmente novo acerca do lugar de refrigério, que ainda é o seio de Abraão. Entre o refrigerium interim de Tertuliano e o purgatório existe uma diferença não só de gênero - para Tertuliano é uma questão de uma espera tranquila até o juízo final, enquanto com o Purgatório é uma questão de um sofrimento que purifica porque é punitivo e expiatório  - mas também de duração: as almas permanecem no refrigerium até a ressurreição, mas no Purgatório apenas o tempo que for preciso para expiar os seus pecados. (Le Goff, op. cit., pp. 21)

Apologistas católicos apontam o capítulo 58 da obra “Tratado sobre a Alma” como evidência de que Tertuliano cria no purgatório. Quem desejar verificar a citação pode obtê-la no site católico New Advent aqui. A passagem oferecida pelo Veritatis está bem diferente da encontrada na obra de Tertuliano, há diversos trechos que lá não se encontram:

Todas as almas, pois, estão trancadas no Hades: você admite isso? Você pode dizer sim ou não: além disso, elas já experimentam punições ou consolações; e lá você tem um homem pobre e um rico (...) em suma, na medida em que entendemos a prisão apontada no Evangelho como sendo o hades, como nós também interpretamos o último centavo como significando a menor ofensa que deverá recompensada lá antes da ressurreição, ninguém hesitará em acreditar que a alma sofre no Hades alguma disciplina compensatória, sem prejuízo para o processo completo da ressurreição, quando a recompensa será executada na carne. (Tratado sobre a Alma 58)

A própria citação deixa claro que Tertuliano não se refere ao purgatório, mas ao inferno. Como visto nos comentário de Jacques Le Goff, Tertuliano dizia que todas as almas, com exceção dos mártires, vão para o hades (a morada dos mortos). O hades teria dois lugares: o inferno onde os ímpios sofrem a punição e o seio de Abraão onde os justos desfrutam de consolo. O autor cristão argumenta como uma alma sem corpo pode sofrer castigos. Nesse tratado, ele afirma que a alma possui um componente corpóreo, e sempre que menciona punição ou sofrimento, se refere aos ímpios, nunca àqueles que morreram na graça de Deus. Vejamos outros trechos da mesma obra:

Portanto, qualquer quantidade de punição ou refrigério que a alma prova no Hades, em sua prisão ou hospedagem, no fogo ou no seio de Abraão, dá prova, assim, de sua própria corporeidade. Pois uma coisa incorpórea não sofre nada, não tem o que a torna capaz de sofrimento; então, se ela tem essa capacidade, ele deve ser uma substância corporal. Pois na medida em que cada coisa corpórea é capaz de sofrimento, aquela [a alma] é também capaz de sofrer corporalmente. (Tratado sobre a Alma 7)

Vejam o paralelismo: “punição ou refrigério (...) prisão ou hospedagem (...) no fogo ou seio de Abraão”. Não há dois lugares de punição, mas apenas um (o inferno), no qual os ímpios estão. Os justos estão no refrigério, na hospedagem, no Seio de Abraão. A visão de Tertuliano é baseada na parábola do rico e Lázaro.

Para este efeito é que ele distorceu toda aquela alegoria do Senhor, que é extremamente clara e simples em seu significado, e deve ser primariamente entendida no seu sentido simples e natural. Assim, o nosso adversário (aí mencionado) é o homem pagão, que está caminhando conosco ao longo da mesma estrada da vida que nos é comum. Seria necessário que saíssemos do mundo, se não nos for permitido ter nenhuma conversa com o pagão. Ele [Jesus] nos convida, portanto, a mostrar uma disposição amável a um homem assim. Amai vossos inimigos, diz ele, orai pelos que vos maldizem, para que este homem, em qualquer transação de negócios, caso fique irritado com qualquer conduta injusta sua, e possa entregá-lo ao seu próprio Juiz (Mateus 5: 25), e você poderá ser jogado na prisão, e ser detido na sua cela estreita até ter liquidado todas as suas dívidas com ele. Então, novamente, você deve estar disposto a aplicar o termo adversário ao diabo, você é aconselhado pela determinação (do Senhor), enquanto você está no caminho com ele, fazer com ele um acordo que pode ser considerado compatível com os requisitos de sua verdadeira fé. Agora, o acordo que você fez com respeito a ele é renunciar a ele, sua pompa e os seus anjos. Tal é o seu acordo nesta matéria. Agora, o entendimento amigável que você terá que realizar deve surgir a partir de sua observância do acordo: você nunca deve pensar em obter de volta qualquer das coisas que você abriu mão, e devolveu a ele, para que ele não possa te chamar de homem fraudulento, e transgressor de seu contrato, antes Deus, o juiz (na presente luz nós lemos dele, em outra passagem, como o acusador dos irmãos, Apocalipse 12:10 ou santos, quando se faz referência à prática efetiva do processo legal); e para que este juiz [Deus] lhe entregue ao anjo que irá executar a sentença, e ele lhe mandará para a prisão do inferno, do qual não poderá sair até que a menor das suas dívidas seja paga no período anterior à ressurreição. (Tratado sobre a Alma 35)

Aqui, Tertuliano interpreta Mateus 5:25-26. Os romanistas tomam essa passagem como uma alusão ao purgatório, e Tertuliano a utiliza em vários momentos no seu tratado sobre a alma. Nesta última citação deixa claro que não via purgatório nessa passagem. O juiz seria Deus, o credor o Diabo e a prisão o Inferno. Ou seja, aquele que deveria pagar até o último centavo estaria no inferno, não no purgatório e ficaria lá até a ressurreição, não até expiar suas dívidas como preconiza a doutrina romana. Após a ressurreição, haveria o juízo final, em que os justos sairiam do seio de Abraão e iriam se juntar aos mártires, e os ímpios que já experimentaram punição no inferno seriam lançados no lago de fogo. Inferno e Seio de Abração seriam dois lugares localizados no hades (a morada dos mortos). Portanto, Tertuliano, longe de referendar o purgatório, é na verdade uma importante testemunha contra essa doutrina.

Minúcio Félix (Séculos II – III)

Minúcio Félix foi um apologista cristão do final do século II. Em sua obra Octavius, um diálogo sobre o cristianismo entre um cristão (Octávius Januarius) e um pagão (Caecilius Natalis), o pagão Caecilius faz o seguinte comentário:

Enganados por este erro, eles prometem a si mesmos, como sendo boa, uma vida abençoada e eterna após a sua morte; para outros, como sendo injustos, punição eterna. (The Octavius de Minucius Felix 11)

Ele não aponta qualquer lugar como o purgatório. O cristão Octavius, ao invés de corrigir a visão do pagão, responde confirmando que os crentes vão para junto de Deus após a morte:

E a este respeito por mais que eu admire você, na maneira em que você se aplica às pessoas mortas ou para quem nada sente, uma tocha ou uma coroa de flores para quem não pode cheirá-la, quando sendo abençoados eles não querem, ou sendo miseráveis, ele não tem prazer em flores. Ainda que adornemos nossos funerais com a mesma tranquilidade com que vivemos; não nos prendemos a uma coroa que murcha, mas nós vestimos com a vida eterna das flores de Deus, desde que nós, sendo seguros da generosidade do nosso Deus, somos animados na esperança da futura felicidade pela confiança de sua presente majestade. Assim, nós tanto crescemos em bem aventurança, como já estamos vivendo na contemplação do futuro.

Clemente de Alexandria (150 – 215) e Orígenes de Alexandria (185 – 253)

Vamos agrupar esses dois Pais, pois suas opiniões sobre a questão são parecidas.

Orígenes é citado como um professor do purgatório pelos romanistas. Na verdade, ele é uma importante testemunha de que essa doutrina não fazia parte da tradição apostólica, mas seria uma inovação doutrinária que teve como fonte a filosofia platônica.

Le Goff assevera:

A concepção particular de Orígenes – que faz dele um herege – é que não há pecador tão mal, tão inveterado, tão incorrigível em princípio que não acabe purificando-se por completo e alcançando o paraíso. Até mesmo o inferno é também temporal. Como disse exatamente G. Anrich: “Orígenes concebe mesmo o inferno como um purgatório”. Orígenes leva  até o limite a teoria da purificação, que veio de Platão, dos Órficos e dos Pitagóricos. Como não pode admitir a ideia pagã grega da metempsicose, das reencarnações sucessivas, muito incompatível com o cristianismo, aceita uma variante desta teoria que pensa poder ser cristã; a saber, a noção de um progresso contínuo, de um aperfeiçoamento perpétuo da alma após a morte, que lhe permite, por mais pecadora que possa ter sido a princípio, regressar a contemplação eterna de Deus: A Apocatástasis. (Op. cit., pp. 72)

Orígenes, por influência da filosofia grega, concebe a purificação pós-morte como um estágio pelo qual todos terão que passar. Porém não há nada similar a doutrina romana aqui. O objetivo desta purificação era permitir que todos os homens, até os mais pecadores, pudessem ser salvos, até o inferno seria um tipo de purgatório para os que morrem na inimizade de Deus. Não era uma purificação apenas para os salvos. Trata-se de uma concepção universalista da salvação.

Orígenes também difere da doutrina romana quanto ao momento desta purificação. Le Goff escreve:

Quando tem lugar estas purificações pelo fogo? Orígenes é muito claro a respeito: depois da ressurreição, durante o juízo final. (Op. cit., pp. 73)

Orígenes foi aluno de Clemente de Alexandria, suas concepções influenciaram bastante seu aluno que se tornou famoso pela defesa da apocatástasis. A opinião desse Pai a respeito da purificação pós-morte é parecida. Ele acreditava na possibilidade de salvação pós-morte, e toda a ideia de purificação pós-morte estava ligada a isso.

Referindo-se a ambos os pais gregos (Orígenes e Clemente), Le Goff diz:

Porém, para a concepção de um verdadeiro purgatório faltam ainda numerosos elementos essenciais. O tempo do purgatório segue estando mal definido, já que se confunde com o tempo do juízo final (...) nenhuma modalidade de purgatório se distingue como é devido do inferno e o caráter temporal e provisório que constituirá sua originalidade não havia aparecido ainda. Somente os mortos, com suas bagagens mais ou menos pesadas de faltas, e Deus com sua benevolência de juiz salvador tem uma responsabilidade nesta purificação depois da morte. Os vivos não intervêm nela para nada. E finalmente, não há ainda um lugar de purgação. Por outra parte, fazem do fogo purificador um fogo não somente espiritual, mas invisível. (Op. cit., pp. 75)

Hipólito de Roma (170 – 236)

Mas agora temos de falar do Hades, onde as almas tanto de justos como injustos estão presas. O Hades é um lugar no sistema criado, rude, uma localidade debaixo da terra, em que a luz do mundo não brilha; e como o sol não brilha nesta localidade, a escuridão deve ser necessariamente perpétua lá. Essa localidade foi destinada a ser uma casa de guarda para as almas. Nessa localidade há certo lugar separado por si mesmo, um lago de fogo inextinguível, em que supomos que ninguém ainda foi lançado; pois ele está preparado para o dia determinado por Deus, em que uma sentença de julgamento justa será aplicada a todos. E os injustos, e aqueles que não creram em Deus, que honraram como Deus as obras vazias das mãos dos homens, ídolos formados por eles próprios, deverão ser condenados a essa punição infinita. Mas os justos devem obter o incorruptível e inalterável reino, eles [os justos] de fato estão atualmente presos no Hades, mas não no mesmo lugar que os injustos. Nesta localidade [o Hades] há uma descida e um portão no qual nós acreditamos que um arcanjo está posto como um guardião. E quando aqueles são conduzidos pelos anjos até que as almas passem por este portão, eles [os anjos] não procedem com todas da mesma forma; uma vez que os justos, sendo conduzidos à luz para a direita, e sendo recebidos com hinos cantados pelos anjos postos no local, são levados a um local cheio de luz. E lá os justos desde o início habitam, não governados por necessidade, mas sempre desfrutando a contemplação das bênçãos que estão em sua vista, e deliciando-se com a expectativa de outras novidades, e não se considerando melhores do que os outros. E esse lugar não traz labutas a eles. Lá, não há nem calor ardente nem frio, nem aflição, mas a face dos pais e dos justos são vistas sempre sorrindo, enquanto eles esperam o descanso e eterno renascimento no céu que se sucede a este local. E nós o chamamos pelo nome seio de Abraão. Mas os injustos são arrastados para a esquerda pelos anjos que são ministros do castigo, eles não vão por conta própria, mas são arrastados a força como prisioneiros. E os anjos nomeados sobre eles os enviam, repreendendo-os e ameaçando-os com um olhar de terror, forçando-os para baixo nas partes mais baixas. E quando eles são trazidos, os designados para esse serviço arrastam-nos para as fronteiras ou inferno. E aqueles que estão tão perto, ouvem sem cessar a agitação e sentem a fumaça quente. E quando essa visão está tão próxima, quando eles veem o terrível e excessivo espetáculo do fogo, estremecem de horror pela expectativa do julgamento futuro, como se eles já estivessem sentindo o poder da sua punição. E, novamente, de onde eles veem o lugar dos pais e dos justos, eles também são punidos lá. Pois, um vasto e profundo abismo está lá no meio, de modo que não pode nem qualquer dos justos por compaixão pensar em passá-lo, nem qualquer dos injustos se atrevem a atravessá-lo. Deste modo, então, sobre o tema do Hades, em que as almas de todos estão presas até o tempo que Deus determinou; e então Ele irá realizar a ressurreição de todos, não transferindo almas em outros corpos, mas elevando-as em seus próprios corpos. (Contra Platão - Sobre a Causa do Universo - 1-2)

Esse é um dos relatos patrísticos mais completos e impressionantes sobre o destino pós-morte. Os leitores mais ligados devem ter percebido a influência da parábola do rico e Lázaro (Lucas 16:19-31) sobre a visão de Hipólito. Hipólito diz que há um lugar chamado hades, onde as almas dos justos e injustos estão aguardando a ressurreição e o juízo final. Ele começa dizendo – “em que os anjos estão postos como guardas, distribuindo, conforme as obras de cada um, castigos temporários para diferentes pessoas.” – o romanista já poderia se adiantar e dizer que é o purgatório então, mas ao seguir a narrativa, Hipólito esclarece que os justos não estão sendo punidos ou purificados, eles estão no seio de Abraão, um lugar de paz e felicidade que adianta a recompensa futura após a ressurreição. Os injustos estão em outro lugar separado do seio de Abraão, onde já recebem punição, enquanto aguardam o lago de fogo. Não há como ler essa passagem e concluir outra coisa a não ser que Hipólito desconhecia totalmente a ideia do purgatório.

Cipriano de Cartago (? – 258)

A citação abaixo é usada pelos apologistas católicos como se referindo ao purgatório:

Uma coisa é pedir perdão; outra coisa, alcançar a glória. Uma coisa é estar prisioneiro sem poder sair até ter pago o último centavo; outra coisa, receber simultaneamente o valor e o salário da fé. Uma coisa é ser torturado com longo sofrimento pelos pecados, para ser limpo e completamente purificado pelo fogo; outra coisa é ter sido purificado de todos os pecados pelo sofrimento. Uma coisa é estar suspenso até que ocorra a sentença de Deus no Dia do Juízo; outra coisa é ser coroado pelo Senhor. (Epístola 51:20)

Le Goff escreve:

Alguns autores têm creditado Cipriano com uma importante contribuição doutrinária para o purgatório já em meados do século terceiro. Na sua Carta a Antoniano [Carta 51:20] Cipriano faz a distinção entre dois tipos de cristãos: “Uma coisa é esperar o perdão e outra coisa é chegar à glória; uma coisa é ser enviado para a prisão [no cárcere] para ser solto apenas quando o último centavo for pago e outra coisa é receber imediatamente a recompensa da fé e virtude; uma coisa é ser aliviado e purificado dos seus pecados através de um longo sofrimento no fogo e outra coisa é ter todas as suas falhas limpas pelo martírio; e é uma coisa ser enforcado pelo Senhor no Dia do Juízo e outra ser imediatamente coroado por ele”... A refutação de Jay sobre a noção de que Cipriano propôs uma doutrina semelhante à do purgatório parece-me bem fundamentada. Segundo Jay, o que está a ser discutido na carta a Antoniano é a diferença entre cristãos que não resistem à perseguição (os lapsos e apóstatas) e os mártires. Não é uma questão de "purgatório" na vida após a morte, mas de penitência aqui em baixo. A referência à prisão não tem a ver com o purgatório, que ainda não existia, mas sim com a disciplina penitencial da Igreja". (Op. cit., pp. 57-58)

Cipriano repetidamente se refere aos crentes indo para o céu quando esta vida termina:

Deus promete a você, em sua partida deste mundo, a imortalidade e a eternidade; e você duvida? Isso não é conhecer a Deus inteiramente; isso é ofender a Cristo com o pecado de incredulidade (...) quão grande é a vantagem de sair do mundo, o próprio Cristo, o mestre da nossa salvação e de nossas boas obras, nos mostra, que, quando seus discípulos ficaram tristes porque ele disse que estava prestes a partir, disse: "Se vocês me amam, certamente exultaríeis porque eu vou para o Pai” ensinando assim, e manifestando que quando entes queridos que amamos afastam-se deste mundo, devemos nos alegrar ao invés de se lamentar (...) o bem-aventurado Apóstolo Paulo na sua epístola estabelece, dizendo: "Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro" (...) vamos saudar o dia que atribui a cada um de nós a sua própria casa, o que nos arrebata, e nos liberta das armadilhas do mundo, e nos restaura para o paraíso e o reino. Já começamos a considerar os patriarcas como nossos pais: por que não acelerar e correr, para que possamos contemplar aos nossos pais, para que possamos cumprimenta-los? Há um grande número de nossos entes queridos que nos esperam, e uma multidão densa de pais, irmãos, filhos, estão ansiosos por nós, já garantidos de sua própria segurança, e ainda solícitos a nossa salvação. Para chegar a sua presença e o seu abraço, o que é uma alegria tanto para eles como para nós! (...) que prazer existe no reino celestial, sem medo da morte; como será sublime e perpétua a felicidade com a vida eterna! Há a gloriosa companhia dos apóstolos, o exército dos profetas jubilosos, há a multidão inumerável dos mártires, coroado pela vitória de sua luta e paixão (...) para estes, amados irmãos, vamos nos apressar com um desejo ansioso; vamos almejar rapidamente estar com eles, e rapidamente para irmos a Cristo. (Tratado 7 – Sobre a Mortalidade – 6-7, 26)

Cipriano procura encher seus leitores de esperança, inclusive garante que encontrarão muitos de seus entes queridos no paraíso. Ele escreve sobre vários grupos de pessoas que serão encontrados lá e exorta que não se deve enxergar a morte como triste, mas como algo bom, pois iremos para junto do Pai viver em comunhão com nossos irmãos que já partiram. Toda a argumentação de Cipriano ficaria prejudicada, se ainda tivéssemos que passar anos ou até séculos no purgatório.

Gregório Taumaturgo (213 – 270)

Gregório fala apenas de dois caminhos – o da alegria na habitação eterna ou do choro no lugar de condenação:

E o homem bom deve partir com alegria para a sua própria habitação eterna; mas o vil, deve ocupar o seu lugar com choro, e nem prata armazenada, nem ouro provado, terão mais qualquer utilidade. Porque um acidente poderoso cairá em cima de todas as coisas, até mesmo sobre o cântaro junto ao poço, e sobre a roda da vasilha que pode porventura ter sido deixada no buraco, quando o curso do tempo chegar ao seu fim e o período de estudo de uma vida que é como água tiver passado. (Uma Paráfrase do Livro de Eclesiastes 12).

Afraates (270 – 345)

Afraates escreve que as almas dos crentes vão para Cristo e experimentarão uma espécie de sono até a ressurreição do corpo. Ele interpreta 2 Coríntios 5:8 como os evangélicos – o corpo morre e a alma vai para junto de Deus. Pode-se observar que esse pai da Igreja, assim como muitos outros, desconhece a doutrina do juízo particular que Igreja Romana prega. Para ele há apenas um juízo – aquele que acontecerá com a volta de Cristo após a ressurreição dos mortos:


Porque, quando os homens morrem, o espírito carnal é enterrado com o corpo, e a consciência é levada para longe dele, mas o espírito celeste que recebem vai de acordo com a sua natureza em Cristo. E sobre ambos, o apóstolo fez saber (...) o Espírito vai voltar novamente a Cristo de acordo com sua natureza, o Apóstolo disse de novo: - Quando nos afastarmos do corpo estaremos com nosso Senhor. O Espírito de Cristo, que recebe o espírito [espírito do cristão], esse vai para o nosso Senhor (...) mas a nossa fé ensina assim, que quando os homens dormem, dormem este sono sem saber do bem ou do mal. E os justos não olham suas promessas a frente, nem o perverso olha a frente a sua sentença de punição, até que o juiz venha separar aqueles cujo lugar é à sua direita daqueles cujo local está à sua esquerda .... De todas estas coisas, entender tu, meu amado, como tem sido feito certo para ti, que ainda ninguém tenha recebido a sua recompensa. Os justos ainda não tem herdado o reino, nem têm o mau ido em tormento. O pastor não tem ainda dividido Seu rebanho (...) o espírito que o justo recebeu, de acordo com sua natureza celeste, vai para o nosso Senhor até o momento da Ressurreição, quando ele deve ser colocado no corpo em que habitava. E cada vez que ele tem a memória deste na presença de Deus, e olha ansiosamente para a ressurreição do corpo em que habitou (...) eles não ficarão no mundo como estrangeiros, filhos de uma terra distante; e estamos ansiosos para ser enviado para fora deste mundo e ir para a cidade, o lugar dos justos.  (Demonstrações 6:14, 8:20, 8: 22-23, 22: 9)

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