sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Os Pais da Igreja e a Eucaristia (Agostinho - refutação ao site apologistas católicos) - Parte 4

Agostinho é uma importante testemunha contra a doutrina romana, não pela sua antiguidade, pois viveu no final do século quarto e início do século quinto, mas pela importância que desfruta na Igreja Romana.

Já houve um excelente debate entre blogs católicos e protestantes sobre Agostinho e a eucaristia. A argumentação protestante pode ser vista no Blog Heresias Católicas que respondeu ao artigo do site Veritatis. Após, o site Apologistas Católicos respondeu ao blog protestante. 

Acredito que o blog protestante fez um bom trabalho e o site “apologistas católicos” não refutou absolutamente nada, mas vou fazer algum pontos adicionais aos argumentos de sua resposta. Não vou repetir todas as citações de Agostinho em que fica patente a incompatibilidade entre ele e a ideia da presença física, no link postado, todas já estão disponíveis.

O primeiro argumento dos papistas é que “a Igreja nunca iria ter como doutor ou santo alguém que contradissesse seus dogmas”. Essa é uma argumentação falaciosa, pois parte do pressuposto que a Igreja Romana sempre interpreta corretamente e honestamente os escritos dos Pais. Qualquer pessoa que tenha um conhecimento mínimo da Bíblia e da História pode atestar que diversas vezes a Igreja Romana distorceu escritos bíblicos ou patrísticos para favorecer suas posições. Diversos santos negaram a imaculada concepção de Maria, por exemplo: João Crisóstomo e Tomás de Aquino. Nem por isso, a Igreja católica romana não os tem como doutores.

Depois, é mostrada a seguinte citação:

E a Escritura diz-me, a terra é o meu escabelo. Hesitando, eu me viro a Cristo, uma vez que eu estou aqui procurando Ele próprio: e descubro como a Terra pode ser adorada sem impiedade, e como o escabelo de seus pés pode ser adorado sem impiedade. Pois Ele tomou sobre Si terra da terra; porque a carne é da terra, e Ele recebeu a carne da carne de Maria. E porque Ele andou aqui na própria carne, e que deu a própria carne, para nos comermos para nossa salvação, e ninguém come essa carne, a menos que tenha adorado primeiro: descobrimos em que sentido tal um escabelo de nosso senhor pode ser adorado, e não só isso, não pecamos em adorar, mas que pecamos em não adorar. (Sobre o Salmo 98:8)

Mas vejamos a continuação desta mesma citação:

Mas será que a carne dá vida? Nosso Senhor, quando estava falando em louvor a essa mesma terra, disse: É o Espírito que vivifica, a carne para nada aproveita .... Mas quando o nosso Senhor a elogiou, estava falando de sua própria carne, e tinha dito: A não ser que o homem coma a minha carne, não terá vida nele. [João 6:54] Alguns de seus discípulos, cerca de setenta, ficaram ofendidos, e disseram: Esse é um discurso duro, quem pode ouvi-lo? E eles desistiram e já não andavam com Ele. Parecia-lhes difícil o que Ele disse, se não comerdes a carne do Filho do Homem, não tereis a vida em vós: eles o receberam tolamente, pensado nisso carnalmente, e imaginaram que o Senhor iria cortar partes de seu corpo e dar-lhes, e eles disseram: Esta é uma palavra dura. Eles que foram duros, não o dito; se ao menos tivessem sido duros, e não mansos, eles teriam dito para si mesmos, Ele não diz isso sem razão, mas deve haver algum mistério latente aqui. Eles teriam permanecido com Ele, mansos, e não duros, e teriam aprendido dEle o que os que permaneceram aprenderam, quando os outros partiram. Pois quando doze discípulos ficaram com ele, em sua partida, esses seguidores restantes sugeriram a ele, como se em luto pela morte dos primeiros, que eles se sentiram ofendidos por suas palavras e desistiram. Mas Ele os instruiu e lhes disse: É o Espírito que vivifica, mas a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e vida. [João 6:63]. Entenda espiritualmente o que eu disse; não é para você comer este corpo que você vê; nem beber o sangue que aqueles que vão me crucificar devem derramar. Tenho recomendado a vocês certo mistério; entendido espiritualmente, ele vai despertar. Embora seja necessário que seja visivelmente celebrado, no entanto, deve ser entendido espiritualmente.

Ao lermos a continuação da citação, é visto que não endossa a posição de que o bispo de Hipona acreditava na transubstanciação. Pelo contrário, conforme muitas outras citações trazidas pelo Blog Heresias Católicas, ele entendia as palavras de Jesus de forma simbólica e espiritual, os romanistas por outro lado, entendem de forma literal e física. Imagine que alguém hoje acusasse um católico romano de cometer canibalismo no momento da comunhão – ele com certeza argumentaria que não é canibalismo, mas jamais utilizaria a argumentação de que as palavras de Jesus devem ser interpretadas apenas espiritualmente, inevitavelmente defenderia a presença física de Cristo na eucaristia e tentaria demonstrar como isso ainda assim é diferente de canibalismo. Porém, Agostinho não fez nada disso, ou ele desconhecia a doutrina romanista ou era um professor omisso, não é preciso dizer qual hipótese é mais provável.
O argumento “seria muito estranho alguém que diz que devemos adorar a Eucaristia negar a transubstanciação” é falacioso por três motivos:

(1)           Quando Agostinho se referiu à adoração dos elementos, estava falando como um mero sinal de respeito, conforme assevera Philip Schaffer:

Em todas estas passagens, devemos, sem dúvida, levar a termo proskunei'n e adorare no sentido mais amplo, e distinguir do arqueamento dos joelhos, que era tão frequente, especialmente no Oriente, como um mero sinal de respeito, de adequada adoração. As antigas liturgias não contém direção para qualquer ato de adoração como se tornou predominante na Igreja Latina, como a elevação da hóstia, após o triunfo da doutrina da transubstanciação, no século XII. (Fonte)

(2)           Ainda que partamos da premissa que Agostinho defendia a adoração no sentido clássico do termo, isso em nada favorece a doutrina romana. A própria citação esclarece isso, ele diz “e descubro como a Terra pode ser adorada sem impiedade”, ou seja, a terra poderia ser adorada por que a Escritura afirma que é o escabelo de Deus. Escabelo seria aquele banquinho para os pés, e acho que ninguém defendia que Agostinho acreditasse de fato que a terra é o banquinho para Deus descansar os pés. Então se temos claramente uma metáfora sendo suficiente para justificar a adoração à terra, porque em relação à eucaristia deveria ser diferente?

(3)           Como já dito neste artigo, as pessoas podem ter com o símbolo a mesma atitude que teriam como o que está sendo simbolizado. E ninguém mais do que os católicos romanos podem atestar isso. Eles cultuam imagens, nem por isso acreditam na presença física de Jesus, Maria ou Santos nas imagens. Da mesma forma, como já ficou óbvio pelo contexto, Agostinho poderia não acreditar numa presença física, e ainda assim ter uma atitude de elevada reverência aos elementos, até porque ele concebia uma presença espiritual de Cristo na eucaristia e não um mero simbolismo.

Após essa primeira citação, o site apologistas católicos traz outra como prova da transubstanciação:

O Senhor Jesus queria que aqueles cujos olhos foram mantidos para reconhecê-lo, reconhecê-lo no partir do pão [Lucas 24:16,30-35]. Os fiéis sabem o que eu estou dizendo que eles conhecem a Cristo na fração do pão. Pois nem todo pão, mas apenas aquele que recebe a bênção de Cristo, torna-se corpo de cristo. (Sermões 234:2)

É importante perceber que nesse sermão, Agostinho comenta sobre a passagem de Lucas 24:16-35 em que os discípulos no Caminho de Emaús não reconheceram Jesus. Os discípulos o tiveram como um estranho, mas pararam para ouvir suas palavras e o convidaram para partir o pão com eles, ou seja, não era a celebração da Eucaristia em questão, mas uma refeição comum. O detalhe especial descrito nos vs. 31 e 32 é que ao partirem o pão dado por Jesus, os olhos deles foram abertos e puderam reconhecê-lo. Então, pelo contexto, percebemos que Agostinho está falando de um pão comum usado para simples alimentação, que após ser abençoado por Cristo, abriu os olhos daqueles homens. Trata-se obviamente de um momento que não poderia envolver a transubstanciação. Seria improvável que o Bispo de Hipona usasse uma passagem que não remetia a transubstanciação para ensinar essa doutrina. Além do mais, a citação em si é irrelevante para a causa católica, pois todos concordam que o pão consagrado é diferente do pão comum, e que após a consagração, este pão passa a ser o corpo do Cristo. A questão é de que forma isto deveria ser entendido. Se Agostinho ou outros Pais da Igreja aqui analisados quisessem ensinar a doutrina romanista, poderiam utilizar termos simples que não deixariam margem para dúvidas como, por exemplo: dizer que Cristo está fisicamente presente; dizer que não há mais a substância pão, mas apenas o corpo físico; ou que toda a matéria do pão foi convertida no corpo físico de Jesus juntamente com sua alma e divindade. Porém, eles não utilizaram tais termos simples que estariam a sua disposição.

A visão agostiniana era da presença espiritual de Cristo na ceia, e as palavras proferidas neste sermão adequam-se perfeitamente a essa interpretação. Portanto, se alguém deseja provar que ele defendia a doutrina da conversão dos elementos, precisa mostrar bem mais. O apologista católico segue mostrando uma citação “adulterada” de Agostinho em que se troca a palavra significante por simbólica. Teria sido proveitoso apontar onde esta citação adulterada estava, pelo menos na internet em português, não achei nenhum site protestante a utilizando.
 
Sob a servidão do sinal vive quem faz ou venera uma coisa SIMBÓLICA [SIGNIFICANTE] sem saber o que ela significa. Mas quem faz ou venera a um signo útil instituído por Deus, cuja virtude e significado entende, não veneram visível e transitório, mas Aquele a quem todos esses signos se referem [...] Tais são: o sacramento do batismo e a celebração do corpo e sangue do Senhor. Quando alguém os recebe, bem instruído, sabe a que se referem e, por conseguinte, venera-os com liberdade espiritual e não com servidão carnal. Ora, seguir a letra e confundir os sinais com aquilo que os sinais significam indica fraqueza e servidão. Interpretar os sinais erradamente é o resultado de estar sendo conduzido pelo erro. (Doutrina cristã Livro III, 9)

É bem verdade que a tradução mais adequada é “coisa significante” ou “objeto significante”. Porém, todo o contexto aponta que ele não via o pão como sendo literalmente o corpo do Cristo. Percebam as palavras do Bispo: “não veneram o VISÍVEL E TRANSITÓRIO, mas AQUELE a que todos esses signos se REFEREM”. Que católico romano utilizaria palavras como essas para se referir a eucaristia? Agostinho diz que o pão em si não era venerado, pois não se venera o visível e transitório, mas sim aquilo a que o pão SE REFERE. É totalmente incompatível que ele cresse que o pão fosse literalmente e substancialmente o corpo de Cristo e utilizasse palavras como essas. Se o pão é o corpo de Cristo, então ele diria que o pão em si deveria ser adorado, pois ali não haveria mais pão, apenas o corpo. Como ele diria para alguém venerar aquilo que o pão representa, se o pão é em si o próprio Cristo? O fato de colocar o batismo e a eucaristia na mesma categoria de sinais também é revelador, pois assim como o batismo aponta uma realidade externa (a morte para o pecado e o renascimento para Deus) a eucaristia também aponta para uma realidade externa (o sacrifício propiciatório de Jesus). Porém, na doutrina romana, a eucaristia não é um mero sinal de uma realidade externa já ocorrida, neste momento Cristo é de fato literalmente sacrificado.

Portanto a argumentação “Por ultimo, só o fato de ser provado que a tradução adulterada não condiz com as palavras de Santo Agostinho já refuta toda a interpretação que se baseia na tradução errada” é falaciosa. Pois, mesmo traduzindo como “coisa significante”, o contexto permite a mesma conclusão – esse pai sustentava uma visão simbólica, no sentido de que os elementos não se transformavam no corpo físico. Bastaria o autor ler outros trechos da mesma obra para descobrir a verdadeira posição de Agostinho:

Se a sentença é um dos comandos, proibindo um crime ou vício, ou ordenando um ato de prudência ou benevolência, não é figurativa. Se, no entanto, parece que impõem um crime ou vício, ou proibe um ato de prudência ou benevolência, é figurativa. Se não comerdes a carne do Filho do homem, diz Cristo, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. [João 6:53]. Essa parece intimar um crime ou um vício; portanto, é uma figura, que ordena que devemos compartilhar [communicandem] nos sofrimentos de nosso Senhor, e que devemos manter uma memória doce e proveitosa [in memoria] do fato de que sua carne foi ferida e crucificada por nós. (Ibid 16)

Ele interpreta figuradamente ou simbolicamente as palavras de Cristo. O significado do texto é que devemos compartilhar dos sofrimentos de Cristo e lembrar do seu sacrifício por nós, não que devemos de fato comer o corpo literal dele, junto com seus ossos, medulas, alma e divindade. Agostinho segue nesse trecho explicando outras passagens da Escritura que parecem comandar um delito, portanto, deveriam ser compreendidas simbolicamente. O apologista católico também traz esta citação usada pelos protestantes:

Eles disseram, pois, para ele: o que devemos fazer para que possamos fazer as obras de Deus? E ele lhes disse: trabalhem, não para a carne que perece, mas para o que permanece para a vida eterna. O que devemos fazer? Eles perguntam; observando se seriam capazes de cumprirem este preceito. Jesus respondeu e lhes disse: isto é a obra de Deus, para que vocês acreditem naquele que me enviou. E, em seguida, para comer a carne, não a que perece, mas a que permanece para a vida eterna. Para qual finalidade você prepara o dente e o estômago? Creia, e você já terá comido. (Tratados sobre João, XXV, 12)

A questão aqui é como Agostinho interpretava as palavras de João 6 tão utilizadas pelos católicos como provada da transubstanciação. E, definitivamente, ele não interpretava como eles. Vejamos os capítulos seguintes do mesmo tratado:

O meu Pai vos dá o verdadeiro pão. Porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo. Disseram-lhe: Senhor, dá-nos sempre desse pão. Como aquela mulher samaritana, a quem foi dito: Todo aquele que beber desta água jamais terá sede. Ela, imediatamente compreendeu como referência a matéria, e que desejava saciar-se, dizendo: Dá-me, Senhor, desta água; da mesma forma, também estes disseram: Senhor, dá-nos este pão; que podem nos revigorar, e ainda não falhar. E Jesus disse-lhes: Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome; e aquele que crê em mim nunca terá sede. Aquele que vem a mim; esta é a mesma coisa que aquele que crê nele; não terá fome deve ser entendida no mesmo sentido de nunca mais terá sede. Pois ambos significam suficiência eterna em que nada falta. (Ibid 13-14)

É bem verdade que essas passagens por si só não mostram que Agostinho não cria na transubstanciação, isso sabemos por outras. Mas, mostram que não interpretava as palavras de João 6 como se referindo à eucaristia, mas sim como a promessa de salvação de Cristo a todo aquele que crê. Observa-se que ele traçou um paralelo entre o diálogo de Jesus com os judeus a respeito do pão que desceu do céu e o diálogo com a mulher samaritana. Em ambos, os ouvintes interpretaram as palavras do mestre como literais e materiais, mas na verdade se tratavam da promessa da vida eterna em Cristo. Assim como a água oferecida à samaritana era metáfora para a vida em Cristo, o pão também era.

O apologista traz citações em que Agostinho condena uma compreensão literal dos ouvintes de Cristo em que eles imaginavam ter que comer a pessoa de Cristo. É verdade que ele está condenando este tipo de compreensão, mas de forma diferente dos católicos, não faz nenhuma conexão entre João 6 e comer o corpo literal de Cristo no pão transubstanciado. Em todos os casos, o efeito é o mesmo – Esse bispo não interpretava a bíblia como um católico interpreta e tinha uma compreensão diferente do texto mais usado para justificar a crença romana. Que Agostinho desconhecia essa doutrina, podemos inferir também de várias outras citações. Ainda comentando João 6, ele diz:

Então, a cada um serão vida o corpo e sangue de Cristo, se o que se recebe visivelmente no sacramento se come na própria realidade espiritualmente, se bebe espiritualmente. Pois temos ouvido o próprio Senhor, dizendo: ‘O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos digo são espírito e vida [Jo.6.63]. (Sermão 131:1)

A última citação analisada pelo apologista católico:

Você sabe que, na linguagem comum, quando a Páscoa está se aproximando, nós dizemos: ‘Amanhã’ ou ‘Depois de amanhã é a paixão do Senhor’, ainda que seja verdade que Ele sofreu há muitos anos e Sua paixão aconteceu de uma vez por todas. De maneira parecida, no Domingo de Páscoa, nós dizemos: ‘Neste dia o Senhor ressuscitou dos mortos’, ainda que muitos anos tenham se passado desde Sua ressurreição. Mas, ninguém é tolo o suficiente para nos acusar de mentir quando usamos estas frases. O motivo que chamamos estes dias assim é porque há semelhança entre estes dias e os dias em que os eventos aos quais nos referimos realmente aconteceram. Nos referimos a estes dias como se fossem os mesmos dias em que os eventos aconteceram, ainda que não sejam realmente os mesmos, porque correspondem a mesma época do ano. E, quando é dito que o evento ocorre naquele dia, é porque, ainda que tenha acontecido muito antes, é neste dia que o evento é celebrado sacramentalmente. Cristo não foi, em Sua própria Pessoa, oferecido como sacrifício de uma vez por todas? Mas, ainda assim, Ele também não é oferecido no sacramento como um sacrifício, não somente nas solenidades especiais da Páscoa, mas também diariamente em nossas congregações? Sendo assim, se um homem é interrogado e responde que Cristo é oferecido nesta ordenança, ele não está dizendo a verdade? Se os sacramentos não tivessem qualquer semelhança verdadeira com as coisas das quais são sacramentos, não seriam de fato sacramentos. Na maioria dos casos, em virtude desta semelhança, os sacramentos são chamados pelo nome da realidade com a qual se assemelham. Portanto, em certo sentido, o sacramento do corpo de Cristo é o corpo de Cristo, o sacramento do sangue de Cristo é o sangue de Cristo [...] Com base nisso, o Apóstolo disse, em relação ao sacramento do batismo: ‘De sorte que fomos sepultados com Ele pelo batismo na morte’. [Rom 6.4] Ele não diz: ‘Nós temos significado que nós fomos sepultados com Ele’, mas diz que ‘fomos sepultados com Ele’. Portanto, Ele deu ao sacramento referente a uma operação tão grandiosa o nome que descreve a própria operação.

Essa citação é tão clara que nem merecia maiores explicações. Vejam as analogias que usa para explicar o sacramento da eucaristia. Ele compara aos dias que a páscoa era comemorada, argumentando que ninguém era tolo de acreditar que aquele dia não era uma mera recordação. Depois descreve a analogia do apóstolo Paulo da morte e ressurreição do crente no batismo. Obviamente, todos, até os católicos romanos entendem essas metáforas que apontam para realidades externas. Mas Agostinho colocou o sacramento da eucaristia nesse mesmo grupo, e explica por que ele chamava o pão e o vinho de corpo e sangue de Cristo. Não era por que acreditasse que esses elementos se transformam literalmente em corpo e sangue, mas por que apontavam para o corpo e o sangue real de Cristo. Por isso, ele usou o termo “em certo sentido”.

A explicação do apologista católico não convence, ele não lidou com todos esses termos usados por Agostinho. Ele tenta mostrar que Tomás de Aquino pensava exatamente como Agostinho e ainda assim acreditava na transubstanciação. Isso é falso, basta abrir o link para perceber que Tomás fala de coisas diferentes. Agostinho, assim como os outros Pais, nunca usou a distinção entre substância e acidente de Tomás com relação à eucaristia. E a aqui não se trata de uma mera mudança de nomes. O bispo de Hipona deixou claro por que chamava o sacramento pelos nomes “corpo e sangue de Cristo”, e sua explicação exclui a possibilidade da crença numa transubstanciação. Um ótimo argumento trazido pelo blog heresias católicas a crença de Agostinho que o corpo de Cristo estava no céu e não aqui na terra sempre que a eucaristia é celebrada:

Quando dizia Cristo: ‘A mim nem sempre me tereis convosco’, estava falando da presença do corpo. Ora, segundo sua majestade, segundo sua providência, segundo sua inefável e invisível graça, cumpre-se o que foi por ele dito: ‘Eis que estou convosco até a consumação do mundo’ [Mt 28.20]; segundo a carne, porém, que o Verbo assumiu, segundo seu nascimento da Virgem, segundo que foi agarrado pelos judeus, que foi pregado no madeiro, que foi retirado da cruz, que foi envolvido em panos de linho, que foi encerrado no sepulcro, que foi manifestado na ressurreição, isto se cumpre: ‘Não me havereis de ter sempre convosco.’ Por que razão? Porque, por quarenta dias que conviveu com seus discípulos foi segundo a presença do corpo; e, acompanhando-o, vendo-o, não o seguindo, subiu ao céu [At 1.3, 9]. ‘Não está aqui’ [Mc 16.9], pois está ali assentado à destra do Pai [Mc 16.19]. E, todavia, está aqui, porquanto não se retirou para a presença da majestade. Doutra maneira, sempre temos a Cristo segundo a presença de sua majestade, segundo a presença da carne, corretamente se disse: ‘Mas a mim nem sempre me tereis. Teve-o, pois, a Igreja segundo a presença da carne, por uns poucos dias; o teme agora pela fé, não o vê com os olhos. (Tratado Sobre João, L, 13)

Ora, uma só pessoa é Deus e homem, e ambos um só Cristo, enquanto é Deus, está em todo lugar; enquanto é homem, está no céu. (Letters, III, 10)

Seria inexplicável alguém sustentar tal posição e ainda crer em algo como o sacrifício da missa. Se de fato sustentasse a doutrina romanista, teria dado boas explicações sobre como Cristo pode estar fisicamente presente na missa, mas não o fez.

Embora consideremos que já não há o dever de oferecer sacrifícios, reconhecemos sacrifícios como parte dos mistérios da Revelação, através da qual as coisas profetizadas foram prenunciadas. Pois eles eram os nossos exemplos, e em muitos e diversos modos apontaram para o único sacrifício que agora comemoramos. Agora que este sacrifício foi revelado, e foi oferecido em tempo oportuno, o sacrifício não é mais obrigatório como um ato de adoração, ao mesmo tempo em que mantém a sua autoridade simbólica (...) Antes da vinda de Cristo, a carne e o sangue desse sacrifício estavam como sombras nos animais mortos; na paixão de Cristo, os tipos foram cumpridas pelo verdadeiro sacrifício; depois da ascensão de Cristo, esse sacrifício é comemorado no sacramento. (Philip Schaff, Padres Niceno e Pós-Nicenos, vol. IV, St. Agostinho: Os escritos contra os maniqueístas e contra os donatistas, resposta a Fausto o maniqueísta 6.5, 20.21 (New York: Longmans, Verde, 1909)., Pp 169, 262.)

O único e definitivo sacrifício de Cristo era comemorado no sacramento e não reapresentado várias e várias vezes.

Pois, como temos muitos membros em um corpo, e nem todos os membros têm a mesma função, assim nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo. Este é o sacrifício dos cristãos: sendo muitos, somos um só corpo em Cristo. E este é também o sacrifício que a Igreja celebra continuamente no sacramento do altar, conhecido dos fiéis, no qual ela ensina que ela mesma é oferecida na oferta que ela faz para Deus (...) Pois nós, que somos sua própria cidade, é o seu sacrifício mais nobre e digna, e é este mistério que celebramos em nossos sacrifícios, que são bem conhecidas dos fiéis (...) Por meio dos profetas os oráculos de Deus declararam que os sacrifícios que os judeus oferecidos eram uma sombra daquilo que deveria cessar, e que as nações, desde o nascer ao pôr-do-sol, iriam oferecer um sacrifício. (Philip Schaff, Padres Nicenos e Pós-Nicenos, vol. II, p. 230-31. St. Agostinho: A Cidade de Deus na Doutrina Cristã, A Cidade de Deus Livro 10, cap. 6; Livro 19, cap. 184: (Eerdmans, 1956 Grand Rapids), pp, 418 23)

A Ceia era uma recordação do único e definitivo sacrifício de Cristo. Neste momento, a Igreja oferecia-se a si mesma como uma oferta de louvor a Deus. A oferta não era Cristo, era a Igreja. Assim como os outros padres, ele viu niso o cumprimento da profecia de Malaquias. Em outras passagens, o bispo também se refere à Igreja metaforicamente presente na eucaristia:

Veja, isso é recebido, isso é comido, isso é consumido. É o corpo de Cristo consumido, é a Igreja de Cristo consumida, são os membros de Cristo consumidos? Nem pensar! (Sermão 227)

Conforme Schaff, muitos outros autores cristãos, inclusive seu pupilo Facundus, seguindo o mestre Agostinho, defenderam uma visão espiritual e não literal da eucaristia:

O discípulo de Agostinho, Facundus, ensinou que o pão sacramental "não é propriamente o corpo de Cristo, mas contém o mistério do corpo." Fulgêncio de Ruspe tinha a mesma visão simbólica; e até mesmo em um período bem mais tarde, podemos segui-la [a visão de Agostinho] por meio da poderosa influência dos escritos de Agostinho em Isidoro de Sevilha e Beda o Venerável. Entre os teólogos da época carolíngia, em Ratramo, e Berengário de Tours, até que irrompeu em uma forma modificada com maior força do que nunca, no século XVI, e tomou posição permanente nas igrejas reformadas. (Fonte)

3 comentários:

  1. Tu foi maravilhoso mano! Genial!

    Responde esse: http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/controversias/565-santo-agostinho-era-protestante

    Deus abençoe!

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    Respostas
    1. Obrigado por trazer esse artigo. Vou postar uma resposta nas próximas semanas. Eu li o artigo que ele tentou refutar, mas não refutou nada aqui: http://conhecereis-a-verdade.blogspot.com.br/2011/04/seria-agostinho-de-hipona-catolico.html.

      Ele realmente distorceu as citações de Agostinho para faze-lo um católico romano, coisa que ele nunca foi. Estou escrevendo artigos sobre a regeneração batismal e os Pais da Igreja. Após isso, escrevo esse.

      Abraço!

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    2. Já publiquei a primeira parte da resposta:

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2016/02/agostinho-e-o-catolicismo-romano-parte.html

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