sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Roma Falou, Causa Encerrada?

Já existem excelentes artigos em português demonstrando que esse ditado é uma distorção do pensamento de Agostinho a respeito da autoridade na Igreja: Aqui e Aqui.

Abaixo, segue a explicação do teólogo católico romano Klaus Schatz:

No caso do Norte de África é interessante observar a atitude de uma igreja autoconfiante e organizacionalmente intacta em relação a Roma. A declaração do Bispo Agostinho de Hipona (396-430), Roma locuta, causa finita ("Roma falou, o assunto está resolvido") foi citada repetidamente. No entanto, a citação é realmente uma ousada reformulação das palavras do pai da igreja tomadas completamente fora de contexto.

Concretamente a questão era o ensinamento de Pelágio, um asceta da Grã-Bretanha, que viveu em Roma. Pelágio tomou uma posição contra o cristianismo permissivo e minimalista que recuava da seriedade moral do discipulado cristão e usava a incapacidade humana e confiança somente na graça para desculpar a preguiça pessoal. Ele, portanto, enfatizou um cristianismo ético de obras e desafio moral no qual a graça era principalmente um incentivo para a ação; os seres humanos continuam a ser capazes de escolher entre o bem e o mal por sua própria capacidade. Esse ensinamento foi condenado por dois concílios do Norte da África em Cartago e Mileve em 416. Mas como Pelágio viveu em Roma, e Roma foi o centro do movimento pelagiano, pareceu apropriado informar ao Papa Inocêncio I da decisão. Em última análise, a luta contra pelagianismo só poderia ser realizada com a cooperação de Roma. O Papa respondeu finalmente em 417, aceitando as decisões dos dois Concílios. Agostinho, em seguida, escreveu: "Já sobre esta causa dois concílios foram enviados à Sé Apostólica, donde também rescritos chegaram. A causa está terminada. Que o erro possa igualmente terminar".

Tanto o contexto dessa declaração e sua continuidade com o resto do pensamento de Agostinho não permite outra interpretação que não seja a de que o veredicto de Roma somente não é decisivo; em vez disso, dispõe de todas as dúvidas depois de tudo que a precedeu. Isso é porque não restava nenhuma outra autoridade eclesiástica de qualquer consequência para quem os pelagianos poderiam apelar, e em particular a própria autoridade da qual eles poderiam mais facilmente ter esperado uma decisão favorável, ou seja, Roma, tem claramente decidido contra eles!

Em geral, Agostinho atribui um peso relativamente importante de autoridade para a igreja romana em questões de fé, mas não considera que ela tenha um ofício superior de ensino. Tem auctoritas, mas não potestas sobre a Igreja no Norte da África. Os próprios concílios acima mencionados dão uma imagem clara da forma como os africanos, incluindo Agostinho, consideravam a autoridade de ensino de Roma. Eles enviaram seus registros a Roma não para obter a confirmação formal, mas porque reconheciam que a Igreja Romana, com a sua tradição, tinha um auctoritas recebido em questões de fé; portanto, eles desejavam ter uma decisão Romana junta com a sua própria. Isso é especialmente evidente em uma carta de Agostinho escrita para cinco bispos: “não estamos, disse ele, derramando nossa pequena gota de volta para sua ampla fonte para aumenta-la, mas (...) nós desejamos ser reafirmados por vocês a respeito destas nossas gotas, que escassas todavia, fluem a partir da mesma fonte que seu córrego abundante, e nós desejamos o consolo de seus escritos, tirados de nossa comum partilha da mesma graça”. Toda a Palavra desta deve ser observada: a igreja romana não é a fonte da igreja africana, pois ambos, em fluxos paralelos, fluem do rio da mesma tradição, mesmo que o rio seja mais completo na igreja romana. Roma tem, assim, uma autoridade relativamente maior e mais importante, sendo por isso que a Igreja Africana procura um veredicto de Roma.

Papal Primacy (Minnesota: The Liturgical Press, 1996, p. 34-35)

Klaus Schatz usou as expressões “Auctoritas” para se referir à autoridade da Igreja Romana e mencionou que não tinha “potestas”. Essas expressões são do direito romano. Autorictas envolve a autoridade de alguém que possui excelência moral ou notório saber em algo. Eu mesmo fiz uso dessa ao citar Klaus Schatz. Ele possui “autorictas” porque é um estudioso no assunto, portanto, sua opinião tem maior peso, ainda mais quando vai contra a opinião de muitos de sua própria denominação. Potestas seria a autoridade institucionalmente e vinculantemente constituída. Um juiz tem este tipo de autoridade, sua autoridade nasce do poder legal, sendo obrigatória. Ao citar Klaus, não estou lhe concedendo este tipo de autoridade, pois apesar de reconhecer que ele tem notório saber no assunto, não considero sua opinião obrigatória, infalível ou inerrante.

Esta distinção é fundamental para entender a autoridade exercida pela Igreja Romana nos tempos de Agostinho.  Ela era a Igreja mais importante do ocidente e detinha grande prestígio juntamente com as outras sedes apostólicas (Alexandria, Antioquia, Constantinopla e Jerusalém). Sua posição tinha peso, mas não era considerada infalível ou vinculativa por si mesma.  Por isso, nas controvérsias, era comum que a Igreja Romana e as outras Sedes Apostólicas fossem consultadas. Assim foi no caso do arianismo, pelagianismo, monofissimo e outras heresias. Porém, caso a Igreja consultada decidisse de forma contrária à posição apoiada pela Igreja apelante, essa não necessariamente mudaria sua posição, pois não considerava a decisão da Sede Apostólica infalível ou vinculativa. Esse foi o caso da Igreja Norte Africana. Quando o Bispo Romano Zózimo voltou atrás na condenação ao Pelagianismo, os norte africanos não mudaram sua posição e se mantiveram firmes na condenação à heresia.

Desta forma, quando um apologista papal tentar provar que a Igreja Romana tinha supremacia jurisdicional sobre as demais a partir dos casos em que outras Igrejas a consultavam sobre controvérsias doutrinárias, é preciso demonstrar que a parte apelante considerava essa opinião vinculante e infalível. Isso nunca ocorreu. As partes de uma controvérsia muitas vezes apelavam a outras Sedes Apostólicas, cujas decisões os romanistas não considerariam vinculantes e infalíveis por si mesmas. E também, em diversas ocasiões, a parte apelante não seguiu a opinião da Sé Apostólica consultada.

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