João
Crisóstomo foi bispo de Constantinopla e considerado uma dos principais pais
orientais. Ele é frequentemente citado em favor da doutrina papal. Esses dois
sites católicos o apresentam em favor dessa doutrina: apologistas católicos e
heresias refutadas.
Os
católicos deturpam os pais da igreja basicamente de três formas:
(1)
Citar algo que é dito sobre Pedro considerando prova de sua primazia sem
aplicar o mesmo raciocínio às citações semelhantes relacionadas aos outros
apóstolos;
(2)
Pressupor que uma afirmação feita sobre Pedro automaticamente se aplica ao
bispo de Roma;
(3)
Citar algo sobre o bispo de Roma como evidência do papado sem aplicar o mesmo
raciocínio quando palavras semelhantes são dirigidas a outros bispos de
destaque;
(4)
Pressupor que quando um pai da igreja atribui uma posição mais importante ao
apóstolo Pedro ou ao bispo de Roma significa necessariamente o que os papistas
hoje entendem como primazia papal.
Primazia
de honra vs primazia jurídica
Esses
quatro erros acontecem na análise papista de João Crisóstomo. É inegável que
Crisóstomo atribui algum tipo de primazia a Pedro. A questão é se Pedro tinha
primazia jurídica sobre os demais apóstolos. É óbvio que Pedro tinha autoridade
jurídica (jurisdição) sobre toda a igreja. Pedro também teve uma atuação
destacada no colégio dos 12. Ele foi o primeiro a fazer a confissão de Mateus
16:18, foi ele quem primeiro pregou no dia de pentecostes e também parecia ter
uma relação mais próxima a Jesus (João também – chamado de “o discípulo
amado”). Tudo isso coloca Pedro numa posição de destaque no colégio apostólico,
mas não implica que tinha autoridade sobre os demais. Pedro não poderia tomar
decisões que vinculavam aos demais com base somente na sua própria autoridade.
É
nesse aspecto que protestantes e ortodoxos fazem uma distinção entre “primado
de honra” e “primado jurídico”. Se Pedro recebeu de Cristo uma autoridade sobre
os outros apóstolos que lhe permitia tomar decisões que vinculavam os demais
com base em sua própria autoridade, ele tinha autoridade jurídica. Mas, se ele
não podia fazer isso, tendo apenas uma atuação destacada entre os doze, podendo
até mesmo assumir a liderança em determinadas situações ou mesmo ser o
porta-voz dos apóstolos, ele tinha apenas um primado de honra.
Deixe-me
fazer uma analogia que pode esclarecer o conceito. Imagine um grupo de doze
pessoas que precisa fazer um projeto qualquer. Nenhum dos doze foi apontado
como o chefe jurídico do grupo, ou seja, ninguém pode impor sua vontade sobre
os demais sem o consentimento ou apoio dos outros. Imagine que as decisões
tomadas devessem ser aprovadas mediante apoio da maioria ou então por consenso
unânime. Nesse caso, podemos afirmar que ninguém detinha a primazia jurídica no
grupo. Porém, como em todo o grupo, alguém se destaca. Um dos doze tem mais
iniciativa e se envolve de forma mais intensa no projeto. Ele dá mais ideias,
dá mais contribuições. É ele quem geralmente se comunica com o público externo.
Em situações críticas, ele toma a frente para executar o que o grupo havia
acordado em fazer. O público externo geralmente o vê como aquele que tem mais
sabedoria e conhecimento. Esse indivíduo naturalmente se tornou um líder no
grupo, mas as decisões do grupo ainda precisam ser aprovas pela maioria ou por
todos. Esse é um típico exemplo de alguém com primazia de honra. Era esse o
posto ocupado por Pedro entre os doze (e aqui estou excluindo Paulo). Veremos
então qual desses conceitos é adotado por João Crisóstomo.
O
argumento católico
Pedro,
a cabeça dos Apóstolos, o primeiro na Igreja, o amigo de Cristo, que não recebeu a
revelação do homem, mas do Pai... esse Pedro, e quando digo Pedro, eu quero
dizer rocha inquebrável, o fundamento inabalável, o grande
apóstolo, o primeiro dos discípulos, o primeiro chamado, o primeiro a obedecer. (De Eleemos III, 4, vol II, 298 [300])
Pedro,
o corifeu do coro dos apóstolos, a boca
dos discípulos, o fundamento da fé, a base da confissão, o pescador do
mundo, que trouxe de volta a nossa raça da profundidade do erro para o céu,
aquele que é em todos os lugares fervoroso e cheio de ousadia, ou melhor, mais
cheio de amor do que de ousadia... (Hom de Dezem mille talentis, 3, vol III, 20 [4])
Trouxe
essas duas por questão de brevidade, mas há outras em que adjetivos semelhantes
são dados a Pedro. Deveríamos concluir a partir disso que Pedro era um papa, ou
seja, ele tinha autoridade jurídica sobre os outros apóstolos? Veremos que não.
A
primazia de Tiago
Não
havia arrogância na Igreja.
Depois que Pedro e Paulo falam e ninguém os silencia: Tiago espera pacientemente, ele não começa (para a próxima
palavra). Grande era a ordem (do processo). Nenhuma palavra João fala aqui,
nenhuma palavra dos outros apóstolos, mas mantiveram a harmonia, pois Tiago foi
investido com o governo principal
[em Atos 15], e concebo isso sem dificuldade. Tão limpa era a sua alma do amor
da glória. "E depois que eles terminaram de falar, Tiago respondeu"
[v. 13]. Pedro falou com mais força, mas Tiago aqui [fala] mais suavemente, pois assim cabe [agir] alguém na mais alta
autoridade, deixar o que é desagradável para os outros a dizerem, enquanto ele próprio aparece na parte mais
moderada. (Homilias sobre os Atos dos Apóstolos, 33)
Aqui
vemos a deturpação (1). Destaca-se que essa citação se dá num contexto em que
Pedro é mencionado. Veja a natureza do argumento – Tiago falou mais
moderadamente porque cabia agir assim por estar no posto mais alto da
autoridade, já aos que não estão nesse posto, cabia dizer as coisas mais
desagradáveis. O detalhe primordial é que ele inclui Pedro nesse segundo grupo.
Ou seja, Tiago estava numa posição de autoridade sobre Pedro pelo menos nesse
episódio específico. A questão é – se Crisóstomo acreditava que Pedro tinha
primazia jurídica sobre os demais, como ele poderia estabelecer esse tipo de
relação entre Pedro e Tiago? A melhor explicação é que ele podia atribuir a
alguém um papel de liderança ou proeminência sem ter em mente uma primazia de
natureza jurídica. O concílio de Jerusalém é uma forte evidência da ausência do
papado na igreja apostólica, pois se fosse o caso, deveria ser evidente nesse
concílio. Pedro não convocou, nem presidiu, nem deu a palavra final e muito
menos ratificou esse concílio.
O
apologista católico Dom Champman responde a essa questão afirmando que Tiago
era chefe dos fariseus, portanto, cabia a ele a autoridade na questão porque
era líder dos fariseus cristãos que havia começado a polêmica debatida pelo
concílio. O problema é que essa explicação não consta do texto de Crisóstomo. O
católico está empurrando para o texto algo que não está lá. Crisóstomo entendeu
que Tiago foi o presidente do concílio, o que é inconsistente com a ideia de
que Pedro fosse um papa.
A
primazia de João
O filho do trovão [o
apóstolo João], o amado de Cristo, o
pilar das Igrejas em todo o mundo, que possui as chaves do céu, que bebeu o
cálice de Cristo e foi batizado com o Seu batismo, que se coloca sobre o peito do seu Mestre com muita
confiança, este homem vem adiante para nós agora.
(Homilias sobre o Evangelho de João, 1:2)
Não
era somente Pedro que tinha o poder das chaves. Assim como Pedro, João também é
o pilar das igrejas em todo o mundo. Os católicos argumentam que Pedro foi
chamado de fundamento, enquanto João apenas de pilar, como se houvesse uma
hierarquia entre fundamento e pilar. Essa hierarquia não existe nos escritos de
Crisóstomo. Lembremos que João, Tiago e Pedro são chamados por Paulo de pilares
da igreja (Gal. 2). Supunha-se que João era um pilar que estava sobre o
fundamento que era Pedro. Como então Pedro poderia ser um dos pilares se era o
fundamento que sustentava os pilares? Como alguém poderia ser simultaneamente
pilar e fundamento? A explicação católica dessas metáforas bíblicas não faz
sentido algum.
Ainda
sobre João, diz:
João estava prestes a
conversar conosco para dizer suas próprias palavras, nós precisamos descrever
sua família, seu país e sua educação (...) Não é assim com este pescador
[João], pois tudo o que ele diz é
infalível, como se estivesse sobre uma rocha, ele nunca muda seu fundamento.
Uma vez que ele tem sido considerado digno de estar nos lugares mais secretos,
e tem o Senhor de todos falado através dele, ele não está sujeito a nada que é humano.
(Segunda Homilia do Evangelho de São João)
Alguns
argumentos anti-papais podem ser formulados das palavras de Crisóstomo:
(1)
João era infalível. Apesar de não dizer explicitamente, ele deveria considerar
Pedro e todo o colégio apostólico infalível. Se todos eram infalíveis, para que
a necessidade de um apóstolo com a primazia jurídica para preservar a igreja do
erro? Se nenhum dos apóstolos poderia ensinar algo errado por carisma divino, o
papado entre os apóstolos tornar-se-ia dispensável e obsoleto.
(2)
Para não deixar dúvidas, ele diz “ele não está sujeito a nada que é humano”. A
igreja romana afirma que João estava sujeito ao homem Pedro, e mais, sujeito
aos supostos bispos de Roma (Lino, Anacleto e Clemente). João viveu enquanto
esses homens estavam vivos, supostamente liderando toda a igreja. A ideia de
que um apóstolo foi subordinado a um bispo não foi expressa por nenhum pai da igreja
e seria considerada blasfema;
(3)
Se João era individualmente infalível e isso não dependia de Pedro como
testemunha Crisóstomo, os bispos de Éfeso (supostos sucessores de João) também
seriam infalíveis (de acordo com a lógica argumentativa que os católicos
aplicam aos sucessores de Pedro);
(4)
Se Pedro de fato fosse um papa (concedemos para o bem do argumento), porque o
seu sucessor direto seria o bispo de Roma e não João. Entre um apóstolo vivo e
um bispo, quem seria mais qualificado para sucedê-lo? Obviamente o apóstolo.
A
primazia de Paulo
Assim que Paulo viu todo o
povo da Galácia entusiasmado, uma chama acendeu-se contra a sua Igreja, e o
edifício abalado cambaleou a ponto de cair. [Paulo] estava preenchido com uma
mistura de sentimentos de raiva e desânimo, que ele expressa nas palavras:
"Eu bem quisera estar presente convosco agora, e mudar a minha voz"
[Gal 4:20]. Ele escreve a epístola como
uma resposta a essas acusações. Esse é o seu objetivo desde o início, pois os detratores de sua reputação tinham
dito que os outros eram discípulos de Cristo, mas ele era homem dos "apóstolos”. Por isso, ele começa assim:
"Paulo, apóstolo não dos homens, nem por intermédio de homem". Esses
enganadores, como eu estava dizendo antes, tinham
dito que este homem era o último de todos os Apóstolos e foi ensinado por
Pedro, Tiago e João. Eles foram
primeiramente chamados, tendo uma primazia entre os discípulos, e também
receberam suas doutrinas de Cristo; e que era, portanto, apropriado
obedecê-los, em vez deste homem [Paulo]; e que não proibiam nem a
circuncisão nem a observância da Lei. Por isso e por linguagem semelhante, e por depreciarem Paulo exaltando a honra
dos outros Apóstolos, embora não falassem para louvá-los [os outros apóstolos],
mas para enganar os Gálatas, induzindo-os a aderir demasiadamente à Lei. Daí a conveniência de seu início. Como eles
depreciavam sua doutrina, dizendo que veio de homens, enquanto que a de Pedro
veio de Cristo, ele imediatamente se dirige a este ponto, declarando-se um
apóstolo "não de homens, nem por intermédio de homem”. Foi Ananias quem
o batizou, mas não foi ele que lhe tirou de seu modo errado e o iniciou na fé,
mas o próprio Cristo enviou do alto sua voz maravilhosa, pela qual Ele o
incluiu em sua rede. Ele chamou Pedro e seu irmão e João e seu irmão enquanto
caminhava à beira do rio [Matt 4:18.), mas Paulo depois de sua ascensão ao céu
[Atos 9:3,4]. E assim como estes não requereram uma segunda chamada, mas
deixaram logo as redes e tudo o que tinham, e o seguiram, do mesmo modo este homem
em sua primeira chamada foi vigorosamente adiante, travando, assim que ele foi
batizado, uma guerra implacável com os judeus. Nesse sentido, ele principalmente se sobressaiu aos outros
Apóstolos, quando ele diz "Eu trabalhei muito mais do que todos eles"
[I Cor 15:10]. No entanto, ele não faz tal afirmação, mas se contenta em ser
colocado no mesmo nível que eles. Na verdade, seu objetivo era não estabelecer uma superioridade para si, mas
derrubar o fundamento do erro deles [os inimigos de Paulo]. Não sendo
"dos homens" faz referência a todos para dizer que a raiz e origem de
seu evangelho é divino, mas não sendo
"através do homem" é específico para os Apóstolos, pois ele os
chamou não pela ação dos homens, mas por sua próprio ação. Mas por que ele não
fala da sua vocação ao invés de seu apostolado e diz "Paulo, chamado não
por homens"? Porque aqui estava
toda a questão, pois eles diziam que o ofício de professor tinha sido cometido
a ele por homens, ou seja, pelos Apóstolos, a quem, portanto, ele devia
obedecer. Mas que não foi confiada a
ele por homens, Lucas declara nessas palavras: "Enquanto eles ministravam
perante o Senhor e jejuavam, disse o Espírito Santo: separem para mim Barnabé e
Saulo" [Atos 13:2]. (Comentário sobre Gálatas,
1:1-3)
A
exegese de Crisóstomo não deixa espaço para a doutrina papista. O objetivo de
Paulo ao escrever a epístola aos Gálatas era se defender das seguintes
acusações:
(1)
Ele recebeu seu evangelho através dos outros apóstolos;
(2)
Ele tinha que obedecer aos outros apóstolos.
A
defesa de Paulo era afirmar a origem de seu evangelho e apostolado em Cristo.
Ele não foi autenticado por outro apóstolo, o que incluiria Pedro, mas sua
autoridade vinha diretamente de Jesus. Isso por si só já refutaria qualquer
primazia jurídica de Pedro sobre Paulo. Porém, Crisóstomo vai mais longe. Ele
afirma que Paulo “se sobressaiu aos demais apóstolos”, embora a intenção do
apóstolo dos gentios fosse apenas estar em pé de igualdade aos demais. O ponto
central do argumento que derruba qualquer pretensão papal é esse: diferente do
que os detratores de Paulo afirmavam, ele não devia obediência aos demais
apóstolos. Portanto, ele não devia obediência a Pedro. É interessante observar
que até mesmo os inimigos de Paulo desconheciam o papado de Pedro, pois
afirmavam que ele devia obediência não somente ao pescador, mas também a Tiago
e João.
Da
mesma forma, quando discute Gálatas 1:18, Crisóstomo comenta que Paulo se
humilhou diante de Pedro e Tiago, como se ele fosse uma autoridade inferior,
mesmo que ele realmente não fosse (Comentário sobre Gálatas, 1:18). A conclusão
é que Crisóstomo atribuía tipos de primado a diferentes apóstolos e pessoas em
diferentes contextos, mas quando tratava da jurisdição, tratava todos os
apóstolos como iguais.
Os
corifeus,
Pedro o fundamento da Igreja, Paulo
o vaso da eleição. (Contra ludos et theatra 1, PG VI, 265. Cited by Chapman, Studies on the
Early Papacy (London: Sheed & Ward, 1928), p. 76)
Outros
apóstolos também eram corifeus – um título que significa líder de um coro. Por
isso, a aplicação desse termo a Pedro não prova seu papado, pois não era
exclusivo. Os argumentos católicos falham nisso. Os títulos de Pedro não são
exclusivos.
O Deus misericordioso
costuma dar esta honra aos seus servos: por sua graça outros podem adquirir a
salvação, como foi o caso do abençoado
Paulo, o professor do mundo, que emitiu os raios de seu ensino em todos os
lugares. (Homilia 24 sobre o Gênesis)
Quando o Querubim cantar na
glória, onde o Serafim estará voando, lá
veremos Paulo com Pedro, e como
chefe e líder do coro dos santos, e desfrutaremos de seu generoso amor
(...) Eu amo Roma por isso, embora certamente alguém tenha outros motivos para
elogiá-la (...) O céu não é tão brilhante quando o sol envia seus raios, como é a cidade de Roma enviando essas duas
luzes em todas as partes do mundo. Dali
irá Paulo ser alcançado, dali Pedro. Apenas reflita e trema com o
pensamento do que Roma irá ver quando Paulo se levantar subitamente de seu
jazigo juntamente com Pedro, e for elevado até ao encontro do Senhor. Roma irá
enviar uma rosa até Cristo! (...) A cidade terá sobre ela duas coroas! (...) Portanto, eu
admiro a cidade, não pela grande quantidade de ouro, nem pelas colunas, nem
por outra ostentação de lá, mas por
esses pilares da Igreja. (Homilias sobre a Epístola
aos Romanos, 32)
Um
lugar onde a doutrina papal de Crisóstomo deveria ser explícita é aqui. Ele
explica os motivos pela admiração a Roma, mas não cita algo como o papado de
Pedro. Na verdade, ele contraria essa ideia ao colocar não somente Pedro, mas
também Paulo como pilar dessa igreja. Ou Crisóstomo desconhecia o papado de
Pedro ou era um péssimo professor ao ignorar o motivo fundamental do porque
Roma deveria ser louvada.
Diferentes
em honra, mas iguais juridicamente
E se alguém disser
"Como, então, Tiago recebeu a cadeira em Jerusalém?". Eu daria essa
resposta, que Ele nomeou Pedro professor
não de uma cadeira, mas do mundo (...) e ele fez isso para tirar deles
(Pedro e João) a simpatia inadequada que sentiam um pelo outro, pois desde que eles estavam prestes a
receber a carga do mundo, era necessário que eles deixassem de ser
estreitamente associados juntos. (Homilias sobre o
Evangelho de João, 88,1-2)
O
primeiro trecho da citação acima é geralmente trago por insinuar a
superioridade de Pedro em relação a Tiago. Mas, logo adiante, vemos que Pedro e
Tiago são colocados em pé de igualdade. Ambos vão receber a carga do mundo. Crisóstomo
poderia falar de um apóstolo como tendo a liderança sem ter uma primazia
jurídica em mente. Isso fica especialmente patente abaixo:
Ele [Paulo] chama os gentios
de incircuncisos e os judeus de os da circuncisão, e declara o seu próprio posto como sendo igual a dos Apóstolos, e, comparando-se ao seu líder [Pedro], não
com os outros, ele mostra que a
dignidade de cada um era a mesma. (Comentário sobre Gálatas,
2, v.8)
No
mesmo contexto, ele afirma a liderança de Pedro e a igual dignidade de todos os
apóstolos, tomando como exemplo Paulo. Se todos eles tinham a mesma dignidade,
não poderia haver um apóstolo com primazia jurídica. Crisóstomo atribui
primazia a diferentes pessoas como Tiago, Pedro e Inácio. Por isso, essa
primazia não pode ser jurídica. Vemos abaixo:
Pedro, Tiago e João foram
primeiramente chamados, e tinham uma
primazia entre os discípulos. (Comentário sobre Gálatas,
1, vv. 1-3)
Mas
de que se tratava essa primazia? Ele responde:
Ele
tomou os corifeus e
os levou para cima num alto monte (...) Porque Ele levou apenas eles [Mateus
17: 1]? Porque estes eram superiores aos
demais. E Pedro de fato mostrou a
sua superioridade ao amá-lo excessivamente, mas João por extremamente amá-lo e Tiago novamente por sua resposta na qual ele disse com o seu irmão:
"Nós somos capazes de beber o cálice", não por sua resposta somente, mas também por suas obras, tanto pelo
resto deles e por cumprir o que ele disse. Ele era tão zeloso e penoso para os
judeus que o próprio Herodes supôs que ele tinha aqui feito um grande favor aos
judeus quando o matou. (Homilias sobre o Evangelho de Mateus,
56:2)
Católicos
criticam a distinção primazia jurídica vs primazia de honra que ortodoxos e
protestantes fazem, mas é evidente que Crisóstomo podia afirmar a primazia de
alguém sem implicar uma autoridade jurisdicional sobre outros. Pedro era
superior não porque recebeu uma autoridade especial de Cristo, mas porque amou
a Jesus especialmente. Da mesma forma, João e Tiago detinham a primazia sem
terem autoridade jurídica sobre os outros apóstolos.
Você não vê que a liderança estava nas mãos destes três, especialmente de Pedro e Tiago? Esta
foi a principal causa de sua condenação por Herodes.
(Homilias sobre os Atos dos Apóstolos, XXVI)
Mas
uma vez a liderança é atribuída não somente a Pedro. Ele ainda diz:
Mas observe como Pedro faz tudo com o consentimento comum; nada
imperiosamente. (Homilia III em Atos 1:12)
Em
outras palavras, Pedro não mandava nos demais. Esse é um argumento geralmente
ignorado pelos católicos. O pescador poderia em certos momentos assumir uma
posição de liderança ou tomar a frente em momentos importantes como a pregação
no dia de pentecostes, mas isso não implica que tinha autoridade sobre os
demais. Quando foi preciso tomar decisões vinculantes para toda a igreja, Pedro
não decidiu sozinho. Pelo contrário, um concílio foi convocado e foi Tiago quem
o presidiu e deu a palavra final (Atos 15).
Análise
de citações apresentadas pelos católicos
Por conseguinte, no reino a honra será diferente, e os discípulos não eram todos iguais, mas três se destacavam, e entre os três
havia muita diferença. Diante de Deus há muita exatidão, até em extremo. “E
até de estrela para estrela há diferença de brilho” [1Cor 15:41]. Apesar de serem todos apóstolos, todos
se assentarão em doze tronos, todos deixaram tudo o que tinham, todos
conviveram com Cristo, no entanto
especialmente assumiu três. Além disso, de dois deles também Cristo afirmou que são mais eminentes e excelentes,
pois declarou: “Todavia, sentar à minha direita ou à minha esquerda não cabe a
mim concedê-lo, mas é para aqueles a quem está preparado” (Mc 10,40). Prefere Pedro a todos, dizendo: “Tu me
amas mais do que estes?” [Jo 21:15]. João
era o mais amado. De fato, o exame é o mais apurado. Por pouco que superes
o próximo, seja fraco, seja quem for, Deus não o negligencia. (Homilia Sobre o livro de Romanos 31)
Que
Crisóstomo atribuía primazias de honra aos discípulos nós concordamos, a
questão é se ele atribuía primazia jurídica ao apóstolo Pedro. Todo o contexto
dessa citação se refere a primados de honra. Faço os seguintes apontamentos:
(1)
A citação fala de primados de honra ao dizer: “no reino a honra será
diferente”;
(2)
Ele destaca três discípulos entre os doze e não apenas Pedro;
(3)
Ele estabelece primado somente entre os doze. Paulo não fazia parte dos doze,
portanto, mesmo que alguém fosse o maior dos doze, isso por si só não quer
dizer que ele seria maior do que Paulo;
(4)
Dentre os três, Cristo preferiu dois e não apenas um. Esses dois sentariam a
sua esquerda e direita;
(5)
Quando diz que Cristo preferiu Pedro, não tem em vista autoridade jurídica. Pedro
seria o primeiro, pois era quem mais amava a Cristo e não porque recebeu
autoridade sobre os demais. João foi o mais amado;
(6)
Se Crisóstomo tinha primados jurídicos em vista, ele acreditaria numa estrutura
hierárquica no mínimo estranha: três apóstolos mandavam nos doze. Desses três,
dois mandavam num terceiro e o primeiro mandava no segundo. Seria uma
hierarquia de quatro níveis;
(7)
Que se trata de primados de honra, fica mais claro a partir do contexto dessa
citação:
Pois mesmo que todos fossem
crentes, nem todos eram iguais, mas eram
diferentes em seus méritos. Portanto, Ele trouxe a eles uma rivalidade, não
deixando de elogiar nenhum homem. Pois, quando
os que trabalham mais não recebem recompensa maior, muitos se tornam mais
apáticos (...) Haverá um exame rigoroso de tudo, e se
você foi melhor do que o seu vizinho, mesmo que seja por muito pouco, Deus não
vai esquecer disso (...) Ló era um homem justo, mas não tanto como foi Abraão. Ezequias era justo, mas não tanto como foi Davi, e todos os
profetas eram justos, mas não tão como
era João.
Fica
muito claro como não havia qualquer autoridade jurídica em vista. Alguns
crentes eram melhores do que outros e isso não implicariam em autoridade. O
zelador da igreja pode ser um cristão melhor do que o Padre, mas isso não
implica que ele tenha autoridade sobre o sacerdote. Da mesma forma, Paulo disse
que trabalhou mais do que os outros, o que o colocaria acima de Pedro. Isso não
implicaria que ele mandasse em Pedro. Sigamos:
Depois daquele importante
[Pedro] cair (pois não há pecado igual à negação), após um tão grande pecado, Ele o trouxe de volta à sua antiga honra e
lhe confiou a chefia da Igreja universal, e, o que é mais do que tudo, Ele nos mostrou que ele tinha um grande
amor por seu mestre mais do que qualquer um dos apóstolos, pois ele disse:
“Pedro amas-me mais do que estes”. (Homilia V sobre a
Penitência 2)
Ninguém
duvida que Pedro tivesse a chefia da igreja universal. O que duvidamos é que
ele tivesse autoridade jurídica sobre os demais apóstolos e que fosse o único
chefe da igreja universal. No mais, Crisóstomo nos dá um dos motivos da
primazia honorífica de Pedro: “Ele nos
mostrou que ele tinha um grande amor por seu mestre mais do que qualquer um dos
apóstolos”. Ou seja, nada de primazia jurídica em vista.
E por que, tendo passado pelos outros, Ele fala com
Pedro sobre estas questões? Ele foi o escolhido
dentre os Apóstolos, a boca dos
discípulos, o líder do coro [corifeu]; por isso, Paulo foi vê-lo em vez de ir aos outros. E também para mostrar que
ele tem que ter confiança agora, já que a sua negação tinha sido expurgada, Jesus coloca em suas mãos a principal
autoridade entre os irmãos. Ele não traz a negação, nem o repreende pelo
lugar que ele tinha tomado, mas diz: Se você me ama, presida seus irmãos, e o amor ardente que você já manifestou no
qual se alegrou, mostra agora; e a vida que você disse que iria dar para mim,
agora dê pelas minhas ovelhas. (Homilia
Sobre o Evangelho de João, 88)
Crisóstomo
de fato coloca Pedro numa posição de destaque aqui. Os títulos “boca dos
discípulos”, “líder do coro” (corifeu) não são suficientes para afirmar o
papado de Pedro, pois títulos semelhantes foram dados a outros apóstolos. Elenco
abaixo alguns problemas do uso papista dessa citação:
(1)
Quem seriam os irmãos? Ele termina a citação falando das ovelhas. É possível
que a referência aos irmãos não incluíssem os demais apóstolos, mas as ovelhas
da igreja. Obviamente Pedro foi constituído pastor, e segundo Crisóstomo o
principal pastor, mas isso não implica em autoridade jurídica sobre os demais.
Essa interpretação está mais de acordo com tudo o que vimos de Crisóstomo. Ele
disse que o apóstolo João não estava sujeito a homem algum. Seria flagrante
incoerência dizer que João devia obediência a Pedro;
(2)
Supondo que a interpretação correta seja que “irmãos” inclui os outros 11
discípulos, precisamos lembrar que Paulo não fazia parte desse grupo. Nesse
momento, Paulo sequer era um cristão. Ele afirma que Paulo foi ao encontro de
Pedro reconhecendo sua primazia entre os discípulos (jurídica ou de honra), mas
não afirma que Pedro estava sobre Paulo. Lembremos que ele disse que Paulo não
devia obediência a nenhum apóstolo;
(3)
Ele disse “principal autoridade entre os irmãos” e não “autoridade sobre os
irmãos”. É no mínimo ambíguo. Ele poderia estar falando de um líder mais
preeminente entre os outros líderes, no sentido de alguém que se destacaria em
seu papel;
(4) Mesmo que “irmãos” inclua os discípulos,
o termo presidir ou líderar não implica necessariamente em autoridade jurídica.
Crisóstomo poderia estar falando de encaminhar os seus irmãos ou levá-los ao
mesmo amor que ele nutria por Cristo. Para isso, não seria necessário uma
autoridade jurídica.
Esses são alguns problemas da interpretação
papista. De qualquer forma, temos que levar em conta tudo o que Crisóstomo
escreveu. Dessa ótica, a interpretação que entende primazia de honra é mais
plausível do que primazia jurídica.
E
naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos discípulos, e disse. Tanto sendo
ardente, e tendo sido colocado sob a responsabilidade do rebanho por Cristo, e tendo precedência em honra, ele sempre
começa o discurso (...) Mas
observe como Pedro faz tudo com o
consentimento comum, nada imperiosamente. E ele não fala, portanto, sem um
significado. Mas observe como ele os consola sobre o que se passara. Na
verdade, o que tinha acontecido não lhes causou pequena consternação (...) Por
isso, no início, ele disse: “Irmãos, cabe a nós escolher dentre eles.” Ele defere a decisão a todo o corpo,
tornando-os objetos eleitos de reverência, e se mantendo afastado de tudo
individualmente no que diz respeito ao resto (...) “Um deve ser ordenado para
ser testemunha”, que seu colégio não pode ser deixado mutilado. Então por que não coube ao próprio Pedro
fazer a eleição? Qual foi o motivo? Este: que ele pudesse não parecer
concedê-la de favor. E, além disso, ele ainda não estava dotado com o Espírito
(...) Aqui é premeditado para fornecer um professor, aqui estava o primeiro que
foi ordenado professor. Ele não disse: “Nós somos suficiente”. Até agora ele
está além de toda glória vã, e olhou para uma coisa só. Ainda assim, ele tinha o mesmo poder de ordenar como
todos eles coletivamente. Mas bem poderiam essas coisas serem feitas desta
forma, através do nobre espírito do homem, e no respeito que prelazia, então não
era uma questão de dignidade, mas do
cuidado providente para os governados. (Homilia sobre os Atos dos
Apóstolos, 3)
A própria citação no
início diz “e tendo precedência em honra”. O motivo pelo qual Pedro começa o
discurso e toma a frente na questão da eleição de Matias é sua primazia de
honra. Tanto é que o apóstolo faz tudo pelo consentimento comum. Crisóstomo
indaga porque Pedro não escolheu por si mesmo. Nesse ponto, os papistas veem a
evidência da primazia jurídica de Pedro. Mas o contexto nos conduz para outra
possibilidade. Pedro tinha primazia de honra e a iniciativa de escolher outro
apóstolo foi dele. Por isso, era natural
que Crisóstomo atribuísse a ele a prerrogativa de escolher Matias, pois a
iniciativa foi inteiramente dele. O trecho “ele tinha o mesmo poder de ordenar
como todos eles coletivamente” apenas expressa que Pedro poderia ordenar por
sua própria iniciativa devido a sua primazia de honra na questão. Ainda assim,
esse trecho contraria a supremacia papal de Pedro. A decisão do colégio dos
apóstolos tinha o mesmo poder que a decisão individual do pescador na questão,
sendo assim, Pedro não estaria acima do colégio apostólico, mas no mesmo
patamar que ele.
Você escreveu bem logo no início que "Os católicos deturpam os pais da igreja basicamente de três formas" e citou quatro formas como eles o fazem. Corrijam aí.
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