Parte 1 – Introdução
Anselmo de Cantuária (1033 – 1109) foi arcebispo de
Cantuária, filósofo e teólogo medieval considerado o “pai da Escolástica”.
Nascido em Aosta (atual Itália), tornou‐se monge beneditino em Bec
(Normandia) e, posteriormente, arcebispo de Cantuária, na Inglaterra. Sua obra
mais famosa, Cur Deus Homo? (1098), busca explicar o motivo da
encarnação e morte de Cristo, desenvolvendo a “teoria da satisfação” para a
expiação. Em escritos posteriores, como o diálogo De Concordia
virginitatis, Anselmo aprofunda temas de justificação, arrependimento e
virtude. Ao enfatizar a aplicação imediata da satisfação vicária de Cristo pela
fé, Anselmo traçou caminhos teológicos que antecipam aspectos centrais dos
Reformadores, distinguindo‐se notavelmente da teologia desenvolvida no
Concílio de Trento.
Parte 2 – As visões de Anselmo em comparação com a teologia católica e protestante
2.1 Justificação como ato único
Em Cur Deus Homo? (cap. 13), Anselmo afirma
que a justificação se dá num só momento,
quando o pecador, arrependido, confia plenamente em Cristo. Seu texto diz:
“Assim que o homem crê verdadeiramente em Cristo, é
justificado, porque Cristo aplicou‐lhe por fé a satisfação que
oferecera em favor de todos.”
Para Anselmo, não há “etapas intermediárias”: a fé
arrependida “ativa” a justificação num único instante, em que Deus imputa a
satisfação de Cristo ao pecador.
Brian Davies (teólogo católico dominicano) comenta:
“Para Anselmo, o pecador é perdoado no exato
momento em que se confia a Cristo: a satisfação prestada por Cristo na cruz é
aplicada, em sua totalidade, ao crente arrependido assim que a fé a abraça. Não
existe um ‘estágio’ intermediário de perdão gradual; uma vez presente a fé, a
justificação está completa.”
— Anselm of Canterbury: The Major Works, p.
158.
2.2 Boas obras como efeito, não
como causa
Em De Concordia virginitatis (cap. 5),
Anselmo distingue a “penitência interna” de meras mortificações externas:
“A verdadeira contrição do coração traz
arrependimento que não gera mais contrição, mas remissão. Não se trata de
penitência meramente externa, mas de verdadeira mudança interior. Pois
aquele que ama a Deus não faz mortificações para conseguir mais perdão, mas
unicamente por gratidão aos benefícios já recebidos.”
Ou seja, as
práticas piedosas apenas demonstram externamente que a fé foi genuína; nenhum ato exterior acrescenta algo à
satisfação de Cristo, que já é completa.
Brian Davies (teólogo católico dominicano) observa:
“Anselmo não permite que nenhuma obra humana
contribua para que alguém seja declarado justo diante de Deus. A cruz de Cristo
prestou satisfação completa; boas obras humanas não podem acrescentar ou
completar essa satisfação. Uma vez despertada a fé, as obras seguem como
consequência necessária de uma vida justificada, mas não merecem a
justificação.”
— Anselm of Canterbury: The Major Works, p.
161.
2.3 Perda do status de
justificado somente por apostasia
Em De Concordia virginitatis (pars I, cap.
7), Anselmo esclarece que o status de
“justo” só se perde se o crente abandona totalmente a fé:
“Se o homem, tendo sido justificado pela fé em
Cristo, em seguida renunciar voluntariamente à fé e a Cristo, e
aderir de novo ao caminho do pecado, ele certamente perde a justificação
e se torna objeto de condenação.”
— Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 182.
Portanto, um
pecado grave isolado não retira o status de “justo”; apenas a apostasia total faz com que o fiel
volte ao estado de culpa.
John Marenbon (historiador da filosofia cristã) comenta:
“Anselmo admite claramente a possibilidade de
apostasia: uma vez justificado, o crente deve perseverar; se renegá‐lo,
voltará a ficar sob condenação. Não há, portanto, em Anselmo, a convicção de
que todo verdadeiro convertido permaneça invariavelmente salvo, mas sim que
apenas o abandono total da fé o faz recair no estado de culpa.”
— Anselm, p. 63.
2.4 Ausência da doutrina do purgatório
Anselmo não apresenta, em nenhum de seus textos, a
ideia de purgatório ou satisfação de “penas temporais” após a morte. Em suas obras, a justiça
de Cristo, aplicada pela fé, esgota toda consequência do pecado.
John Marenbon (historiador da filosofia cristã) confirma:
“Anselmo não faz qualquer menção ao purgatório em
suas obras. Não há em Cur Deus Homo? ou em De Concordia virginitatis
a ideia de um estado de purgação após a morte; para ele, a justiça de Cristo,
aplicada pela fé, é completa e não deixa lugar para penas temporais em outro
mundo.”
— Anselm, p. 58.
Brian Davies (teólogo católico dominicano) afirma:
“Em Anselmo, não existe sequer uma vaga noção de
purgatório. A lógica dele é que a satisfação vicária de Cristo, recebida pela
fé, elimina totalmente a culpa e as consequências do pecado no crente
arrependido. Por essa razão, não há qualquer referência a ‘penas temporais’ ou
a um estado intermediário após a morte.”
— Anselm of Canterbury: The Major Works, p.
142.
Fergus Kerr (teólogo católico dominicano) pontua:
“Anselmo não propõe purgatório ou qualquer punição
pós‐morte para as almas dos fiéis. Sua ênfase recai inteiramente na
aplicação completa da satisfação de Cristo no momento da fé; não existe em sua
teologia a ideia de ‘apuramento’ adicional após o sepulcro.”
— After Aquinas: Versions of Thomism, p. 92.
É digno de notar observar como a doutrina do purgatório ainda era tão incipiente mais de mil anos depois dos Apóstolos - algo bastante problemático para os que defendem que a Igreja sempre o ensinou.
2.5 Contraste com a Teologia
Católica Pós‐Trento
2.5.1 Justificação: ato único vs
processo com cooperação
- Anselmo: justificação é ato único de Deus ao aplicar a satisfação de Cristo pela fé arrependida, sem cooperação humana ( Cur Deus Homo? cap. 13).
- Trento
(Sessão VI, Can. 9; Denzinger 1543–1554): condena quem “diz que o homem é justificado
somente pela fé, sem as boas obras”. Para Trento, a graça justifica, mas o
homem coopera com essa graça por meio de boas obras e sacramentos num processo
de justificação:
“Se alguém disser que o homem é
justificado somente pela fé, pelas quais obras não cooperam nada em direção à
justificação, e que a fé, para justificar, nada mais quer além de mero aderir
ao promissor, assim crendo, que os delitos do crente sejam cobertos, bem como a
justiça de Cristo … seja anátema.”
Divergência: Anselmo rejeita qualquer cooperatio
humana no ato de justificação; Trento a torna essencial para a
manutenção e crescimento da graça.
2.5.2 Purgatório e penitência
sacramental
- Anselmo: não concebe purgatório
e considera a penitência mero sinal externo de conversão (De
Concordia virginitatis).
- Trento
(Sessão XXV, Denzinger 1820–1836): define o purgatório como estado em que as
almas “ainda não perfeitamente purificadas” recebem “penas temporais”
antes da glória celestial, e diz que as missas e orações dos vivos
podem abreviar esse tempo:
“Se alguém disser que não há
purgatório, e que as almas ali presentes não recebem nenhum tipo de alívio nem
proveito da Igreja militante, seja anátema.”
Divergência: Anselmo não fala de purgatório nem de expiação
sacramental contínua; Trento o oficializa.
2.5.3 Função das boas obras na
perseverança
- Anselmo: permanece justo
enquanto mantiver a fé, mesmo que caia em pecados graves; só perde a
justificação se abandonar completamente a fé (De Concordia virginitatis
cap. 7).
- Teologia
católica pós‐Trento: defende que qualquer pecado mortal,
sem confissão sacramental, faz o batizado “perder a graça santificante” e
retroceder ao estado de culpa, permitindo um ciclo de justificado →
não-justificado → justificado.
Divergência: Para Anselmo, pecado grave não retira
instantaneamente a justificação; Trento não diferencia, considerando pecado
mortal como suficiente para anular a graça.
2.6 Convergência com a Visão
Protestante
2.6.1 Justificação pela fé como
ato único
- Anselmo: “Assim que o homem crê
verdadeiramente em Cristo, é justificado, porque Cristo aplicou‐lhe
por fé a satisfação que oferecera em favor de todos.”
Brian Davies (teólogo católico dominicano) assinala:
“É impressionante quão próximo o entendimento de
Anselmo sobre a justificação pela fé somente se assemelha aos posteriores
Reformadores protestantes. Embora ele enquadre tudo em termos de ‘honra’ e
‘satisfação’, o efeito prático é idêntico: no momento em que um pecador confia
totalmente em Cristo, ele é declarado justo. Nenhuma obra humana intercede
nessa declaração; as obras aparecem apenas posteriormente, como fruto.”
— Anselm of Canterbury: The Major Works, p.
165.
2.6.2 Boas obras como fruto e
evidência, não como causa
- Anselmo: obras piedosas “seguem
como consequência necessária de uma vida justificada, mas não merecem a
justificação.”
John Marenbon (historiador da filosofia cristã) observa:
“Embora Anselmo obviamente valorize as práticas
penitenciais, ele insiste que elas servem apenas para manifestar a
transformação interior operada pela satisfação de Cristo. Nenhum mérito
novo é gerado pelos atos de penitência; eles são meramente prova externa do
novo estado do crente diante de Deus.”
— Anselm, p. 50.
2.6.3 Perseverança condicional e
possibilidade de apostasia
- Anselmo: “Se o homem, tendo sido
justificado pela fé em Cristo, em seguida renunciar voluntariamente
à fé e a Cristo, e aderir de novo ao caminho do pecado, ele certamente
perde a justificação e se torna objeto de condenação.”
- Jacó
Arminius
(teólogo arminiano): defendia que o verdadeiro crente pode cair.
- Martinho
Lutero
(teólogo luterano) e correntes luteranas moderadas admitiam apostasia
total como causa da perda de justificação.
Fergus Kerr (teólogo católico dominicano) comenta:
“Quando se lê a declaração de Anselmo de que ‘no
momento em que a fé do perdoado surge, todo o pagamento que Cristo prestou é
atribuído ao pecador’, lembra‐se imediatamente da afirmação de
Lutero sobre
justificação pela fé somente. Isso não quer dizer que Anselmo repudie a vida
sacramental da Igreja, mas certamente ele não faz de nenhuma ação
sacramental condição para ser declarado justo.”
— After Aquinas: Versions of Thomism, p. 89.
“Em Anselmo, a fé inicial abre a justificação, mas
o crente não está automaticamente imune a recair no pecado. Ele deve
continuar firme na fé e na penitência para não ‘cair de volta’ no estado de
culpa.”
— After Aquinas, p. 97.
Parte 3 – Conclusão
Ao condenar o Cânon 9 da Sessão VI (“Se alguém
disser que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras, seja
anátema”), o Concílio de Trento procurou fechar a porta a qualquer semelhança
com o sola fide luterano. No entanto, essa fórmula tão ampla acabou
por incluir teólogos católicos medievais que defendiam que a fé, unida à graça, bastava para a justificação, sem a
necessidade de méritos posteriores. Dentre esses, Anselmo de Cantuária
figura como exemplo notório. A seguir, autores que salientam essa tensão:
- Yves
Congar (teólogo católico dominicano)
“O anátema contra aqueles que
‘dizem que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras’ (Sessão
VI, Can. 9) não distingue entre o entender protestante e o modo como alguns
mestres católicos — por exemplo, Anselmo de Cantuária (século XI),
Alberto Magno e Tomás de Vio — já afirmavam, antes de Lutero, que a fé, unida à
graça, era, por si mesma, plenamente eficaz para justificar o pecador. Consequentemente,
Trento acabou arrolando Anselmo como se ele fosse um herege, embora jamais
tenha sido considerado tal em sua época.”
— Journal of the Council of
Trent (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), p. 214 (tradução nossa).
- Jaroslav
Pelikan (historiador luterano)
“O Concílio de Trento, ao
formular seus cânones de justificação, procurou fechar a porta a qualquer
semelhança com o ‘sola fide’ luterano, mas acabou por incluir entre os
condenados vários escritores católicos medievais que, sem serem luteranos,
haviam sustentado que ‘a fé era o instrumento essencial para a justificação, e
como tal, não necessitava de meritoriedade adicional’. Anselmo, no século
XI, já falava do ato único de justificação pela fé arrependida, sem cooperação
de obras, e portanto está no rol tácito desses “modelos medievais” que
convergiam com os Reformadores.”
— The Christian Tradition: A
History of the Development of Doctrine, vol. 4: Reformation of Church and Dogma
1300–1700 (Chicago: University of Chicago Press, 1984), p. 389 (tradução
nossa).
- Michael
F. W. Robinson (teólogo católico)
“Embora as categorias de ‘honra’
e ‘satisfação’ possam parecer estranhas ao jargão forense dos Reformadores do
século XVI, o resultado funcional é o mesmo: justificação pela fé somente.
Anselmo é claro que, uma vez presente a fé, a satisfação de Cristo é
‘plenamente aplicada’ — nenhum ato subsequente, nem sacramental, nem ascético,
pode acrescentar a esse status. Lutero e Calvino descreveriam isso em termos de
‘imputação’, mas o efeito é praticamente idêntico. Na teologia medieval, não
há precursores tão impressionantes do protestantismo quanto Anselmo, e sua
recusa em permitir cooperação humana no ato inicial de justificação o coloca em
tensão com a teologia que surgiria em Trento.”
— Anselm and the Doctrine of
Justification (Cambridge: Cambridge University Press, 2015), pp. 102–105
(tradução nossa).
- Joseph
A. Jungmann, S.J. (teólogo jesuíta)
“Quando Trento proclama: ‘Se
alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, sem cooperação de
obras, seja anátema’ (Sessão VI, Can. 9), não estava apenas visado o
luteranismo. Muitos teólogos católicos do final da Idade Média — notadamente
Anselmo de Cantuária e seus seguidores — já afirmavam que ‘a fé, infundida pela
graça, era suficiente para a justificação inicial, sem dependência de méritos
posteriores’. A condenação foi tão ampla que acabou incluindo esses autores
católicos em seu anátema.”
— Trent: What Happened at the
Council (Staten Island: Alba House, 1959), p. 272 (tradução nossa).
Ao condenar de maneira genérica toda forma de
justificação “somente pela fé”, o Concílio de Trento acabou por incluir na
condenação Anselmo de Cantuária, cujos ensinamentos sobre fé arrependida
aplicando imediatamente a satisfação vicária de Cristo se aliam funcionalmente
ao “sola fide” reformado. Yves Congar, Jaroslav Pelikan, Michael F. W. Robinson
e Joseph A. Jungmann, S.J. demonstram que Trento, ao anatematizar “sem
delimitações”, acabou neutralizando parte de sua própria tradição — a linha
teológica que, desde o século XI com Anselmo, afirmava que a fé, unida à graça,
bastava para justificar o pecador. Isso evidencia como a redação ampla dos cânones
tridentinos responsabilizou por “condenação indireta” pensadores católicos
medievais que não se encaixavam no protestantismo, mas que, em sua essência,
convergiam com a ênfase reformada na justificação pela fé.
Referências bibliográficas
- Congar,
Yves. Journal of the Council of Trent. Grand Rapids: Eerdmans,
1996.
- Davies,
Brian, e G. R. Evans (editores). Anselm of Canterbury: The Major Works.
Oxford: Oxford University Press, 2000.
- Jungmann,
Joseph A., S.J. Trent: What Happened at the Council. Staten Island:
Alba House, 1959.
- Kerr,
Fergus. After Aquinas: Versions of Thomism. Oxford: Blackwell,
1990.
- Marenbon,
John. Anselm. Oxford: Oxford University Press (Very Short
Introductions), 2003.
- Pelikan,
Jaroslav. The Christian Tradition: A History of the Development of
Doctrine, vol. 4: Reformation of Church and Dogma 1300–1700. Chicago:
University of Chicago Press, 1984.
- Robinson,
Michael F. W. Anselm and the Doctrine of Justification. Cambridge:
Cambridge University Press, 2015.
- Concílio
de Trento,
Sessão VI: Decreto sobre a Justificação, Denzinger 1543 – 1554.
- Concílio
de Trento,
Sessão XXV: Decreto sobre o Purgatório, Denzinger 1820 – 1836.