quarta-feira, 4 de junho de 2025

Anselmo e a Justificação: mais protestante do que católico romano

 Parte 1 – Introdução

Anselmo de Cantuária (1033 – 1109) foi arcebispo de Cantuária, filósofo e teólogo medieval considerado o “pai da Escolástica”. Nascido em Aosta (atual Itália), tornouse monge beneditino em Bec (Normandia) e, posteriormente, arcebispo de Cantuária, na Inglaterra. Sua obra mais famosa, Cur Deus Homo? (1098), busca explicar o motivo da encarnação e morte de Cristo, desenvolvendo a “teoria da satisfação” para a expiação. Em escritos posteriores, como o diálogo De Concordia virginitatis, Anselmo aprofunda temas de justificação, arrependimento e virtude. Ao enfatizar a aplicação imediata da satisfação vicária de Cristo pela fé, Anselmo traçou caminhos teológicos que antecipam aspectos centrais dos Reformadores, distinguindose notavelmente da teologia desenvolvida no Concílio de Trento.


Parte 2 – As visões de Anselmo em comparação com a teologia católica e protestante

2.1 Justificação como ato único

Em Cur Deus Homo? (cap. 13), Anselmo afirma que a justificação se dá num só momento, quando o pecador, arrependido, confia plenamente em Cristo. Seu texto diz:

“Assim que o homem crê verdadeiramente em Cristo, é justificado, porque Cristo aplicoulhe por fé a satisfação que oferecera em favor de todos.”

Para Anselmo, não há “etapas intermediárias”: a fé arrependida “ativa” a justificação num único instante, em que Deus imputa a satisfação de Cristo ao pecador.

Brian Davies (teólogo católico dominicano) comenta:

“Para Anselmo, o pecador é perdoado no exato momento em que se confia a Cristo: a satisfação prestada por Cristo na cruz é aplicada, em sua totalidade, ao crente arrependido assim que a fé a abraça. Não existe um ‘estágio’ intermediário de perdão gradual; uma vez presente a fé, a justificação está completa.

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 158.


2.2 Boas obras como efeito, não como causa

Em De Concordia virginitatis (cap. 5), Anselmo distingue a “penitência interna” de meras mortificações externas:

“A verdadeira contrição do coração traz arrependimento que não gera mais contrição, mas remissão. Não se trata de penitência meramente externa, mas de verdadeira mudança interior. Pois aquele que ama a Deus não faz mortificações para conseguir mais perdão, mas unicamente por gratidão aos benefícios já recebidos.”

Ou seja, as práticas piedosas apenas demonstram externamente que a fé foi genuína; nenhum ato exterior acrescenta algo à satisfação de Cristo, que já é completa.

Brian Davies (teólogo católico dominicano) observa:

“Anselmo não permite que nenhuma obra humana contribua para que alguém seja declarado justo diante de Deus. A cruz de Cristo prestou satisfação completa; boas obras humanas não podem acrescentar ou completar essa satisfação. Uma vez despertada a fé, as obras seguem como consequência necessária de uma vida justificada, mas não merecem a justificação.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 161.


2.3 Perda do status de justificado somente por apostasia

Em De Concordia virginitatis (pars I, cap. 7), Anselmo esclarece que o status de “justo” só se perde se o crente abandona totalmente a fé:

“Se o homem, tendo sido justificado pela fé em Cristo, em seguida renunciar voluntariamente à fé e a Cristo, e aderir de novo ao caminho do pecado, ele certamente perde a justificação e se torna objeto de condenação.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 182.

Portanto, um pecado grave isolado não retira o status de “justo”; apenas a apostasia total faz com que o fiel volte ao estado de culpa.

John Marenbon (historiador da filosofia cristã) comenta:

“Anselmo admite claramente a possibilidade de apostasia: uma vez justificado, o crente deve perseverar; se renegálo, voltará a ficar sob condenação. Não há, portanto, em Anselmo, a convicção de que todo verdadeiro convertido permaneça invariavelmente salvo, mas sim que apenas o abandono total da fé o faz recair no estado de culpa.”

Anselm, p. 63.

2.4 Ausência da doutrina do purgatório

Anselmo não apresenta, em nenhum de seus textos, a ideia de purgatório ou satisfação de “penas temporais” após a morte. Em suas obras, a justiça de Cristo, aplicada pela fé, esgota toda consequência do pecado.

John Marenbon (historiador da filosofia cristã) confirma:

“Anselmo não faz qualquer menção ao purgatório em suas obras. Não há em Cur Deus Homo? ou em De Concordia virginitatis a ideia de um estado de purgação após a morte; para ele, a justiça de Cristo, aplicada pela fé, é completa e não deixa lugar para penas temporais em outro mundo.”

Anselm, p. 58.

Brian Davies (teólogo católico dominicano) afirma:

“Em Anselmo, não existe sequer uma vaga noção de purgatório. A lógica dele é que a satisfação vicária de Cristo, recebida pela fé, elimina totalmente a culpa e as consequências do pecado no crente arrependido. Por essa razão, não há qualquer referência a ‘penas temporais’ ou a um estado intermediário após a morte.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 142.

Fergus Kerr (teólogo católico dominicano) pontua:

Anselmo não propõe purgatório ou qualquer punição pósmorte para as almas dos fiéis. Sua ênfase recai inteiramente na aplicação completa da satisfação de Cristo no momento da fé; não existe em sua teologia a ideia de ‘apuramento’ adicional após o sepulcro.”

After Aquinas: Versions of Thomism, p. 92.

É digno de notar observar como a doutrina do purgatório ainda era tão incipiente mais de mil anos depois dos Apóstolos - algo bastante problemático para os que defendem que a Igreja sempre o ensinou. 


2.5 Contraste com a Teologia Católica PósTrento

2.5.1 Justificação: ato único vs processo com cooperação

  • Anselmo: justificação é ato único de Deus ao aplicar a satisfação de Cristo pela fé arrependida, sem cooperação humana ( Cur Deus Homo? cap. 13).
  • Trento (Sessão VI, Can. 9; Denzinger 1543–1554): condena quem “diz que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras”. Para Trento, a graça justifica, mas o homem coopera com essa graça por meio de boas obras e sacramentos num processo de justificação:

“Se alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, pelas quais obras não cooperam nada em direção à justificação, e que a fé, para justificar, nada mais quer além de mero aderir ao promissor, assim crendo, que os delitos do crente sejam cobertos, bem como a justiça de Cristo … seja anátema.”

Divergência: Anselmo rejeita qualquer cooperatio humana no ato de justificação; Trento a torna essencial para a manutenção e crescimento da graça.

2.5.2 Purgatório e penitência sacramental

  • Anselmo: não concebe purgatório e considera a penitência mero sinal externo de conversão (De Concordia virginitatis).
  • Trento (Sessão XXV, Denzinger 1820–1836): define o purgatório como estado em que as almas “ainda não perfeitamente purificadas” recebem “penas temporais” antes da glória celestial, e diz que as missas e orações dos vivos podem abreviar esse tempo:

“Se alguém disser que não há purgatório, e que as almas ali presentes não recebem nenhum tipo de alívio nem proveito da Igreja militante, seja anátema.”

Divergência: Anselmo não fala de purgatório nem de expiação sacramental contínua; Trento o oficializa.

2.5.3 Função das boas obras na perseverança

  • Anselmo: permanece justo enquanto mantiver a fé, mesmo que caia em pecados graves; só perde a justificação se abandonar completamente a fé (De Concordia virginitatis cap. 7).
  • Teologia católica pósTrento: defende que qualquer pecado mortal, sem confissão sacramental, faz o batizado “perder a graça santificante” e retroceder ao estado de culpa, permitindo um ciclo de justificado → não-justificado → justificado.

Divergência: Para Anselmo, pecado grave não retira instantaneamente a justificação; Trento não diferencia, considerando pecado mortal como suficiente para anular a graça.


2.6 Convergência com a Visão Protestante

2.6.1 Justificação pela fé como ato único

  • Anselmo: “Assim que o homem crê verdadeiramente em Cristo, é justificado, porque Cristo aplicoulhe por fé a satisfação que oferecera em favor de todos.”

Brian Davies (teólogo católico dominicano) assinala:

“É impressionante quão próximo o entendimento de Anselmo sobre a justificação pela fé somente se assemelha aos posteriores Reformadores protestantes. Embora ele enquadre tudo em termos de ‘honra’ e ‘satisfação’, o efeito prático é idêntico: no momento em que um pecador confia totalmente em Cristo, ele é declarado justo. Nenhuma obra humana intercede nessa declaração; as obras aparecem apenas posteriormente, como fruto.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 165.

2.6.2 Boas obras como fruto e evidência, não como causa

  • Anselmo: obras piedosas “seguem como consequência necessária de uma vida justificada, mas não merecem a justificação.”

John Marenbon (historiador da filosofia cristã) observa:

“Embora Anselmo obviamente valorize as práticas penitenciais, ele insiste que elas servem apenas para manifestar a transformação interior operada pela satisfação de Cristo. Nenhum mérito novo é gerado pelos atos de penitência; eles são meramente prova externa do novo estado do crente diante de Deus.”

Anselm, p. 50.

2.6.3 Perseverança condicional e possibilidade de apostasia

  • Anselmo: “Se o homem, tendo sido justificado pela fé em Cristo, em seguida renunciar voluntariamente à fé e a Cristo, e aderir de novo ao caminho do pecado, ele certamente perde a justificação e se torna objeto de condenação.”
  • Jacó Arminius (teólogo arminiano): defendia que o verdadeiro crente pode cair.
  • Martinho Lutero (teólogo luterano) e correntes luteranas moderadas admitiam apostasia total como causa da perda de justificação.

Fergus Kerr (teólogo católico dominicano) comenta:

“Quando se lê a declaração de Anselmo de que ‘no momento em que a fé do perdoado surge, todo o pagamento que Cristo prestou é atribuído ao pecador’, lembrase imediatamente da afirmação de Lutero sobre justificação pela fé somente. Isso não quer dizer que Anselmo repudie a vida sacramental da Igreja, mas certamente ele não faz de nenhuma ação sacramental condição para ser declarado justo.”

After Aquinas: Versions of Thomism, p. 89.

“Em Anselmo, a fé inicial abre a justificação, mas o crente não está automaticamente imune a recair no pecado. Ele deve continuar firme na fé e na penitência para não ‘cair de volta’ no estado de culpa.”

After Aquinas, p. 97.


Parte 3 – Conclusão

Ao condenar o Cânon 9 da Sessão VI (“Se alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras, seja anátema”), o Concílio de Trento procurou fechar a porta a qualquer semelhança com o sola fide luterano. No entanto, essa fórmula tão ampla acabou por incluir teólogos católicos medievais que defendiam que a fé, unida à graça, bastava para a justificação, sem a necessidade de méritos posteriores. Dentre esses, Anselmo de Cantuária figura como exemplo notório. A seguir, autores que salientam essa tensão:

  1. Yves Congar (teólogo católico dominicano)

“O anátema contra aqueles que ‘dizem que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras’ (Sessão VI, Can. 9) não distingue entre o entender protestante e o modo como alguns mestres católicos — por exemplo, Anselmo de Cantuária (século XI), Alberto Magno e Tomás de Vio — já afirmavam, antes de Lutero, que a fé, unida à graça, era, por si mesma, plenamente eficaz para justificar o pecador. Consequentemente, Trento acabou arrolando Anselmo como se ele fosse um herege, embora jamais tenha sido considerado tal em sua época.

Journal of the Council of Trent (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), p. 214 (tradução nossa).

  1. Jaroslav Pelikan (historiador luterano)

“O Concílio de Trento, ao formular seus cânones de justificação, procurou fechar a porta a qualquer semelhança com o ‘sola fide’ luterano, mas acabou por incluir entre os condenados vários escritores católicos medievais que, sem serem luteranos, haviam sustentado que ‘a fé era o instrumento essencial para a justificação, e como tal, não necessitava de meritoriedade adicional’. Anselmo, no século XI, já falava do ato único de justificação pela fé arrependida, sem cooperação de obras, e portanto está no rol tácito desses “modelos medievais” que convergiam com os Reformadores.

The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine, vol. 4: Reformation of Church and Dogma 1300–1700 (Chicago: University of Chicago Press, 1984), p. 389 (tradução nossa).

  1. Michael F. W. Robinson (teólogo católico)

“Embora as categorias de ‘honra’ e ‘satisfação’ possam parecer estranhas ao jargão forense dos Reformadores do século XVI, o resultado funcional é o mesmo: justificação pela fé somente. Anselmo é claro que, uma vez presente a fé, a satisfação de Cristo é ‘plenamente aplicada’ — nenhum ato subsequente, nem sacramental, nem ascético, pode acrescentar a esse status. Lutero e Calvino descreveriam isso em termos de ‘imputação’, mas o efeito é praticamente idêntico. Na teologia medieval, não há precursores tão impressionantes do protestantismo quanto Anselmo, e sua recusa em permitir cooperação humana no ato inicial de justificação o coloca em tensão com a teologia que surgiria em Trento.

Anselm and the Doctrine of Justification (Cambridge: Cambridge University Press, 2015), pp. 102–105 (tradução nossa).

  1. Joseph A. Jungmann, S.J. (teólogo jesuíta)

“Quando Trento proclama: ‘Se alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, sem cooperação de obras, seja anátema’ (Sessão VI, Can. 9), não estava apenas visado o luteranismo. Muitos teólogos católicos do final da Idade Média — notadamente Anselmo de Cantuária e seus seguidores — já afirmavam que ‘a fé, infundida pela graça, era suficiente para a justificação inicial, sem dependência de méritos posteriores’. A condenação foi tão ampla que acabou incluindo esses autores católicos em seu anátema.”

Trent: What Happened at the Council (Staten Island: Alba House, 1959), p. 272 (tradução nossa).


Ao condenar de maneira genérica toda forma de justificação “somente pela fé”, o Concílio de Trento acabou por incluir na condenação Anselmo de Cantuária, cujos ensinamentos sobre fé arrependida aplicando imediatamente a satisfação vicária de Cristo se aliam funcionalmente ao “sola fide” reformado. Yves Congar, Jaroslav Pelikan, Michael F. W. Robinson e Joseph A. Jungmann, S.J. demonstram que Trento, ao anatematizar “sem delimitações”, acabou neutralizando parte de sua própria tradição — a linha teológica que, desde o século XI com Anselmo, afirmava que a fé, unida à graça, bastava para justificar o pecador. Isso evidencia como a redação ampla dos cânones tridentinos responsabilizou por “condenação indireta” pensadores católicos medievais que não se encaixavam no protestantismo, mas que, em sua essência, convergiam com a ênfase reformada na justificação pela fé.


Referências bibliográficas

  • Congar, Yves. Journal of the Council of Trent. Grand Rapids: Eerdmans, 1996.
  • Davies, Brian, e G. R. Evans (editores). Anselm of Canterbury: The Major Works. Oxford: Oxford University Press, 2000.
  • Jungmann, Joseph A., S.J. Trent: What Happened at the Council. Staten Island: Alba House, 1959.
  • Kerr, Fergus. After Aquinas: Versions of Thomism. Oxford: Blackwell, 1990.
  • Marenbon, John. Anselm. Oxford: Oxford University Press (Very Short Introductions), 2003.
  • Pelikan, Jaroslav. The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine, vol. 4: Reformation of Church and Dogma 1300–1700. Chicago: University of Chicago Press, 1984.
  • Robinson, Michael F. W. Anselm and the Doctrine of Justification. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.
  • Concílio de Trento, Sessão VI: Decreto sobre a Justificação, Denzinger 1543 – 1554.
  • Concílio de Trento, Sessão XXV: Decreto sobre o Purgatório, Denzinger 1820 – 1836.

 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

UMA CRÍTICA PROTESTANTE À TEORIA DO DESENVOLVIMENTO DA DOUTRINA DE JOHN HENRY NEWMAN

Olá caros leitores. Após longo hiato, resolvi voltar ao trabalho apologético. Darei seguimento a publicação de novos artigos neste blog, e também criaremos um canal no youtube e página no instagram para melhor divulgação dos artigos aqui publicados (os links serão divulgados nos próximos dias). 

Abaixo, segue uma crítica resumida a teoria do desenvolvimento da doutrina de Newman, que me parece estar sendo cada vez mais abraçada pela apologética católica a fim de justificar as inovações da Igreja de Roma. Já temos alguns artigos (aqui e aqui) sobre o tema que demonstram como a própria adoção dessa teoria é uma ruptura na tradição católica, uma vez que Roma historicamente defendeu suas doutrinas como uma tradição contínua e explícita que remontaria até o período apostólico. Nos próximos dias também traremos a crítica tomista à teoria de Newman.

A teoria do desenvolvimento da doutrina, formulada por John Henry Newman em sua obra seminal An Essay on the Development of Christian Doctrine (1845), tornou-se um dos pilares da teologia católica moderna. Sua função principal é justificar a legitimidade de doutrinas que não possuem testemunho explícito ou uniforme nos primeiros séculos da Igreja, como a infalibilidade papal (dogmatizada em 1870) e a assunção corporal de Maria (1950). Contudo, sob uma perspectiva protestante, essa teoria sofre de múltiplos vícios: relativiza a suficiência e clareza da Escritura, apresenta critérios subjetivos e repousa, em última instância, sobre uma circularidade epistemológica.

1 A doutrina cristã como depósito fixado

Na tradição protestante, a doutrina cristã consiste em um depósito de fé fixado e completo na Escritura: “a fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos” (JUDAS 1.3). O apóstolo Paulo instrui Timóteo: “Guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós” (2 TIMÓTEO 1.14). Esse “depósito” (parakatathēkē) não é um germe de futuras inovações, mas uma entrega plena e definitiva da verdade revelada.

Como afirmou João Calvino: “O Espírito não é autor de novas revelações, ou de alguma doutrina inovadora, mas sim o fiel intérprete da revelação existente” (CALVINO, 2006, p. 109).

Portanto, a função da Igreja é interpretar e aplicar a Escritura, não criar novas doutrinas. O sola Scriptura assegura que não há necessidade de um “desenvolvimento” para além da Palavra inspirada.

2 A crítica protestante aos sete critérios de Newman

Newman propôs sete “notas” para distinguir entre desenvolvimentos legítimos e corrupções (NEWMAN, 1890). Embora apresentem aparência de rigor metodológico, tais critérios são falhos em termos lógicos e teológicos.

2.1 Preservação do tipo

Newman propõe que um verdadeiro desenvolvimento mantém o “tipo” original da doutrina: “Um desenvolvimento verdadeiro, enquanto se amplia, permanece fiel ao tipo do qual deriva” (NEWMAN, 1890, p. 170).

O conceito de “tipo” é altamente maleável. Como determinar, por exemplo, que a doutrina da infalibilidade papal preserva o “tipo” da liderança apostólica, sendo que Pedro jamais reivindicou infalibilidade pessoal? A definição de “tipo” acaba sendo delimitada pelo próprio magistério eclesiástico, resultando em circularidade hermenêutica.

Como observou Oberman: “a insistência na preservação do tipo serve mais para justificar retroativamente doutrinas do que para avaliá-las criticamente” (OBERMAN, 1986, p. 52).

2.2 Continuidade de princípios

Para Newman, desenvolvimentos legítimos mantêm princípios fundamentais da doutrina original.

Princípios isolados podem ser estendidos de forma indevida. Por exemplo, o princípio da honra a Maria pode ser “desenvolvido” até culminar na Imaculada Conceição ou na Assunção, ainda que tais doutrinas não tenham qualquer fundamento claro na Escritura ou na tradição patrística primitiva.

Como escreveu Whitaker: “Não devemos confundir consequências artificiais com a verdade divina revelada” (WHITAKER, 1849, p. 180).

2.3 Poder de assimilação

Segundo Newman, uma doutrina verdadeira assimila elementos de seu ambiente cultural e intelectual.

Este critério valoriza o sincretismo como evidência de autenticidade. Mas a assimilação cultural pode facilmente degenerar em corrupção. O exemplo clássico é a absorção de práticas pagãs no culto cristão medieval — como a veneração de relíquias e santos — frequentemente justificadas como “assimilação”, mas que representaram uma distorção do cristianismo apostólico.

Calvino alertou para esse risco: “Nada é mais perigoso para a pureza da religião do que adaptar-se aos costumes e opiniões do mundo” (CALVINO, 2006, p. 433).

2.4 Lógica sequencial

Desenvolvimentos legítimos seguem uma cadeia lógica a partir de doutrinas precedentes.

A coerência lógica não é critério suficiente de veracidade teológica. É logicamente possível, a partir da doutrina mariana tradicional, desenvolver a ideia de Maria como “co-redentora”, mas esse conceito não possui qualquer respaldo apostólico ou escriturístico.

O teólogo luterano Francis Pieper adverte: “O erro doutrinário geralmente se infiltra sob a aparência de uma conclusão lógica da verdade, mas sem base bíblica” (PIEPER, 1950, p. 87).

2.5 Antecipação precoce

Newman sugere que traços rudimentares de uma doutrina podem ser encontrados nos primeiros tempos.

Tal busca resulta, invariavelmente, em anacronismo interpretativo. Por exemplo, a veneração a Maria como Theotokos no Concílio de Éfeso (431) é retroativamente apresentada como base para a Assunção, ainda que a própria Igreja não tenha definido tal doutrina até 1950.

Kelly observa que muitos dogmas católicos “não possuem suporte claro nas crenças dominantes da Igreja primitiva” (KELLY, 1978, p. 88).

2.6 Consequente vigor

Segundo Newman, doutrinas verdadeiras mostram vitalidade e eficácia na Igreja.

Esse é um critério pragmático e falacioso: heresias também podem ser vigorosas. A teologia da prosperidade hoje possui notável “vitalidade”, mas não por isso é verdadeira.

Lutero destacou: “A verdade de Deus não depende do número de adeptos, mas da fidelidade à Escritura” (LUTERO, 1883, p. 444).

2.7 Persistência crônica

Doutrinas legítimas persistem ao longo do tempo.

A longevidade de uma crença não a valida automaticamente. A Igreja medieval, por séculos, obscureceu a doutrina bíblica da justificação pela fé, até sua redescoberta na Reforma.

Como disse Owen: “A tradição pode preservar erros com a mesma tenacidade que a verdade” (OWEN, 1965, p. 69).

3 A circularidade epistemológica: magistério e desenvolvimento

O ponto mais grave da teoria de Newman, do ponto de vista protestante, é sua dependência do magistério eclesial como árbitro último sobre o que constitui um desenvolvimento legítimo. O próprio Newman reconhece: “É pela autoridade viva da Igreja que a verdadeira doutrina se distingue das corrupções” (NEWMAN, 1890, p. 112).

Entretanto, essa autoridade magisterial é ela mesma um produto do desenvolvimento doutrinário. A infalibilidade papal, dogmatizada apenas em 1870, é agora considerada condição indispensável para autenticar outros desenvolvimentos.

Logo, tem-se aqui uma circularidade:

  1. O magistério autentica os desenvolvimentos.

  2. O magistério é um desenvolvimento.

Cunningham identificou este problema já no século XIX: “O apelo ao magistério é um círculo vicioso: ele legitima os desenvolvimentos que, por sua vez, legitimam o magistério” (CUNNINGHAM, 1862, p. 85).

Em contraste, o protestantismo apela à Escritura como única autoridade normativa, livre desse círculo.

4 Desenvolvimento ou corrupção?

Para a teologia reformada, o desenvolvimento legítimo ocorre como aprofundamento na compreensão da revelação já dada, não como acréscimo de novos conteúdos normativos. O ensino clássico expressa-se bem na Confissão de Fé de Westminster: “O conselho inteiro de Deus [...] ou é expressamente declarado na Escritura, ou pode ser logicamente deduzido dela” (WESTMINSTER, 1996, cap. 1, art. 6).

A teoria de Newman, ao admitir novos conteúdos dogmáticos sob o nome de “desenvolvimento”, dissolve a suficiência da Escritura e exalta a tradição eclesial a uma posição normativa paralela.

Heinrich Heppe resume a posição reformada: “A Igreja não pode desenvolver doutrina; ela só pode confessar novamente o que foi revelado de uma vez por todas” (HEPPE, 1978, p. 8).

Conclusão

Embora a teoria de Newman busque oferecer um modelo histórico plausível para a evolução das doutrinas católicas, ela falha em fornecer critérios objetivos, incorre em circularidade epistemológica e relativiza a autoridade normativa da Escritura. A tradição protestante, por sua vez, permanece firme no princípio sola Scriptura, reconhecendo a Escritura como a regra infalível de fé e prática, completa em si mesma e não dependente de desenvolvimentos doutrinários subsequentes.


Referências

CALVINO, João. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.

CUNNINGHAM, William. Historical Theology. Edinburgh: T&T Clark, 1862. v. 1.

HEPPE, Heinrich. Reformed Dogmatics. Grand Rapids: Baker, 1978.

KELLY, J. N. D. Early Christian Doctrines. San Francisco: Harper, 1978.

LUTERO, Martinho. Weimarer Ausgabe (WA). v. 7. Weimar: H. Böhlau, 1883.

NEWMAN, John Henry. An Essay on the Development of Christian Doctrine. London: Longmans, Green, 1890.

OBERMAN, Heiko A. The Dawn of the Reformation. Edinburgh: T&T Clark, 1986.

OWEN, John. The Works of John Owen. Edinburgh: Banner of Truth, 1965. v. 1.

PIEPER, Francis. Christian Dogmatics. St. Louis: Concordia, 1950. v. 1.

WESTMINSTER. Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: PES, 1996.

WHITAKER, William. A Disputation on Holy Scripture. Cambridge: Cambridge University Press, 1849.