sexta-feira, 3 de outubro de 2025

O SACERDÓCIO ORDENADO NÃO É PARTE DA FÉ CRISTÃ: UMA ANÁLISE BÍBLICA E HISTÓRICA

 


A doutrina católica romana ensina que o sacerdócio ordenado é o ministério recebido no Sacramento da Ordem que configura o homem a Cristo Sacerdote e lhe confere um caráter indelével e uma potestas sacra (poder sagrado) para santificar o povo de Deus, sobretudo administrando validamente os sacramentos — em especial fazendo presente e oferecendo sacramentalmente o sacrifício eucarístico, perdoando os pecados e ungindo os enfermos — agindo em pessoa de Cristo Cabeça e em nome da Igreja, na sucessão apostólica. (Cf. Lumen gentium 10, 28; Presbyterorum ordinis 2; CIC 1983, cânn. 1008–1009; Catecismo 1536; 1547; 1551–1553; 1566; Trento, Sess. XXII–XXIII.)

A caráter sacerdotal está diretamente vinculado aos sacramentos. Alguns destes só podem ser administrados por um sacerdote. Somente ele tem o poder de dispensar a graça que flui através do sacramento, fazendo do ministro um canal mediador. Dessa forma, não há o milagre da Eucaristia sem ele, não há absolvição de certos pecados sem ele. A grande questão é se essa doutrina era parte da Igreja apostólica ou mesmo do cristianismo dos primeiros séculos. A fim de responder tal pergunta utilizaremos principalmente o autor católico romano que escreveu sobre o sacerdócio: Garry Wills (Why Priests?: A Failed Tradition) – (aqui).

Ausência da doutrina no Novo Testamento

Wills é especialmente enfático sobre a ausência do sacerdócio ordenado no Novo Testamento:

"Sem o sacerdócio, haveria crença na sucessão apostólica, na presença real na Eucaristia, na interpretação sacrificial da Missa ou na teoria do resgate da redenção? Este livro argumentará que não haveria. Sem o sacerdócio, tudo isso teria uma base frágil para se sustentar — e o próprio sacerdócio tem uma base duvidosa. Isso não significa, como alguns protestariam imediatamente, que o próprio cristianismo deva ter uma base fraca. Pelo contrário, ele existiu sem o sacerdócio desde o início e pode se manter mais forte sem ele agora (...) Não deveria ser difícil imaginar o cristianismo sem sacerdotes. Leia cuidadosamente o Novo Testamento inteiro e você não encontrará um sacerdote humano individual mencionado nas comunidades cristãs (apenas sacerdotes judeus em serviço no Templo). Apenas um livro do Novo Testamento, a Carta aos Hebreus, menciona um sacerdote individual, e ele é único — Jesus. Ele não tem sucessores nesse ofício, de acordo com a Carta. Não é surpreendente, então, que algumas comunidades protestantes consigam ser bons cristãos sem terem sacerdotes". (Wills, p. 12)

Ou seja, no Novo Testamento há apenas o sacerdócio dos judeus, o sacerdócio único de Cristo e o sacerdócio de todos os crentes. Não há de fato qualquer menção a uma sucessão sacerdotal de ministros cristãos. Wills menciona que as primeiras comunidades cristãs eram carismáticas. Isto quer dizer que as funções exercidas nestas comunidades estavam ligadas aos dos distribuídos pelo Espírito Santo. Paulo é especialmente importante pois menciona em diversas passagens os dons que são conferidos para edificação do corpo de Cristo e não dentre eles nada que se assemelhe ao sacerdócio ordenado:

“De fato, não havia ‘igreja’ na primeira geração de seguidores de Jesus — apenas “reuniões” (ekklisíai, que significava “reuniões em casas”), onde os seguidores se encontravam. Os seguidores de Jesus eram chamados de “companheiros de casa”, Oikeioi (Gl 6.10, Ef 2.19). Nessas reuniões, não havia sacerdotes, embora houvesse muitos “carismas” — atividades inspiradas pelo Espírito Santo. Não é curioso que — com tantos dos primeiros seguidores de Jesus inspirados pelo Espírito para servir a seus irmãos e irmãs — nenhum desses ministérios fosse o de sacerdote? (...) Nada é dito no primeiro século sobre uma “consagração” que transformasse comida em qualquer coisa além de um sinal de comunhão compartilhada”. (Wills, p. 14)

Wills defende que o surgimento da ideia do sacerdócio está diretamente ligado a visão da Eucaristia em si como uma atualização do sacrifício de Cristo, no qual os elementos (pão e vinho) são literalmente o corpo e o sangue de Cristo. Contudo, esta visão eucarística não existia no primeiro século da era Cristã, o que explica a ausência do sacerdotalismo neste período. Ele prossegue afirmando a ausência do termo sacerdote (hiereus) para se referir aos que receberam os dons:

"Em nenhum lugar, a palavra sacerdote (hiereus) é usada para se referir aqueles que receberam charismata". (Wills, p. 20-21)

"Ver-se-á, então, que há uma grande variedade de carismas, funções e tarefas mencionadas no Novo Testamento. Se o sacerdócio existisse naquela época, não teria sido incluído nessa lista exaustiva, ou ao menos mencionado? Mas, de fato, Jesus em nenhum momento chama seus Seguidores ou Discípulos de sacerdotes. Paulo nunca se chama — nem a Timóteo, nem a qualquer um de seus colaboradores — de sacerdote. Ele nunca confere esse status a ninguém, seja como carisma ou como cargo”. (Wills, p. 25)

Além desta ausência do cargo de sacerdote, não se encontra também a estrutural sacramental hoje associada ao sacerdócio:

"Não apenas não há menção a um único sacerdote entre os Seguidores e Discípulos no Novo Testamento, como também não há menção aos atos que agora associamos ao sacerdócionão há confissão de pecados ouvida, nem unção dos enfermos, nem celebração de casamentos, nem confirmação, nem presidência da Missa, nem consagração da Eucaristia. O batismo nunca foi um rito exclusivo de sacerdotes. Quando facções rivais em Corinto estavam envolvidas em diferentes batismos, Paulo se colocou acima da contenda apontando que normalmente não batizava (1Co 1.14–17)”. (Wills, p. 25)

Wills também afirma que os pagãos não consideravam o cristianismo uma religião justamente pela ausência de um sistema sacrificial, pois este era um traço comum às religiões do mundo antigo:

"Portanto, para resumir: embora houvesse muitos carismas de serviço no movimento inicial de Jesus — muitas funções, alguns ofícios incipientes — não havia sacerdotes nem serviços sacerdotais; nenhum dirigente masculino da refeição ágape, nenhuma reencenação da Última Ceia de Jesus, nenhum “sacrifício da Missa”, nenhuma consagração do pão e do vinho; nada que se assemelhasse ao que os sacerdotes hoje afirmam fazer. De fato, críticos pagãos do movimento de Jesus diziam que ele não podia ser uma religião de modo algum, já que não tinha sacerdotes, nem altares, nem lugares designados de culto. (Wills, p. 28)

A ausência da ordenação sacerdotal na carta aos Hebreus

Outro importante lugar onde o sacerdócio ordenado não aparece é na carta aos Hebreus. Esta carta foi dirigida a um público de raízes judaicas que estava desanimando da fé cristã e voltando ao judaísmo. O argumento principal do autor de Hebreus é demonstrar como a nova aliança é superior à antiga. Em função disso, ele apresenta Jesus como o detentor de um sacerdócio único do qual não há menção a nenhuma sucessão. Wills afirma:

“Também precisamos prestar atenção ao que a Carta não afirma. Em nenhum lugar ela diz que o sacerdócio seria uma instituição contínua para homens (ou mulheres) cristãos. Na verdade, diz o oposto. Jesus é o último sacerdote, cuja oferta única torna obsoletos todos os outros sacerdócios. Como Melquisedeque, Jesus não tem linhagem antes ou depois dele, apenas o ato único e isolado de um sacrifício que tudo realiza”. (Wills, p. 187)

Não só a ideia de uma sucessão, mas também a ideia de uma atualização constante do ato sacrificial de Cristo está ausente nesta carta. O exegeta da Carta aos Hebreus Craig R. Koester afirma:

“Hebreus chama Cristo de ‘apóstolo’ e ‘sumo sacerdote’ (3,1), mas não usa esses termos para os líderes da comunidade. Nenhuma forma de sacrifício sacerdotal é identificada de modo exclusivo com os líderes. Ao contrário, todos na comunidade oferecem sacrifícios de louvor e amor (13,15)”. (Craig R. Koester, Hebrews: A New Translation with Introduction and Commentary, Anchor Bible 36, New York: Doubleday, 2001, p. 76)

O espírito da carta também se opõe a ideia de hierarquia burocrática que tenha acesso a um canal exclusivo de graça. Isto fica bem claro quando se diz que os crentes têm livre acesso ao trono da graça (Hebreus 4:16). A noção de que os cristãos dependem de um clero constituído para obter perdão de pecados ou mesmo para realizar um verdadeiro culto cristão é estranha a teologia da carta.

De uma liderança carismática para uma liderança institucional

Wills cataloga 16 ou 17 dons conferidos para se servir o corpo de Cristo, mas, nenhum deles se refere ao sacerdócio. Esta estrutura inicialmente carismática se desenvolveria depois numa expressão institucional mais robusta:

"Assim, a literatura pós-evangélica do movimento de Jesus introduz pessoas em funções administrativas — Servos, Anciãos, Supervisores. Estes não são carismas concedidos pelo Espírito, mas cargos para os quais as pessoas são designadas por seus semelhantese, mais uma vez, o sacerdócio está ausente da lista". (Wills, p. 22)

Os servos são hoje conhecidos como diáconos, os anciãos como presbíteros e os supervisores como bispos. Os cargos de bispo e presbítero são intercambiáveis no Novo Testamento, de forma que a liderança da Igreja, mesmo nesta versão mais institucionalizada, ainda era colegiada. A estrutural atual da Igreja Romana compreende um bispo monárquico que governa presbíteros e diáconos, porém, esta estrutura surge pela primeira em Inácio (embora haja controvérsia sobre a autenticidade de suas cartas). Mesmo quando surgem essas funções de liderança, não há sacerdote.

"Essas cartas pastorais estão caminhando em direção ao sistema de supervisor único — o chamado episcopado monárquico — que aparece plenamente desenvolvido nas cartas de Inácio de Antioquia (datadas por John Meier entre 108–117 d.C.). Ele observa que até mesmo o supervisor único de sua época precisava presidir em conjunto com presbíteros (presbyteroi) e diáconos (diakonoi). De fato, Inácio refere-se a si mesmo como diácono (diakonos) assim como supervisor. Apesar da ênfase de Inácio em sua própria autoridade como supervisor, está claro que ele já havia perdido o controle da igreja em Antioquia antes mesmo de sua prisão pelas autoridades imperiais". (Wills, p. 24-25)

Mesmo em Inácio de Antioquia, o cargo de bispo monárquico ainda era instável.

O conceito de um sacerdócio ordenado surge tardiamente no século III

Além da ausência do conceito no período apostólico, também não o encontramos dentre os autores cristãos do século II. Mesmo entre os pais apostólicos e apologistas, embora haja referências numerosas à celebração da Eucaristia (veja mais aqui), não há qualquer defesa de uma sucessão sacerdotal. Philip Schaff, após afirmar a ausência do sacerdócio no Novo Testamento, traz um sumário da questão histórica:

“Depois do declínio gradual da extraordinária elevação espiritual da era apostólica, a distinção de uma classe regular de mestres em relação aos leigos tornou-se mais fixa e proeminente. Isso aparece primeiro em Inácio, que, em seu espírito episcopalista, considera o clero o meio necessário de acesso do povo a Deus. Contudo, ele não representa em nenhum lugar o ministério como um ofício sacerdotal. A Didaque chama os “profetas” de sumos sacerdotes, mas provavelmente em sentido espiritual. Clemente de Roma, ao escrever à congregação de Corinto, traça um paralelo significativo e frutífero entre o ofício cristão de presidir e o sacerdócio levítico, e usa a expressão “leigo” (laïkós ánthropos) em contraste com sumo sacerdote, sacerdotes e levitas. Esse paralelo contém o germe de todo o sistema do sacerdotalismo. Mas, no máximo, é apenas um argumento por analogia. Tertuliano foi o primeiro a afirmar expressa e diretamente reivindicações sacerdotais em favor do ministério cristão, e o chama de sacerdotium, embora também afirme fortemente o sacerdócio universal de todos os crentes. Cipriano (†258) vai ainda mais longe e aplica todos os privilégios, deveres e responsabilidades do sacerdócio aarônico aos oficiais da Igreja cristã, chamando-os constantemente de sacerdotes e sacerdotium. Ele pode, portanto, ser chamado de verdadeiro pai da concepção sacerdotal do ministério cristão como uma agência mediadora entre Deus e o povo. Durante o século III tornou-se costume aplicar o termo “sacerdote” direta e exclusivamente aos ministros cristãos, especialmente aos bispos”. (Philip Schaff, § 42Clergy and Laity)

Schaff identifica Cipriano de Cartago como o pai do ofício sacerdotal como um mediador entre Deus e o povo. A seção sobre o clero e os leigos do link acima merece leitura, pois mostra como, no princípio, não havia uma divisão de rígida entre clero e leigos, sendo que muitas funções como o direito de ensinar e de escolher seus próprios bispos eram dados ao leigo (veja mais aqui)

 Conclusão

A partir de uma análise bíblica e histórica, podemos concluir que o sacerdócio ordenado não é parte inexorável da fé cristã. Como bem disse Gary Wills, o cristianismo viveu durante séculos sem o sacerdócio e não há motivo, portanto, para acreditar que não poderia voltar a ser assim. De fato, esta doutrina obliterou o papel dos leigos que era proeminente na Igreja Primitiva e suplantou a liberdade cristã em prol de uma hierarquia espiritual abusiva. A Igreja Romana se transformou numa espécie de cartório celestial, no qual o acesso a graça se tornara um processo burocrático que em nada lembraria os ensinos de Jesus e dos Apóstolos. No próximo artigo, vamos analisar o surgimento da estrutural sacramental romana que, assim como o sacerdócio, não encontra evidência favorável nem nas Escrituras nem na Igreja antiga. 

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