A doutrina católica romana ensina que o sacerdócio ordenado é o ministério recebido no Sacramento da Ordem que configura o homem a Cristo Sacerdote e lhe confere um caráter indelével e uma potestas sacra (poder sagrado) para santificar o povo de Deus, sobretudo administrando validamente os sacramentos — em especial fazendo presente e oferecendo sacramentalmente o sacrifício eucarístico, perdoando os pecados e ungindo os enfermos — agindo em pessoa de Cristo Cabeça e em nome da Igreja, na sucessão apostólica. (Cf. Lumen gentium 10, 28; Presbyterorum ordinis 2; CIC 1983, cânn. 1008–1009; Catecismo 1536; 1547; 1551–1553; 1566; Trento, Sess. XXII–XXIII.)
A caráter sacerdotal está diretamente
vinculado aos sacramentos. Alguns destes só podem ser administrados por um
sacerdote. Somente ele tem o poder de dispensar a graça que flui através do
sacramento, fazendo do ministro um canal mediador. Dessa forma, não há o
milagre da Eucaristia sem ele, não há absolvição de certos pecados sem ele. A
grande questão é se essa doutrina era parte da Igreja apostólica ou mesmo do cristianismo dos primeiros séculos. A fim de
responder tal pergunta utilizaremos principalmente o autor católico romano que escreveu sobre o sacerdócio: Garry Wills (Why Priests?:
A Failed Tradition) – (aqui).
Ausência
da doutrina no Novo Testamento
Wills é especialmente enfático
sobre a ausência do sacerdócio ordenado no Novo Testamento:
"Sem o sacerdócio, haveria crença na sucessão
apostólica, na presença real na Eucaristia, na interpretação sacrificial da
Missa ou na teoria do resgate da redenção? Este livro argumentará que não haveria.
Sem o sacerdócio, tudo isso teria uma base frágil para se sustentar — e o próprio
sacerdócio tem uma base duvidosa. Isso não significa, como alguns
protestariam imediatamente, que o próprio cristianismo deva ter uma base fraca.
Pelo contrário, ele
existiu sem o sacerdócio desde o início e pode se manter mais forte sem ele
agora (...) Não deveria ser difícil imaginar o cristianismo sem
sacerdotes. Leia cuidadosamente o Novo Testamento inteiro e você não encontrará
um sacerdote humano individual mencionado nas comunidades cristãs (apenas
sacerdotes judeus em serviço no Templo). Apenas um livro do Novo
Testamento, a Carta aos Hebreus, menciona um sacerdote individual, e ele é único —
Jesus. Ele não tem sucessores nesse ofício, de acordo com a Carta.
Não é surpreendente, então, que algumas comunidades protestantes consigam ser bons
cristãos sem terem sacerdotes". (Wills, p. 12)
Ou seja, no Novo Testamento há
apenas o sacerdócio dos judeus, o sacerdócio único de Cristo e o sacerdócio de
todos os crentes. Não há de fato qualquer menção a uma sucessão sacerdotal de
ministros cristãos. Wills menciona que as primeiras comunidades cristãs eram
carismáticas. Isto quer dizer que as funções exercidas nestas comunidades estavam
ligadas aos dos distribuídos pelo Espírito Santo. Paulo é especialmente
importante pois menciona em diversas passagens os dons que são conferidos para
edificação do corpo de Cristo e não dentre eles nada que se assemelhe ao sacerdócio
ordenado:
“De fato, não havia ‘igreja’ na primeira geração de
seguidores de Jesus — apenas “reuniões” (ekklisíai, que significava
“reuniões em casas”), onde os seguidores se encontravam. Os
seguidores de Jesus eram chamados de “companheiros de casa”, Oikeioi (Gl 6.10,
Ef 2.19). Nessas reuniões, não havia sacerdotes, embora houvesse muitos
“carismas” — atividades inspiradas pelo Espírito Santo. Não é curioso que — com
tantos dos primeiros seguidores de Jesus inspirados pelo Espírito para servir a
seus irmãos e irmãs — nenhum desses ministérios fosse o de sacerdote?
(...) Nada é
dito no primeiro século sobre uma “consagração” que transformasse comida em
qualquer coisa além de um sinal de comunhão compartilhada”. (Wills, p.
14)
Wills defende que o surgimento
da ideia do sacerdócio está diretamente ligado a visão da Eucaristia em si como
uma atualização do sacrifício de Cristo, no qual os elementos (pão e vinho) são
literalmente o corpo e o sangue de Cristo. Contudo, esta visão eucarística não
existia no primeiro século da era Cristã, o que explica a ausência do
sacerdotalismo neste período. Ele prossegue afirmando a ausência do termo
sacerdote (hiereus) para se referir aos que receberam os dons:
"Em nenhum lugar, a palavra sacerdote
(hiereus) é usada para se referir aqueles que receberam charismata".
(Wills, p. 20-21)
"Ver-se-á, então, que há
uma grande variedade de carismas, funções e tarefas mencionadas no Novo
Testamento. Se o
sacerdócio existisse naquela época, não teria sido incluído nessa lista
exaustiva, ou ao menos mencionado? Mas, de fato, Jesus em nenhum momento chama
seus Seguidores ou Discípulos de sacerdotes. Paulo nunca se chama — nem a Timóteo, nem a
qualquer um de seus colaboradores — de sacerdote. Ele nunca confere
esse status a ninguém, seja como carisma ou como cargo”. (Wills, p. 25)
Além desta ausência do cargo
de sacerdote, não se encontra também a estrutural sacramental hoje associada ao
sacerdócio:
"Não apenas não há menção a um
único sacerdote entre os Seguidores e Discípulos no Novo Testamento, como
também não há menção aos atos que agora associamos ao sacerdócio — não há confissão de
pecados ouvida, nem unção dos enfermos, nem celebração de casamentos, nem
confirmação, nem presidência da Missa, nem consagração da Eucaristia.
O batismo nunca
foi um rito exclusivo de sacerdotes. Quando facções rivais em Corinto
estavam envolvidas em diferentes batismos, Paulo se colocou acima da contenda apontando que normalmente
não batizava (1Co 1.14–17)”. (Wills, p. 25)
Wills também afirma que os
pagãos não consideravam o cristianismo uma religião justamente pela ausência de
um sistema sacrificial, pois este era um traço comum às religiões do mundo
antigo:
"Portanto, para resumir:
embora houvesse muitos carismas de serviço no movimento inicial de Jesus —
muitas funções, alguns ofícios incipientes — não havia sacerdotes nem serviços sacerdotais;
nenhum dirigente masculino da refeição ágape, nenhuma reencenação da Última
Ceia de Jesus, nenhum “sacrifício da Missa”, nenhuma consagração do pão e do
vinho; nada que se assemelhasse ao que os sacerdotes hoje afirmam fazer.
De fato, críticos
pagãos do movimento de Jesus diziam que ele não podia ser uma religião de modo
algum, já que não tinha sacerdotes, nem altares, nem lugares designados de
culto. (Wills, p. 28)
A
ausência da ordenação sacerdotal na carta aos Hebreus
Outro importante lugar onde o
sacerdócio ordenado não aparece é na carta aos Hebreus. Esta carta foi dirigida
a um público de raízes judaicas que estava desanimando da fé cristã e voltando
ao judaísmo. O argumento principal do autor de Hebreus é demonstrar como a nova
aliança é superior à antiga. Em função disso, ele apresenta Jesus como o
detentor de um sacerdócio único do qual não há menção a nenhuma sucessão. Wills
afirma:
“Também precisamos prestar
atenção ao que a Carta não afirma. Em nenhum lugar ela diz que o sacerdócio seria uma
instituição contínua para homens (ou mulheres) cristãos. Na verdade, diz o
oposto. Jesus é o último sacerdote, cuja oferta única torna obsoletos todos os
outros sacerdócios. Como Melquisedeque, Jesus não tem linhagem antes ou depois
dele, apenas o ato único e isolado de um sacrifício que tudo realiza”.
(Wills, p. 187)
Não só a ideia de uma
sucessão, mas também a ideia de uma atualização constante do ato sacrificial de
Cristo está ausente nesta carta. O exegeta da Carta aos Hebreus Craig R.
Koester afirma:
“Hebreus chama Cristo de
‘apóstolo’ e ‘sumo sacerdote’ (3,1), mas não usa esses termos para os líderes da comunidade.
Nenhuma forma de
sacrifício sacerdotal é identificada de modo exclusivo com os líderes.
Ao contrário, todos na comunidade oferecem sacrifícios de louvor e amor (13,15)”.
(Craig R. Koester, Hebrews: A New Translation with Introduction and Commentary,
Anchor Bible 36, New York: Doubleday, 2001, p. 76)
O espírito da carta também se
opõe a ideia de hierarquia burocrática que tenha acesso a um canal exclusivo de
graça. Isto fica bem claro quando se diz que os crentes têm livre acesso ao
trono da graça (Hebreus 4:16). A noção de que os cristãos dependem de um clero
constituído para obter perdão de pecados ou mesmo para realizar um verdadeiro
culto cristão é estranha a teologia da carta.
De
uma liderança carismática para uma liderança institucional
Wills cataloga 16 ou 17 dons
conferidos para se servir o corpo de Cristo, mas, nenhum deles se refere ao
sacerdócio. Esta estrutura inicialmente carismática se desenvolveria depois
numa expressão institucional mais robusta:
"Assim, a literatura
pós-evangélica do movimento de Jesus introduz pessoas em funções
administrativas — Servos, Anciãos, Supervisores. Estes não são carismas
concedidos pelo Espírito, mas cargos para os quais as pessoas são designadas por seus
semelhantes — e, mais uma vez, o sacerdócio está ausente da lista".
(Wills, p. 22)
Os servos são hoje conhecidos
como diáconos, os anciãos como presbíteros e os supervisores como bispos. Os
cargos de bispo e presbítero são intercambiáveis no Novo Testamento, de forma que
a liderança da Igreja, mesmo nesta versão mais institucionalizada, ainda era
colegiada. A estrutural atual da Igreja Romana compreende um bispo monárquico
que governa presbíteros e diáconos, porém, esta estrutura surge pela primeira
em Inácio (embora haja controvérsia sobre a autenticidade de suas cartas).
Mesmo quando surgem essas funções de liderança, não há sacerdote.
"Essas cartas pastorais
estão caminhando em direção ao sistema de supervisor único — o chamado
episcopado monárquico — que aparece plenamente desenvolvido nas cartas de
Inácio de Antioquia (datadas por John Meier entre 108–117 d.C.). Ele
observa que até
mesmo o supervisor único de sua época precisava presidir em conjunto com
presbíteros (presbyteroi) e diáconos (diakonoi). De fato, Inácio
refere-se a si mesmo como diácono (diakonos) assim como supervisor. Apesar da
ênfase de Inácio em sua própria autoridade como supervisor, está claro que ele
já havia perdido o controle da igreja em Antioquia antes mesmo de sua prisão
pelas autoridades imperiais". (Wills, p. 24-25)
Mesmo em Inácio de Antioquia,
o cargo de bispo monárquico ainda era instável.
O
conceito de um sacerdócio ordenado surge tardiamente no século III
Além da ausência do conceito
no período apostólico, também não o encontramos dentre os autores cristãos do
século II. Mesmo entre os pais apostólicos e apologistas, embora haja
referências numerosas à celebração da Eucaristia (veja mais aqui),
não há qualquer defesa de uma sucessão sacerdotal. Philip Schaff, após afirmar
a ausência do sacerdócio no Novo Testamento, traz um sumário da questão
histórica:
“Depois do declínio gradual da
extraordinária elevação espiritual da era apostólica, a distinção de uma classe
regular de mestres em relação aos leigos tornou-se mais fixa e proeminente.
Isso aparece primeiro em Inácio, que, em seu espírito episcopalista, considera
o clero o meio necessário de acesso do povo a Deus. Contudo, ele não representa em nenhum lugar o
ministério como um ofício sacerdotal. A Didaque chama os “profetas” de sumos
sacerdotes, mas provavelmente em sentido espiritual. Clemente de
Roma, ao escrever à congregação de Corinto, traça um paralelo significativo e
frutífero entre o ofício cristão de presidir e o sacerdócio levítico, e usa a
expressão “leigo” (laïkós ánthropos) em contraste com sumo sacerdote,
sacerdotes e levitas. Esse paralelo contém o germe de todo o sistema do
sacerdotalismo. Mas,
no máximo, é apenas um argumento por analogia. Tertuliano foi o
primeiro a afirmar expressa e diretamente reivindicações sacerdotais em favor
do ministério cristão, e o chama de sacerdotium, embora também afirme fortemente o sacerdócio
universal de todos os crentes. Cipriano (†258) vai ainda mais longe e aplica todos os
privilégios, deveres e responsabilidades do sacerdócio aarônico aos oficiais da
Igreja cristã, chamando-os constantemente de sacerdotes e sacerdotium. Ele
pode, portanto, ser chamado de verdadeiro pai da concepção sacerdotal do
ministério cristão como uma agência mediadora entre Deus e o povo. Durante o século
III tornou-se costume aplicar o termo “sacerdote” direta e exclusivamente aos
ministros cristãos, especialmente aos bispos”. (Philip Schaff, § 42Clergy and Laity)
Schaff identifica Cipriano de
Cartago como o pai do ofício sacerdotal como um mediador entre Deus e o povo. A
seção sobre o clero e os leigos do link acima merece leitura, pois mostra como,
no princípio, não havia uma divisão de rígida entre clero e leigos, sendo que
muitas funções como o direito de ensinar e de escolher seus próprios bispos
eram dados ao leigo (veja mais aqui)
Conclusão
A partir de uma análise bíblica e histórica, podemos concluir que o sacerdócio ordenado não é parte inexorável da fé cristã. Como bem disse Gary Wills, o cristianismo viveu durante séculos sem o sacerdócio e não há motivo, portanto, para acreditar que não poderia voltar a ser assim. De fato, esta doutrina obliterou o papel dos leigos que era proeminente na Igreja Primitiva e suplantou a liberdade cristã em prol de uma hierarquia espiritual abusiva. A Igreja Romana se transformou numa espécie de cartório celestial, no qual o acesso a graça se tornara um processo burocrático que em nada lembraria os ensinos de Jesus e dos Apóstolos. No próximo artigo, vamos analisar o surgimento da estrutural sacramental romana que, assim como o sacerdócio, não encontra evidência favorável nem nas Escrituras nem na Igreja antiga.
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