O concílio de Trento assim decretou
sobre as relíquias:
Devem ser venerados pelos fiéis os santos
corpos dos santos mártires e dos outros que vivem com Cristo, corpos que foram
membros vivos do mesmo Cristo e templo do Espírito Santo, que por ele devem ser
ressuscitados para a vida eterna e glorificados e pelos quais Deus concede aos
homens muitos benefícios. Por isso, os que afirmam que às relíquias dos santos
não se deve veneração nem honra, ou que inutilmente os fiéis as honram como
também a outros monumentos sagrados, e
que em vão frequentam as memórias dos Santos para obter o seu auxílio, todos
devem ser absolutamente condenados como já outrora a Igreja os condenou e
também agora os condena. (DH
1822)
A
questão é se tal doutrina foi crida pela Igreja desde o
início ou seria uma inovação surgida séculos depois do
período apostólico? O católico romano acredita que a veneração a relíquia de um
santo é uma forma de obter seu favor. Logo, a veneração de relíquias está
ligada a intercessão dos santos. Como a prática de orar ao santos não é
encontrada nos pais pré-nicenos (aqui), é provável que a veneração de relíquias também não. Muitos acreditam que através da veneração à relíquia o favor do santo seria
obtido mais rápido ou até mesmo não seria caso não fosse venerado. Isso
obviamente incentivou um sem número de falsificações e um vultoso comércio.
Relíquias podem ser os restos mortais do santo, seus pertences ou até mesmo
objetos em contato com seu túmulo. O
primeiro mártir cristão foi Estevão. Não há nenhum registro bíblico e ainda é de
todo improvável que os restos ou objetos de Estevão tenham sido guardados para
culto ou utilizados como meio de intercessão. Outro mártir famoso e muito
antigo é Inácio de Antioquia. Seu martírio ocorreu por volta do ano 107. A
carta de Inácio aos romanos sugere que ele desconhecia a prática de veneração
das relíquias:
Escrevo a todas as Igrejas e anuncio a todos que, de boa vontade, morro
por Deus, caso vós não me impeçais de o fazer. Eu vos suplico que não tenhais
benevolência inoportuna por mim. Deixai
que eu seja pasto das feras, por meio das quais me é concedido alcançar a
Deus. Sou trigo de Deus, e serei moído
pelos dentes das feras, para que me apresente como trigo puro de Cristo. Ao
contrário, acariciai as feras, para que
se tornem minha sepultura, e não deixem nada do meu corpo, para que, depois de
morto, eu não pese a ninguém. Então eu serei verdadeiramente discípulo de
Jesus Cristo, quando o mundo não vir
mais o meu corpo. (Aos Romanos 4)
Inácio
não foi o primeiro mártir e deveria ter conhecimento de vários outros cristãos
devorados pelas feras. O ponto é que ele não esperava que as feras deixassem
qualquer vestígio do seu corpo. Ele desejava que nada sobrasse e que as
próprias feras fossem sua sepultura. Ele pressupõe que caso algo sobrasse, os
seus irmãos iriam enterrá-lo numa sepultura. Todo o contexto é incompatível com
a ideia de que os cristãos guardavam os restos mortais para veneração ou pedido
de intercessão. Ou não restaria nada ou ele seria sepultado. O relato do martírio
de Inácio diz:
Pois apenas as porções mais duras de seus santos
vestígios foram deixadas, que foram
transportadas para Antioquia e envoltas em linho, como um tesouro
inestimável deixado para a santa Igreja pela graça que estava no mártir. (Cap. 6)
Os
restos mortais de Inácio foram envoltos em linho porque esta era a prática de
um sepultamento. O corpo de Cristo também foi envolto em linho (João 19:40). O
testemunho patrístico vai na mesma direção – Tertuliano relata a mulher que
sonhou com um “pano de linho” e morreu cinco dias depois (Spetaculis, cap.
26). Dionísio o grande relata em 260 d.c um homem cuja ocupação era "vestir
e enterrar os corpos daqueles mártires aperfeiçoados e abençoados" (Epístolas
e Fragmentos, Epístola 1, parágrafo 3). Os mártires eram vestidos em linho e
enterrados e a roupa de Inácio era a linho no qual seus restos estavam embrulhados.
Confirmando isso, Jerônimo testifica que os restos de Inácio foram
transportados para Antioquia e enterrados:
Quando ele foi condenado aos animais selvagens e
com zelo pelo martírio ouviu os leões rugir, ele disse: "Eu sou o trigo de
Cristo. Estou morto pelos dentes das bestas selvagens para que eu possa ser o
pão do mundo". Ele foi morto no décimo primeiro ano de Trajano e os restos de seu corpo estão em
Antioquia, fora do portão Daphnitic no cemitério. (Vidas de homens ilustres, cap.16)
Mesmo
no século IV, quando o culto às relíquias começava a despontar na Igreja,
homens como Antônio pareciam não endossar a prática. Atanásio escreveu:
Os egípcios costumavam honrar com ritos
funerários e envolver em linho os corpos dos homens bons e especialmente dos
santos mártires. Eles não os enterravam
no chão, mas os colocavam em sofás os mantinham em suas casas, pensando nisso
que honravam os falecidos. Antônio muitas vezes instou os bispos a darem
mandamento às pessoas sobre esse assunto. Da igual forma, ele ensinava os
leigos e repreendia as mulheres dizendo: "que isso não era lícito nem santo, pois os corpos dos patriarcas e dos
profetas estão até agora preservados em túmulos, e o próprio corpo do
Senhor foi posto em um túmulo, e uma pedra foi colocada sobre ele e o escondeu
até Ele se levantou no terceiro dia". E assim dizendo, ele mostrou que aquele que não enterrava os
cadáveres dos mortos após a morte transgredia a lei, embora fossem
sagrados. O que seria mais sagrado do que o corpo do Senhor? Então muitos o
ouviram e depois enterraram os mortos no
chão e agradeceram ao Senhor porque eles tinham sido ensinados com justiça. (Vida de Antônio, parágrafo 90)
A
prática de guardar os restos mortais num relicário não contava com a aprovação
de Antônio. A evidência mais antiga oferecida pelos apologistas católicos é o
martírio de Policarpo que ocorreu por volta do ano 157:
Vendo a rixa suscitada pelos judeus, o centurião
colocou o corpo no meio e o fez queimar, como era de costume. Desse modo, pudemos mais tarde recolher seus ossos,
mais preciosos do que pedras preciosas e mais valiosos do que o ouro, para colocá-los
em lugar conveniente. Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá
reunir-nos, na alegria e contentamento, para
celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram
antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no
futuro. (Martírio de Policarpo, cap.
18)
A
datação desta obra é objeto e controvérsia. Alguns estudiosos como Candida Moss
situam a obra no século III:
Da mesma forma, o autor descreve práticas devocionais religiosas que não tomaram forma
até o terceiro século. Na conclusão da obra, depois que o corpo de
Policarpo é queimado pela segunda vez, os cristãos roubam os fragmentos de ossos
e cinzas que permaneceram e os depositam em um local apropriado para a guarda
(...) Além do martírio de Policarpo, a
prática de colecionar e venerar os corpos de mártires é completamente sem paralelo
no segundo século. Nossas próximas primeiras referências a relíquias são do século III e são muito menos
desenvolvidas. Eles podem até não ser referências firmes a relíquias, mas apenas
referências à distribuição de memórias. (Fonte)
Esta
autora acredita que o relato é do terceiro século porque a prática de guardar
os restos mortais não encontra nenhum paralelo no segundo século (vide exemplo
de Inácio). E mesmo no século III, as referências às relíquias são pouco
conclusivas. Além disso, é nítido que o relato do martírio foi objeto de
embelezamento, estando mais no campo da ficção histórica do que relato acurado.
De todo o modo, católicos costumam tirar conclusões abusivas desse relato. É
comum ouvir dizer que os restos de Policarpo foram guardados num relicário e
que anualmente eles seriam expostos para veneração e pedidos de intercessão.
No
entanto, não há nada no texto que diga isso. O texto não diz qual o lugar
apropriado em que os restos foram guardados. Mas, analisando o contexto histórico
[o caso de Inácio (séc. II), o testemunho de Dionísio a respeito dos homens que
enterravam os mártires (séc. III) e as exortações de Antônio (séc. IV)] é mais
provável que Inácio tenha sido enterrado como era a prática dos cristãos de seu
tempo. O texto diz que a Igreja se reunia anualmente para celebrar o
aniversário de seu martírio de forma a encorajar os demais cristãos. Não há
nada sobre exposição das relíquias de Policarpo nem sobre orações realizadas a
ele. É inegável que há especial carinho e cuidado com os restos mortais do
mártir, mas há diferença substancial entre isso e a prática católica romana de
veneração das relíquias. Dado que neste período os cristãos não se reuniam em
templos e que os aniversários dos martírios eram comemorados nas tumbas, o mais
provável é que as relíquias dos cristãos ficassem enterradas e não expostas em
algum relicário.
Ainda
que o martírio de Policarpo fosse um exemplo fidedigno da veneração de
relíquias, o apologista católico precisa oferecer evidências adicionais. Porque
deveríamos acreditar tal prática remonta aos apóstolos? Porque deveríamos
acreditar que tal prática era generalizada na Igreja Antiga? A luz de
evidências mais antigas como o martírio de Inácio, devemos acreditar que tal
prática nem seria generalizada e nem tão antiga.
No
séc. IV iniciou-se o processo de desenterrar as relíquias dos mártires para que
fossem transferidas a alguma Igreja. O primeiro caso conhecido de ossos de um
mártir sendo desenterrados e movido para outro local para a veneração é o
transporte dos ossos de São Bábilas de Antioquia por César Constantino Gaio em
354 d.C. Dois anos depois, o Imperador Constâncio II transportou os ossos de
Timóteo em 356 d.C e os ossos de André e Lucas em 358 d.C. Uma das primeiras
referências a um cristão que recolhe as relíquias dos mártir para a veneração
pessoal é uma carta de Basílio situada em 373 d.C: "Se você enviar as
relíquias dos mártires para casa, você fará bem" (Carta 155). É nesse
período (2ª metade do século IV) que a prática de guardar relíquias para
veneração começa a se disseminar (não sem oposição).
Já
não fosse trágico a prática em si, é amplamente reconhecido que a maior parte
das relíquias expostas em Igrejas Católicas são apenas falsificações:
No entanto, continua
a ser verdade que muitas das relíquias mais antigas, devidamente exibidas para
a veneração nos santuários da cristandade ou mesmo em Roma, devem agora ser
declaradas como certamente falsas ou suspeitas. Para tomar um exemplo da
última classe, as tábuas do berço (Praesaepe) - um nome que há mais de mil anos
foi associado à basílica de Santa Maria Maggiore - só pode ser considerado como
sendo de duvidoso. Em sua monografia "Le memorie Liberiane dell 'Infanzia
di N. S. Gesù Cristo" (Roma, 1894), Mons. Cozza Luzi admite francamente
que todas as evidências positivas para a autenticidade das relíquias do berço,
etc., estão faltando antes do século XI. Curiosamente, uma inscrição em unciais
gregos do século VIII é encontrada em uma das placas, mas a inscrição não tem
nada a ver com o berço, sendo aparentemente relacionada com alguma transação
comercial. É difícil explicar sua presença na suposição de que a relíquia é
autêntica. Dificuldades semelhantes
podem ser encorajadas contra a suposta "coluna da flagelação"
venerada em Roma na Igreja de Santa Prassede e contra muitas outras relíquias
famosas. (Enciclopédia Católica)
Multidões
e multidões de católicos veneram relíquias falsas sob a égide da Igreja Romana.
Esse o resultado de quando abandonamos a intercessão certa e infalível de
Cristo para a intercessão de personagens que em alguns casos sequer se sabe se
existiram.
Você cita o cap 6 da carta de Inácio aos Romanos onde o próprio Inácio que já havia morrido relata o seu martírio ? Como um morto relata o seu próprio martírio ? Ou eu entendi errado ?
ResponderExcluirQuem é esse tal Antônio que Atanásio citou ? Obrigado
O cap 6 é da obra "Matírio de Inácio". Anteriormente eu citei a carta de Inácio aos Romanos. São obras distantes. Obviamente o martírio foi escrito por uma fonte que não era Inácio.
ExcluirAntônio foi um famoso monge do século IV. Veja mais informações sobre ele aqui:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%A3o_do_Deserto
Olá, meu amigo. Sou estudante do Tomismo e gostaria muito de poder ter contato intelectual com você. Me mande um e-mail, por favor.
ResponderExcluirtiagog.silva.ts@gmail.com
Olá. Vou entrar em contato por e-mail.
ExcluirBem que você poderia fazer um texto contestando os dogmas da Igreja Ortodoxa.
ResponderExcluirPor tabela, já há nesse blog muita coisa contestando a Igreja Ortodoxa, uma vez que ela comunga de alguns dos dogmas do romanismo. Mais para frente pretendo escrever algo mais especifico, mas por enquanto tenho uma lista de artigos em mente que preciso seguir. Infelizmente tem me faltado tempo para dedicar a este blog.
Excluiros apologistas postaram essa semana a seguinte frase de Agostinho:
ResponderExcluir"(...) Certa mulher perdeu em seu regaço seu filho enfermo, catecúmeno, de peito ainda. Quando ela percebeu que morrera e estava irremediavelmente perdido, ela começou a chorar por ele, mais como cristã do que como mãe. Não desejava a seu filho outra vida senão a do mundo futuro, e chorava porque ele foi levado e perdido... Cheia de confiança, tomou em suas mãos o menino morto e correu à memória do bem-aventurado mártir Estevão, e começou a pedir de volta a vida de seu filho com estas palavras: «Santo Mártir, você vê que não tenho nenhum consolo, pois não posso dizer que meu filho tenha precedido, pois você sabe que ele pereceu. Você sabe bem porque choro. Devolva-me meu filho para tê-lo na presença dAquele que coroou a ti.» Suplicando estas e outras coisas parecidas, de certo modo mais exigindo do que pedindo, com suas lágrimas, como disse, o filho reviveu.(...)" SERMÃO 324
são verdadeiras mesmo?
Quando você precisa usar o testemunho de Agostinho para provar o que a Igreja praticava nos quatro século anteriores a ele, é sinal de que você não dispõe de provas robustas em favor do que alega. A citação é sim verdadeira. Eu tratei desse assunto em outro artigo:
Excluirhttp://respostascristas.blogspot.com.br/search?q=AGOSTINHO+E+ORA%C3%87%C3%83O+AOS+SANTOS