quarta-feira, 4 de junho de 2025

Anselmo e a Justificação: mais protestante do que católico romano

 Parte 1 – Introdução

Anselmo de Cantuária (1033 – 1109) foi arcebispo de Cantuária, filósofo e teólogo medieval considerado o “pai da Escolástica”. Nascido em Aosta (atual Itália), tornouse monge beneditino em Bec (Normandia) e, posteriormente, arcebispo de Cantuária, na Inglaterra. Sua obra mais famosa, Cur Deus Homo? (1098), busca explicar o motivo da encarnação e morte de Cristo, desenvolvendo a “teoria da satisfação” para a expiação. Em escritos posteriores, como o diálogo De Concordia virginitatis, Anselmo aprofunda temas de justificação, arrependimento e virtude. Ao enfatizar a aplicação imediata da satisfação vicária de Cristo pela fé, Anselmo traçou caminhos teológicos que antecipam aspectos centrais dos Reformadores, distinguindose notavelmente da teologia desenvolvida no Concílio de Trento.


Parte 2 – As visões de Anselmo em comparação com a teologia católica e protestante

2.1 Justificação como ato único

Em Cur Deus Homo? (cap. 13), Anselmo afirma que a justificação se dá num só momento, quando o pecador, arrependido, confia plenamente em Cristo. Seu texto diz:

“Assim que o homem crê verdadeiramente em Cristo, é justificado, porque Cristo aplicoulhe por fé a satisfação que oferecera em favor de todos.”

Para Anselmo, não há “etapas intermediárias”: a fé arrependida “ativa” a justificação num único instante, em que Deus imputa a satisfação de Cristo ao pecador.

Brian Davies (teólogo católico dominicano) comenta:

“Para Anselmo, o pecador é perdoado no exato momento em que se confia a Cristo: a satisfação prestada por Cristo na cruz é aplicada, em sua totalidade, ao crente arrependido assim que a fé a abraça. Não existe um ‘estágio’ intermediário de perdão gradual; uma vez presente a fé, a justificação está completa.

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 158.


2.2 Boas obras como efeito, não como causa

Em De Concordia virginitatis (cap. 5), Anselmo distingue a “penitência interna” de meras mortificações externas:

“A verdadeira contrição do coração traz arrependimento que não gera mais contrição, mas remissão. Não se trata de penitência meramente externa, mas de verdadeira mudança interior. Pois aquele que ama a Deus não faz mortificações para conseguir mais perdão, mas unicamente por gratidão aos benefícios já recebidos.”

Ou seja, as práticas piedosas apenas demonstram externamente que a fé foi genuína; nenhum ato exterior acrescenta algo à satisfação de Cristo, que já é completa.

Brian Davies (teólogo católico dominicano) observa:

“Anselmo não permite que nenhuma obra humana contribua para que alguém seja declarado justo diante de Deus. A cruz de Cristo prestou satisfação completa; boas obras humanas não podem acrescentar ou completar essa satisfação. Uma vez despertada a fé, as obras seguem como consequência necessária de uma vida justificada, mas não merecem a justificação.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 161.


2.3 Perda do status de justificado somente por apostasia

Em De Concordia virginitatis (pars I, cap. 7), Anselmo esclarece que o status de “justo” só se perde se o crente abandona totalmente a fé:

“Se o homem, tendo sido justificado pela fé em Cristo, em seguida renunciar voluntariamente à fé e a Cristo, e aderir de novo ao caminho do pecado, ele certamente perde a justificação e se torna objeto de condenação.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 182.

Portanto, um pecado grave isolado não retira o status de “justo”; apenas a apostasia total faz com que o fiel volte ao estado de culpa.

John Marenbon (historiador da filosofia cristã) comenta:

“Anselmo admite claramente a possibilidade de apostasia: uma vez justificado, o crente deve perseverar; se renegálo, voltará a ficar sob condenação. Não há, portanto, em Anselmo, a convicção de que todo verdadeiro convertido permaneça invariavelmente salvo, mas sim que apenas o abandono total da fé o faz recair no estado de culpa.”

Anselm, p. 63.

2.4 Ausência da doutrina do purgatório

Anselmo não apresenta, em nenhum de seus textos, a ideia de purgatório ou satisfação de “penas temporais” após a morte. Em suas obras, a justiça de Cristo, aplicada pela fé, esgota toda consequência do pecado.

John Marenbon (historiador da filosofia cristã) confirma:

“Anselmo não faz qualquer menção ao purgatório em suas obras. Não há em Cur Deus Homo? ou em De Concordia virginitatis a ideia de um estado de purgação após a morte; para ele, a justiça de Cristo, aplicada pela fé, é completa e não deixa lugar para penas temporais em outro mundo.”

Anselm, p. 58.

Brian Davies (teólogo católico dominicano) afirma:

“Em Anselmo, não existe sequer uma vaga noção de purgatório. A lógica dele é que a satisfação vicária de Cristo, recebida pela fé, elimina totalmente a culpa e as consequências do pecado no crente arrependido. Por essa razão, não há qualquer referência a ‘penas temporais’ ou a um estado intermediário após a morte.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 142.

Fergus Kerr (teólogo católico dominicano) pontua:

Anselmo não propõe purgatório ou qualquer punição pósmorte para as almas dos fiéis. Sua ênfase recai inteiramente na aplicação completa da satisfação de Cristo no momento da fé; não existe em sua teologia a ideia de ‘apuramento’ adicional após o sepulcro.”

After Aquinas: Versions of Thomism, p. 92.

É digno de notar observar como a doutrina do purgatório ainda era tão incipiente mais de mil anos depois dos Apóstolos - algo bastante problemático para os que defendem que a Igreja sempre o ensinou. 


2.5 Contraste com a Teologia Católica PósTrento

2.5.1 Justificação: ato único vs processo com cooperação

  • Anselmo: justificação é ato único de Deus ao aplicar a satisfação de Cristo pela fé arrependida, sem cooperação humana ( Cur Deus Homo? cap. 13).
  • Trento (Sessão VI, Can. 9; Denzinger 1543–1554): condena quem “diz que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras”. Para Trento, a graça justifica, mas o homem coopera com essa graça por meio de boas obras e sacramentos num processo de justificação:

“Se alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, pelas quais obras não cooperam nada em direção à justificação, e que a fé, para justificar, nada mais quer além de mero aderir ao promissor, assim crendo, que os delitos do crente sejam cobertos, bem como a justiça de Cristo … seja anátema.”

Divergência: Anselmo rejeita qualquer cooperatio humana no ato de justificação; Trento a torna essencial para a manutenção e crescimento da graça.

2.5.2 Purgatório e penitência sacramental

  • Anselmo: não concebe purgatório e considera a penitência mero sinal externo de conversão (De Concordia virginitatis).
  • Trento (Sessão XXV, Denzinger 1820–1836): define o purgatório como estado em que as almas “ainda não perfeitamente purificadas” recebem “penas temporais” antes da glória celestial, e diz que as missas e orações dos vivos podem abreviar esse tempo:

“Se alguém disser que não há purgatório, e que as almas ali presentes não recebem nenhum tipo de alívio nem proveito da Igreja militante, seja anátema.”

Divergência: Anselmo não fala de purgatório nem de expiação sacramental contínua; Trento o oficializa.

2.5.3 Função das boas obras na perseverança

  • Anselmo: permanece justo enquanto mantiver a fé, mesmo que caia em pecados graves; só perde a justificação se abandonar completamente a fé (De Concordia virginitatis cap. 7).
  • Teologia católica pósTrento: defende que qualquer pecado mortal, sem confissão sacramental, faz o batizado “perder a graça santificante” e retroceder ao estado de culpa, permitindo um ciclo de justificado → não-justificado → justificado.

Divergência: Para Anselmo, pecado grave não retira instantaneamente a justificação; Trento não diferencia, considerando pecado mortal como suficiente para anular a graça.


2.6 Convergência com a Visão Protestante

2.6.1 Justificação pela fé como ato único

  • Anselmo: “Assim que o homem crê verdadeiramente em Cristo, é justificado, porque Cristo aplicoulhe por fé a satisfação que oferecera em favor de todos.”

Brian Davies (teólogo católico dominicano) assinala:

“É impressionante quão próximo o entendimento de Anselmo sobre a justificação pela fé somente se assemelha aos posteriores Reformadores protestantes. Embora ele enquadre tudo em termos de ‘honra’ e ‘satisfação’, o efeito prático é idêntico: no momento em que um pecador confia totalmente em Cristo, ele é declarado justo. Nenhuma obra humana intercede nessa declaração; as obras aparecem apenas posteriormente, como fruto.”

Anselm of Canterbury: The Major Works, p. 165.

2.6.2 Boas obras como fruto e evidência, não como causa

  • Anselmo: obras piedosas “seguem como consequência necessária de uma vida justificada, mas não merecem a justificação.”

John Marenbon (historiador da filosofia cristã) observa:

“Embora Anselmo obviamente valorize as práticas penitenciais, ele insiste que elas servem apenas para manifestar a transformação interior operada pela satisfação de Cristo. Nenhum mérito novo é gerado pelos atos de penitência; eles são meramente prova externa do novo estado do crente diante de Deus.”

Anselm, p. 50.

2.6.3 Perseverança condicional e possibilidade de apostasia

  • Anselmo: “Se o homem, tendo sido justificado pela fé em Cristo, em seguida renunciar voluntariamente à fé e a Cristo, e aderir de novo ao caminho do pecado, ele certamente perde a justificação e se torna objeto de condenação.”
  • Jacó Arminius (teólogo arminiano): defendia que o verdadeiro crente pode cair.
  • Martinho Lutero (teólogo luterano) e correntes luteranas moderadas admitiam apostasia total como causa da perda de justificação.

Fergus Kerr (teólogo católico dominicano) comenta:

“Quando se lê a declaração de Anselmo de que ‘no momento em que a fé do perdoado surge, todo o pagamento que Cristo prestou é atribuído ao pecador’, lembrase imediatamente da afirmação de Lutero sobre justificação pela fé somente. Isso não quer dizer que Anselmo repudie a vida sacramental da Igreja, mas certamente ele não faz de nenhuma ação sacramental condição para ser declarado justo.”

After Aquinas: Versions of Thomism, p. 89.

“Em Anselmo, a fé inicial abre a justificação, mas o crente não está automaticamente imune a recair no pecado. Ele deve continuar firme na fé e na penitência para não ‘cair de volta’ no estado de culpa.”

After Aquinas, p. 97.


Parte 3 – Conclusão

Ao condenar o Cânon 9 da Sessão VI (“Se alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras, seja anátema”), o Concílio de Trento procurou fechar a porta a qualquer semelhança com o sola fide luterano. No entanto, essa fórmula tão ampla acabou por incluir teólogos católicos medievais que defendiam que a fé, unida à graça, bastava para a justificação, sem a necessidade de méritos posteriores. Dentre esses, Anselmo de Cantuária figura como exemplo notório. A seguir, autores que salientam essa tensão:

  1. Yves Congar (teólogo católico dominicano)

“O anátema contra aqueles que ‘dizem que o homem é justificado somente pela fé, sem as boas obras’ (Sessão VI, Can. 9) não distingue entre o entender protestante e o modo como alguns mestres católicos — por exemplo, Anselmo de Cantuária (século XI), Alberto Magno e Tomás de Vio — já afirmavam, antes de Lutero, que a fé, unida à graça, era, por si mesma, plenamente eficaz para justificar o pecador. Consequentemente, Trento acabou arrolando Anselmo como se ele fosse um herege, embora jamais tenha sido considerado tal em sua época.

Journal of the Council of Trent (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), p. 214 (tradução nossa).

  1. Jaroslav Pelikan (historiador luterano)

“O Concílio de Trento, ao formular seus cânones de justificação, procurou fechar a porta a qualquer semelhança com o ‘sola fide’ luterano, mas acabou por incluir entre os condenados vários escritores católicos medievais que, sem serem luteranos, haviam sustentado que ‘a fé era o instrumento essencial para a justificação, e como tal, não necessitava de meritoriedade adicional’. Anselmo, no século XI, já falava do ato único de justificação pela fé arrependida, sem cooperação de obras, e portanto está no rol tácito desses “modelos medievais” que convergiam com os Reformadores.

The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine, vol. 4: Reformation of Church and Dogma 1300–1700 (Chicago: University of Chicago Press, 1984), p. 389 (tradução nossa).

  1. Michael F. W. Robinson (teólogo católico)

“Embora as categorias de ‘honra’ e ‘satisfação’ possam parecer estranhas ao jargão forense dos Reformadores do século XVI, o resultado funcional é o mesmo: justificação pela fé somente. Anselmo é claro que, uma vez presente a fé, a satisfação de Cristo é ‘plenamente aplicada’ — nenhum ato subsequente, nem sacramental, nem ascético, pode acrescentar a esse status. Lutero e Calvino descreveriam isso em termos de ‘imputação’, mas o efeito é praticamente idêntico. Na teologia medieval, não há precursores tão impressionantes do protestantismo quanto Anselmo, e sua recusa em permitir cooperação humana no ato inicial de justificação o coloca em tensão com a teologia que surgiria em Trento.

Anselm and the Doctrine of Justification (Cambridge: Cambridge University Press, 2015), pp. 102–105 (tradução nossa).

  1. Joseph A. Jungmann, S.J. (teólogo jesuíta)

“Quando Trento proclama: ‘Se alguém disser que o homem é justificado somente pela fé, sem cooperação de obras, seja anátema’ (Sessão VI, Can. 9), não estava apenas visado o luteranismo. Muitos teólogos católicos do final da Idade Média — notadamente Anselmo de Cantuária e seus seguidores — já afirmavam que ‘a fé, infundida pela graça, era suficiente para a justificação inicial, sem dependência de méritos posteriores’. A condenação foi tão ampla que acabou incluindo esses autores católicos em seu anátema.”

Trent: What Happened at the Council (Staten Island: Alba House, 1959), p. 272 (tradução nossa).


Ao condenar de maneira genérica toda forma de justificação “somente pela fé”, o Concílio de Trento acabou por incluir na condenação Anselmo de Cantuária, cujos ensinamentos sobre fé arrependida aplicando imediatamente a satisfação vicária de Cristo se aliam funcionalmente ao “sola fide” reformado. Yves Congar, Jaroslav Pelikan, Michael F. W. Robinson e Joseph A. Jungmann, S.J. demonstram que Trento, ao anatematizar “sem delimitações”, acabou neutralizando parte de sua própria tradição — a linha teológica que, desde o século XI com Anselmo, afirmava que a fé, unida à graça, bastava para justificar o pecador. Isso evidencia como a redação ampla dos cânones tridentinos responsabilizou por “condenação indireta” pensadores católicos medievais que não se encaixavam no protestantismo, mas que, em sua essência, convergiam com a ênfase reformada na justificação pela fé.


Referências bibliográficas

  • Congar, Yves. Journal of the Council of Trent. Grand Rapids: Eerdmans, 1996.
  • Davies, Brian, e G. R. Evans (editores). Anselm of Canterbury: The Major Works. Oxford: Oxford University Press, 2000.
  • Jungmann, Joseph A., S.J. Trent: What Happened at the Council. Staten Island: Alba House, 1959.
  • Kerr, Fergus. After Aquinas: Versions of Thomism. Oxford: Blackwell, 1990.
  • Marenbon, John. Anselm. Oxford: Oxford University Press (Very Short Introductions), 2003.
  • Pelikan, Jaroslav. The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine, vol. 4: Reformation of Church and Dogma 1300–1700. Chicago: University of Chicago Press, 1984.
  • Robinson, Michael F. W. Anselm and the Doctrine of Justification. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.
  • Concílio de Trento, Sessão VI: Decreto sobre a Justificação, Denzinger 1543 – 1554.
  • Concílio de Trento, Sessão XXV: Decreto sobre o Purgatório, Denzinger 1820 – 1836.

 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

UMA CRÍTICA PROTESTANTE À TEORIA DO DESENVOLVIMENTO DA DOUTRINA DE JOHN HENRY NEWMAN

Olá caros leitores. Após longo hiato, resolvi voltar ao trabalho apologético. Darei seguimento a publicação de novos artigos neste blog, e também criaremos um canal no youtube e página no instagram para melhor divulgação dos artigos aqui publicados (os links serão divulgados nos próximos dias). 

Abaixo, segue uma crítica resumida a teoria do desenvolvimento da doutrina de Newman, que me parece estar sendo cada vez mais abraçada pela apologética católica a fim de justificar as inovações da Igreja de Roma. Já temos alguns artigos (aqui e aqui) sobre o tema que demonstram como a própria adoção dessa teoria é uma ruptura na tradição católica, uma vez que Roma historicamente defendeu suas doutrinas como uma tradição contínua e explícita que remontaria até o período apostólico. Nos próximos dias também traremos a crítica tomista à teoria de Newman.

A teoria do desenvolvimento da doutrina, formulada por John Henry Newman em sua obra seminal An Essay on the Development of Christian Doctrine (1845), tornou-se um dos pilares da teologia católica moderna. Sua função principal é justificar a legitimidade de doutrinas que não possuem testemunho explícito ou uniforme nos primeiros séculos da Igreja, como a infalibilidade papal (dogmatizada em 1870) e a assunção corporal de Maria (1950). Contudo, sob uma perspectiva protestante, essa teoria sofre de múltiplos vícios: relativiza a suficiência e clareza da Escritura, apresenta critérios subjetivos e repousa, em última instância, sobre uma circularidade epistemológica.

1 A doutrina cristã como depósito fixado

Na tradição protestante, a doutrina cristã consiste em um depósito de fé fixado e completo na Escritura: “a fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos” (JUDAS 1.3). O apóstolo Paulo instrui Timóteo: “Guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós” (2 TIMÓTEO 1.14). Esse “depósito” (parakatathēkē) não é um germe de futuras inovações, mas uma entrega plena e definitiva da verdade revelada.

Como afirmou João Calvino: “O Espírito não é autor de novas revelações, ou de alguma doutrina inovadora, mas sim o fiel intérprete da revelação existente” (CALVINO, 2006, p. 109).

Portanto, a função da Igreja é interpretar e aplicar a Escritura, não criar novas doutrinas. O sola Scriptura assegura que não há necessidade de um “desenvolvimento” para além da Palavra inspirada.

2 A crítica protestante aos sete critérios de Newman

Newman propôs sete “notas” para distinguir entre desenvolvimentos legítimos e corrupções (NEWMAN, 1890). Embora apresentem aparência de rigor metodológico, tais critérios são falhos em termos lógicos e teológicos.

2.1 Preservação do tipo

Newman propõe que um verdadeiro desenvolvimento mantém o “tipo” original da doutrina: “Um desenvolvimento verdadeiro, enquanto se amplia, permanece fiel ao tipo do qual deriva” (NEWMAN, 1890, p. 170).

O conceito de “tipo” é altamente maleável. Como determinar, por exemplo, que a doutrina da infalibilidade papal preserva o “tipo” da liderança apostólica, sendo que Pedro jamais reivindicou infalibilidade pessoal? A definição de “tipo” acaba sendo delimitada pelo próprio magistério eclesiástico, resultando em circularidade hermenêutica.

Como observou Oberman: “a insistência na preservação do tipo serve mais para justificar retroativamente doutrinas do que para avaliá-las criticamente” (OBERMAN, 1986, p. 52).

2.2 Continuidade de princípios

Para Newman, desenvolvimentos legítimos mantêm princípios fundamentais da doutrina original.

Princípios isolados podem ser estendidos de forma indevida. Por exemplo, o princípio da honra a Maria pode ser “desenvolvido” até culminar na Imaculada Conceição ou na Assunção, ainda que tais doutrinas não tenham qualquer fundamento claro na Escritura ou na tradição patrística primitiva.

Como escreveu Whitaker: “Não devemos confundir consequências artificiais com a verdade divina revelada” (WHITAKER, 1849, p. 180).

2.3 Poder de assimilação

Segundo Newman, uma doutrina verdadeira assimila elementos de seu ambiente cultural e intelectual.

Este critério valoriza o sincretismo como evidência de autenticidade. Mas a assimilação cultural pode facilmente degenerar em corrupção. O exemplo clássico é a absorção de práticas pagãs no culto cristão medieval — como a veneração de relíquias e santos — frequentemente justificadas como “assimilação”, mas que representaram uma distorção do cristianismo apostólico.

Calvino alertou para esse risco: “Nada é mais perigoso para a pureza da religião do que adaptar-se aos costumes e opiniões do mundo” (CALVINO, 2006, p. 433).

2.4 Lógica sequencial

Desenvolvimentos legítimos seguem uma cadeia lógica a partir de doutrinas precedentes.

A coerência lógica não é critério suficiente de veracidade teológica. É logicamente possível, a partir da doutrina mariana tradicional, desenvolver a ideia de Maria como “co-redentora”, mas esse conceito não possui qualquer respaldo apostólico ou escriturístico.

O teólogo luterano Francis Pieper adverte: “O erro doutrinário geralmente se infiltra sob a aparência de uma conclusão lógica da verdade, mas sem base bíblica” (PIEPER, 1950, p. 87).

2.5 Antecipação precoce

Newman sugere que traços rudimentares de uma doutrina podem ser encontrados nos primeiros tempos.

Tal busca resulta, invariavelmente, em anacronismo interpretativo. Por exemplo, a veneração a Maria como Theotokos no Concílio de Éfeso (431) é retroativamente apresentada como base para a Assunção, ainda que a própria Igreja não tenha definido tal doutrina até 1950.

Kelly observa que muitos dogmas católicos “não possuem suporte claro nas crenças dominantes da Igreja primitiva” (KELLY, 1978, p. 88).

2.6 Consequente vigor

Segundo Newman, doutrinas verdadeiras mostram vitalidade e eficácia na Igreja.

Esse é um critério pragmático e falacioso: heresias também podem ser vigorosas. A teologia da prosperidade hoje possui notável “vitalidade”, mas não por isso é verdadeira.

Lutero destacou: “A verdade de Deus não depende do número de adeptos, mas da fidelidade à Escritura” (LUTERO, 1883, p. 444).

2.7 Persistência crônica

Doutrinas legítimas persistem ao longo do tempo.

A longevidade de uma crença não a valida automaticamente. A Igreja medieval, por séculos, obscureceu a doutrina bíblica da justificação pela fé, até sua redescoberta na Reforma.

Como disse Owen: “A tradição pode preservar erros com a mesma tenacidade que a verdade” (OWEN, 1965, p. 69).

3 A circularidade epistemológica: magistério e desenvolvimento

O ponto mais grave da teoria de Newman, do ponto de vista protestante, é sua dependência do magistério eclesial como árbitro último sobre o que constitui um desenvolvimento legítimo. O próprio Newman reconhece: “É pela autoridade viva da Igreja que a verdadeira doutrina se distingue das corrupções” (NEWMAN, 1890, p. 112).

Entretanto, essa autoridade magisterial é ela mesma um produto do desenvolvimento doutrinário. A infalibilidade papal, dogmatizada apenas em 1870, é agora considerada condição indispensável para autenticar outros desenvolvimentos.

Logo, tem-se aqui uma circularidade:

  1. O magistério autentica os desenvolvimentos.

  2. O magistério é um desenvolvimento.

Cunningham identificou este problema já no século XIX: “O apelo ao magistério é um círculo vicioso: ele legitima os desenvolvimentos que, por sua vez, legitimam o magistério” (CUNNINGHAM, 1862, p. 85).

Em contraste, o protestantismo apela à Escritura como única autoridade normativa, livre desse círculo.

4 Desenvolvimento ou corrupção?

Para a teologia reformada, o desenvolvimento legítimo ocorre como aprofundamento na compreensão da revelação já dada, não como acréscimo de novos conteúdos normativos. O ensino clássico expressa-se bem na Confissão de Fé de Westminster: “O conselho inteiro de Deus [...] ou é expressamente declarado na Escritura, ou pode ser logicamente deduzido dela” (WESTMINSTER, 1996, cap. 1, art. 6).

A teoria de Newman, ao admitir novos conteúdos dogmáticos sob o nome de “desenvolvimento”, dissolve a suficiência da Escritura e exalta a tradição eclesial a uma posição normativa paralela.

Heinrich Heppe resume a posição reformada: “A Igreja não pode desenvolver doutrina; ela só pode confessar novamente o que foi revelado de uma vez por todas” (HEPPE, 1978, p. 8).

Conclusão

Embora a teoria de Newman busque oferecer um modelo histórico plausível para a evolução das doutrinas católicas, ela falha em fornecer critérios objetivos, incorre em circularidade epistemológica e relativiza a autoridade normativa da Escritura. A tradição protestante, por sua vez, permanece firme no princípio sola Scriptura, reconhecendo a Escritura como a regra infalível de fé e prática, completa em si mesma e não dependente de desenvolvimentos doutrinários subsequentes.


Referências

CALVINO, João. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.

CUNNINGHAM, William. Historical Theology. Edinburgh: T&T Clark, 1862. v. 1.

HEPPE, Heinrich. Reformed Dogmatics. Grand Rapids: Baker, 1978.

KELLY, J. N. D. Early Christian Doctrines. San Francisco: Harper, 1978.

LUTERO, Martinho. Weimarer Ausgabe (WA). v. 7. Weimar: H. Böhlau, 1883.

NEWMAN, John Henry. An Essay on the Development of Christian Doctrine. London: Longmans, Green, 1890.

OBERMAN, Heiko A. The Dawn of the Reformation. Edinburgh: T&T Clark, 1986.

OWEN, John. The Works of John Owen. Edinburgh: Banner of Truth, 1965. v. 1.

PIEPER, Francis. Christian Dogmatics. St. Louis: Concordia, 1950. v. 1.

WESTMINSTER. Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: PES, 1996.

WHITAKER, William. A Disputation on Holy Scripture. Cambridge: Cambridge University Press, 1849.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Agostinho e a Substituição Penal - Parte 5

 


Agora, vamos tratar de um dos maiores teólogos da história do cristianismo – Agostinho de Hipona. Sua importância para o tema em epígrafe é tão grande, que os autores que utilizamos aqui dedicam seções exclusivas a ele. Por isso, em Agostinho, nosso texto será mais extenso. Preliminarmente, é preciso dizer que Agostinho pareceu em alguns momentos defender a teoria física e uma versão mais sofisticada da teoria do resgate pago a Satanás. Kelly advoga que ele não acredita que Satanás tivesse algum direito legítimo sobre a raça humana, mas que ao pecarmos caímos debaixo de domínio. O erudito patrístico disse:

Há estudiosos que consideraram que o eixo central da soteriologia de Agostinho seja essa libertação do homem das mãos do diabo. Mas não é possível manter essa tese. Agostinho é claro ao apresentar nossa libertação como consequência de nossa reconciliação e como algo que a pressupõe; o diabo é vencido justamente porque Deus recebeu compensação e outorgou perdão [Cidade de Deus 10:22]. Isso nos conduz ao que de fato é seu pensamento central, a saber, que a essência da redenção se encontra no sacrifício expiatório que Cristo ofereceu por nós em Sua paixão. Pelo que parece, esse é o ato principal que Ele desempenha como mediador: "Aquele que não conheceu pecado algum, Cristo, Deus O fez pecado, isto é, um sacrifício pelos pecados, em nosso favor, para que fôssemos reconciliados" [Eirichidon 41].

De acordo com Agostinho, todos os sacrifícios do Antigo Testamento prenunciavam esse sacrifício [Sobre os Salmos 39:12], e ele enfatiza que Cristo, sendo ao mesmo tempo sacerdote e vítima entregou-Se inteiramente nesse sacrifício por Sua própria livre escolha [Sermão 152:9 ]. Em seus efeitos, esse ato é expiatório e propiciatório: "Mediante Sua morte, o mais verdadeiro sacrifício oferecido em nosso favor, Ele expurgou, eliminou e destruiu (...) qualquer culpa que tínhamos" [Sobre a Trindade 4:17]. Desse modo, aplacou-se a ira de Deus, e fomos reconciliados com Ele: "Ele ofereceu este holocausto a Deus; estendeu suas mãos na cruz (...) e nossas maldades foram propiciadas (...) Tendo nossos pecados e maldades propiciados por meio desse sacrifício vespertino, nós passamos para o Senhor, e o véu foi removido" [Sobre os Salmos 64:6].

Como seria de esperar, o fundamento lógico disso é que Cristo nos substitui e, sendo Ele próprio inocente, cumpre o castigo que nos é devido. "Embora sem culpa", escreve Agostinho, "Cristo tomou sobre Si nosso castigo, destruindo nossa culpa e dando fim a nosso castigo" [Contra Fausto 14:4]. E também: "Deveis confessar que, sem nosso pecado, Ele tomou sobre Si o castigo que era devido a nosso pecado" [Contra Fausto 14:7]; e: "Ele fez de nossas transgressões as Suas próprias transgressões, de modo a tornar nossa Sua retidão" [Sobre os Salmos 21:3]. Foi justamente sua inocência que deu à Sua morte um valor expiatório, pois "nós fomos levados à morte pelo pecado, e Ele, pela retidão; e, desse modo, uma vez que a morte foi nosso castigo pelo pecado, sua morte tornou-se um sacrifício pelo pecado" [Sobre a Trindade 4:15]. (Kelly, p. 299-300)

Este sumário fartamente documentado é nosso ponto de partida. Acredito que já poderíamos responder se Agostinho defendeu ou não os aspectos substitutivo e penal da expiação com base apenas nisto, mas como este artigo pretende ser uma fonte de consulta e não apenas uma leitura rápida, vamos entrar mais a fundo na documentação fornecida por Kelly e apresentar mais material que corrobora as mesmas ideias. Antes, é preciso dizer que Agostinho não acreditava que a encarnação era absolutamente necessária para salvação da humanidade:

Há alguns que nos perguntam: Faltou a Deus outro modo de libertar o homem da miserável condição de sua mortalidade? Somente pôde realizá-la fazendo com que o seu Filho Unigênito, coeterno com ele, se tornasse homem, revestindo-se de carne e alma humanas e, como mortal, sofresse a morte? Seria pouco refutá-los dizendo que esse modo pelo qual Deus dignou-se libertar-nos por meio do Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, é bom e conveniente à dignidade divina. E seria ainda pouco responder-lhes que não faltaram outros modos possíveis a Deus a cujo poder estão submetidas todas as coisas. No entanto, devemos demonstrar-lhe que não havia e nem convinha que houvesse outro processo mais adequado para curar nossa miséria. (Trindade, Livro 13, Cap. 10)

Aqui é preciso distinguir entre uma necessidade relativa e absoluta. Deus poderia ter usado outros meios, mas no plano da salvação, ele escolheu a encarnação e morte de Cristo porque era o mais apropriado, segundo seu julgamento. Tendo Deus escolhido este meio, a morte de Cristo se torna necessária para nossa redenção. Agostinho ataca aqueles que ensinam que a cruz é apenas um exemplo, os chamando de homens naturais, ou seja, sem a sabedoria de Deus:

O homem natural - isto é, o homem cuja sabedoria é meramente humana, e é chamado de natural (...) pensa que tudo o que é efetuado por aquela cruz é nos fornecer um exemplo para imitação para contender até a morte pela verdade. Pois se os homens deste tipo, que não desejam ser outra coisa senão homens, sabiam como é que Cristo crucificado é feito por Deus para nós sabedoria e justiça e santificação e redenção. (Tratados sobre o Evangelho de João, 98:3)

O comentário de Rivière sobre esta citação é útil aqui:

Ele mesmo está longe de estar entre os de "mente carnal". Ele repete o que São Paulo diz que "o Cristo crucificado foi feito por Deus sabedoria, justiça, justificação e redenção". Nas muitas passagens em que ele se refere a essa ideia, encontramos, por assim dizer, uma dupla corrente. Como seus predecessores, ele atribui à morte de Cristo um valor salutar e um caráter penal. (Rivière, p. 290)

Conforme já enunciado por Kelly, Agostinho acreditava que os sacrifícios do A.T prefiguravam o sacrifício de Cristo. Vejamos a citação que não fora trazida por Kelly:

Como você sabe, os judeus do Antigo ofereciam sacrifícios ordenados por Arão, usando animais como vítimas. Este era um sinal profético misterioso. O sacrifício do corpo e sangue do Senhor não havia ainda sido oferecido. Os fiéis sabem sobre isso, assim como todos que leram os Evangelhos. (Sobre os Salmos 33:5)

Agostinho evidentemente acreditava que estávamos sob a ira de Deus, sendo seus inimigos. A morte de Cristo era um sacrifício propiciatório que aplacava a ira de Deus, nos trazendo perdão, reconciliação e amizade com o Pai:

Porque há alguma esperança para nós? Porque contigo há propiciação. O que é esta propiciação? Certamente um sacrifício propiciatório. E que sacrifício seria se não aquele que foi oferecido em nosso favor? Sangue inocente foi espalhando para apagar os pecados de todos os culpados. Um imenso preço foi pago para resgatar todos os cativos do poder do inimigo que os colocou na prisão. É por isso que o salmo pode dizer “Contigo há propiciação”, pois se nenhuma propiciação fosse possível, e você estivesse disposto apenas a ser nosso juiz e não fosse misericordioso, e levasse em conta nossas iniquidades, quem poderia permanecer de pé diante de ti? Quem seria capaz de estar de cabeça erguida em teu tribunal? No entanto, há uma esperança para nós – contigo há propiciação. (Sobre os Salmos 129:3)

Agostinho define o que entende pelo termo “propiciação”:

Ele não dará a Deus a sua propiciação e o preço da redenção da sua alma" (ver. 8). Ele confia em sua virtude, e na abundância de suas riquezas glorifica aquele que "não dará a Deus sua propiciação": isto é, satisfação pela qual ele pode prevalecer diante Deus por seus pecados (...) (Sobre os Salmos 49:9)

Ou seja, propiciar a Deus envolve satisfazê-lo de forma a poder estar de pé diante de seu tribunal. Agostinho também menciona a ira de Deus:

Se a justiça vem da natureza, então Cristo morreu em vão. Se, entretanto, Cristo não morreu em vão, então a natureza humana não pode de forma alguma ser justificada e redimida da mais justa ira de Deus – em uma palavra, da puniçãoexceto pela fé e o sacramento do sangue de Cristo. (Da Natureza e da Graça, Livro 1, cap. 2)

A ideia de que Cristo suportou a ira de Deus na cruz é presente em outras obras de Agostinho:

Que significa então: “Sobre mim pesou a tua indignação” senão o que pensaram aqueles que não conheceram o Senhor da glória? Sobre eles, de fato, assim aconteceu. A ira de Deus não só se levantou, mas também se confirmou, sobre aquele que eles puderam levar à morte, não, porém, uma morte qualquer, mas aquela que é considerada a mais execrável, isto é, a morte de cruz. Por isto diz o Apóstolo: “Cristo nos remiu da maldição da Lei tornando-se maldição por nós, porque está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro” (Gl 3,13; Dt 21,23). Por esta razão, querendo recomendar sua obediência até a extrema humildade, disse: “Humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte”, e como se fosse pouco, acrescentou: “e morte de cruz” (Fl 2,8). Por causa disso, a meu ver, também neste salmo vem em seguida o versículo: “E todos os teus vagalhões”; ou conforme outros traduziram: “todas as tuas ondas”; ou, segundo outros: “Todas as tuas vagas arremeteram contra mim”. Encontra-se em outro salmo: “Todas as tuas ondas e vagas sobre mim passaram” (Sl 41,8). Ou conforme outros traduziram melhor: “atravessaram sobre mim”. Pois, encontra-se no grego: dielton e não: eiselton. Onde se encontram ambos os termos: vagalhões e ondas, não puderam substituir vagalhões por ondas. Explicamos vaga-lhões como sendo ameaças, e ondas as próprias paixões. Ambas provêm do juízo de Deus. Mas ali foi dito: “Todas sobre mim passaram” e aqui: “Todos arremeteram contra mim”. No primeiro, embora certas coisas aconteceram, no entanto todos os males a que alude, “passaram sobre mim”, diz o salmo; aqui, porém diz: “arremeteram contra mim”. Passam, não atingindo como os vagalhões, ou tocando como as ondas. Após: “todos os vagalhões” não disse: passaram sobre mim, mas “arremeteram contra mim”. Quer dizer que todas as ameaças se realizaram; ameaçavam, porém, enquanto estava iminente na profecia do futuro tudo o que foi predito acerca da sua paixão. (Sobre os Salmos 87)

Existe uma ira justa de Deus sobre o homem, que levaria a punição dos pecadores. A única forma de homem não sofrer esta justa punição seria pela fé o sacramento do sangue de Cristo, que nada mais é do que sua morte. Ainda sobre a ira:

Diz o Apóstolo: somos justificados por seu sangue: certamente justificados no sentido de libertados de todos os pecados. Ora libertados de todos os nossos pecados porque por nós morreu o Filho de Deus que não tinha pecado algum. Portanto, seremos por ele salvos da ira. Sim, salvos da ira de Deus, o qual é justo. Ora, a ira de Deus não é como a dos homens, perturbação da alma. É a ira daquele de quem fala a santa Escritura, em outra passagem: Tu, Senhor das virtudes, tu julgas com calma (Sb 12,18). Pois se a justa vingança divina recebeu esse nome, o que se há de entender por reconciliação de Deus senão o término dessa ira? Éramos inimigos de Deus, só no sentido de que os nossos pecados são inimigos da justiça. E uma vez perdoados os pecados, terminam as inimizades, e aqueles a quem o próprio Justo justifica são reconciliados com ele. (Trindade 13:21)

Então, a reconciliação depende de aplacar a ira de Deus. Agostinho parecia estar ciente da tensão entre a ira e o amor de Deus. Ele viu na oferta do Filho como sacrifício propiciatório a solução para esta tensão:

O que significa: justificados pelo sangue de Cristo? Que força tem seu sangue, pergunto eu, para nele serem justificados todos os crentes? E o que dizer de: reconciliados pela morte de seu Filho? Será que Deus Pai, estando irritado contra nós, ao ver a morte de seu Filho por nós, deixou-se aplacar? Acaso o Filho de Deus já se havia tão bem aplacado a nosso respeito a ponto de se dignar morrer por nós, ao passo que o Pai ainda estava irritado, de modo que, se o Filho não morresse por nós, ele não se teria apaziguado? E o que significa o que o mesmo Doutor das Gentes diz em outro lugar: Depois disto, que nos resta a dizer? Se Deus está conosco, quem estará contra nós? Quem não poupou o seu próprio Filho e o entregou por nós, como não nos haverá de agraciar em tudo junto com ele? (Romanos 8,31.32). Se o Pai já não se tivesse aplacado, não poupando seu próprio Filho, entregá-lo-ia por nós? Não parece haver contradição entre esta afirmação e a anterior? Na primeira, o Filho morre por nós e nos reconcilia com o Pai pela sua morte; na segunda, porém, é como se o Pai nos tivesse amado antes, não poupando seu Filho e o entregando à morte por nós. (Trindade, Livro 13:14)

A morte de Cristo foi também um sacrifício expiatório:

Pois nós, de fato, morremos por causa do pecado e Ele por causa da justiça. Portanto, como nossa morte é a punição pelo pecado, então sua morte foi um sacrifício pelo pecado. (Trindade, Livro 4, Cap. 12)

Tendo estabelecido a natureza sacrifical e propiciatória da morte de Cristo, passemos ao aspecto penal. Rivière disse:

Veremos isso examinando com a ajuda de seus outros escritos o tipo de substituição penal que ele atribui à morte do nosso Salvador. Sua doutrina se baseia em dois princípios fundamentais, que a morte é a pena do pecado e que Cristo era inocente não merecia esta pena. (Rivière, p. 296).

O sofrimento de Cristo era a penalidade pelos nossos pecados:

A fé católica conheceu o único mediador entre Deus e o homem, o homem Cristo Jesus, que condescendeu em sofrer a morte - isto é, a pena do pecado por nós, mesmo sem ter pecado. Assim como somente Ele se tornou o Filho do homem, para que por meio dele pudéssemos nos tornar filhos de Deus, somente Ele, em nosso nome, assumiu o castigo sem merecimento, para que por ele obtivéssemos graça sem bons merecimentos. Porque, quanto a nós, nada de bom era merecido e a Ele nada de ruim era merecido. Portanto, recomendando seu amor àqueles a quem estava prestes a dar uma vida imerecida, Ele estava disposto a sofrer por eles uma morte imerecida. (Contras as Duas Cartas de Pelágio 4:6)

Ainda neste aspecto penal, é apropriado trazer as citações expandidas da obra Contra Fausto, ainda que já aludidas por Kelly:

Se lemos: "Maldito por Deus é todo aquele que está pendurado no madeiro", o acréscimo das palavras "de Deus" não cria nenhuma dificuldade. Pois, se Deus não tivesse odiado o pecado e nossa morte, Ele não teria enviado Seu Filho para suporta-los e aboli-los. E não há nada de estranho em Deus amaldiçoar o que Ele odeia, pois Sua prontidão em nos dar a imortalidade que obteremos na vinda de Cristo é proporcional à compaixão com que Ele odiou nossa morte quando ela foi pendurada na cruz na morte de Cristo. E se Moisés amaldiçoa todo aquele que está pendurado em uma árvore, certamente não é porque ele não previu que os homens justos seriam crucificados, mas sim porque Ele previu que os hereges negariam que a morte do Senhor fosse real, e tentariam refutar a aplicação desta maldição a Cristo, a fim de que eles possam refutar a realidade de Sua morte.

(...) Maldito todo aquele que é pendurado no madeiro; não este ou aquele, mas absolutamente todos. O que! O filho de Deus? Sim, com certeza. É exatamente a isso que você se opõe e da qual está tão ansioso para escapar. Você não vai permitir que Ele foi amaldiçoado por nós, porque você não vai permitir que Ele morreu por nós. A isenção da maldição de Adão implica a isenção de sua morte. Mas, como Cristo suportou a morte como homem e pelo homem; assim também, Filho de Deus como Ele era, sempre vivendo em Sua própria justiça, mas morrendo por nossas ofensas, Ele se submeteu como homem, e pelo homem, para suportar a maldição que acompanha a morte. E como Ele morreu na carne que Ele recebeu ao suportar nossa punição, assim também, enquanto sempre abençoado em Sua própria justiça, Ele foi amaldiçoado por nossas ofensas, na morte que Ele sofreu ao suportar nossa punição.

(...) O crente na verdadeira doutrina do evangelho compreenderá que Cristo não é reprovado por Moisés quando fala Dele como amaldiçoado, não em Sua majestade divina, mas pendurado na árvore como nosso substituto, suportando nosso castigo (...) Agora, o castigo do pecado não pode ser abençoado, ou então seria algo a ser desejado. A maldição é pronunciada pela justiça divina, e será bom para nós se formos redimidos dela. Confesse então que Cristo morreu, e você pode confessar que Ele carregou a maldição por nós (...) Então ele exclama: Amaldiçoado; significando que Ele realmente morreu. Ele sabia que a morte do homem pecador, que Cristo, embora sem pecado, suportou, veio daquela maldição: “Se você tocar nela, certamente morrerá”.  (Contra Fausto 14:6-7 https://www.newadvent.org/fathers/140614.htm)

Agostinho está respondendo Fausto, um maniqueu. Eles negavam que Jesus morreu de fato e umas das razões para esta negação é que os que morriam na cruz eram amaldiçoados. Como poderia Deus amaldiçoar seu próprio filho? Agostinho então defende a realidade da morte e da maldição. Ele menciona que a maldição é “pronunciada pela justiça divina”. É comum que os opositores da SP neguem esta afirmação. Cristo estava sendo amaldiçoado por Deus quando foi crucificado porque, naquele momento, ele carregava os pecados da humanidade. O bispo de Hipona também esposa o raciocínio de que a morte era uma punição, e ao morrer, Cristo estava sendo punido/castigado em nosso lugar. Em cima dessa citação, Rivière comenta e traz mais documentação a respeito do aspecto penal:

Em sua exposição da Epístola aos Gálatas, Agostinho menciona e refuta uma curiosa interpretação de alguns cristãos temerosos, que, para salvar Cristo da maldição legal, não tiveram escrúpulos, apesar do significado evidente do texto, em aplicar a maldição à Judas. A visão do próprio Santo Agostinho é que a maldição significa que Cristo suportou a pena de nossos pecados:

“Aqueles que pensam assim estão muito longe da verdade. Eles não percebem que se opõem ao que diz o Apóstolo: Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós, pois a Escritura diz: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro. Ele foi amaldiçoado por nós não é outro senão quem pendurou a estaca, isto é, Cristo que nos libertou da maldição da lei. Nem deve ser considerado uma afronta ao Senhor chamar de amaldiçoado um homem que está pendurado numa árvore, porque Ele foi enforcado na parte mortal de sua pessoa. Agora, os crentes sabem de onde vem a condição mortal: vem, sem dúvida, do castigo e da maldição que se originou no pecado do primeiro homem. Essa maldição foi assumida pelo Senhor e em seu corpo Ele carregou os nossos pecados na cruz [Comentáriosem Gálatas 3]”

Ele expressa esta opinião de forma mais breve em outros lugares: “Pois ele mesmo não teve nenhum pecado, mas levou nossos pecados” [Tratado contra os Judeus 6]. Em outras palavras, Cristo substituiu a si mesmo por nós: “Ele fez das nossas transgressões as suas transgressões e fez de sua justiça a nossa justiça” [Sobre os Salmos 21]. Por último, ele declara que a morte de Cristo destruiu ambos - a culpa e sua penalidade:

“A morte é o efeito da maldição; e todo pecado é amaldiçoado, quer signifique a ação que merece punição, ou a punição que se segue. Cristo, embora sem culpa, tomou nossa punição, para que pudesse anular nossa culpa e abolir nossa punição” [Contra Fausto 14:4 ]

Assim, descobrimos que Santo Agostinho atribui a morte do nosso Salvador um valor salutar e também um valor penal. Se olharmos de perto, descobrimos também que o primeiro valor é tornado dependente deste último. Embora St. Agostinho não ensine isso formalmente, no entanto, que esta era sua crença é evidente de suas sucessivas referências ao assunto. Se Cristo por sua morte limpa nossos pecados e nos reconcilia com Deus, isso é porque Sua morte imerecida é o pagamento da nossa dívida. Aqui temos a ideia de satisfação vicária. (Rivière, p. 299-297)

Objeções à Substituição Penal em Agostinho

Tendo estabelecido nosso caso em favor da SP em Agostinho, vamos interagir com um artigo que afirma o oposto. Ao pesquisar na internet em português algo a respeito desse tema, não encontrei quase nada com exceção desse artigo (aqui). Ele começa dizendo:

Não é uma informação revolucionária para qualquer estudante de Patrologia que a noção de que a morte de Cristo foi (1) um pagamento ao Pai ou (2) uma punição pelos nossos pecados não é muito patente nos Pais da Igreja.

À luz do que abordamos nesta série, creio que esta afirmação não se sustenta. Vários são os Pais da Igreja que afirmaram que Cristo foi punido pelos nossos pecados. Já documentamos fartamente esta ideia e J.N.D Kelly, um reconhecido especialista em patrologia, afirma que a teoria realista, que comportava a ideia de que Cristo foi punido em nosso lugar, foi a teoria dominante entre os Pais da Igreja do séc. IV. Esta mesma ideia foi defendida com maior intensidade por Jean Rivière – uma autoridade quando se trata de expiação nos Pais da Igreja. O artigo também diz:

O que Agostinho não concorda (ao lado de todos os pais da Igreja) é que Jesus tenha sofrido qualquer penalidade de pecado: “Por isso, Cristo, nosso Mediador, mostrou que NÃO chegou à morte do corpo devido a qualquer pena do pecado, pois não o abandonou contra a vontade, mas porque quis, quando quis e como quis” (De Trinitate, Livro IV, Cap. 13, 16). Agostinho é claro: Jesus não chegou a morte do corpo devido a qualquer pena de pecado (...) O ponto de Agostinho e dos pais contra os defensores da Substituição Penal é que o modo pelo qual Cristo nos livra da punição não é através de uma substituição onde Cristo é punido em nosso lugar.

Preliminarmente, temos aqui um non-sequitur. Dizer que Cristo não chegou à morte do corpo por causa de uma pena pelo pecado não implica que ele não sofreu qualquer penalidade pelo pecado. O bispo de Hipona afirmou em vários textos que Cristo foi punido em nosso lugar em virtude do nosso pecado. Vou recuperar algumas citações já expostas:

Cristo tomou sobre Si nosso castigodestruindo nossa culpa e dando fim a nosso castigo" [Contra Fausto 14:4].

"Deveis confessar que, sem nosso pecado, Ele tomou sobre Si o castigo que era devido a nosso pecado" [Contra Fausto 14:7]

Eu trouxe várias outras citações, basta checar mais acima. Contudo, Agostinho afirmou explicitamente que a morte de Cristo foi uma punição pelo pecado:

A fé católica conheceu o único mediador entre Deus e o homem, o homem Cristo Jesus, que condescendeu em sofrer a morte - isto é, a pena do pecado por nós, mesmo sem ter pecado. Assim como somente Ele se tornou o Filho do homem, para que por meio dele pudéssemos nos tornar filhos de Deus, somente Ele, em nosso nome, assumiu o castigo sem merecimento, para que por ele obtivéssemos graça sem bons merecimentos. Porque, quanto a nós, nada de bom era merecido e a Ele nada de ruim era merecido. Portanto, recomendando seu amor àqueles a quem estava prestes a dar uma vida imerecida, Ele estava disposto a sofrer por eles uma morte imerecida(Contras as Duas Cartas de Pelágio 4:6)

Isto posto, teria Agostinho cometido uma contradição? Acredito que é simples harmonizar os textos. O argumento do bispo de Hipona na obra sobre a Trindade é que Cristo escolheu morrer. Ele o fez voluntariamente. Isto só era possível porque ele não tinha pecado, nem original nem pessoal. Como a morte é pena do pecado, ele não estava sujeito a ela. O que vimos em várias obras de Agostinho é que Cristo toma sobre si os nossos pecados e sofre o castigo devido às nossas falhas. Assim, quando ele afirma “Jesus não chegou a morte do corpo devido a qualquer pena de pecado”, apenas quer dizer que Jesus não morreu sofrendo punição por seus próprios pecados. Assim, ele escolhe morrer, porque ele voluntariamente carrega os pecados alheios. Isto fica mais evidente em outra obra:

Por isso, o apóstolo, depois de dizer: Nós vos rogamos em lugar de Cristo, reconciliai-vos com Deus, imediatamente acrescenta: porque Ele, que não conhecia pecado se fez pecado por nós, para que possamos ser feitos justiça de Deus Nele. Ele não diz, como algumas cópias incorretas leem, Aquele que não conheceu pecado, pecou por nós, como se o próprio Cristo tivesse pecado por nós; mas ele diz: Aquele que não conheceu pecado, isto é, Cristo. Deus, com quem devemos ser reconciliados, o fez pecado por nós, isto é, o fez um sacrifício pelos nossos pecados, pelo qual poderíamos ser reconciliados com Deus. Ele, então, sendo feito pecado, assim como nós somos feitos justiça (nossa justiça não sendo nossa, mas de Deus, não em nós mesmos, mas Nele). Ele sendo feito pecado, não Seu, mas nosso, não em Si mesmo, mas em nós, mostrou, pela semelhança da carne pecaminosa na qual Ele foi crucificado, que, embora o pecado não estivesse Nele, ainda que em certo sentido, Ele morreu pelo pecado, morrendo na carne que era a semelhança do pecado. Embora Ele mesmo nunca tivesse vivido a velha vida de pecado, Ele tipificou, por Sua ressurreição, nossa nova vida, surgindo da velha morte no pecado (Enchiridion 41)

O que Agostinho faz aqui é fazer a distinção que fizemos. Cristo nunca pecou, mas foi feito pecado, de forma que ele se transformou num sacrifício pelos pecados. Por isso, após todas essas qualificações, Agostinho pode afirmar que: “em certo sentido, Ele morreu pelo pecado, morrendo na carne que era a semelhança do pecado”. Ou seja, há um sentido em que ele não morreu pelo pecado, qual seja, pelos seus próprios pecados. Este é o sentido expresso na obra sobre a trindade trazida por nosso opositor. No entanto, há um sentido em que ele morreu pelo pecado, qual seja, quando sofre a punição pelos pecados da humanidade que ele carrega. Nesta mesma obra, Agostinho é mais claro ao expressar o sentido em que Jesus não morreu pelo pecado:

(...) Pois o batismo não encontrou nele nada para lavar, como a morte nada encontrou nele para punir; de modo que foi na mais estrita justiça, e não pela mera violência do poder, que o diabo foi esmagado e vencido: pois, como ele havia injustamente matado Cristo, embora não houvesse pecado Nele para merecer a morte, era mais justo que, por meio de Cristo, ele perdesse o controle daqueles que, pelo pecado, estavam justamente sujeitos à escravidão em que os mantinha. (Enchiridion 48-49)

Seria abusivo usar esse texto contra a SP, pois o contexto é claro ao elucidar que a morte de Cristo era injusta porque ele próprio não tinha pecados. A outra objeção trazida se arvora na seguinte citação:

Nessa redenção, o sangue de Cristo foi dado por nós como preço do resgate, preço que não enriqueceu mais o demônio quando o recebeu, mas ao contrário, com ele ficou atado. Isso, a fim de que nós fôssemos libertados de seus laços, e desse modo, nenhum daqueles a quem Cristo, isento de toda culpa resgatou com seu sangue indevidamente derramado, fosse arrastado pelas redes dos pecados para a ruína de segunda e eterna morte (De Trinitate, Livro XIII, Cap. 15, 19).

É o argumento de contrapor a teoria do resgate à SP. Vamos primeiro analisar como Agostinho entendeu a teoria do resgate. Deixemos que Kelly explique:

Agostinho tende a dramatizar a transação mediante o uso de uma linguagem vívida que dá uma falsa impressão de seu verdadeiro pensamento. Ele fala, por exemplo, do sangue de Cristo como o preço que foi pago por nós e aceito pelo diabo só para, então, ver-se acorrentado [Trindade 13:19], e também de Seu corpo como isca para pegar Satanás, assim como o rato numa ratoeira. Contudo, seu ensino autêntico estava mais próximo aos de Crisóstomo, Hilário e Ambrosiastro, podendo ser sintetizado da seguinte maneira [Trindade 13:16-19]: (a) o diabo não possuía, no sentido estrito, nenhum direito sobre a humanidade; o que aconteceu foi que, quando os homens pecaram, eles passaram inevitavelmente para o seu domínio, e isso foi uma permissão, e não uma determinação de Deus; (b) por isso, não se devia nenhum resgate a Satanás, mas, pelo contrário, quando a remissão dos pecados foi alcançada pelo sacrifício de Cristo, o favor de Deus foi restaurado e a raça humana pôde muito bem ser libertada; (c) Deus, entretanto, numa ação mais coerente com Sua justiça, preferiu que o Diabo não fosse privado de seu domínio pela força, mas como castigo por abusar de sua posição; e (d) daí, a paixão de Cristo, cujo objetivo fundamental era obviamente muito diferentecolocou o Filho de Deus nas mãos de Satanás, e, quando este Último ultrapassou os limites ao se apoderar da vítima divina com a arrogância e a cobiça que lhe eram características, viu-se forçado a, com justiça, libertar a humanidade. Há estudiosos que consideraram que o eixo central da soteriologia de Agostinho seja essa libertação do homem das mãos do diabo. Mas não é possível manter essa tese. Agostinho é claro ao apresentar nossa libertação como consequência de nossa reconciliação e como algo que a pressupõe; o diabo é vencido justamente porque Deus recebeu compensação e outorgou perdão [Cidade de Deus 10:22]. Isso nos conduz ao que de fato é seu pensamento central, a saber, que a essência da redenção se encontra no sacrifício expiatório que Cristo ofereceu por nós em Sua paixão. (Kelly, p. 298-299)

Em outras palavras, o que Kelly está dizendo é que não houve de fato nenhuma transação com Satanás. A libertação do poder do inimigo é uma consequência automática do perdão e reconciliação que a morte de Cristo obtém junto ao Pai. A partir do momento em que a ira Deus é aplacada e a inimizade abolida, qualquer poder de Satanás sobre o pecador é cancelado. O problema central não é um suposto direito de Satanás sobre a humanidade, mas a reconciliação do homem com Deus. Este raciocínio é evidente na citação aludida por Kelly:

É pela verdadeira piedade que os homens de Deus expulsam o poder hostil do ar que se opõe à piedade. É exorcizando-o, não propiciando-o. Eles vencem todas as tentações do adversário orando, não a ele, mas ao seu próprio Deus contra ele. O diabo não pode conquistar ou subjugar ninguém, exceto aqueles que estão em aliança com o pecado. Portanto, ele é conquistado em nome daquele que assumiu a humanidade, e que sem pecado, sendo Ele mesmo Sacerdote e Sacrifício, pode trazer a remissão dos pecados. Isto é, pode trazê-la através do Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, por quem somos reconciliados com Deus, a realização da purificação do pecado. Pois os homens são separados de Deus apenas pelos pecados, dos quais somos limpos nesta vida, não por nossa própria virtude, mas pela compaixão divina; por meio de Sua indulgência, não por nosso próprio poder (...) Esta é a razão pela qual foi concedida a nós, por meio do Mediador, esta graça, que nós, que somos poluídos pela carne pecaminosa, devemos ser limpos pela semelhança da carne pecaminosa(Cidade de Deus 10:22)

O domínio que o diabo exerce sobre a humanidade é uma consequência automática do pecado. Assim, resolvendo-se o problema do pecado, automaticamente, a libertação é atingida independendo de qualquer transação específica com Satanás. A grande questão é como esse perdão foi obtido? Como já vimos, isto ocorreu através do sacrifício propiciatório de Cristo:

Se a justiça vem da natureza, então Cristo morreu em vão. Se, entretanto, Cristo não morreu em vão, então a natureza humana não pode de forma alguma ser justificada e redimida da mais justa ira de Deus – em uma palavra, da punição – exceto pela fé e o sacramento do sangue de Cristo. (Da Natureza e da Graça, Livro 1, cap. 2)

É neste sentido que os defensores da SP utilizam a linguagem de pagamento, ou seja, que Cristo, ao ser punido pelos nossos pecados, satisfaz as demandas retributivas da justiça divina. Portanto, se trata de um pagamento de natureza diferente daquele defendido na teoria do resgate. Deus não nós mantém refém ou presos como Satanás fizera. Deus é o juiz supremo e sua justiça precisa ser satisfeita. Sua justiça é satisfeita e seu favor restaurado porque, conforme Agostinho, o castigo devido a nós foi cumprido por Ele. Contudo, ainda que Agostinho compreendesse que o sangue de Cristo foi transacionado Satanás, isto não nos permitiria afirmar que ele estava negando o aspecto penal da morte de Cristo. Os Pais da Igreja em geral atribuíram múltiplos propósitos e conquistas a morte de Cristo. Não há, a princípio, nenhuma contradição lógica em afirmar que o sangue de Cristo foi um pagamento do Diabo e que seu sangue também obteve reconciliação, perdão e satisfação da justiça divina. De fato, alguns autores antigos detiveram ambas ideias e não pareciam estar cientes da existência de uma dicotomia neste caso.

                                                    A opinião de teólogos protestantes

Um tanto fora do assunto desse artigo, mas ainda digno de comentários, o autor do artigo cita três teólogos protestantes para substanciar esta afirmação:

Vários dos próprios defensores da Substituição Penal admitem que essas duas noções (ambas de carácter fundacional para a sua Teologia) são desenvolvimentos tardios, frutos de uma época próxima ao findar da Idade Média. Entre os nomes que reconhecem isto podemos enumerar J.I. Packer, John Stott, Charles Hodge e John MacArthur, teólogos demasiadamente influentes no meio reformado da atualidade.

A noção de que foi o diabo que tornou a cruz necessária era geral na igreja primitiva” (STOTT, John. A cruz de Cristo. São Paulo: Editora Vida. 2006, p. 115).

John Stott está se referido à teoria do resgate pago a Satanás. Ela foi, de fato, bastante popular. Concedo que Stott parece acreditar que ao crer nesta teoria, os Pais estariam tacitamente rejeitando a SP. No entanto, comete-se um erro de análise que documentamos ao longo desta série: estabelecer uma dicotomia que os pais não estabeleciam. Isto fica evidente nessa parte do artigo:

Os Pais na Igreja estabeleciam a necessidade da Cruz de Cristo não numa satisfação pecuniária (Sto Anselmo) tampouco em uma punição vicária (João Calvino) mas sim no fato de que o Demônio e as hostes infernais — os verdadeiros inimigos do homem , que o aprisionam e o subjugam — demandam serem derrotados.

A questão é quem disse que era um OU outro. Como vimos em nosso estudo, num mesmo pai da Igreja, poderia ser encontrado o apoio a três das principais teorias: física, do resgate e realista. Diversos Pais da Igreja defenderam que um resgate foi pago ao diabo e também que Cristo sofreu a punição/castigo em nosso lugar. Esse mesmo argumento dicotômico será usado para contrapor Agostinho à SP, mas, como veremos adiante, seu uso também é indevido. Em todo o caso, Stott não é uma autoridade em patrologia e o tratamento que ele dá aos pais da Igreja em seu livro é bastante resumido e quase acidental.

“Poucos são os que argumentam que os Pais da Igreja tinham uma compreensão bem formada da expiação como uma Substituição Penal” (MACARTHUR, John. In: WILSON, Doug. Eu não sei em quem tenho crido / Douglas Wilson [org]. 1 ed. São Paulo: Cultura Cristã. 2006, p. 89). Obs: MacArthur cita Charles Hodge para embasar sua afirmação.

Dizer que eles não tinham uma compreensão bem formada da expiação não implica em dizer que eles não defenderam que Jesus foi punido substitutivamente. Como também documentamos, os Pais da Igreja em geral pouco se dedicaram ao tema e não produziram nenhum tratado sistemático a respeito. Dessa forma, suas teorias são pouco desenvolvidas e carecem de detalhes. Certamente, há nuances da SP que se desenvolveram com o passar do tempo, mas a ideia fundacional (a punição em nosso lugar) claramente está presente no período patrístico. Vejamos o contexto dessa citação:

Poucos são os que argumentam que os Pais da Igreja tinham uma compreensão bem formada da expiação como uma Substituição Penal, mas Augustus Hodge salientou que a ideia de expiação vicária estava mais ou menos implícita em sua compreensão exatamente como se ela fosse “geralmente deixada em um alto grau como pano de fundo e misturada confusamente com outros elementos da verdade ou superstição” (...) de acordo com Augustus Hodge “com poucas exceções, toda a Igreja, desde o começo, tem afirmado a doutrina da redenção no sentido de uma propiciação literal de Deus por meio da expiação do pecado”. (p. 89-90)

MacArthur não está necessariamente expressando sua própria opinião aqui, mas descrevendo aquela que ao seu parecer é a visão padrão sobre a história da doutrina. Ele, em nenhum momento, usa Hodge para embasar a afirmação inicial. Pelo contrário, ele o utiliza para defender que os Pais defenderam certos aspectos da expiação que fazem parte da SP, como: expiação vicária do pecado e ato propiciatório. Que a intenção era mostrar que os Pais tinham uma visão ainda imatura sobre o tema e não que eles negassem que Jesus foi punido em nosso lugar fica mais evidente:

Philip Schaff, comentando sobre a falta de clareza sobre a expiação nos escritos da Igreja Primitiva, diz: “Os mestres da Igreja Primitiva viviam mais em grata alegria da redenção do que em reflexão lógica sobre ela. Nós percebemos em suas exibições desse abençoado ministério a linguagem de um sentimento entusiástico em vez da linguagem de uma análise aguda e de definições cuidadosas”. Contudo, Schaff acrescenta: “Todos os elementos essenciais da posterior doutrina da redenção podem ser encontrados, de forma expressa ou implícita, antes do fim do 2º século”. (p. 90)

Essa última citação de Schaff, uma autoridade inquestionável em história da Igreja, parece contradizer a ideia de que a SP é totalmente estranha ao período patrístico.

Outra citação trazida:

“Lutero, Calvino, Zwinglio, Melanchthon e seus contemporâneos reformadores foram os pioneiros [na história] em afirmá-la [a doutrina da substituição penal]… O que os reformadores fizeram foi redefinir satisfatio (satisfação), a principal categoria medieval para pensar sobre a cruz… O “Cur Deus Homo” de Anselmo, o qual grandemente determinou o desenvolvimento medieval, afirmou que a satisfação de Cristo por nossos pecados é uma oferta de compensação ou danos pela desonras, mas os reformadores o viram como a punição vicária (poena) para atender às reivindicações sobre nós da santa lei e ira de Deus” (PACKER, J.I. The Logic of Penal Substitution. Tradução minha. Disponível aqui. Acesso em 10/06/2020).

Felizmente, o link do artigo citado foi disponibilizado online (aqui). Vamos olhar a primeira parte da citação em seu contexto expandido:

Toda questão teológica tem por trás uma história de estudo, e a estreita excentricidade em lidar com isso é inevitável, a menos que a história seja levada em consideração. Comentários adversos sobre o conceito de substituição penal frequentemente revelam excentricidades estreitas ou desse tipo. Os dois principais pontos históricos relacionados a essa ideia são, primeiro, que Lutero, Calvino, Zwinglio, Melanchthon e seus contemporâneos reformadores foram os pioneiros em afirmá-la e, segundo, que os argumentos apresentados contra ela em 1578 pelo Pelagiano Unitário, Fausto Socinus , em seu brilhante polêmico De Jesu Christo Servatore (De Jesus Cristo, o Salvador) têm sido centrais em sua discussão desde então.

Não me parece claro que ele – Packer – está dizendo que ele próprio acredita que o conceito de Substituição Penal foi afirmando primeiramente apenas pelos reformadores. Ele parece estar expondo as principais objeções históricas levantadas contra o conceito e não necessariamente sua própria opinião. A segunda parte da citação apenas afirma que os Reformadores tomaram o conceito de Satisfação de Anselmo e substituíram a ideia de uma compensação por uma substituição penal. O campo de análise aqui é o período medieval posterior a Anselmo e não o período patrístico.

Conclusões sobre toda a Série

Esta série sobre a Substituição Penal e os Pais da Igreja acabou ficando maior do que esperávamos, mas à medida que pesquisávamos o assunto, e diante da pobreza de fontes em português sobre o tema, achamos por bem trata-lo com mais profundidade. Creio ter ficado suficientemente claro que os aspectos substitutivo e penal da obra de Cristo foram reconhecidos por vários pais da Igreja. A afirmação de que Cristo suportou a punição a nós devida não era estranha aos Pais da Igreja.