Tendo passado pelos pais gregos, vamos agora analisar os pais latinos do séc. IV adiante. Kelly afirma:
O pensamento ocidental acerca da redenção conformava-se em grande parte ao padrão que pudemos observar no Oriente, com ênfase ainda maior na morte do Senhor como sacrifício (...) é a paixão e a morte de Cristo que mais interessam a esses escritores. (Kelly, p. 293)
Ao comenta a teologia latina no mesmo período, Rivière disse:
Apesar da pobreza de suas formulações e superficialidade de suas ideias, nós vimos que os escritores latinos mais antigos estavam distintamente no lado do realismo (...) contudo, nós podemos facilmente sanar esta ausência dos escritores mais antigos ao nos referirmos aos grandes doutores do século quatro (...) Estes pais latinos cuidadosamente tomaram o padrão de especulações que os pais gregos preferiam, e propositadamente centraram sua atenção na morte expiatória do Salvador. (Rivière, p. 263)
Lembrem-se que a teoria realista, conforme Kelly já definiu, preconizava que a morte de Cristo era um sacrifício substitutivo, no qual Jesus era punido em nosso lugar.
Hilário
de Poitiers (315-368)
Especificamente sobre Hilário, Kelly disse:
Hilário passa facilmente para
a de sacrifício, ressaltando o caráter voluntário daquilo que
Cristo alcançou. "Ele Se ofereceu para a morte dos amaldiçoados, a fim
de abolir a maldição da lei mediante a oferta sacrificial de Si mesmo a
Deus Pai, por Sua livre e espontânea vontade (...) A Deus Pai, que desprezou
os sacrifícios da lei, Ele ofereceu o sacrifício aceitável do corpo que
assumira (...) obtendo a salvação completa da raça humana pela oblação de seu
sacrifício santo e perfeito" [Tratado sobre os Salmos 53:13].
Hilário enfatiza que foi por Seu sangue e por Sua paixão, morte e ressurreição, que Cristo nos redimiu. O efeito de Sua morte foi a destruição da sentença
de morte que nos foi passada, a expiação de nossos pecados e nossa
reconciliação com Deus. Embora sejam comentários eventuais, eles
confirmam a afirmação de que Hilário deve ser considerado um dos pioneiros da
teologia da satisfação. (Kelly,
p. 295)
Rivière
confirma:
Em
particular, ele é bem claro a respeito do
caráter penal da morte de Cristo
(...) “Foi necessário dar, no
lugar do nosso castigo,
uma satisfação voluntária sem que o sofredor fosse diminuído por experimentar esta punição” [Comentário sobre Mateus 32:10] (...) Este simples texto expressa uma das ideias
favoritas de St. Hilário: a
paixão era em si mesma uma penalidade e ela cumpriu o dever de uma penalidade, mas o sofredor divino não sentiu a dor. (Rivière, p. 268-269)
O
texto é bem claro quanto ao aspecto penal da paixão de Cristo. Ele foi punido
em nosso lugar e esta satisfação era necessária. Rivière passa a citar vários
outros textos de Hilário que confirmam esta conclusão. Infelizmente, a obra em
questão traz os textos em latim e até onde pesquisei, não há qualquer tradução para o inglês. Por isso, vou trazer os comentários de Riviére
traduzidos e logo em seguida o texto em latim a partir do qual cita. Se algum
leitor que compreende o idioma estiver disposto a traduzí-los, ficaria
enormemente agradecido:
Não
apenas a
morte era uma penalidade,
mas no caso de Cristo, foi não merecida. Sendo inculpável, Ele não merecia a
morte, e
pagou a penalidade pelos pecados que ele não cometeu:
"Quae non rapuerat tunc repetebatur exsolvere. Cum enim debitor mortis peccatique non esset, tamquam peccati et mortis debitor tenebatur. Poenas scilicet insipientia et delictorum, quas non rapuerat, repetebatur exsolvere". [Homilias sobre os Salmos 68:7-8]
Assim, os pecados que Jesus carregou eram nossos: “Percussus est Dominus peccata mostra suscipiens et pro nobis dolens”. Ele foi castigado por Deus para que possamos receber vida através de sua morte:
Non pepercerat primo illi de terrse limo Adamo (...) ut naturam corporis eius Adam e coelis secundus assumens, parique morte percussus, eam rursus in vitam aeternam iam sine poenae aeternitate revocaret. [Homilias sobre os Salmos 68:23]
St. Hilário também vê a morte de Cristo como um sacrifício que tira nossa maldição e opera nossa salvação:
Cristo nos redimiu da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós, pois está escrito: maldito seja todo aquele que estiver pendurado no madeiro. Assim, Ele se ofereceu à morte do maldito para quebrar a maldição da Lei, oferecendo-se voluntariamente como vítima a Deus Pai, a fim de que por meio de uma vítima voluntária a maldição que acompanhou a vítima comum pudesse ser removida. Agora, a menção desse sacrifício é feita em outra passagem dos Salmos: Sacrifício e oferta não quiseste, mas um corpo preparaste para mim. Isto é, oferecendo a Deus Pai, que recusou os sacrifícios da Lei, a oferta aceitável do corpo que Ele recebeu. Sobre isto fala o santo apóstolo: Por isso El o fez de uma vez por todas quando ofereceu a si mesmo [Hebreus 7:27], garantindo a salvação completa para a raça humana pela oferta desta vítima santa e perfeita. [Homilias sobre os Salmos 53:13]
No texto acima, Hilário fala de redenção e retorna novamente a este ponto. Redenção é o resultado geral do sacrifício de Cristo:
Redemit nos cum se pro peccatis nostris dedit; redemit nos per sanguinem suum, per passionem suam, per mortem suam, per resurrectionem suam. Haec magna vitae nostrae pretia sunt. [Homilia sobre os Salmos 135:15]
“Ele
apagou por meio da morte a sentença de morte, para que por uma nova criação de
nossa raça em Si mesmo Ele pudesse varrer a pena designada pela lei anterior. Ele permitiu que eles o pregassem na cruz para que Ele pudesse pregar a
maldição da cruz e abolir todas as maldições às quais o mundo está condenado. Ele sofreu como homem ao máximo para que pudesse
envergonhar os poderes. Pois a Escritura predisse que Aquele que é Deus deveria
morrer” [Da Trindade 1:13]
Acima de tudo, a morte do nosso salvador era a expiação dos nossos pecados:
Sciens vetera delicta sua et antiquae impietatis crimina Deo propitianda esse per Christum. Ipse enim secundum Apostolum nostra placatio est. [Homilias sobre os Salmos 64:4]
E por último, em consequência disso, somos reconciliados com Deus:
Est Unigenitus Dei Filius (...) redemptio nostra, pax nostra in cuius sanguine reconciliati Deo sumus. Hie est qui venit tollere peccata mundi, qui cruci chirographum legis affigens edictum damnationis veteris delevit (...) Ipse pro peccatis nostris et propitiatio, et redemptio, et deprecatio est iniquitatum nostrarum, quia ipse earum propitiatio sit, non recordans. [Homilias sobre os Salmos 129:9]
(...) Suas ideias não são sistematizadas e as vezes são envoltas num traje místico peculiar, mas apesar de nunca apresentar uma síntese, ele não falha em afirmar novamente os vários elementos do realismo tradicional. (Rivière, p. 269-271)
Kelly também atesta que ideias semelhantes às de Hilário foram expressas por Vitorino:
Deparamo-nos com idéias semelhantes em seu
contemporâneo Vitorino, expressas
em termos de redenção e substituição, em vez de sacrifício. Ele fala que Cristo redime (mercaretur) o homem
mediante Sua paixão e morte [Contra Ario 1:45], destacando que estas só
conseguem operar a remissão de pecados porque a vítima é o Filho de Deus [Contra
Ario 1:35]. Ele Se entregou, afirma Vitorino, à
morte e à cruz em nosso lugar, livrando-no assim de nossos pecados [Homilias em Gálatas 1:2:20]. (Kelly, p. 295)
Ambrósio (?-397)
Kelly
novamente traz o sumário:
Ambrósio
desenvolve uma teoria da morte de Cristo como
sacrifício oferecido para atender às reivindicações da justiça divina. Ele o vê prefigurado na morte de Abel, como também
nas oblações prescritas pela lei judaica. É um sacrifício realizado de uma vez
por todas, e seu efeito é que, pelo sangue de Cristo, nossos pecados são
lavados. Cristo
destruiu a sentença de morte que pesava contra nós, e também a própria morte. Ambrósio explica como isso ocorreu:
"Jesus assumiu a carne de modo a destruir a maldição da carne pecaminosa, e tornou-Se maldição em nosso
lugar para que a maldição desaparecesse devido à bênção (...) Ele também assumiu a morte
sobre Si para que a sentença fosse executada, de maneira que cumprisse o
julgamento de que a carne pecadora deve ser amaldiçoada até a morte. De modo
que nada se fez contrário à sentença divina, visto que tais estipulações foram
cumpridas" [De Fuga Saeculi
44]. (Kelly, p. 295-296)
Esta
citação trazida por Kelly é de especial interesse pois afirma que, ao morrer,
Cristo estava cumprindo uma sentença cominada por Deus, cumprindo as exigências
Divinas. Jesus destrói a sentença a cumprindo em nosso lugar. Isto é resumidamente
o conceito de substituição penal. Kelly prossegue:
O
segundo Adão morreu, ele acrescenta, para que, "uma vez que os decretos
divinos não podem ser quebrados, a
pessoa castigada seja modificada, e não a sentença de castigo" [persona magis quam sententia mutaretur] [Exposição do Evangelho de Lucas 4:7]
(Kelly, p. 296).
Novamente,
é afirmado que Cristo assumiu nosso castigo. Mudou o castigado, mas a sentença
foi cumprida, e não poderia ser diferente pois ela fora decretada por Deus.
Sigamos com Kelly:
Aqui,
a ideia de recapitulação está combinada com
a de substituição; pelo fato de
partilhar da natureza humana, Cristo pode tomar o lugar de homens pecadores e suportar no lugar deles o
castigo que merecem. Ambrósio
indaga? "Qual foi o propósito da encarnação, senão esse, que a carne que
havia pecado fosse redimida por si mesma?" [O Sacramento da Encarnação do Nosso Senhor 4]. Ambrósio entende que o sacrifício de Cristo foi propiciatório, mas reconhece tanto o amor do Filho que Se
entregou quanto o amor do Pai que o entregou. Ele também destaca a singular
adequação de Cristo como nosso redentor, tanto pela ausência de pecado como
pela excelência de Sua pessoa. (Kelly, p. 296)
Convém trazer as citações que Kelly não traz
de forma direta:
Abel também sabia como dividir, quando
ofereceu o sacrifício das primícias de seu rebanho, ensinando que os presentes
da terra, que degeneraram em pecado, não irão agradar a Deus, mas
somente aqueles no qual a graça do divino mistério brilhou. Então ele
profetizou que nós éramos para ser redimidos de nossas falhas através da
paixão do Senhor, a respeito de quem está escrito: “Veja o cordeiro de Deus
que tira o pecado do mundo”. Assim, Ele também fez uma oferta das primícias, o
que deveria significar o primogênito. (O Sacramento da Encarnação do Nosso Senhor 4)
Assim como Abel ofereceu uma
oferta para agradar a Deus, a morte de Cristo também foi uma oferta ao Senhor.
O aspecto sacrificial é claramente afirmado aqui. E este era um sacrifício que
visava satisfazer uma demanda divina. A próxima citação evidencia que Ambrósio
via a morte de Cristo prefigurada nos sacrifícios judaicos:
Portanto, o homem que é sábio
e tem conhecimento do futuro observa os mistérios celestiais e de acordo com a
mensagem de Deus, matou um cordeiro destinado por seu pai aos ídolos, e ele
mesmo sacrificou outro cordeiro de sete anos para Deus. Ao fazer isso, ele
revelou muito claramente que após a vinda do Senhor todos os sacrifícios dos
gentios devem ser abolidos, e apenas o sacrifício da paixão do Senhor deve
ser oferecido a Deus para a redenção do povo. Pois aquele cordeiro
prefigurava Cristo, em quem, como disse Isaías, habitou a plenitude das
sete virtudes espirituais. Também Abraão ofereceu este cordeiro quando viu o
dia do Senhor e se alegrou. Ele é quem foi oferecido agora na figura de uma
criança, agora na de uma ovelha, agora na de um cordeiro. De uma criança,
porque Ele é um sacrifício pelos pecados; de uma ovelha, porque Ele é uma
oferta voluntária; de um cordeiro, porque Ele é uma vítima sem mancha. (Do Espírito Santo 1:4)
Não devemos, então, supor que
o Pai que ressuscitou a carne está sozinho; nem, novamente, devemos
supor a semelhança do Filho, cujo corpo foi ressuscitado. Aquele que
ressuscitou certamente também vivificou. Aquele que vivificou, também perdoou
pecados. Aquele que perdoou pecados, também apagou a sentença. Aquele
que apagou a sentença, também a cravou na Cruz.
(Exposição da Fé Cristã 3:13)
Sobre a natureza propiciatória
de sua morte:
Formamos a congregação do
Senhor. Reconhecemos a propiciação de nosso Senhor Deus, que nosso
Propiciador operou em Sua paixão. (Sobre os deveres dos clérigos 3:102)
Rivière comenta sobre
Ambrósio:
Todos esses benefícios que devemos a morte de Cristo mostram seu valor. St. Ambrósio também permite a esta um caráter penal o que nos capacita entende-la um pouco melhor. A palavra satisfação não é desconhecida para ele que a utiliza para descrever nossos atos de penitência, mas numa ocasião, ele faz uso dela em conexão com a morte de Cristo:
Ideo suscepit lesus carnem, ut maledictum carnis peccatricis aboleret ; et factus est pro nobis maledictum., ut benedictio absorberet maledictum. Suscepit enim et mortem ut impleretur sententia, satisfieret iudicato : Maledictum carnis peccatricis usque ad mortem. [De Fuga Saeculi 7:44]
(...) Em outra passagem, inspirando-se em São Paulo, ele repete que Cristo foi feito pecado e maldição por nossa causa: “Tu és pecado, oh homem! O Pai onipotente também fez de Cristo pecado” [In Ps. 118]. Isto não significa que ele se tornou um pecador, mas que tomou sobre si nossos pecados:
“Então, o Senhor se
transformou num pecador? Não, mas desde que Ele assumiu nossos pecados,
ele é chamado de Pecado, pois o Senhor também é chamado de maldito, não porque
o Senhor foi convertido em uma coisa maldita, mas porque ele mesmo assumiu
nossa maldição” [O Sacramento da Encarnação do Nosso Senhor 4:60].
St. Ambrósio igualmente toma Romanos 8:3 como uma referência à expiação do pecado:
"Damnavit peccatum, ut peccata nostra in sua carne crucifigeret; factus pro nobis ipse peccatum, ut nos essemus in ipso iustitia Dei. Ergo pietatis est susceptio peccatorum ista, non criminis. Per hoc peccatum nos Deus aeternus absolvit, qui Filio suo proprio non pepercit et peccatum eum fecit esse pro nobis". [Comentários sobre os Salmos 37:5-6]
“O único digno de ser eleito para
tal morte era Jesus Cristo, aquele que tira o pecado do mundo” [Defesa do
Profeta Davi 5:22] e “Que grande misericórdia, que por nossos crimes ele se
apresentou como sacrifício pelos nossos pecados, para que de nenhuma outra
forma eles pudessem ser abolidos, a não ser lavando o mundo com o seu sangue”
[Comentários sobre os Salmos 47:17]
Uma razão para isto é que para
libertar outros, um homem deveria ser sem pecado [Comentário sobre os Salmos
118 5:22]. Outra razão é que nenhum homem poderia suficientemente limpar o
mundo [Comentários sobre Lucas 6:109].
(...) Assim quando examinamos
a superfície do pensamento de St. Ambrósio, nós encontramos que a morte de
Cristo nos redime e purifica, não meramente porque é um sacrifício, expiação e
uma substituição penal, mas principalmente por causa da qualidade
transcendental do sofredor. (Rivière,
p. 273-279)
Não são necessários
comentários adicionais. Após a exposição de Kelly e Riviére, é razoável afirmar
que Ambrósio foi claramente um antecedente da SP no séc. IV.
Ambrosiastro (séc. IV)
Ambrosiastro é o nome dado a
um autor desconhecido do séc. IV que escreveu importantes comentários sobre as
epístolas de Paulo. Seu nome deriva do fato destas obras terem sido atribuídas
a Ambrósio, o que é largamente desacreditado nos dias atuais. Kelly comenta:
A interpretação
sacrificial da morte do Senhor é comum em outros escritores latinos do período.
Ambrosiastro recorda com frequência que Cristo morreu por nós e por nossos
pecados, oferecendo dessa forma um sacrifício de aroma suave [Comentário sobre Romano 5:6-10]. O
valor total dessa oblação, ele assinala, encontra-se no amor e na obediência aí
demonstrados [Comentário sobre 2 Coríntios 5:15]. (Kelly,
p. 296)
Sigamos com Rivière:
Nosso comentarista também
segue St. Paulo ao declarar que Cristo foi feito pecado e maldição. Que ele foi
feito pecado, na linguagem levítica, simplesmente significa que ele foi feito
vítima de nossos pecados:
“Tendo em vista o fato de que ele
foi oferecido como oferta pelo pecado, não é errado dizer que ele foi feito
pecado, porque, na lei, o sacrifício a qual era oferecido pelo pecado costumava
ser chamado de pecado. Ele que não conheceu pecado, nas palavras de Isaías: ‘Ele
que não conheceu pecado, nem traição foi encontrada em seus lábios’, foi
morto como um pecador, para que assim pecadores possam ser justificados diante
de Deus” [Comentários em 2 Coríntios 5:21]
Nós podemos explicar da mesma
forma como Cristo foi feito maldição: “Por causa da maldição, ele se ofereceu
para ser feito maldição”. O escritor é cuidadoso em apontar que St. Paulo não
diz que Cristo foi ”amaldiçoado”, o que iria necessitar de uma expiação pessoal,
mas que ele era uma “maldição”, pelo qual ele descreve uma penalidade
externa e legal [Comentário sobre os Gálatas 3:13]
(Rivière,
p. 280-281)
Pelágio (360-420)
Pelágio não é tecnicamente um
pai da Igreja, apesar de sua importância histórica. Ele ficou conhecido por seu
ensino herético a respeito da graça. De toda a forma, os manuais patrístricos
que estamos utilizando abordam seu testemunho a respeito da expiação. Dessa
forma, também faremos, começando com Kelly:
De acordo com Pelágio, apenas
Jesus Cristo "foi julgado em condições de ser oferecido como sacrifício
imaculado em favor de todos os que estavam mortos em pecados" [Comentários
em 2 Coríntios 5:15]. Deus havia decretado a morte aos pecadores, e, ao
morrer, Cristo pôde ao mesmo tempo manter tal decreto e isentar a humanidade de
seus efeitos [Comentários em Romanos 3:25]. Uma ideia que Pelágio procura
destacar é que era lógico que a vida de Cristo podia ser oferecida em nosso
lugar, porque, sendo inocente, de Sua parte Ele não merecia a morte
[Comentários em Romanos 5:24]. (Kelly, p. 296)
Rivière complementa:
Sua morte foi necessária, porque
Deus fez o nosso perdão depender dela: “Deus ofereceu um propiciador (...)
e fez uma expiação por eles (...) aqueles que acreditam no seu sangue para a
libertação (...) porque Cristo sofreu com o propósito deste poderoso
discurso, ao invés de punir os pecadores” [Comentário sobre Romanos 3:25].
Alguma expiação pelos nossos pecados era necessária e somente Cristo poderia
fazer isto: “Somente ele foi considerado uma vítima imaculada por todos
aqueles que estavam mortos em seus pecados, para os quais a oferta foi
oferecida” [Comentários em 2 Coríntios 5:15]. Esta foi a razão pela qual
ele foi feito pecado – um sacrifício pelo pecado [Comentários em Romanos 8] –
um sacrifício espontâneo que agrada a Deus por causa do amor que ele revela.
(Rivière, p. 294-295)
Jerônimo (?-420)
Kelly traz um breve comentário sobre Jerônimo:
Embora, de certa forma, suas
idéias não estivessem sistematizadas, Jerônimo também reconheceu que Cristo
"suportou em nosso lugar o castigo que devíamos ter sofrido por nossos
crimes" [Comentários em Isaías 53:5-7].
Ninguém, afirmou ele, pode se aproximar de Deus sem o sangue de Cristo
[Comentários em Efésios 2:14] .
(Kelly, p. 296)
Ao apresentar a passagem acima
do comentário de Jerônimo sobre Isaías, Rivière disse:
Ao explicar Isaías 53, St. Jerônimo
reconhece abertamente o caráter penal da morte de Cristo. Cristo sofreu
realmente e não apenas em aparência. Ele carregou na cruz o peso dos nossos
pecados: “Ele foi pendurado na cruz e se tornou maldição pelos nossos pecados”.
Assim, ele sofreu pelos nossos pecados para que pelas suas feridas nós fôssemos
curados. Ele sofreu em nosso lugar a penalidade pelos nossos delitos. (Rivière,
p. 287)
Leão I (?-461)
Aqui, vamos depender exclusivamente de Rivière, uma vez que Kelly não aborda esse período:
Ele, no entanto, considera
a morte do salvador como um sacrifício [Sermão 5:3]. Na verdade, foi o
único sacrifício para a qual todos os sacrifícios antigos apontavam [Sermão 68:3].
Um de seus resultados foi nos libertar da morte eterna [Sermão 70:1].
Outro resultado ainda mais importante foi nos reconciliar com Deus: “Uma
vítima teve que ser oferecida para nossa expiação, que deveria ser parceira
de nossa raça e livre de nossa contaminação, para que este desígnio de Deus
pelo qual Lhe aprouve tirar o pecado do mundo na Natividade e Paixão de Jesus
Cristo pudesse chegar a todas as gerações” [Sermão 23:3]”
e “Pois por esta transferência, a propiciação do Cordeiro imaculado e o
cumprimento de todos os mistérios passaram da circuncisão para a incircuncisão,
dos filhos segundo a carne para os filhos segundo o espírito. Assim diz o
Apóstolo, 'Cristo nossa Páscoa é sacrificado por nós', que se ofereceu ao Pai
como um novo e verdadeiro sacrifício de reconciliação” [Sermão 59:5 https://www.newadvent.org/fathers/360359.htm].
Fomos reconciliados e nossos
pecados foram apagados porque nosso Salvador inocente assumiu e reparou as
falhas de nossa natureza culpada: “Foram nossas impurezas que foram lavadas, nossas
ofensas que foram expiadas. Pois a natureza (que em nós sempre foi culpada
e cativa) sofreu nele, embora inocente e livre. Para "tirar o pecado do
mundo", aquele "Cordeiro se ofereceu" a si mesmo "como
vítima'' a quem tanto sua substância corporal se uniu a todas as outras, quanto
sua origem espiritual se distinguiu de todos os outros” [Sermão 56:3].
Ou, para resumir o assunto, ele tomou nosso lugar: “Ele somente, que era sem
culpa, no qual estava a natureza de todos os homens , poderia empreender a
causa de todos (...) Ele está disposto a ser conduzido; mas, se Ele
quisesse resistir, as mãos perversas não lhe poderiam ter feito mal. No
entanto, a redenção do mundo teria sido impedida, e Ele, que morreria pela
salvação de todos os homens, não teria salvado absolutamente ninguém” [Sermão 59:1].
(...) A morte dos santos e
mártires de Deus é de fato um exemplo precioso de virtude, mas só a morte do
Salvador é uma expiação porque por meio dele nossa dívida foi paga, e
porque Nele todos nós morremos e ressuscitamos:
“No entanto, a morte de
nenhum ser humano inocente foi uma propiciação pelo mundo. Os justos na
verdade receberam e não deram coroas. Da força dos crentes nasceram exemplos de
longanimidade, não dons de justiça. Mortes separadas na verdade, ocorrem
separadamente, nem ninguém pode pagar a dívida de outrem por sua própria
conta. Entre os filhos do ser humano, apenas um se destaca, a saber, nosso
Senhor Jesus. Cristo, em quem todos foram crucificados, todos morreram, todos
foram sepultados e até ressuscitados [Sermão 64:3]”.
(Rivière, p. 309-311)
Gregório
Magno (?-604)
Gregório foi bispo de Roma e o último dos pais latinos. Ele
iria recuperar muito do que foi dito por Agostinho. Sigamos com Rivière:
Seguindo os passos de St. Agostinho, St.
Gregório pontua que, por causa dos nossos pecados, nós fomos condenados a uma
dupla morte: a morte real, a qual é a morte da alma, e a morte corporal, que é
a sombra da anterior. Cristo, através da sua morte corporal, nos livrou de
ambas [A Moral no Livro de Jó 4:16].
A razão de tudo isso é que nosso senhor não merecia morrer [In Euang. Homi.
xxv. 9]. Assim, Ele suportou a penalidade dos nossos pecados:
“Mas penso que entenderemos
melhor essas palavras, se as entendermos como faladas pela voz da Cabeça. Pois,
nosso Redentor, ao vir para nossa redenção, não cometeu nenhum pecado, e mesmo
sendo sem pecado, Ele tomou a punição de nosso pecado” [A Moral no Livrode Jó 3:34].
E a morte imerecida do inocente compensa a pena merecida pelo culpado de acordo
com o princípio jurídico estabelecido por St. Agostinho e repetido textualmente
por Gregório:
(...) ele [Satanás] buscou que
a carne Dele [Jesus] fosse morta, em quem ele não encontrou nenhum vestígio da
dívida do pecado. Assim, nosso Senhor pagou em nosso nome a morte não devida
[a Jesus], para que a morte devida [a nós] não nos ferisse [Ibid. 13:47]
Este mesmo princípio é
expresso por nosso doutor de uma forma mais pessoal:
Pois era apropriado que a
morte de um homem justo, que morresse injustamente, fosse um resgate pela morte
de pecadores que morriam com justiça [Ibid. 33:31]
e “Cristo, que, sem ele o ter, pagou por nós a dívida da morte, os
livrou de suas dívidas. Assim, as nossas dívidas já não nos colocam debaixo
do poder do nosso inimigo, visto que o Mediador entre Deus e os homens,
Jesus Cristo feito homem, cumpriu por nós com toda a gratuidade a dívida que
ele próprio não havia contraído [Homilia sobre os Evangelhos 39:8]
Numa palavra, nosso salvador
pagou a penalidade do pecado: “nosso Redentor por sua própria morte pagou a
pena do homem” [A Moral no Livro de Jó 4:56].
Nessas palavras, vemos expresso com a máxima clareza a doutrina da
satisfação penal. Esta doutrina sugere a Gregório a dificuldade clássica:
Como pode Deus, que é justo, punir o inocente? A isso nosso doutor responde
expondo o plano de Salvação e os resultados salutares da morte de Cristo:
Mas devemos considerar como Ele
é justo e ordena todas as coisas com
justiça, mesmo quando condena aquele que não merece ser punido. Pois, o nosso mediador não merecia ser punido
por si mesmo, porque Ele nunca foi culpado de qualquer contaminação do pecado.
Porém, se Ele não tivesse sofrido uma morte que não lhe fosse devida, nunca
teria nos libertado de uma morte que era devida com justiça a nós. E assim,
enquanto 'O Pai é justo', ao punir um homem justo, 'Ele ordena todas as
coisas justamente’. É por estes meios
Ele justifica todas as coisas, tendo em vista que por causa dos pecadores, Ele
condena aquele que não tem pecado para que todos os eleitos pudessem ser
elevados a altura da justiça, na mesma proporção que Ele que, acima de todos, sofreu
as punições de nossas injustiças. O que então está naquele lugar chamado de
'ser condenado sem merecimento', é aqui referido como sendo 'condenado sem
causa’. No entanto, embora a respeito de si mesmo Ele tenha sido 'afligido sem
causa', em relação aos nossos atos não foi 'sem causa. Pois a
ferrugem do pecado não poderia ser removida, a não ser pelo fogo do tormento.
Ele então veio sem pecado, e deveria se submeter voluntariamente ao tormento,
para que os castigos devidos à nossa maldade pudessem com justiça perder as
partes detestáveis, visto que injustamente haviam mantido Ele, que estava livre
delas. Assim, foi ambos – com causa e sem causa - que Ele foi afligido,
pois realmente ele mesmo não cometeu crimes, mas limpou com seu sangue a
mancha de nossa culpa [Ibid. 3:27]
São Gregório também fala em
outra passagem de nossa reconciliação, e nos diz que envolve duas coisas - a
mudança de nossos corações pela penitência e o apaziguamento da ira de Deus,
ambos os quais foram efetuados pela Paixão:
Portanto, deixe o homem santo
se lembrar de onde a raça humana escapou, deixe-o olhar para as desgraças da
morte eterna, sendo claro que a justiça humana nunca poderia resistir. Deixe-o
ver quão perversamente o homem tem ofendido, deixe-o ver quão severamente a ira
do Criador é dirigida contra o homem, e que ele clame pelo Mediador entre
Deus e o homem (...) Pois o Redentor da Humanidade foi feito Mediador entre
Deus e o Homem através da carne, porque só Ele apareceu justo entre os homens.
Ainda que sem pecado, Ele veio para suportar a punição do pecado (...)
Ele deu exemplos de inocência quando levou sobre Si o castigo devido à
maldade. Assim, pelo seu sofrimento, Ele convenceu a Um e a outro, pois ele
tanto repreendeu o pecado do homem infundindo-lhe a justiça como abrandou a
ira do Juiz através de sua morte.
Ele impôs Sua mão sobre ambos, uma vez que Ele deu exemplos aos homens
que eles poderiam imitar, e exibiu em Si mesmo aquelas obras para Deus,
pelas quais Ele poderia ser reconciliado com os homens. (...) Assim, Ele
impôs Sua mão sobre ambos, pois pelos mesmos passos ensinou as boas obras aos
culpados, e também apaziguou o indignado Juiz. (Ibid. 9:61)
Disto vemos que se a morte do
Salvador nos reconcilia e apaga nossos pecados, esta não é apenas porque tinha
o valor de um exemplo - uma visão que Harnack aparentemente atribui a São
Gregório, mas porque é uma expiação real. Tanto a expiação objetiva como
a subjetiva ocupa lugar na mente de St. Gregório. (Rivière, p. 317-320)
Após esta bem documentada
análise, resta evidente que Gregório entendia que, ao morrer, Cristo estava
sofrendo a punição devida a nós e também estava apaziguando a Ira de Deus,
permitindo o perdão dos pecados e a reconciliação. Rivière encerra o primeiro
volume de sua obra sobre a expiação trazendo algumas conclusões a respeito dos
pais gregos e latinos:
Eles [os Pais Latinos] nos
dizem que Cristo morreu por nós e por nossos pecados, e que Sua morte apaga
nossos pecados, nos reconcilia com Deus e destrói nossa morte. Para explicar a
eficácia salutar de sua morte, eles usam as figuras de resgate e sacrifício.
Eles apontam que a dívida do culpado foi paga pelo inocente. Examinando
as condições da obra da redenção eles chegam à conclusão que não poderia ser
realizado por ninguém, exceto por Cristo (...) Todos [Pais gregos e latinos]
consideram a morte de Cristo como sendo mais do que um mero exemplo. Ela tem um
valor fora de nós e nos planos Divinos. Tem uma eficácia real, embora
misteriosa, e um valor ao mesmo tempo objetivo e final. Esta eficácia
sobrenatural é vista em sua dupla ação: a morte de Cristo, em primeiro
lugar, apazigua a ira de Deus, e, em segundo lugar, é a penalidade pelos nossos
pecados suportada voluntariamente por nosso Salvador em nosso lugar. Essas
duas ideias de sacrifício expiatório e de substituição penal parecem resumir
todas as muitas palavras dos Padres sobre o assunto.
(Rivière, p. 321)
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